-- Oi Carol, entra.

 

 

            Ouvir a voz de Ângela tanto tempo depois pareceu soar como uma piada de mal gosto, queria sentir raiva, queria sentir rancor, queria odiar aquela mulher que feriu seu coração de uma maneira que ela nunca imaginou sofrer, mas tudo o que sentiu foi o calor preenchendo o vazio que tinha ficado com a ausência dela, foi como se ela nunca tivesse ido embora, se reconheceu naquele timbre doce e suave que parecia mais uma linda melodia, uma melodia que quase estava esquecida, mas naquele momento percebeu que nada a faria esquecer aquele amor.

            Antes que a porta do elevador fechasse novamente, Carolina conseguiu mover suas pernas que pareciam paralisadas depois da emoção de revê-la na sua frente. Um pé, depois o outro, como se estivesse aprendendo a andar, ficar sem a presença dela todo esse tempo foi um grande aprendizado, precisou reaprender a viver sem a mulher que conquistou seu coração e sua confiança, mas que deixou quebrar quando a abandonou sem nenhuma explicação.

            Ângela por sua vez estava tão transtornada quanto Carolina, olhava para a mulher parada à sua frente e podia jurar que não a conhecia, o olhar perdido e tristonho não era aquele que ela deixou para trás naquele fatídico dia em que se afastaram, Carolina estava mais magra, exatamente como Aline descreveu, as olheiras denunciavam as noites mal dormidas, sentiu seu peito doer com a visão daquela que era dona do seu coração, mas que ela magoou de um jeito que não sabia se teria perdão.

            Quando o porteiro anunciou que Carolina estava em sua porta, ela sentiu o corpo inteiro estremecer, ouvir aquele nome depois de dois anos longe, trouxe memórias que estavam esquecidas até então, Ângela tinha chegado de Londres a apenas dois dias, estava lidando com os problemas da família, a empresa do pai estava sendo investigada por causa de fraudes em licitações, e Vera estava perdendo seu reinado, tudo acontecendo ao mesmo tempo, mas a grande surpresa até para ela mesma foi a prisão de sua mãe por conta da falta de licença, Vera não era cirurgiã plástica, no conselho ela era apenas cirurgiã geral, por isso ela insistia tanto para Ângela se especializar, para poder manter a clínica com uma pessoa licenciada, mas não deu tempo da moça voltar, o destino parecia estar favorecendo a união das duas novamente.

            Ângela percebeu o quanto Carolina estava atordoada com aquele reencontro, e apesar de também estar sentindo um turbilhão de emoções, tentou se manter no controle de suas emoções.

 

 

-- Entra, vamos conversar no meu quarto.

 

 

            Carolina não emitiu nenhum som, apenas saiu pelo corredor, entrando na sala grande do apartamento luxuoso que Ângela morava com a família, a morena caminhou sem muita convicção alcançando uma escada suntuosa, como tudo dentro daquela cobertura, a decoração moderna e visivelmente cara, mostrava como Vera gostava de viver, assim como Lucia e Samantha, só visava coisas materiais, e esquecia do mais importante, sua família.

            Tinham algumas pessoas na sala, conversavam sobre a situação de Vera, reconheceu Ângela na feição de seu pai, o homem sentado em um sofá a olhou com o mesmo tom de azul nos olhos, dois homens que pareciam advogados, tinham papéis espalhados sobre uma mesa, estavam de terno àquela hora, duas mulheres também muito bem arrumadas, olharam para Carolina enquanto ela passava, pelas suas roupas simples, sentiu que elas lhe lançaram um grande olhar de interrogação, mas isso não a incomodou, só queria entender por que tudo aquilo aconteceu.

            Com a cabeça girando a mil por hora, Carolina subia os degraus, cada um era como um peso que ela ia deixando para trás, sentia que teria as respostas que precisava, estava se controlando para não sucumbir à saudade, ela ainda estava lá, doendo, marcando presença em cada pedaço do seu corpo, saudade de abraçar, de beijar, de tocar, de sentir o perfume amadeirado que era tão presente, ele estava ali, Ângela usava o mesmo perfume de sempre, e aquele cheiro tão peculiar lhe lançou em um abismo sem fim, estava embriagada com aquele odor, era o reconhecimento do seu lugar, era onde ela queria estar. Mas estava muito magoada para ceder, não queria voltar para Ângela naquele momento, não sabia se conseguiria voltar para ela algum dia.

