Capítulo 2
No Brasil
A nossa viagem para o Brasil foi tranquila. Minha mãe dormiu todo o percurso. Eu, por minha vez, não consegui conciliar o sono. Ainda estava perplexa, chocada. Desejava que tudo aquilo não passasse de um pesadelo. A dor pela doença do meu pai estava me sangrando por dentro. Ele sempre foi um pai maravilhoso. Tinha orgulho de mim. Além de pai, era meu amigo, meu confidente. Era um homem muito avançado para a época.
Ao chegarmos em nossa casa, uma chácara afastada cerca de 40 quilômetros da capital de São Paulo, fomos recepcionadas pelo mordomo francês Auguste e pela governanta inglesa Margareth. O vice-presidente do grupo Leme de Barros, o senhor Antônio José de Castro nos acompanhou desde o aeroporto, onde nos recepcionou. Minha mãe, mal cumprimentando os empregados, subiu direto para seu quarto queixando-se cansada da viagem. Pus-me a olhá-la subindo as escadas. O egoísmo da minha mãe era algo que sempre me surpreendia. Ela estava louca para se livrar das formalidades que sua condição de esposa exigia e voltar logo para seu mundinho volúvel em Paris. Eu jamais vou me esquecer da cara de alívio que ela fez quando soube do estado do meu pai. Ela foi salva pelo gongo, como dizem. Livrou-se, pelo enfarte repentino dele, do estigma de mulher separada. Agora poderia posar de esposa sofredora e suas amigas, nos intermináveis chás beneficentes, iriam consolá-la.
Apesar do momento doloroso, Antônio necessitava me colocar a par do andamento dos negócios, pois havia prazos a serem cumpridos. Ele já havia tomado a iniciativa de cuidar de tudo referente ao internamento, com isso não precisaria me preocupar. Era o braço direito do meu pai, seu homem de confiança. Antônio era um homem na casa dos 40 anos, muito bonito e elegante. Por suas maneiras percebia-se que tivera uma educação fina. Sua esposa, Helena estava a nossa espera e me abraçou assim que me viu. Era uma mulher na casa dos trinta anos, muito bonita e educada, também trabalhava em nossas empresas.
Depois de abraçar Margareth e Auguste, pessoas de quem gostava muito e trocar uma ou duas palavras, segui com Antônio até o escritório do papai que, enquanto ele estivesse impossibilitado, seria meu. Antônio abriu a porta me dando passagem. Respirei fundo ao entrar naquele ambiente, amplo e arejado. Meu pai sempre gostou de lugares assim. Ao fundo da sala uma enorme mesa antiquíssima, de jacarandá da Bahia fazia par com uma cadeira de igual madeira revestida de couro. No chão de madeira polida e lustrosa um grosso tapete de couro de boi estendia-se por sob a mesa e poltronas nas imediações. Na parede por trás da mesa, um grande retrato a óleo encarava quem entrasse na sala. Era meu tetravô, aquele que deu início à tradição da família Leme de Barros nos ramos do café e gado. Aproximei-me da mesa do meu pai. Sobre ela se encontravam, arrumados com esmero, alguns objetos, como um porta-retratos com uma foto minha e outro com a amante dele e uma criança. Meus olhos se prenderam naquelas imagens. A criança, meu irmão, idêntico à mãe, os mesmos olhos azuis, o mesmo cabelo negro e brilhante. Peguei o porta-retratos olhei-o atentamente por alguns segundos e, abrindo uma gaveta, coloquei-o dentro. Antônio fingiu não perceber o meu gesto, não fez nenhum comentário e continuou esperando eu me pronunciar. Respeitava o meu momento de nostalgia, permanecendo parado em pé próximo à mesa. Eu, vagarosamente, me sentei na grande cadeira e fiz-lhe um sinal para que também se sentasse.
Ele sentou-se, e olhando-me nos olhos, disse com sua voz de locutor de rádio.
-- Minha cara Sylvia, sei que o momento é o menos indicado para conversarmos, mas existem prazos a serem cumpridos e documentos que precisam de sua assinatura.
Ele abriu uma elegante pasta de couro e depositou sobre a mesa algumas folhas de papel. Percebendo meu olhar interrogativo, ele logo esclareceu:
-- Não se preocupe. Você já detém plenos poderes sobre todo o patrimônio do seu pai. Há tempos que ele deixou tudo organizado.
-- Tudo organizado? Como assim?
