Capítulo 12
Assim que Júlia retornou à sala de estar encontrou Emanuelle, dona Cláudia e Sylvia conversando tranquilamente. Sem saber onde colocar as mãos, sentou-se numa cadeira e ensaiou um tímido sorriso para elas.
Emanuelle olhou-a bem nos olhos e Júlia desviou os seus para as próprias mãos. Não conseguia pronunciar uma palavra sequer e, muito menos, encarar as três senhoras ali presentes. Queria imensamente que elas fossem logo embora. A vergonha que estava sentindo era muito grande. Ainda podia sentir os lábios e as mãos de Sylvia sobre seu corpo, e, devido ao seu nervosismo, tinha a sensação de que, tanto dona Cláudia quanto Emanuelle tinham presenciado seu momento com Sylvia.
Dona Cláudia, percebendo o seu constrangimento, tratou logo de se despedir. Quando Sylvia deu o beijinho de comadre, já na porta da rua, ela retesou o corpo e manteve os olhos longe dos olhos da enteada. Não foi capaz de encará-la. Emanuelle também a beijou e, sem conseguir evitar, Júlia penetrou o seu olhar azul no verde olhar da francesa e percebeu ali uma chama de ciúme. O pavor de que aquela bela mulher e Sylvia pudessem ter algum envolvimento lhe enregelou o sangue. Sentiu-se tomada por um violento sentimento de posse e, sem raciocinar direito, virou-se para dona Cláudia e anunciou:
-- Dona Cláudia, eu resolvi aceitar o seu convite e levar Antenor amanhã para passar alguns dias na chácara com a senhora.
A mulher aproximou-se e a abraçou.
-- Por que não hoje mesmo? Venha conosco. -- dona Cláudia não se cabia de felicidade. -- Vá arrumar suas coisas.
Júlia ainda sob o efeito do ciúme concordou.
-- Está certo. -- Girou nos calcanhares e entrou rápida atrás da babá e do filho.
As três voltaram para a sala. Sylvia, toda sorridente, transbordando de felicidade, sentou-se ao lado da tia e deu-lhe um beijo estalado na bochecha:
-- O que será que deu nela? Sempre criou dificuldade em ir para a chácara.
Dona Cláudia deu de ombros e deixou seus olhos passearem sobre Emanuelle. Estudou o semblante da francesinha e riu intimamente.
"Parece que minha Sylvinha está metida no meio de um fogo cruzado. Isso vai ser divertido". Pensou com seus botões.
Quase meia hora depois Júlia aparece seguida de Angélica a babá e Antenor.
*******
Já de volta à chácara eu me dirigi ao meu quarto, e Emanuelle me acompanhou.
-- Não devia ter feito o que fez, estando eu e sua tia lá na sala a sua espera. Não viu como sua madrasta ficou?
-- Só me falta você agora com crises de ciúmes, Manu!
-- Não é ciúme, Sylvia! Você só não tinha o direito de arrastar sua madrasta para um quarto qualquer e se atracar com ela como se não tivesse mais ninguém lá na casa.
Fiquei espantada com minha amiga. Nunca imaginei que numa altura dessas Manu fosse fazer uma pequena cena de ciúmes. Aproximei-me dela e a abracei não me aguentando de rir.
-- Minha princesa! Eu não acredito que você está com ciúmes!
Ela escondeu o rosto no meu pescoço.
-- Sua madrasta, apesar de ter ficado envergonhada a princípio, não aguentou e se ofereceu para vir para cá. Ela precisava mesmo ter vindo? Com certeza só veio para nos vigiar. Você precisava ver o olhar que ela me deu, quando nos despedimos.
-- Sério? E como foi esse olhar?
-- Um olhar de raiva. Acho que se ela pudesse me estrangulava.
Meu rosto deve ter ficado iluminado de felicidade, pois Emanuelle não se conteve e vociferou comigo. Ela era ciumentíssima.
-- Você está se sentindo a tal, não é Sylvia? Duas mulheres se corroendo por você.
-- Admita minha gatinha brava, que está morrendo com ciúmes. -- Provoquei.
Ela levantou-se da poltrona em que estava sentada e dando passadas largas pela sala da suíte, deu o braço a torcer.
-- Está bem. Estou sim furiosa com essa Júlia. Nunca senti ciúmes de você antes, porque nunca a vi tão apaixonada, nunca a vi amando como agora. -- Ela de repente agachou-se à minha frente e me tomou as mãos. -- Sinto que lhe perdi, Sylvia. Não há mais espaço para mim em seu coração.
Não me aguentei e a puxei sentando-a em meu colo. Abracei-a e lhe acariciei os cabelos. Lágrimas desciam daqueles belíssimos olhos de esmeraldas.
-- Minha querida, o seu espaço em meu coração, ninguém vai ocupar, nem mesmo Júlia. Como o dela também jamais será ocupado por quem quer que seja. Amo você, meu amor, mas lamento que não seja o amor que você deseja.
-- Ela não deveria ter vindo para cá.
-- Tia Cláudia a convidou quando se falaram ao telefone ontem.
Fiquei realmente admirada com Emanuelle. Sempre tão calma e comedida. Sempre com as emoções sobre controle, e agora tão frágil e enciumada.
Ficamos ali um bom tempo conversando e mais tarde descemos para jantar.
***********
Na varanda, encontramos tia Cláudia, Júlia e Lisa num animado bate papo regado a vinho. Na verdade Lisa e minha tia dominavam a conversa e riam muito. Aproximamos e nos sentamos para participar de tão empolgante bate papo. Júlia ficou visivelmente tensa com nossa presença. Ela não conseguiu disfarçar e imediatamente secou a taça de vinho, tornando a enchê-la. A presença de Emanuelle a tirava do sério. Uma sombra tomou-lhe o belo semblante. Ela, simplesmente, ficou encarando minha amiga e não fez nenhuma questão de esconder a hostilidade que saltava do revolto mar azul em que se tornaram seus olhos. Eu não conseguia desviar os olhos dela. A vontade de me aproximar e tocá-la, sentir o seu perfume, provar novamente aqueles lábios saborosos começou a me dominar. Emanuelle, que já conhecia Lisa, sentiu-se mais à vontade e começou a participar da conversa. Eu, sinceramente, não sei do que falavam. Não conseguia prestar atenção. Só enxergava Júlia. Ela, vez ou outra, fixava os olhos em mim e o que eu lia no seu olhar não era nada bom. Parecia estar furiosa comigo. "Pronto! Agora com ciúmes, não vai permitir que eu me aproxime. Meu Deus! O que vou fazer com essas duas? "
Sentei-me numa cadeira ao lado dela e falei baixinho.