            Ângela abriu a porta do quarto exibindo algumas malas ainda por desfazer em um canto, ao lado da porta do closet, a cama estava desarrumada, havia um pequeno caos no cômodo, indicava que ela chegara a pouco tempo. Carolina observou a decoração do quarto da mulher que ama, a cama grande de solteiro ainda, uma TV pendurada na parede em frente à cama, uma bancada onde tinham vários livros de medicina, o notebook estava ligado com o descanso de tela passando e ela percebeu que eram fotos dela com Ângela, daquele namoro que virou um passado muito doloroso. Prateleiras que tinham várias fotos de Ângela, em várias fases da vida, Carolina fixou o olhar em uma onde via uma menininha sorrindo, com os olhos azuis brilhando enquanto segurava um cãozinho no colo, aquele sorriso que preenchia sua alma, estava naquela foto, Ângela não deveria ter mais do que quatro anos.

            O silencio de Carolina estava deixando Ângela mais nervosa do que ela podia aguentar, mas estava com medo de pressionar a cardiologista e piorar a situação, deixou Carolina contemplar seu pequeno mundo, que ela guardava dentro daquele quarto. Até que a cardiologista respirou fundo e se lembrou do motivo de estar ali.

            Encarou Ângela com o olhar cheio de mágoas e fez apenas uma pergunta que era cheia de significados

.

 

 

-- Por que?

 

 

            Ângela sentiu o peso daquelas duas palavras, “por que”, no fim de tudo, nem ela sabia mais, tinha em mente que tudo o que fez foi para proteger Carolina, mas ao reencontrar com a médica, já não sabia mais se sua decisão tinha sido a mais correta, sentiu o sofrimento que ela carregou por todo esse tempo, ela também tinha sofrido, também chorou, também perdeu noites de sono, não se alimentou, mas pensava que estava fazendo a coisa certa, e isso a fazia se levantar todos os dias, até que a ausência e a saudade iam ficando mais longe, os dias foram ficando mais fáceis de levar.

            Mas ver Carolina novamente, desfez aquela imagem de que ela estava bem, que ela ficaria melhor longe dos problemas que sua mãe poderia causar. Não tinha outra opção, a não ser dizer a verdade, tinha medo de como Carolina receberia aquela verdade, mas começou a falar.

 

 

-- Eu fui obrigada. Minha mãe ameaçou você, eu não podia permitir que ela te fizesse nenhum mal.

 

 

            Carolina riu irônica, mais mal do que sua ausência fez? Impossível! Seu pensamento só conseguia imaginar o que teria acontecido se Ângela tivesse dado a chance de ela escolher o que ela queria, se queria enfrentar os problemas junto dela, mas a moça fugiu, escolheu o caminho mais fácil e isso não entrava em sua cabeça. Ângela sentiu a ironia, mas continuou sua explicação.

 

 

 

-- Ela ameaçou te denunciar para o conselho, ela ia destruir sua carreira, eu não podia permitir, Carol, eu sinto muito, mas eu não sabia o que fazer, ela me obrigou a ir pra Londres no dia seguinte, foi tudo muito rápido, eu não tive escolha! – Sua voz embargou –

 

 

 

-- E eu tive escolha? – A voz saiu em um fio – Você me deu escolha, Ângela?

 

 

-- Eu não podia te dar escolha, você não ia fugir, e eu não podia carregar essa culpa, você ia perder o que você mais ama fazer, já se imaginou sem poder clinicar?

 

 

-- Ah, agora eu entendi. VOCÊ não podia carregar esse peso. – Apontou um dedo em sua direção -- E aí eu pude carregar a dor de não saber absolutamente nada sobre você. Eu pude ficar aqui com o coração despedaçado dois dias sem nenhuma notícia sua, pra você terminar comigo pelo telefone. – Falava mais alto –

 

 

            Ângela sentia toda a mágoa que Carolina carregava, ela sabia que tinha sido cruel, mas naquela época imaginava que seria o melhor para as duas, já não pensava mais assim.

