POV Heloísa

Depois de uma noite muito agitada, entre as zuações com a coitada da Maria e pessoas pisoteadas no manifesto contra o governo, enfim meu plantão chegava ao fim. Passei na pediatria a fim de verificar se a Lu estava liberada e fui informada que ela estava em um procedimento no centro cirúrgico, mas que já deveria estar acabando. Decidi esperá-la na cantina entre um cappuccino e um bolo de laranja.

_ Bom dia gostosa. Levantei a sobrancelha já reconhecendo a voz e a ousadia na brincadeira. Ela me deu um sorriso sacana e roubou um pedaço do meu bolo. _ Pensei que tivesse ido embora, passei na ortopedia e disseram que seu plantão tinha acabado.

_ E acabou, estou esperando a Lu para irmos embora juntas. E você?

_ Temos a mesma sina morena, kkkk... Olhei pra ela demonstrando curiosidade no assunto e ela voltou a rir. _ Nossa sina é viver à espera das nossas loiras, kkkk...

Aproveitei que estávamos sozinhas, algo que era bem raro, uma vez que sempre estávamos acompanhadas, quando não pela Luna, pela Alex, pra puxar um assunto que há muito me intrigava. _ Carina eu queria entender um pouco esse lance da Cartomante, você pode me explicar?

_ Te explicar fica complicado, até mesmo porque nunca acreditei muito em esoterismo, mas a Madame Berta me surpreendeu em todos os níveis possíveis e imagináveis.

_ A Lu também nunca foi ligada nessas coisas, me custa acreditar que ela tenha feito tudo o que fez pautada em uma cartomante.

_ A Alex me disse que foi ela quem insistiu para que a Luna fosse e acabou vencendo a loira pelo cansaço. Pelo que sei a Lu não acreditou em absolutamente nada que foi dito na primeira consulta, mas mudou de ideia quando soube que você estava voltando.

_ Então é verdade que a cartomante previu minha volta?

_ Pelo que ela me falou sim.

_ Mas e essa loucura de se esfregar com todo mundo para me fazer ciúme foi a cartomante quem mandou?

_ Não, ela não diz claramente o que temos que fazer. Ela é bem enigmática e é você quem tem que escolher o caminho que quer seguir. Ela disse a Lu que ela precisava mudar de estratégia se quisesse te reconquistar e que a essência dela a ajudaria. O resto foi interpretação da loira.  

_ Cada dia me impressiono mais com essa tal Madame Berta.

_ Te entendo, também fiquei assim, só que minha curiosidade falou tão alto que eu acompanhei a Lu na última consulta e o resultado tem 1,75 de altura, 80kg bem distribuídos e um sorriso que me tira o fôlego, kkk...

_ Muito louco isso, imaginar que você e a Alex conviviam diariamente e nunca se olharam. Agora estão aí no maior love.

_ Louco foi eu infernizar a coitada da interna achando que seria ela minha alma gêmea e receber o tão esperado tapa da última pessoa que eu elencaria como sendo uma possibilidade.

_ É isso que não entendo, em circunstâncias normais você nunca olharia pra Alex e muito provavelmente ela também nunca te olharia. Aí vem uma cartomante e diz que sua alma gêmea lhe dará um tapa e pronto, amor à vista.

_ Não foi bem assim Heloísa, a Madame Berta falou que meu amor estava ao meu lado e que cega eu não enxergava. Mas deixou bem claro que dependendo das minhas atitudes esse amor poderia florescer ou não. Quando a Alex me deu o tapa, minha cabeça entrou em parafuso, pois nunca imaginei que pudesse ser alguém tão próximo quanto ela. Dizer que a amei naquele minuto seria mentira, eu simplesmente resolvi pagar pra ver, afinal o máximo que poderia acontecer era mais um tórrido romance, com muito sex* gostoso e uma amizade subsequente, assim como foi com a Lu.

_ Você não existe Carina. Só me poupe da parte do sex* gostoso com a minha mulher, pelo amor que você tem aos dentes.

_ Gente como é violenta essa morena. Assim eu gamo, kkk...

_ Posso saber qual o motivo de tanta empolgação em pleno final de plantão? Olhei para trás e recebi um selinho demorado.  

_ Sua esposa está ameaçando quebrar meus dentes, aí muito gentilmente eu expliquei que assim ela corre um enorme risco de me fazer ficar apaixonada por ela.

_ Bom saber disso Carina, então devo considerar a Helô uma oponente? Olhamos para o lado e como surgida das cinzas a Alex apareceu com um copo de café e uma cara de cansaço extremo.

_ Jamais amor, ninguém tem a capacidade de ocupar seu lugar no meu coração. Ela sorriu de forma galanteadora para a namorada e levantou para abraçá-la.

_ Nem na sua cama Carina, que fique bem claro!

Foi impossível não rir do jeito enciumado da Alex. Nunca conhecemos o lado ciumento da loira, nem mesmo quando ela estava casada com o Henrique ou quando suspirava pelos cantos do hospital envolta com o sentimento platônico direcionado ao Davi.    