-- Preciso falar com você, Júlia -- Tentei uma aproximação.
-- Não temos nada para conversar.
-- Eu preciso sentir você de novo. Vou ao seu quarto essa noite. Deixe a porta destrancada.
Ela me olhou com os olhos enormes como se tivesse ouvido a maior das ofensas e com a voz baixa, porém irritada, falou com os dentes cerrados.
-- Você está maluca? Não está satisfeita com a vergonha que me fez passar quando voltei para sala e senti sobre mim o olhar da sua amiguinha? -- Seus lábios tremiam de raiva -- Eu... eu não devia... devia ter deixado você... você se aproximar de mim... -- Franziu a testa e jogou nos meus olhos, ao invés da ternura que sempre via em seu olhar, uma fúria indignada.
Senti vontade de beijá-la ali mesmo. Ficava mais linda ainda com a carinha brava.
-- Por que está furiosa, Júlia? Lá na sala de música você estava bem satisfeita em meus braços.
Ela suplicou quase chorando.
-- Por favor, fale baixo! Não percebe... que... que... elas podem ouvir? -- As lágrimas desceram -- Estou... estou morrendo... de vergonha de dona Cláudia.
Não aguentei vê-la chorando e, instintivamente, acariciei seus cabelos. Ela recou a cabeça bruscamente.
-- Preciso de você, Júlia. Vou para o seu quarto mais tarde...
--Não se atreva a... a encostar em mim no... novamente. Se não consegue ficar sem... sem sex*, vá para o quarto da sua amante. Com... com certeza ela... ela é melhor... melhor do que eu.
-- Eu não tenho nada com Emanuelle. De onde tirou essa ideia?
Ela deu um sorriso sarcástico e tomou mais um gole de vinho.
-- Qualquer demente é capaz de perceber o olhar dela para você. Ela lhe... lhe devora com... com os olhos e você... você dá a maior corda. Você... você alimenta.
Segurei sua mão livre e ela a puxou rapidamente e sussurrou entre dentes:
-- Não me toque. Quero você longe de mim!
Eu prendi o riso e me afastei dela sentando-se numa cadeira distante do grupo. Precisa pensar sobre o ciúme de Júlia. Ela sempre me pareceu tão suave, tão calma. Nunca imaginei que fosse tão possessiva. Teria que dar um jeito para me aproximar dela. Não iria conseguir ficar longe. Ela já era vital para mim. Por outro lado, teria que manter Emanuelle afastada sem magoá-la. Definitivamente, eu já estava em maus lençóis com as duas ciumentas.
*********
Quando a casa havia mergulhado num silêncio absoluto e todos pareciam estar imersos num sono profundo, eu me levantei da cama e atravessei o corredor com destino ao quarto de Júlia. Quando, porém, testei o trinco, me deparei com a porta trancada. Mesmo já sabendo que ela não iria me aceitar por perto, pelo menos naquela noite, senti uma grande decepção. O sentimento de rejeição me invadiu e voltei cabisbaixa para o meu quarto.
Fiquei ali jogada sobre a cama pensando em como a vida muitas vezes é cruel: eu morrendo de amor por uma mulher que, pelo menos naquele momento, não me queria por perto, enquanto outra desejava ardentemente que eu me adentrasse em seu quarto e a tomasse nos braços. O nosso sentimento, na maioria das vezes, nos prega peças com sua total falta de lógica. Não seria muito mais fácil, mais racional que eu sentisse por Emanuelle o que sentia por minha madrasta?
Enquanto o sono não chegava e a frustração me enchia o peito, fiquei cismando sobre a avalanche de emoções fortes que vinha sofrendo desde a morte do meu pai: até quando eu e Júlia iríamos ficar nesse chove não molha, nessa brincadeira de gata e rata? Até quando eu iria empurrar com a barriga esse meu noivado com Augusto? A minha vida sentimental estava fugindo do meu controle. Nunca deveria ter prometido ao pai do meu noivo que me casaria com ele. Mas o velho também era uma criatura mesquinha: deserdar o filho caso ele não se casasse! E a idiota aqui, acreditando-se apaixonada na época, aceitou se casar com o fraco e irresponsável rapaz. Eu poderia muito bem abandoná-lo à própria sorte, mas não tinha coragem de fazer isso, pois com toda a certeza o pai o deixaria à mercê do destino com uma mão na frente e a outra atrás. Deixá-lo-ia sem um centavo sequer, e como Augusto era preguiçoso e imaturo, não iria sobreviver na miséria, seria muito capaz de fazer uma besteira consigo próprio. Apesar de ele, como noivo, ser na maioria das vezes, insuportável, como amigo era uma pessoa boa. Meu coração não me permitia abandoná-lo, antes de vê-lo seguro, pelo menos financeiramente. Se, depois da herança recebida ele a jogasse pelo ralo, aí já seria um problema dele, eu, pelo menos, já teria cumprido minha palavra.
Definitivamente eu teria que resolver logo essa minha história com Augusto, ou seja, casar e logo em seguida, assim que ele recebesse sua herança, dar entrada na separação. Era a única forma de me dedicar inteiramente à Júlia, de encontrar uma maneira de trazê-la para mim, livre de medos, de tabus.
Entretida com a minha autoanálise adormeci sem me dar conta de que horas eram. Acordei no outro dia por volta das dez horas com um leve roçar de lábios no meu rosto. Na minha doce ilusão imaginei que fosse ela, mas quando abri os olhos vi que era a minha querida e linda amiga Emanuelle.
-- Acorda preguiçosa. Quero andar a cavalo hoje. Você me prometeu.
Sentei-me vagarosamente na cama, tentando espantar o resto de sono que insistia em permanecer nos meus olhos. Ela me abraçou e me deu um ósculo nos lábios e sorriu maliciosa.
-- Pensei que fosse me visitar na calada da noite. Fiquei lhe esperando com o corpo em brasas.
Eu não fui capaz de encará-la. Como dizer que não pretendia mais fazer amor com ela, sem magoá-la?
Esquivando-me de tecer qualquer comentário, dei-lhe um leve beijinho no rosto, empurrei as cobertas e me dirigi ao banheiro.
