Capítulo 15
-- Espero que seja importante, maluquinha... -- bocejei indicando que acabara de acordar ao atender o celular.
-- É sobre a fundação. Está feito! Conseguimos as doações e vamos começar as atividades em uma semana! Sua peregrinação não foi em vão, amiga.Nós conseguimos!!
Fechei os olhos para que uma lágrima descesse fria. O nosso sonho, meu e de Dyorgia, estava realizado.
Um ano depois de suas mortes, eu havia saído do limbo onde tinha me escondido para lamber as feridas. Ela me visitava enquanto eu dormia e falava de nosso sonho em criar uma fundação que amparasse crianças vítimas de violência doméstica nos países chamados subdesenvolvidos. Faltava o Brasil e sua burocracia, visto minha maneira não muito convencional de tratar de negócios. Mas visitei governos. Abri de uma vez por todas os mecanismos de minhas empresas. Contratei auditorias, bajulei ministros. Enfim. A Fundação Dyorgia Price era uma realidade. Mas o fundamental para que conseguisse os créditos, foram minhas visitas ao Haiti. Muitas. A paisana me fiz voluntária em muitas campanhas da cruz vermelha e, ali, pude perceber o quanto minha dor era limitada. O quanto a dor do mundo era maior. Cuidei pessoalmente das crianças órfãs, cujos pais foram levados pelo terremoto. Auxiliava as mães desesperadas pela perda dos filhos e maridos. Observei, calada, muitos deles fazer do barro com manteiga o prato principal. Eu não era mais a dona da dor. Havia mais. Havia muito mais do que minha sina sem sorte. A ideia da fundação tinha nascido de Dyorgia. Não aconteceu antes porque, na época, estava grávida e deu prioridade ao filho. Guilherme. Mas estava feito...
-- Tem que vir imediatamente ao Brasil tratar dos trâmites. Eu e Márcia vamos sair de férias esqueceu? --era a voz do coala me cobrando a promessa feita um mês antes.
-- Tá bom, maluquinha. Chego aí amanhã de manhã. Um beijo.
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Quando o avião pousou, aquela sensação de mal resolvido me atacou imediatamente. Assim que desci do avião, os seguranças contratados por Amanda vieram ao meu encontro. Odiava ter que usá-los, mas o que tinha acontecido na minha última vez no Brasil me fez aturá-los.
Partimos de carro para a sede onde Amanda me aguardava. Ela me abraçou forte logo que pisei no escritório. Márcia, como sempre reservada, se limitou ao aperto de mão.
-- Senta, Gui. Temos que te passar tudo o que tá rolando por aqui.
Olhei-a divertida erguendo uma sobrancelha irônica.
-- Isso tudo é pra se ver livre de mim, coala? Tá tão doida assim pra ter a nova lua-de-mel?
Olhei pra Márcia já enrubescida por minha provocação. A galega se aproximou, sentando-se a minha frente.
-- Trabalhei duro por estes dois anos! Não me venha com suas insinuações! -- passou as mãos nos cabelos mais curtos. -- Bom, tudo caminha bem, segundo os relatórios que te passei. Temos como braço direito a Bruna que está por dentro de tudo e vai te ajudar, mas tem uma coisa que quero passar pra você pessoalmente. -- quando me olhava daquele jeito já sabia.
-- Manda, coala.
-- Sabe que o Armando, antes de você demiti-lo, investiu uma boa quantia em uma rede de escolas. -- me olhou profundamente. --... A nossa escola. Quando eu e Márcia assumimos, a rede não ia bem. Tivemos que investir em capacitação de pessoal, melhoria na estrutura, enfim. Depois de dois anos, hoje é a segunda maior e melhor franquia de ensino do país, com lista de espera tão grande que temos mais de um ano na frente das outras. Mas precisei mexer no organograma das escolas para que isso funcionasse.