_ Amor mudando de assunto eu quero ir na tal da Madame Berta. A coitada da Luna quase engasgou com o café enquanto me olhava incrédula.

_ Posso saber o motivo?

_ Apenas curiosidade.

_ Tudo bem, vou marcar um horário para irmos.

_ Não, eu quero ir sozinha. Me passa o telefone que eu mesma agendo um horário. Novamente ela me olhava com certo estranhamento.

_ Aconteceu alguma coisa Heloísa? 

_ Não, só estou curiosa, quero muito conhecer a mulher que foi capaz de convencê-la a acreditar em esoterismo.

_ E porque não posso ir junto?

_ Nada demais, só quero ter privacidade para conversar com ela.

Observei o olhar surpreso das meninas, tão surpresos quantos o da Luna. Até a Carina estranhou minha vontade de ir sozinha, mas eu queria muito que a tal cartomante conhecesse a mulher que ela basicamente enlouqueceu de tanto ciúme. Essa mulher me levou as raias da loucura e eu precisava encará-la de frente, muito embora ainda não tivesse decidido se deveria agradecê-la, pois esse plano maluco me levou até a Luna novamente ou se deveria xingá-la, pois só eu sabia as lutas internas que enfrentei ao ver a minha mulher pular de uma cama para outra como se eu simplesmente não existisse. Na verdade o que mais me machucou não foi nem vê-la com outras e sim vê-la sair da minha cama como se eu fosse apenas mais uma dentre tantas.

Terminamos nosso café e fomos para casa. Como o plantão foi agitado acabamos literalmente desmaiando. Quando acordamos, por volta das 14h da tarde, ela quis retomar o assunto sobre eu ir sozinha a cartomante, mas eu não dei muita brecha. De posse do telefone, agendei uma consulta praquele mesmo dia, que por coincidência tinha vagado um horário da agenda disputadíssima da Madame Berta.

_ Amor sei que combinamos de pegar um cineminha hoje à tarde, mas consegui uma vaga na cartomante pra ser atendida ainda hoje.

_ Sério Helô, estamos marcando de ver esse filme há um tempão. Que desespero é esse de ir na Madame Berta?

_ Desespero nenhum gata, mas sabe-se lá quando conseguiremos combinar nossas agendas de novo. Deixa eu aproveitar que a sorte tá do meu lado e ir de uma vez. No mais podemos ir ao cinema a noite, depois aproveitamos e jantamos naquele restaurante que você adora.

Ela não gostou muito, mas não teve escolha a não ser aceitar. Tomei um banho bem demorado, escolhi uma roupa que me permitisse esticar a noite, caso desejássemos e saí de casa. Cerca de 20 minutos depois estava eu adentrando a sala da famosa Madame Berta.

_ Você demorou morena. Ela disse ainda de costas enquanto organizava algumas coisas em uma prateleira qualquer. Olhei pra ela de forma bem incrédula, é claro que aquilo era um blefe, só podia ser, não tinha como ela saber quem eu era, afinal eu tive o cuidado de utilizar um nome qualquer ao agendar a consulta.

_ Você me conhece? Perguntei instigando ela a continuar. Ela sorriu, me indicou a cadeira a sua frente para que sentássemos e gestualmente pediu que eu dividisse o baralho em três partes iguais. _ A senhora não me respondeu. Você me conhece? Voltei a questionar enquanto repartia o baralho conforme ela tinha me pedido.

_ Pessoalmente não, mas há um certo tempo espero sua visita.

_ Então deixa eu me apresentar formalmente, prazer Silvia. Estendi a mão a ela em sinal de cumprimento.

_ O nome pouco importa minha linda, mas saiba que o prazer é todo meu. Agora entendo o fascínio da Luna, kkkk... Você tem uma aura muito forte latina.

Congelei na hora, como assim ela sabia que a Luna era a minha mulher. Ela juntou novamente os baralhos, formando um único monte e pediu que eu pegasse três cartas aleatórias e assim eu fiz.

_ Interessante

_ O que é interessante?

Ela sorriu e tirou mais duas cartas colocando lado a lado com a três que eu tinha escolhido. _ Ardiloso esse destino. Menino travesso, kkk... Eu continuava olhando pra ela tentando entender o que de tão interessante poderia ter naquelas cartas.

_ Eu gosto do seu jeito intempestivo, do seu sangue latino, mas preciso te dizer que a Luna superou todas as minhas expectativas em relação a você. Ela foi ousada, abusada e até mesmo perversa, mas acima de tudo ela foi corajosa, enfrentou seus medos, suas inseguranças e partiu para o embate. Parecia que a mulher sabia o motivo pelo qual eu estava lá. Me olhava com um ar de desafio que estava me deixando desnorteada. _ A pergunta que me faço agora é se você teria a mesma garra que ela?

_ Como assim?