-- Em caso de morte ou impedimentos graves você, automaticamente, assume todos os poderes sobre o patrimônio. Ou seja, você é agora dona de 75% de todos os bens do seu pai.
Recostei-me no espaldar da cadeira e não mais consegui segurar as lágrimas. Ele esperou pacientemente que eu me recompusesse e continuou.
-- Parece que ele estava adivinhando o que ia acontecer...
Peguei os papéis e comecei a lê-los. Não eram documentos longos, assim fiz uma rápida leitura e rubriquei. Entreguei-lhe os papéis e fiz a pergunta que estava engasgada em minha garganta desde que o vi no aeroporto.
-- Antônio, essa mulher com a qual meu pai está envolvido, como fica a situação dela agora? Dessa relação nasceu uma criança, não?
Ele se mexeu na cadeira e um tanto ruborizado gaguejou:
-- É... sim, nasceu... um garotinho. Bem, posso lhe adiantar que... seu pai... citou-o no testamento...
-- É justo. Já que é filho, é herdeiro. Mas, e ela?
-- Bem... até a última conversa que tivemos sobre o testamento, ele não a citava. Se ele fez alguma alteração, não me disse. Os 25% restantes passarão a pertencer a seu irmão... e ele terá você como tutora.
-- Eu? Mas por quê? Ele tem a mãe. Meu pai tem administradores que podem muito bem fazer isso.
Antônio olhou-me profundamente nos olhos e deu um sorriso um tanto sem graça, dando sua opinião a respeito.
-- Ele não me disse a razão de ter escolhido você..., mas, eu acredito que foi a forma que encontrou de aproximar vocês dois.
-- Mas eu não posso ser tutora, a mãe dele está viva e, até que provem o contrário, é capaz!
Mantive-me em silêncio, apenas olhando-o fixamente. Não gostei que aquele assunto de meu irmão viesse à tona, mas ao mesmo tempo sentia uma enorme curiosidade. Era visível o constrangimento de Antônio em falar sobre aquele assunto. Mas, não havia outro jeito.
-- Meu pai deve ter tomado alguma providência para não deixar a mãe do seu filho desamparada.
-- Eu não sei, Sylvia. Mas a Júlia trabalha... Ela é...
Levantei-me angustiada, e ele parou de falar. Desde o dia que vira as fotos daquela mulher uma sensação estranha tomava conta de mim, um misto de curiosidade, indignação e repulsa. Aproximei-me da janela e fiquei por alguns minutos fitando o bonito jardim que se estendia a perder de vista. Queria saber tudo sobre aquela relação clandestina, sobre as intenções da mulher, sobre a criança. Eu ainda não queria admitir para mim mesma, mas queria conhecer o meu irmão, pois sempre gostei de crianças e lamentava muito ser filha única.
-- Ela... morava aqui com ele, nessa casa?
-- Não. Ele sempre respeitou essa casa. Pelo que eu sei a senhora Júlia nunca entrou aqui. E, pelo que conheço dela, mesmo que ele quisesse isso, ela jamais entraria.
-- Antônio, minha mãe andou investigando a vida dessa mulher... e pelo que o detetive que ela contratou pode apurar.... Essa senhora foi, podemos dizer... obrigada a se envolver com o meu pai. Isso tem fundamento? -- Encarando-o seriamente, adverti -- Não adianta me esconder nada, pois você sabe que tenho meios de descobrir a verdade.
Fiz a pergunta encarando-o, pois queria ver a sua reação. Ele era fiel ao meu pai, não a mim, mas, agora como meu pai em coma, não tinha porque me esconder nada. Ele ficou imensamente vermelho, visto que era muito branquinho. Abaixou as vistas e ficou em silêncio. Sua esposa que nos havia acompanhado, demonstrando mais sangue frio do que ele se pronunciou:
--Senhora Sylvia, a senhora tem todo o direito de saber. Mas, como é um assunto delicado, acho que o momento não é o mais adequado...
-- Quem decide isso sou eu, Helena -- Respondi friamente e, confesso que do meu olhar deve ter saltado chispas, pois ela, desconcertada, balançou a cabeça assentindo.
-- Pois não, senhora. -- Respirou fundo e depois de alguns segundos, continuou - Lamento informar, mas o senhor seu pai, praticamente, forçou essa mulher a se envolver com ele...
Ao ouvir isso me sentei novamente e pedi que continuasse.