-- Diz logo o que tem pra me dizer, mas vou logo falando: vou vender a filial onde estudamos. Tem uma construtora querendo levantar um shopping no local.
-- Então vai deixar Lílian sem emprego. Foi de lá que ela dirigiu todo o planejamento de melhorias em todas as unidades, depois que eu aposentei Goretão. Sem a ajuda dela, o sucesso da franquia não iria adiante. -- despejou sem o mínimo de preparação.
Meu silêncio revelava à pequena que o assunto ainda me incomodava.
-- Ainda mais agora que ela está enfrentando um problema muito grave.
Minha reação foi instantânea. Que problema? Não precisei manifestar em palavras.
-- Coisas da administração. Acho melhor você ir para lá o quanto antes. Ela vai precisar de apoio. -- respirou fundo e abriu um sorrisão. -- Agora eu e minha linda esposa vamos embora.
Antes que elas saíssem, dei-lhes um abraço enorme de gratidão por terem me apoiado este tempo todo. Pus a mão no bolso e entreguei um envelope à loirinha com lágrimas nos olhos.
-- Presente de casamento atrasado.
A mulher, ao abrir o envelope e ficar ciente do que se tratava, não se conteve. Vi, de uma em uma, as gotas salgadas ornarem seu sorriso de satisfação.
-- Bali... -- quase um sussurro.
-- Nada mais que tua felicidade, coala. É meu mais íntimo desejo.
Sabia que, desde os tempos de escola, ela sonhava conhecer a ilha. Dei-lhe de presente o melhor pacote. Tudo a que tinha direito e mais umas extras.
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Voltar àquele lugar dava uma sensação de tristeza muito grande. Parei em frente ao portão enquanto os seguranças me rodeavam e analisavam o local. Pedi que ficassem fora do prédio administrativo para não causar transtornos. Não ficaram muito contentes, mas obedeceram por fim.
Atravessei o pátio e a memória começou a funcionar rapidamente. Tinha a nítida impressão de que meu coala se agarraria em mim a qualquer momento. O ambiente parecia outro. Tudo muito moderno. Notei um ginásio novo. Quadras de tênis ao lado no terreno ocioso de antes. Tudo muito organizado e extremamente limpo. Ela era extraordinariamente competente. Ela... Lílian. O peito começou a sentir uma pontada de dor só de lembrá-la. Só de saber que daqui a poucos segundos estaríamos frente a frente de novo. Ali aonde nos vimos pela primeira vez.
Ao entrar no prédio percebi a mudança na cor das paredes antes apagadas deixando um tom de obscuridade medieval. Agora tudo era esplendorosamente clean. O branco dava a claridade tranquila de um lugar feito para receber e funcionar bem. Fiquei admirada com tudo o que vi. A placa indicava a sala da diretoria. Fechei os olhos na intenção de apagar os últimos momentos naquele escritório.
Uma mulher elegante sentada em frente a um notebook me deu um sorriso simpático e levantou-se para me atender. Apertei-lhe a mão e me identifiquei.
-- A diretora está em uma das coordenadorias, mas volta logo. Por favor, venha e espere na sala dela que é mais confortável.
A mulher deixou-me a sós assim que verificou se não precisava de mais alguma coisa. Dei uma boa olhada ali. Tudo muito simples, mas não severo. Um jarro em cima de uma estante abrigava uma dúzia de rosas brancas deixando no ar um perfume bom. Um perfume que me levava até ela. Passei a mão suavemente pela cadeira que ela devia ocupar durante todo o dia. Que problemas estaria enfrentando para que Amanda recomendasse minha presença? Mal terminei este pensamento, ouvi a porta abrir-se às minhas costas e uma voz doce e, indisfarçavelmente emocionada, me abordar.
-- Boa tarde, Guilhermina.
Pedindo ao meu coração que se acalmasse, virei-me lentamente para encontrá-la mais linda do que nunca.