Ela não insistiu no assunto. Esperou que eu tomasse meu banho e me arrumasse para descermos juntas.
Ela segurou a minha mão, entrelaçando nossos dedos e seguimos em direção ao nosso café da manhã.
********
Quando entramos na copa, Júlia e tia Cláudia conversavam sobre as traquinagens de Antenor, pois ouvi nitidamente o nome dele. As duas olharam em nossa direção e percebi que os olhos da minha madrasta se detiveram nos meus dedos entrelaçados aos de Emanuelle. Logo em seguida ela me fitou e, então, notei o quanto seus olhos ficaram escuros e adquiriram uma tonalidade azul diferente e um brilho que me fez tremer. Se a luminosidade que vi naquele olhar soltasse raios eu e Emanuelle, com toda certeza, teríamos caído duras e carbonizadas naquele momento.
Tentei soltar a mão de Emanuelle, mas ela não permitiu, apertou mais os meus dedos.
Antes mesmo de as saldarmos, ela, com um sorrisinho um tanto zombeteiro, se levantou, pediu licença e se retirou.
Olhei para Emanuelle vi um sorriso de triunfo em seus lábios e foi então que me dei conta de que minha amiga estava disposta a lutar por mim. Nunca imaginei que ela fosse partir para a disputa. Ela sempre fora tão racional, tão pé no chão, uma pessoa que nunca se deixou dominar por nenhuma paixão, e agora ali, arregaçando as mangas para uma guerrinha com Júlia.
-- Bom dia, minha querida! Descansou? -- Tia Cláudia sempre alegre estendeu os braços em minha direção.
Aproximei-me e a abracei.
-- Emanuelle não aguentou lhe esperar e foi lhe chamar, pois está ansiosa para passear de cavalo. Disse-me que é uma exímia amazona, é verdade?
Então ela sabia que Júlia já estava ali. Ao manter seus dedos entrelaçados aos meus, estava insinuando para a minha madrasta que eu e ela tínhamos algum envolvimento. Ah! Emanuelle você é danada! Nunca imaginei que gostasse de mim a esse ponto!
*********
Antes de conhecer Júlia pessoalmente, Emanuelle acreditava que seria incapaz de fazer alguma coisa para atrapalhar o romance, mesmo que ainda incerto, das duas, mas quando percebeu a reação de Sylvia diante da madrasta, viu que se não fizesse alguma coisa a perderia para sempre. Na verdade, nunca se incomodou muito com os romances de Sylvia porque ela nunca se apegava a ninguém e sempre frequentava a sua cama, mas agora as coisas eram diferentes. Sua Sylvinha estava amando e ela, simplesmente, não suportava a ideia de não mais privar da sua intimidade, de não mais fazer parte da sua vida, como fazia até então.
*******
Os nossos cavalos foram selados e pusemo-nos a passear pela chácara. Emanuelle com os olhos brilhando, virava o rosto para o céu e se deliciava com o calorzinho do sol do inverno brasileiro. Era até engraçado chamar aquela estação de inverno.
Em determinado ponto do caminho Emanuelle deu um grito e me chamou para apostar uma corrida. Folgou as rédeas do cavalo e saiu em disparada pelo vasto campo aberto. Açoitei meu cavalo atrás dela, mas não consegui ultrapassá-la. Seus cabelos loiros eram acariciados pelo vento e os gritos de alegria dela ecoavam ao longe.
Depois de nos aventurarmos por bastante tempo correndo sem rumo certo, Emanuelle dirigiu o cavalo para debaixo de algumas árvores. Ela já estava suada e bastante coradinha.
-- Vou parar um pouco, Sylvia. Já faz tempo que não ando a cavalo e me cansei.
Desceu do animal com grande agilidade e se sentou sob uma árvore.
Ainda fiquei alguns segundos sobre o animal observando-a se ajeitar junto ao tronco da frondosa árvore. Ela passou as mãos sobre os cabelos e me sorriu.
-- Vai ficar aí me olhando? Venha! Venha se sentar aqui comigo.
Eu desci e me aproximei dela, sentando-me ao seu lado. Ela continuava sorrindo e se esforçando para controlar a respiração. Seu rosto estava vermelhinho, o que a deixou mais linda ainda. Em contraste com as faces coradas os olhos se tornaram mais verdes. Era realmente uma pena que eu não era apaixonada por ela. Poderíamos ser felizes para sempre.
-- Puxa! Cansei mesmo. Estou ficando velha Sylvia!
-- Uma velha de vinte e quatro anos!
Sorrimos bastante da piada sem graça. Nossos risos foram morrendo e o silêncio se fez presente. Passamos a ouvir apenas o barulho do vento nas folhas das árvores e os trinados dos passarinhos.
Após alguns minutos, ela se pôs a arrancar matinhos com uma mão, enquanto com a outra, buscou a minha. Levou-a aos lábios e beijou-a.
-- Suas mãos são tão bonitas, tão macias Sylvia! Não saberei viver sem elas passeando pelo o meu corpo.
Incomodei-me com a abordagem.
-- Emanuelle! Não podemos mais continuar... As coisas agora... são diferentes.
Ela parecendo não me ouvir roçou o rosto sobre o dorso da minha mão. Fechou os olhos e ficou por um breve tempo sentindo o contato da minha pele. Depois declarou num fio de voz:
-- Eu nunca imaginei que fosse sentir tanto medo de lhe perder! Mas confesso... -- Virou-se para mim e me olhou bem dentro dos olhos -- Confesso que estou apavorada! -- Segurou o meu rosto com as duas mãos -- Você não pode me deixar, Sylvia...! Eu não me importo que fique com ela... Você sabe que sempre aceitei você com outras... Aceito até com Augusto... -- Seu rosto continuava vermelho e percebi que ela estava fazendo força para não chorar - Mas, por favor, não me deixe! Nunca... nunca me negue os seus carinhos... Nunca me prive dos seus beijos, minha querida! -- Sem que eu pudesse impedir ela tomou os meus lábios num beijo urgente.
Esforcei-me para não corresponder, pois era quase impossível resistir àquela mulher, mas, para não a magoar tanto, não me esquivei, apenas me deixei beijar. Ela, percebendo a minha inércia, afastou e me olhou chocada.
-- Você não correspondeu! -- Sua voz traduzia uma mágoa profunda.