 

 

-- Carol, eu não sabia o que fazer, eu só pensava que não podia deixar que ela fizesse nenhum mal contra você. Você ama a medicina, é a sua vida! Eu tinha que tomar uma decisão naquele dia.

 

 

-- Minha vida era você! – Gritou –

 

 

            Carolina não conseguia conter sua emoção, estava deixando a raiva que guardou por tanto tempo sair, precisava colocar pra fora toda mágoa, todo ressentimento que estava sentindo para tentar seguir em frente, e precisava descarregar sua dor. Ângela começou a chorar silenciosamente, nunca tinha visto a cardiologista se comportar daquela maneira, Carolina sempre foi muito calma e controlada, percebeu o mal que tinha causado a ela com sua covardia.

 

 

-- Eu te dei a minha vida, eu te dei o meu coração, minha confiança, e você jogou tudo fora por covardia! Eu nunca me envolvi de verdade com ninguém, nem com Samantha. Foi você, a mulher que conseguiu me invadir de um jeito que eu não consigo nem explicar. – A voz falhou –

 

 

            Carolina estava tentando a todo custo não chorar, mas já que era para colocar toda dor para fora, que venha o choro, as lágrimas já não eram mais controladas, e Ângela apenas ouvia com o coração em pedaços.

 

 

-- Eu amo a medicina, mas eu amava mais você! Eu seria capaz de enfrentar qualquer coisa se eu estivesse ao seu lado. Mas você preferiu fugir, covarde! – Gritou novamente – Covarde!

 

 

-- Carol, me perdoa! – Deu um passo à frente –

 

 

-- Perdoar? – Afastou-se – Mais uma pra me pedir perdão! – Bateu as mãos na lateral do corpo – Eu sou uma babaca que sempre perdoa tudo que todo mundo faz de errado. – Riu – Eu perdoei Samantha inúmeras vezes, mas com todas as besteiras que ela fez, nenhuma delas me machucou tanto.

 

 

-- Eu sei o quanto doeu, porque doeu em mim também. – A voz estava embargada – Eu também sofri, não pense que eu estava feliz vivendo confinada em um quarto, sendo vigiada vinte e quatro horas por dia. Sem poder falar com você, ou te ver. – Também se exaltou –

 

 

-- Foi sua escolha! – Apontou o dedo novamente – Você escolheu sozinha viver assim, não me culpe por seu medo de enfrentar a tirania da sua mãe.

 

 

-- Ela ia te destruir! – Gritou --

 

 

-- Você me destruiu. – Falou mais baixo -- Não consegue perceber isso?

 

 

            Ângela sentiu o peso daquelas palavras, Carolina tentava mostrar o quanto sua ausência fez mal, ficar sem a medicina não seria tão ruim quanto ficar sem ela, a ex-residente tentava manter sua postura de ter feito a coisa certa, mas isso estava cada vez mais longe de seus ideais.

 

 

-- Você me destruiu quando me deixou! Destruiu minha confiança nas pessoas, destruiu minha fé no amor. Você não me deu chance de entender o que estava acontecendo, de escolher se eu queria enfrentar o que sua mãe ia fazer, se ela ia mesmo fazer. Você deu a ela tudo o que ela queria, mas e o que você queria? O que nós queríamos?

 

 

            Carolina levou a mão ao pescoço e arrancou o cordão sem nem abrir o fecho e mostrou a aliança pendurada para Ângela. Os olhos azuis que agora estavam cobertos de lágrimas, fitaram aquele anel de ouro igual ao que ela também carregava em seu peito, no mesmo instante segurou sua aliança enquanto Carolina sacudia o cordão no ar.

 

 

-- Você está vendo isso aqui? Carreguei no meu peito todo esse tempo, tentando manter a última lembrança de nós duas que eu tinha, você me deu o mundo e dois dias depois me tirou tudo.

 

 

-- Carol, eu fiz o mesmo, carreguei nossa aliança no peito, pra tentar te manter perto do meu coração, eu nunca te esqueci, eu te amo.