-- Boa tarde, diretora. -- respondi profissionalmente. -- Então, que problema me trouxe até aqui, depois de eu ter prometido nunca mais fazê-lo?
O meio sorriso se desfez, e os olhos âmbar me fitaram com um misto de decepção e raiva.
-- Nada que eu mesma não possa resolver, senhora. -- frisou a última palavra para nos colocarmos em nossos devidos lugares.
-- Pois bem, já que estou aqui e o estrago foi feito, pode pelo menos me informar do que se trata? -- fui delicada, mas firme o suficiente para que ela soubesse que estava ali apenas para o trabalho.
-- Não quer se sentar? -- fez um gesto para que eu sentasse em sua cadeira.
Puxei a que estava em frente e me sentei, aguardando por sua resposta. Ela se acomodou e me olhou atentamente antes de começar sem pressa.
-- Professora e aluna foram flagradas em uma situação... Pouco convencional.
-- Ora, diretora! Seja aberta e franca. Foram flagradas num amasso e daí? -- meus olhos já ardiam apenas pela maneira fria que ela estava tratando o caso.
-- Tudo bem, Guilhermina. Se já sabia sobre isso, por que...
-- Por que perguntei? Quero ouvir a versão de minha diretora número um. Pode não parecer, mas é importante para mim.
Travamos mais uma batalha e nossos olhares nervosos e ansiosos eram um espetáculo a parte.
-- Que medidas foram adotadas? -- quebrei o clima com a pergunta pertinente.
-- Estava aguardando por você para...
-- Certo. Marque as reuniões para amanhã cedo na seguinte ordem: a professora, a aluna e os pais dela pela parte da manhã. No final da tarde marque com todos os pais que, já sei, estão fazendo campanha de caça às bruxas. Agora se me permite, posso abusar de sua linda secretária? Qual mesmo o nome?
Vi um brilho ameaçador de ciúmes no âmbar magnífico? Reprimi um sorriso cínico.
-- Claro... Ângela. Casada e três filhos...
Não respondi ao comentário impróprio. Chamei a linda secretária para logo depois vê-la entrar eficiente.
-- Pois não, senhora, em que posso ajudá-la?
-- Guilhermina, Ângela, pode me chamar de Guilhermina. -- dei um sorriso sacana. -- Por favor, preciso estar em São Paulo depois de amanhã cedo. Pode providenciar isso para mim? Aqui está meu cartão de crédito.
Entreguei-lhe fazendo questão de tocar sutilmente seus dedos. Minha tática estava dando certo. Lílian ainda sentia algo por mim, pois seu semblante obscurecido me encarou aborrecido.
-- Se não precisar mais de mim, preciso visitar outras coordenadorias.
-- Preciso. Preciso almoçar. Minha gastrite já está incomodando. -- fiz o gesto de alisar minha barriga deixando-a visivelmente preocupada.
-- Claro. Quer tomar algum remédio? Uma água. -- se aproximou.
Novamente a batalha. Abri um sorriso para ela. Não resisti. Segurei a mão fria, em um gesto gentil.
-- Estou bem, Lílian. Só preciso comer, mas não queria sair. Tem a maldita chatice de seguranças indo pra cima e pra baixo na minha cola. Se tiver algum local tranquilo onde se possa comer aqui mesmo na escola...
-- Vou providenciar seu almoço. -- soltou a mão sem pressa. -- E pode comer na cantina da escola hoje a tarde não tem aula por causa do conselho de classe. Vou pedir aquela lasanha que você adora. -- interrompeu a frase como se arrependesse de tê-la dito.
-- Peça duas. Almoça comigo? Ainda me deve uma conversa, professora.
Tentei ser descontraída, mas sabia da seriedade das palavras. Desta vez nada atrapalharia. Eu precisava saber por que aquela mulher não era minha. Por que nós não nos casamos e tivemos filhos. Precisava ouvir sua voz me dizer tudo, como devia ser.
Fim do capítulo
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