Levantei-me. Olhei para ela e disse procurando mais uma vez as palavras certas para não a ferir.
-- Não torne as coisas difíceis para nós, Manu! Eu não quero ser injusta e nem leviana com você. Amo-a demais para fazer isso.
-- Ama-me demais! -- Aproximou-se de mim, num pulo e me segurou pelos ombros -- Olhe para mim! Diga olhando nos meus olhos que droga de amor é esse que sente por mim, que nem um beijo quer me dar mais?
Tentei me afastar, mas ela deslizou as mãos e me firmou pelos braços. Seus olhos estavam profundamente marcados pela dor, pela incredulidade.
-- Já lhe falei sobre o amor que sinto por você, Emanuelle. Eu não tenho culpa se cai de amores por minha madrasta.
Ela me sacudiu, me chacoalhou.
-- Eu não me importo droga, que você morra de amores por aquela sonsa com carinha de santa. Pode morar com ela, casar com ela, mas não aceito que me rejeite, que me negue um beijo! Isso é absurdo, Sylvia! Sempre nos entendemos muito bem, independente do idiota do meu marido e do pateta do seu noivo.
-- É diferente...
-- Diferente coisa nenhuma! O seu noivo nunca foi impedimento para mim, não vai ser agora essa amantezinha do seu pai que vai se interpor no meu caminho.
Eu me assustei com a explosão de Emanuelle. Durante todos os anos que nos conhecíamos nunca a vi perder o controle. Confesso que fiquei com um certo receio.
-- Emanuelle, acalme-se!
Ela me empurrou de um jeito tão brusco que cai sentada no chão. Totalmente cega de raiva pareceu não perceber que havia me derrubado e continuou falando alto.
-- Não quero me acalmar! Preciso falar, preciso gritar, desabafar! Será que não entende? É melhor que seja aqui no meio do mato, pois não quero fazer uma cena na sua casa! Não quero desrespeitar sua tia!
Continuei sentada no chão para não correr o risco de ser derrubada novamente.
-- Estou lhe desconhecendo, Manu! Procure se controlar! Vamos conversar com calma.
Virou-se para mim furiosa e perguntou com a voz entrecortada.
-- Até que dia ela pretende ficar aqui?
Só me faltava agora ela exigir que Júlia fosse embora.
-- Emanuelle, por favor! Pare! -- Olhei-a seriamente -- Você já está passando dos limites. Quer ser acalmar?
-- Posso pelo menos saber até quando a santa Júlia vai ficar aqui na chácara?
-- Eu não sei. Mas ela pode ficar o tempo que quiser! Sinto lhe dizer, mas jamais vou pedir a ela para ir embora.
Ela apertou os olhos e veio em minha direção agachando-se na minha frente.
-- Claro! Claro que você não vai pedir a ela para ir embora. -- Com um sorrisinho sarcástico completou -- Se ela não vai, tampouco eu, minha querida!
-- Estou assustada com você, Manu. Ontem na casa de Júlia você estava elogiando os atributos físicos dela, admirando-a e agora está aí, se comportando como uma desequilibrada.
Segurou-me novamente pelos ombros e novamente me chacoalhou.
-- Acontece minha cara, que naquele momento você ainda não havia se enfiado no quarto com ela. Você não teve nem uma gota de consideração por mim, Sylvia! Eu na sala e você se esfregando com ela no quarto!
Afastei-me dela, levantei-me e segui em direção ao meu cavalo.
-- É melhor irmos embora. Essa nossa conversa está tomando um caminho não muito bom. Já é mais de meio dia, precisamos almoçar.
-- Pode ir. Vou depois. Estou sem fome. Preciso ficar sozinha. -- Ela aproximou-se de me mim e com uma voz contida falou-- Desculpe-me. Acho que me excedi um pouco.
-- Tem certeza que ficar? Consegue encontrar o caminho de volta?
Deu-me um sorrisinho sem graça como resposta e voltou a se sentar sob as árvores.
Saltei sobre a cela do meu cavalo e sai num trote rápido. Queria logo chegar em casa, estava abalada demais. Precisava ficar sozinha também. Iria ser difícil para eu administrar aquelas duas mulheres. Se eu cedesse aos apelos de Emanuelle um dos lados da questão estaria resolvido, mas eu não queria mais "trair" Júlia. Apesar de não termos um compromisso, eu sentia como se tivéssemos, e, se fosse para a cama com outra pessoa, estaria traindo o meu amor por ela.
*********
Quando cheguei à casa encontrei Helena conversando com Júlia na varanda. Elas falavam baixo, e quando viram que eu me aproximava se calaram.
-- Helena! Que surpresa!
Ela me abraçou e beijou meu rosto.
-- Pois é, vim ver essa moça que já julgava perdida nas Chapadas da Bahia e colocar a conversa em dia. -- Olhando as roupas de Sylvia, esclareceu o óbvio -- Estava cavalgando.
-- Sim. É um exercício relaxante! E, confesso, estou precisando muito me exercitar.
Sentindo sobre mim os olhos de Júlia a encarei. Ela não esboçou nem um sorriso sequer, mas, pelo menos, não vi mais aquele brilho irado em seus olhos, apenas uma sombra de tristeza. Olhamo-nos por breves segundos e, em seguida, ela desviou o rosto para o outro lado, ignorando minha presença. Despedi-me de Helena e segui para o meu quarto para um banho.
*********
Helena virou-se para Júlia.
-- Minha prima, o que aconteceu aqui? Vocês estão brigadas? Você mal olhou para ela?
-- Como eu estava lhe falando, depois do que aconteceu lá em casa, e do jeito que a tal Emanuelle olha para ela, não consigo mais olhar para ela como antes. Tenho certeza que ela tem um caso com a francesa. Hoje cedo, mesmo, elas chegaram na copa para tomar café de mãos dadas, como um casalzinho de namorados.
Helena começou a rir.
-- Júlia! Você está mesmo apaixonada por Sylvia! Está com ciúmes, priminha!
Júlia, ruborizada até a raiz dos cabelos, tentou negar, mas nada do que dissesse seria suficiente para ocultar o que estava claro em seu olhar.
-- Ela... ela não tinha o direito de... de... Você sabe....com dona Cláudia e... e a amante dela... lá. Eu até agora... morro de vergonha, Helena! Toda vez que olho no rosto de dona Cláudia, eu sinto vontade de me esconder num buraco qualquer.