_ Uma das grandes paixões da sua loira está voltando e a pergunta que não quer calar é o que você fará diante dessa informação? Meu coração acelerou, perdeu o compasso e minha respiração ficou sôfrega repentinamente. Não fosse a mesa, certamente eu teria caído. _E será que essa história de destino é realmente verdade morena? Até onde vai a sua credulidade em destino? Até onde vai sua credulidade em relação a sorte ou azar? Até onde está disposta a pagar pra ver? Faça sua escolha, lance suas cartas e acima de tudo assuma as consequências. Nessa altura do campeonato eu já tinha desaprendido a respirar, meu peito doía e minha cabeça girava imersa a milhares de perguntas não respondidas.

_ Ainda que eu não fosse cartomante ou adepta da quiromancia eu leria sua mente. Te desvendaria por inteiro, descobrindo facilmente seus segredos, pois sua alma é limpa e revela todos seus mistérios e seus maiores medos. Não preciso de bola de cristal para ver o que se passa em você, bastando apenas olhar em seus olhos.

_ Ela vai me deixar? A muito custo consegui articular a frase que eu mais temia.

_ Quem dera tudo fosse tão simples assim, cada ação traz consigo uma reação e a resposta para sua pergunta está ligada diretamente ao caminho que escolherá. O que posso te dizer é que a tendência a partir de hoje é que as coisas comecem a sair do marasmo e o que te parecia impossível ontem, começa a se mostrar mais simples que imaginava. Ela sorriu ternamente e continuou falando. _ Novos desafios se aproximam e exigirão de você uma postura mais incisiva. É hora de amadurecer e repensar o futuro. Chegou a sua vez de brigar pelo seu amor latina, sendo assim escolha suas armas e se prepare para a luta, pois sua adversária vem com sangue nos olhos e a Luna será tentada a aceitá-la.

Saí de lá extremamente desnorteada, com a sensação de que veria meu mundo desabar a qualquer momento. _ Como assim ela será tentada a aceitar? Eu me perguntava enquanto tentava recobrar o equilíbrio para dirigir. Meu celular tocou e vi que era a Luna enviando uma mensagem avisando que estava a caminho do Shopping e que me encontraria na sorveteria ao lado do cinema. Respondi um simples OK e me encaminhei para o local combinado.

A sorte que afirmei estar comigo mais cedo parecia estar indo embora, pois um engarrafamento surgido do nada apareceu no meu caminho, fazendo eu perder cerca de 40 minutos em um caminho, que em dias normais não levaria nem 10. O Shopping parecia ter alguma promoção imperdível, pois o estacionamento estava lotado e eu só consegui achar vaga no último piso.

Saí do carro apresada já imaginando o humor da Luna, ela detestava ficar esperando e eu não estava nem um pouco disposta a discutir. Na verdade eu ainda estava completamente perdida, sem saber se deveria levar em consideração tudo que a Madame Berta tinha me falado ou se simplesmente continuaria minha vida como se nunca tivesse a conhecido.

Enquanto esperava o elevador eu questionava justamente isso, eu nunca acreditei em destino, pelo contrário, sempre acreditei que temos o poder de mudarmos nossa história a qualquer momento. Então porque eu estava tão abalada? O elevador chegou e eu aproveitei o espelho para retocar a maquiagem. Coloquei meu melhor sorriso e saí disposta a ter uma noite gostosa com a minha mulher. Me direcionei à sorveteria e o que vi balançou minhas estruturas mais que devia. A Luna estava a pleno riso com uma mulher, até então desconhecida. Meu ciúme falou mais alto e como num passe de mágica ouvi a voz da Cartomante dizendo que uma das paixões da Luna estaria de volta.

_ Desculpe o atraso amor, peguei um engarrafamento infernal. Dei um selinho nela, deixando claro para quem quisesse ver que a loira era minha. Olhei para morena ao lado da Luna e dei um sorriso amarelo em cumprimento.

_ Oi amor, nem percebi o tempo passar. Encontrei a Mônica por acaso e acabamos nos entretendo entre lembranças e histórias desses anos que não nos víamos.

_ Lembranças? Sorri mais amarelo ainda. _ Prazer Mônica. Direcionei minhas mãos a ela em um cumprimento completamente forçado. _ De onde vocês se conhecem?

_ Longa história né Lu, kkkk...

Lu, essa intimidade não estava me soando nada bem. _ Adoro histórias longas.

_ Amor a Mônica foi minha primeira paixão, kkkk... Nós fizemos parte do colegial juntas. Lembra Mônica quando você disse que tinha vontade de me beijar? kkkk... Ela falou virando para a fulaninha que gargalhou junto com ela.

_ Nossa você fez uma cara muito engraçada, kkkk.... Nós tínhamos o que, 15 anos?

_ Você 15 e eu 16, kkkk.... Parecia que nunca tínhamos beijado na boca. Bons tempos, éramos tão inocentes, kkkk...

_ Mais a inocência foi embora logo, né dona Luna Fagundes, kkkk... Mais uma vez elas voltavam a gargalhar.

Meu estomago embrulhou e uma vontade súbita de vomitar me fez correr para o banheiro. As palavras da Madame Berta gritavam em meu ouvido e a sensação de meu mundo estava ruindo assolava minha mente. _ Até onde vai a sua credulidade em destino? Foi a última coisa que falei comigo mesma antes de ver as duas invadindo o banheiro atrás de mim.

Fim do capítulo