-- Quero saber de tudo. Não me escondam nada. Afinal de contas ela é mãe do meu irmão. -- Não acreditei que havia dito aquilo. Ao pronunciar em alto e bom tom que o pequeno Antenor era meu irmão, significava que já o considerava de fato como tal.
Antônio a essa altura estava mais calmo e já havia recuperado a cor normal do rosto. Olhou para esposa e fez sinal para ela indicando que concordava que continuasse a narrativa.
-- O pai de Júlia era dono de um frigorífico e comprava carne do grupo Leme de Barros. O comércio dele ia bem, mas ele era viciado em jogos e bebia muito. Com as derrotas no jogo, foi se endividando cada vez mais. -- Helena fez uma pausa, respirou fundo - Seu único filho, também viciado em jogos, ajudou a arruinar a família...
-- Eles ficaram completamente falidos? -- Perguntei tentando imaginar a situação.
-- Completamente. O que eles deviam, nem o frigorífico, nem os imóveis que possuíam eram suficientes para quitar a dívida. Desesperado, ele foi pedir ao senhor Antenor que lhe comprasse o frigorífico... Como ele já estava doente nessa época, a filha o acompanhou e foi aí que...
-- Que meu pai se encantou por ela...-- completei de forma irônica.
-- Exatamente. Ele ficou louco por ela, assim que a viu. Sem tirar os olhos dela disse ao pobre homem que ficasse tranquilo que ele daria um jeito em tudo.
-- Meu Deus! Coitado do meu pai...!
-- Poucos dias depois, ele deu um jeito de conversar a sós com Júlia. Ela imaginando que ele fosse tratar de negócios, voltou novamente à empresa, assim que recebeu o recado dele.
-- Ela estava tão alheia assim, das intenções dele?
-- Estava. Isso eu posso lhe garantir.
Percebi uma certa chateação no tom de voz dela.
--Vocês são amigas?
-- Somos. Somos muito amigas, senhora Sylvia. Somos primas.
--Ah! -- Claro que ela iria defender a priminha.
-- Eu acompanhei de perto toda a história. E, o fato dela ser minha prima, não influencia na minha versão dos fatos.
-- Sim e que proposta indecente meu pai fez a ela? -- Eu não estava gostando nada do que ouvia.
-- O senhor seu pai comprou as dívidas dos outros credores e, exigiu como garantia de perdão, que ela se casasse com ele.
-- Ela deve ter aceitado logo, imagino. -- Eu não estava conseguindo acreditar que ele fosse capaz de algo tão sórdido.
-- Não. Ela se recusou. O pai e o irmão a pressionaram e a chantagearam tanto que ela, temendo a morte do pai, não teve alternativa a não ser aceitar o pedido de namoro do senhor Antenor.
Recostei-me no espaldar da cadeira, fechei os olhos sem conseguir acreditar naquilo. Abri novamente a gaveta e apanhei o porta-retratos. Pus-me a observá-lo. Será que apenas a beleza dela foi capaz de enfeitiçá-lo?
-- Ela possui uma beleza incomum. É natural que um homem perca a cabeça, mas jogar tão baixo... não, não acredito que meu pai tenha feito isso. Deve ter algo nessa história que você não sabe, Helena.
-- Sinto muito, dona Sylvia. Ele era seu pai, e sei que era um pai maravilhoso, uma pessoa muito honesta, ilibada, mas...
-- E a gravidez, vai me dizer também que foi forçada? -- A minha ironia estava palpável em todas as minhas palavras.
-- Se eu lhe disser que sim, a senhora não vai acreditar, então...
Aquilo me chocou. Helena e o marido eram pessoas honestíssimas. Ela não seria capaz de inventar uma história daquelas, num momento daqueles, sabendo que corria o risco de perder o emprego. Só o tempo e talvez a investigação de Miguel me dissessem a verdade.
Logo em seguida os dispensei e fui tomar um banho, pois teria que ir para o hospital.
Debaixo do chuveiro, sentindo a água quente escorrendo pelo meu corpo, repassava toda a conversa com Antônio e Helena. Estava chocada com a revelação. Era difícil de acreditar que o meu adorado pai tivesse feito uma coisa tão baixa, se aproveitado da miséria alheia para satisfazer um desejo. A imagem de Júlia surgiu na minha mente. O olhar era tão puro e cristalino, tão meigo e profundamente triste! Apesar de tão sorridente na foto, a profunda tristeza saltava pelos belos olhos azuis. Nunca vira um azul daqueles, tão intenso e tão brilhante. Será que a veria no hospital? Era provável que não, pois se foi obrigada a se relacionar com ele, agora estaria se sentindo livre.