-- Júlia, com certeza Sylvia não lhe forçou. Você permitiu que ela lhe tomasse. Não fique se fazendo de vítima, de moça que foi deflorada.
Helena fazia um grande esforço para controlar o riso. Olhando para os lados para se certificar de que não havia ninguém por perto, perguntou baixinho.
-- Mas me diga, você gostou? Dizem que o sex* entre mulheres é muito interessante! -- Os olhos de Helena dissecavam o rosto da prima estudando suas reações.
Júlia, com as bochechas em chamas e profundamente envergonhada, esboçou um tímido sorriso e acenou a cabeça afirmativamente. O rosto de Helena se iluminou de curiosidade.
-- Conte-me! Conte-me como foi! Conte-me, como é que acontece o sex* entre duas mulheres?
Júlia a olhou, escandalizada. Não sabia que a prima fosse assim tão curiosa a respeito de sex* entre mulheres.
-- Nem pensar, Helena! Acha que vou entrar em... em detalhes? Que... Que absurdo! -- Com um sorriso malicioso, perguntou -- Não sabia que se interessava tanto por esse assunto.
Helena ignorando sua pergunta continuou tentando satisfazer sua crescente curiosidade:
-- Quando vai repetir a dose? Duvido que consiga ficar muito tempo em abstinência!
-- Não vou mais permitir essa pouca vergonha. Imagina se vou ficar me deixando usar desse jeito por ela? Além do noivo, agora essa amantezinha francesa!
-- Júlia, tem certeza que elas têm algum envolvimento? Você está fazendo uma imagem muito dissoluta de Sylvia. Ela é uma moça direita! Cuidado com o que pensa. Não se deixe levar por ciúmes.
Júlia não respondeu nada. Ficou quieta contemplando o jardim que se estendia a perder de vista. Já havia tomado consciência de que amava a enteada com loucura. Sabia também que não mais conseguiria viver longe dela, que não mais seria capaz de existir sem o calor do corpo dela no seu, sem o sabor daqueles lábios macios e doces. Mas, se sabia incapaz de viver um romance em que teria que dividir o seu amor com outra pessoa. Só aceitaria viver com ela como mulher - fazendo ouvidos moucos aos comentários que fatalmente iriam surgir-, se ela abrisse mão do noivo e da francesa. Portanto, enquanto isso não acontecesse não permitiria que Sylvia a tocasse novamente.
Tinha plena consciência de que para forçar Sylvia a tomar uma decisão, seria necessário marcar presença perto dela, demarcar seu território. Por esse motivo resolveu aceitar o pedido de dona Cláudia e se mudar de uma vez por todas para a chácara. Na verdade, também atendendo ao desejo de Antenor que era que os dois irmãos vivessem sob o mesmo teto.
Júlia era uma pessoa sossegada e pacata por natureza, mas quando necessário e quando realmente queria algo, lutava com todas as forças para alcançar seus objetivos. E assim ela fez. Sem levantar a voz, sem fazer alarde, ela manteve Sylvia em suas mãos até o fim da sua vida.
*********
Por volta das dezesseis horas, dona Cláudia, Lisa, Júlia e Helena tomavam café no jardim. A tarde estava fresca e elas sorriam da canseira que Antenor estava dando em Angélica. O menino corria sem parar e a babá, cuidadosa, corria atrás com medo de ele cair.
-- Vocês acreditam que ele a obedece mais do que a mim?
-- Acredito minha filha! Quando a babá é boa, ela termina por exercer um poder inexplicável sobre esses danadinhos. Já cansei de ver meus outros sobrinhos ignorarem as advertências das mães, mas bastava as babás falarem eles as obedeciam.
Júlia respirou fundo e olhou fixo para a tia de seu filho.
-- Dona Cláudia, lembra-se que da última vez que estive aqui -- Bebericou o café para criar coragem -- a senhora comentou sobre o desejo de Antenor manifestado no testamento...
Dona Cláudia arregalou os olhos e sorriu. Era visível sua alegria. Porém manteve-se calada para que Júlia continuasse
-- Será que sua... Que Sylvia pretende satisfazer o... o desejo do... do pai?
-- Júlia, querida! Você está pensando em se mudar para cá?
-- Estou. Estou sim, dona Cláudia....! Se ela consentir... Afinal... a casa é dela!
A boa senhora segurou as mãos de Júlia por sobre a mesa e com um imenso sorriso sentenciou:
-- Minha filha! Considere-se desde já uma nova moradora desta casa. Tenho absoluta certeza que Sylvia vai adorar.
Helena estava boquiaberta olhando para a prima. Nunca imaginou que aquela menina aparentemente tão frágil, era, na verdade, uma pessoa decidida.
********
Alguns minutos depois Sylvia, seguida por Emanuelle, aproximou-se da mesa onde elas estavam. Dona Cláudia não se aguentando de tanto contentamento, soltou:
-- Sylvia, minha querida sobrinha! Tenho uma notícia maravilhosa para lhe dar!
Emanuelle já havia se sentado ao lado de Sylvia.
-- É mesmo tia? Então fala logo!
Ela olhou para Júlia, depois para Emanuelle e, por fim, para Sylvia.
-- Júlia virá morar conosco, como o Antenor deixou claro no testamento.
Sylvia não conseguiu conter sua emoção. O sorriso iluminou seu rosto e ela derramou sobre Júlia um olhar cheio de amor. A felicidade se tornou quase insuportável quando o amor da sua vida retribuiu ao seu sorriso com outro mais lindo ainda e, nos olhos maravilhosamente azuis, pode perceber - apesar da sombra de tristeza que notara mais cedo-, aquela doce ternura com que ela sempre lhe brindava.
Emanuelle sentiu uma dor aguda em seu peito. Percebeu que Júlia sabia lutar pelo que queria. Respirou fundo e deixou o verde dos seus olhos se perder na imensidão de verde daquele belo e extenso jardim.
**************
Eu perdi, momentaneamente, a capacidade da fala quando ouvi minha tia dando aquela notícia. Soube apenas olhar para aquela maravilhosa mulher sentada em uma das cadeiras e olhando para mim com o sorriso mais lindo que meus olhos já viram. Senti o meu coração se encher de uma felicidade plena e, mais uma vez, percebi que minha vida sem Júlia não tinha sentido. Nossos olhos se fundiram, nossos sorrisos se beijaram e nossas almas se abraçaram e selaram um compromisso para todo o sempre. A esperança de que um dia iríamos viver juntas o nosso amor, deu lugar à certeza absoluta. Eu absorvi essa certeza dos olhos e do sorriso dela, mas, eu tive também a plena consciência de que para isso se concretizar, eu teria ainda que lutar, e muito, para trazê-la totalmente para mim. Mas, força e determinação eu tinha de sobra.