 

 

-- Não diga isso! – Balançou a cabeça negativamente -- Quem ama não faz o que você fez, foi cruel, foi desumano! – Soluçava – Lucia também me ameaçou, eu também fui chantageada, eu tive que sair do hospital, ou ela acabaria com a sua carreira. Eu escolhi sair do hospital, eu só queria estar com você, ter você perto de mim. Se você estivesse comigo, eu enfrentaria tudo, sua mãe não tinha nada concreto contra mim, eu poderia provar que era tudo mentira. – Andou pelo quarto – Mas no mesmo dia você me ligou e nem se deu ao trabalho de conversar comigo.

 

 

            Ângela lembrou daquele dia, do quanto sofreu estando tão longe de Carolina, não tinha ideia do que estava acontecendo aqui, só depois que Aline contou o que Lucia havia feito, sentiu-se a pior pessoa no mundo, imaginou a dor de Carolina, mas estava tão absorta em sofrer as suas próprias dores que não mensurou o impacto de tudo que aconteceu com ela, e tudo ao mesmo tempo.

 

 

-- Você não se deu ao trabalho de falar nada. – Virou de frente – Desligou o telefone como se eu fosse um lixo.

 

 

-- Não! Eu estava sofrendo, eu não podia mais continuar aquela conversa, senão eu ia desistir de tudo e colocar sua carreira em risco, eu não podia continuar falando com você, minha vida também virou um inferno, eu fui pra residência em plástica, perdi você, perdi minha carreira, pensa no meu lado, por favor.

 

 

-- Eu enfrentaria tudo se você estivesse comigo!

 

 

-- Eu não podia. – A voz falhou –

 

 

 

            Carolina se aproximou de Ângela, tudo aquilo era demais para sua cabeça, sentia seu corpo inteiro doer tamanha tensão, tinha que sair dali, não se conformava por ter sido deixada por uma ameaça, não se deixaria intimidar, tinha certeza que iria enfrentar tudo e todos para ficar com o amor de sua vida, mas agora era tarde demais, não conseguia perdoar Ângela, estava muito difícil assimilar que passou todo aquele sofrimento sem ter direito a nenhuma conversa, Ângela foi covarde, era o único pensamento que ela conseguia agrupar.

            Segurou as mãos da ex-residente e Ângela sentiu uma ponta de esperança, aquele toque trouxe tantas lembranças, foi uma tortura segurar sua mão, mas a mágoa estava ganhando aquela batalha.

            Carolina levantou a mão de Ângela e fez com que ela segurasse a aliança.

 

 

-- Quem não pode mais sou eu.

 

 

            Deixou a aliança em sua mão e saiu do quarto em um rompante, Ângela sentiu o peito rasgar ao meio, tamanha a dor que sentia, era quase uma dor física, o nó na garganta impediu de falar qualquer coisa, perdeu Carolina, esse era o seu maior medo, perder a chance de se redimir com a mulher que ela amava. Ajoelhou no chão sem forças para reagir, sentiu-se como uma criança abandonada, enquanto estava em Londres, o que a mantinha de pé era a esperança de receber o perdão da mulher que ela ama, mas sabia que não seria fácil, naquele momento, sentia que seria impossível.

            Carolina desceu as escadas como uma bala, não olhou para as pessoas que ainda permaneciam na sala do apartamento, e alcançou o corredor com os olhos embaçados das lágrimas que não tinham freios, apertou o botão do elevador com tamanha força que quase quebrou o aparelho, a respiração estava ofegante, não conseguia respirar, estava tendo uma crise de ansiedade, o coração estava acelerado dentro do peito, parecia que ia sair pela boca.

            A porta do elevador abriu e ela se jogou em seu interior, apertou o térreo e encostou na parede, buscando se equilibrar para não cair. Já no pátio do condomínio, saiu correndo, o porteiro se preocupou, mas ela não disse nada, apenas saiu pelo portão sem olhar para trás, tudo o que ela queria era sair dali, não podia mais, sofreu demais, e não confiava mais em Ângela, ao menor suspiro de sua mãe, tudo aconteceria novamente. Ela não poderia arriscar sofrer assim de novo.

            Alcançou o carro e quando sentou no banco do motorista deixou toda angustia sair, chorou, copiosamente, toda a dor, toda saudade que tinha ficado trancada até reencontrar sua amada, mas ela não podia, não conseguia perdoar, não agora.

           

Fim do capítulo