A minha tia quebrou o silêncio que imperou no ambiente depois da notícia.
-- Quando pretende vir de vez, Júlia?
Ela abandonou meus olhos e olhou para minha tia.
-- Já que fui aceita -- sorriu -- posso considerar como se já tivesse morando aqui, dona Cláudia, pois acredito que só preciso trazer roupas e alguns objetos pessoais.
-- Ótimo, minha filha! -- tia Cláudia exultou -- Para Antenor crescer correndo por esse enorme jardim, respirar esse ar puro, vai ser maravilhoso! -- Levantou-se e foi em busca do garoto que não dava um descanso à coitada da Angélica.
Emanuelle, assim que ouviu a notícia, ficou muda. Com o olhar perdido na paisagem, parecia alheia à conversa, mas eu a conhecia muito bem. Ela estava atenta a tudo o que estava sendo dito ali. Senti pena dela, mas não podia fazer nada. Ela teria que aceitar a minha nova realidade: eu havia sido fisgada por minha madrasta e para sempre. Meu coração não mais me pertencia, ou melhor, a minha vida não mais me pertencia. Havia os entregado a Júlia - e agora eu tinha certeza -, no primeiro momento que a vi parada na porta do quarto do hospital.
O silêncio só foi rompido novamente quando tia Cláudia se aproximou com Antenor nos braços. Sentou-se e o colocou sobre suas pernas.
-- Você está pesadinho hein?! Você vai morar aqui agora, meu querido! -- Apontou o espaço em volta com um movimento de braço -- Está vendo esse gigantesco jardim? Agora é todo seu! Você vai poder correr e pular por aqui à vontade -- Virou-se para mim de repente e falou com voz preocupada:
-- Sylvia! Teremos que colocar uma grade cercando a área da piscina. Esse danadinho aqui pode muito bem se aproximar de lá e... Ave Maria, nem quero pensar nisso!
-- É verdade, tia! Mande providenciar isso, amanhã mesmo!
Eu estava tão feliz que sentia vontade de abraçar Júlia e sair pulando com ela pelo jardim afora. Mas, como tinha que me conter, me levantei e segui para dentro de casa em direção ao meu quarto. Emanuelle me acompanhou, mas não permiti que ela entrasse, pois, queria ficar sozinha. Precisava de um tempo para me acalmar. Meu coração parecia que ia explodir de tanta alegria.
Antes que eu entrasse ela me segurou pelo braço. Estava visivelmente transtornada.
-- Eu não acredito que você vai permitir que ela se instale aqui antes que eu parta, Sylvia! -- Seus olhos umedeceram -- Não percebe que está cravando um punhal no meu peito?
Meneei a cabeça e, sem querer, girei os olhos denotando enfado. Não queria mesmo magoá-la, mas ela estava começando a me pressionar por demais.
-- Emanuelle, veja bem, ela é mãe do meu irmão e esta casa também é dele. Ponha-se no meu lugar. -- Suspirei já temendo que ela novamente surtasse. Mas, mesmo assim achei por bem continuar sendo verdadeira com ela -- Não posso simplesmente expulsá-la, fechar-lhe as portas. Além do mais, vou ser sincera com você, como sempre fui: estou feliz que ela tenha decidido se mudar para cá e farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ela aqui permaneça para sempre.
Ela engoliu em seco e franziu o rosto tentando conter o choro que ameaçava romper. Seus olhos se fixaram nos meus e eu pude ver a decepção e incredulidade nublando o verde esplêndido.
-- Eu não acredito que você esteja fazendo isso comigo! Não acredito! -- As palavras saíam de seus lábios dolorosamente. -- Você não é mais a minha Sylvia! O que essa mulher fez com você? Diga-me, por favor!
Ela novamente começou a me chacoalhar. Com muito custo consegui segurar-lhe os pulsos.
-- Emanuelle, fique calma! Estou desconhecendo você! Cadê aquela mulher inteligente, firme, que sempre soube contornar qualquer situação?
Ela puxou com força os braços escapando das minhas mãos.
-- É fácil vir com essa conversinha mansa, não é? Muito fácil! -- Olhou-me com raiva -- Acha que ressaltando minhas qualidades, vai conseguir me enrolar, Sylvia? -- sorriu com sarcasmo.
-- Não é nada disso, Emanuelle! Reconheço suas qualidades e não faço referência a elas para tentar lhe enganar. Apenas estou surpresa, pois nunca imaginei que você fosse reagir assim, uma vez que não temos nenhum compromisso. Por isso, não entendo porque você está se sentindo ameaçada.
Sem que eu pudesse impedir ela me empurrou para dentro do quarto e trancou a porta. Avançou sobre mim e tomou meus lábios num beijo desesperado. Mordeu meu lábio inferior com tanta força que provocou um corte profundo. Com muito custo consegui me esquivar.
-- Nunca mais faça isso, Emanuelle! Que violência é essa? -- Sentindo gosto de sangue fui para o banheiro. Ela me seguiu.
-- Desculpe-me Sylvia! Não quis lhe machucar.
Apesar de aparentar preocupação, não percebi nenhum tom de arrependimento em sua voz. Ela ficou parada na porta do banheiro me olhando enquanto eu tentava estancar o sangue com um chumaço de algodão. Observei o ferimento no espelho e percebi que ficaria com o lábio inchado por um dia ou dois, pois ela mordeu com vontade, com raiva.
Voltei para o quarto e abri a porta pedindo a ela para se retirar.
-- Quero ficar sozinha, Emanuelle!
-- Sylvia, por favor! Vamos conversar, prometo que não me excedo dessa vez.
Sem responder nada continuei em pé ao lado da porta aguardando que ela se retirasse.
-- Sylvia, por favor...
-- Emanuelle, não dificulte as coisas. Quero ficar um pouco sozinha. Por favor!
Minha voz estava calma e baixa, mas no íntimo eu estava fervendo. Estava assustada com ela. Aquela não era a Emanuelle que eu conhecia.
Depois de mais alguns segundos ela finalmente deixou meu quarto. Fechei a porta à chave e segui para a cama. Passando a língua sobre o corte, senti o inchaço. Quando Júlia visse aquilo iria, com certeza, imaginar mil coisas. Não poderia culpá-la, pois eu pensaria a mesma coisa.
*********
Por volta das dezoito horas, Júlia estava sob o chuveiro sentindo a água morna deslizar sobre seu corpo. Nos seus lábios um doce sorriso fez moradia desde o momento em que dona Cláudia deu a notícia e ela pode perceber a alegria estampada no semblante de Sylvia. Seu coração se encheu de ternura quando viu os olhos da enteada brilhando de felicidade. Sentiu uma enorme vontade de envolvê-la num abraço e aspirar o perfume delicioso do seu corpo.
Vê-la todos os dias, mesmo que rapidamente, saber que ela estaria dormindo sobre o mesmo teto, no quarto em frente ao seu - mesmo sendo uma tortura -, seria melhor do que ficar distante, na angustiosa incerteza de quando a veria novamente. Os meses que passara em Mucugê, na tentativa de esquecê-la, só serviram, na verdade, para fazer com que enxergasse, com uma clareza cristalina, a intensidade do seu amor por ela. A sua vida sem Sylvia não era mais possível, não tinha razão de ser. Para o seu estarrecimento, tomara a plena consciência de que o amor que nutria pela enteada era na mesma intensidade do que o seu amor pelo próprio filho. Claro que eram amores diferentes, mas se perdesse o filho tinha certeza que, mesmo aos pedaços, continuaria vivendo, mas se perdesse Sylvia, não conseguiria sobreviver.
Terminou o banho e seguiu para o quarto envolvida num roupão macio e perfumado. Colocou um vestido de algodão com pequenas e discretas flores na cor rosa, calçou uma sandália baixa, aspergiu um suave perfume, avivou mais os lábios com um leve batom e entrou no quarto do filho pela porta de comunicação. Angélica já o havia arrumado e os dois se entretinham, sentados no chão, com um joguinho de montar, com uns soldadinhos.
-- Mamãe! Bó descer! Tia Cáudia tá com fome! -- Levantou-se assim que viu Júlia entrar no quarto. Segurando a mão da mãe -- complementou - Ela já veio aqui chamar eu.
-- Então vamos, meu amor!
Os três desceram e levaram um tempo maior para percorrer a distância até a sala de jantar porque Antenor resolveu brincar ao descer as escadas: descia alguns degraus e voltava um ou dois.
*********
Quando entraram na sala de jantar Júlia se deparou com Lisa, dona Cláudia, Helena, Sylvia e Emanuelle espalhadas por ali conversando. Antenor entrou pulando na sala e correu para os braços da irmã.
-- Antenor já chegô! -- Ele se referia a si próprio como se fosse outra pessoa -- Shilva, tia Cáudia tá com fome! -- Apontou um dedinho para a tia que se encontrava sentada ao lado de Helena e Lisa numa conversadeira sob uma das janelas. Todos sorriram.
-- Menino! Assim todos vão pensar que sou gulosa!
-- Dizem que criança nessa idade não mente, dona Cláudia! -- Helena entrou na brincadeira.
-- Mas que menino danado! Só porque eu fui ver se estavam prontos para o jantar, ele deduziu que eu estava com fome!
Mais risadas.
Até então Júlia ainda não tinha visto Sylvia totalmente de frente. Mas quando esta colocou Antenor no chão e se virou, pode perceber a marca no lábio inferior. Ficou cismada, pois, há algumas horas atrás, a boca da sua enteada estava perfeita. Seus olhos se encontraram e Sylvia, desconcertada, sem saber o que fazer, desviou o rosto e se aproximou de uma janela, pondo-se a observar a noite. Os olhos de Júlia, por instinto, seguiram na direção de Emanuelle e a francesa a brindou com um sorriso triunfante, pois percebera que a moça havia notado o corte na boca de Sylvia. Júlia sentiu um choque, e uma enorme tristeza e indignação tomou conta de seu peito. O sorriso de Emanuelle lhe esclareceu que aquele ferimento no lábio de sua enteada foi resultado de um beijo trocado pelas duas.
Perdendo totalmente o apetite e sentindo-se incapaz de permanecer ali por mais tempo, alegou uma dor de cabeça e pediu licença a dona Cláudia, retirando-se para seu quarto.
*********
Senti o chão me fugir por sob os pés, quando os olhos de Júlia se fixaram no meu lábio ferido. A única coisa que consegui fazer foi dar-lhe as costas e me refugiar na escuridão da noite debruçando-se numa das janelas abertas. Senti vontade de estrangular Emanuelle. Aquele seria mais um motivo para Júlia impedir uma aproximação minha. Para ela seria a prova mais do que contundente de que Emanuelle era minha amante. Como convencê-la de que fui atacada por minha amiga? Seria uma tarefa praticamente impossível convencê-la da verdade.
Alguns minutos mais tarde, quando percebi que ela havia se retirado da sala de jantar, me dirigi rapidamente para o seu quarto. Tinha certeza absoluta de que ela havia se refugiado lá. Devia estar furiosa comigo.
Quando girei o trinco e constatei que a porta do seu quarto estava aberta suspirei aliviada. Entrei e dei a volta na chave.
-- O que faz aqui? --Ela me perguntou sentando-se rapidamente na cama.
-- Precisamos conversar!
--Estou com dor de cabeça! Não temos nada para conversar! Vá ficar com sua amante! -- Sua voz denunciava que estava chorando.
Aproximei-me e segurei seu rosto entre minhas mãos. Ela tentou se desvencilhar, mas não permiti.
-- Sei que ficou brava quando viu o meu lábio.
Seus olhos engoliam os meus com ferocidade e mágoa.
-- O que você faz da sua vida, onde você coloca a sua boca, não me diz respeito! Eu só quero ficar sozinha. É possível?
Vendo aquele rostinho indignado, aquela boquinha trêmula e os olhos cheios de lágrimas, senti uma contração violenta no ventre. A vontade de beijá-la era enorme, mas apenas a abracei. Ela tentou me empurrar, mas a mantive firme em meus braços.
-- Só peço que me escute! -- Eu também já chorava -- Deixe-me falar, por favor.
Ela, depois de muito relutar correspondeu ao meu abraço e rompeu num soluço sofrido. A apertei mais e sussurrei em seu ouvido:
-- Estou tão feliz que você vai morar aqui!
Ela aproximou mais o corpo que tremia, do meu e debruçou a cabeça no meu ombro.
-- Vai ser tão bom ter você e Antenor aqui todos os dias! -- Acariciei os cabelos macios dela -- Ir para o trabalho sabendo que quando voltar para casa, vou poder encontrá-la aqui, vê-la, mesmo que você não me queira por perto, vai me encher de alegria. -- Minha voz estava entrecortada de emoção. Meu coração batia enlouquecido. A mescla de alegria por tê-la tão perto sem, no entanto, poder tomá-la em meus braços e amá-la, me torturava de forma lancinante.
-- Muito obrigada, minha querida! Muito obrigada por me fazer feliz. Tê-la aqui sob o mesmo teto, me fará muito feliz!
Ela continuou muda, apenas chorando.
-- Quanto a esse ferimento no meu lábio, sei que você não vai acreditar, meu anjo, mas foi resultado de um beijo que Emanuelle tentou me dar, eu...
Ela se afastou de mim rapidamente, como se tivesse sido picada por uma vespa.
-- Como... Como teve... coragem de negar que... que ela é... sua amante? Por.. Por que mente... para mim?
Fiquei angustiada.
-- Júlia, por favor, deixe-me terminar de falar... Escuta-me!
Ela repousou os cotovelos sobre as pernas e cobriu o rosto com as mãos.
-- Meu Deus! Por que isso está acontecendo comigo, meu Deus? -- Lamentava numa revolta sem tamanho.
-- Não fique assim, Júlia! Escute-me por favor!
-- Acho melhor você sair!
Segurei suas mãos e ela me olhou e a imensidão de azul estava brilhando de revolta.
-- Não vou negar que quando morava em Paris, me encontrava algumas vezes com Emanuelle. Mantinha sim, relações sexuais com ela, mas sem compromisso. Nunca fomos amantes, apenas nos encontrávamos quando sentíamos vontade, só isso.
Os olhos dela cresceram. Ficou visivelmente chocada com minha revelação.
-- Isso... isso é promiscuidade! Você, noiva.... Ela, casada! Onde... Onde fica o... respeito? -- Levantou-se com as mãos na cabeça -- E... e pensar que... que permiti... que permiti que você... que você me enredasse nessa... nessa sua teia de... sedução!-- Passando, num gesto desesperado, as mãos nos cabelos, se censurou -- Meu Deus! O que eu fiz? Como pude deixar me envolver desse... desse jeito?! Me envolver... numa... numa sujeira dessas?!
Meu coração sangrou ao ouvi-la proferir aquelas palavras. Senti-me chicoteada. Não queria que ela pensasse mal de mim. O medo de que ela nunca me compreendesse me dominou. Levantando-me segurei-a pelos ombros e fiz com que me olhasse bem dentro dos meus olhos.
-- Preste atenção! Eu não lhe enredei em nenhuma teia de sedução, até porque você não é nenhuma criança! -- Minha respiração estava falhando, por isso tinha que puxar o ar com força -- A minha relação com Emanuelle não era uma relação promíscua. Apenas compartilhávamos uma afeição que nos permitia fazer amor de vez em quando!
Ela sacudiu a cabeça de um lado para o outro e com os dentes cerrados sentenciou:
-- Nunca mais! Nunca mais ouse tocar em mim! Está entendendo? Nunca mais!
O pavor tomou conta de mim. O desespero toldou a minha mente e, sem me conter, apertei fortemente os seus ombros. Senti vontade de sacudi-la forte para que acordasse e abrisse aquela cabecinha conservadora.
-- Escute bem! Eu vou resolver minha situação com Augusto! Você não sabe, mas só vou me casar com ele para que o pai não o deserde. Mas isso é uma longa história. Depois estarei inteiramente livre para você.
-- Não me coloque nos seus planos, Sylvia! A nossa relação será apenas de enteada e madrasta. Apenas isso!
Meus dedos afrouxaram e, lentamente, retirei minhas mãos dos ombros dela. Seu rosto estava afogueado e o ciúme palpável em seus olhos.
-- Eu vou ter toda a paciência do mundo, Júlia. Você é minha e eu sou sua. Nós nos pertencemos, quer você queira ou não.
Acariciei seu rosto suavemente. Ela não se esquivou. Apenas abaixou as vistas.
-- Eu saberei esperar, meu amor! Sou paciente!
Afastei-me e sai do quarto.
Fim do capítulo
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LuBraga
Em: 06/08/2018
Eu definitivamente não gostaria de estar na pele da Sylvia...
Quantas arestas ela tem que podar meu Deus e ainda fica em um fogo cruzado desses um tanto quanto maravilhoso e ao mesmo tempo sofrido para uma delas.
Autora que balaio de gatas!rsrs
Beijos
Resposta do autor:
Oi Lu,
Sylvia ainda vai passar por uns momentos bem difíceis com Júlia por causa dos ciúmes e dos valores extremamente conservadores dela - a época não contribuia para ser diferente,né?
Balaio de gatas, mesmo! rsrs
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Olá Nicole!
Em outro site comecei a ler o seu conto mas como não teve continuidade não procurei mais por ele. Agora o reencontrei, espero que chegue a final.
Parabéns!
Resposta do autor:
Boa noite Darque,
Que bom que está gostando do conto. Não se preocupe que a história está completa. No site ABCles ele foi postado até o final, mas logo depois o site saiu do ar.
Muito obrigada pela leitura e comentário.
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Aparecida3791
Em: 04/08/2018
Uau!
Qts emoções!
Nossa menina com ciúmes...
E a Manu, hein? Pqp!
Dona Sylvia e suas duas mulheres...
Resposta do autor:
Boa noite Aparecida.
Júlia, apesar de ter um jeito doce e tranquilo, tem sangue nas veias e começou a colocar, a seu modo, as garras de fora. Sylvia vai amargar um pouquinho com os ciúmes e os valores conservadores dela.rsrs
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AureaAA
Em: 03/08/2018
Que grata surpresa nessa sexta-feira rsrsrs
Autora a Júlia ciumenta é uma coisa...coitada da Sylvia com essas duas.
Será que tem mais um capítulo no domingo?
Resposta do autor:
Boa noite Aurea,
Pois é, Júlia vai dar muita dor de cabeça pra Sylvia com esses ciúmes. Vamos ver como as coisas evoluem.rsrs
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