*******
Na capital paulista, no bairro Pinheiros, num antigo casarão, situado próximo à avenida em construção, Brigadeiro Faria Lima, uma mulher de 30 anos, Júlia de Almeida Pires estava apreensiva com o telefonema de sua prima Helena. Aguardava-a com um frio na barriga. Olhava no relógio de pulso o tempo todo. Seu filho de 11 meses, alheio a tudo que vinha acontecendo com ela, dormia ali no quarto, o mais inocente dos sonos. Ele era tudo o que lhe restara de bom na vida. Era o único motivo que ainda a prendia nesse mundo. Aproximou-se dele e depositou um suave beijo nos cabelos negros, cheios e ondulados. Ele era tão lindo! Sorriu meigamente para ele. Saiu do quarto na ponta dos pés para não o acordar.
A campainha tocou e ela sobressaltou-se. Correu para atender, e assim que abriu a porta, Helena, sua prima, amiga e irmã abriu-lhe os braços para um abraço.
Júlia não mais conseguiu segurar o choro que trazia preso no peito há muitos dias. Desde que aquele homem entrou na sua vida, nunca mais teve paz. É verdade que ele era por demais atencioso e lhe satisfazia todas as vontades, menos lhe conceder a liberdade. Ela não chegava a odiá-lo, mas sentia um desprezo e repulsa que mal conseguia disfarçar. Depois que ele começou a dar mostras de que não estava bem de saúde, exigia cada vez mais sua presença, seus cuidados. Não queria admitir, sabia que era crueldade, mas estava se sentindo aliviada com o coma dele. Só assim ela estava podendo respirar com certa tranquilidade. Mas temia que essa paz temporária durasse pouco com a chegada da filha e da esposa dele.
-- Calma, minha querida! Calma! -- Helena a consolava enquanto a conduzia para o sofá. -- Venha, sente-se aqui e vamos conversar. Vou lhe contar como foi a chegada de Sylvia.
-- Helena, tenho medo do que elas podem fazer comigo... ou com meu filho...! --Desesperava-se apertando as mãos uma na outra.
-- Calma, Júlia! Elas não vão fazer nada contra você, nem contra o pequeno Antenor! -- Helena franzindo o cenho estranhou o desespero dela. -- O que a faz pensar que elas podem agir contra vocês?
-- Eu tenho medo..., podem..., podem achar que tenho culpa na doença do Antenor... sei lá! -- Recostando a cabeça no espaldar do sofá e soltando o corpo num abandono, esclareceu -- Elas são poderosas, Helena! Por tudo o que Antenor já me disse, a moça tem adoração por ele... não vai aceitar facilmente essa doença do pai... -- Olhou para Helena, suspirou confessando-- Tenho medo, tenho medo por meu filho!
Helena viu naqueles olhos azuis e lindos, naquele rosto perfeito e angelical, o desespero, a agonia por se sentir impotente, fraca diante de duas pessoas que, num piscar de olhos, poderiam acabar com ela.
-- Júlia, eu entendo seus temores. Em seu lugar estaria sentindo o mesmo, ou até mais. Mas posso lhe garantir minha prima, que você não tem motivos para ficar assim tão preocupada.
-- Será Helena? Como pode me garantir?
-- Eu, na verdade, pouco convivi com Sylvia, mas tenho absoluta certeza que ela jamais seria capaz de fazer mal a alguém. É uma pessoa boníssima, sensível e justa.
Júlia sentiu-se menos apreensiva com as palavras de Helena, mas ainda assim, o temor a dominava.
-- Eu contei a ela como tudo aconteceu, Júlia!
Júlia a olhou, espantada. Não acreditava que Helena teve essa coragem.
-- Helena! Você é louca! Ela, claro, não acreditou!
-- Eu contei porque confio no senso de justiça daquela moça. Ela, apesar de ter apenas 23 anos, é madura e ponderada demais. Tem os pés no chão. Não é volúvel e fútil como a mãe.
Júlia, ainda um tanto angustiada, respirou fundo e continuou ouvindo as colocações da prima.
-- Contei tudo a ela. Claro que ela não gostou de ouvir o que o pai fez, ficou chocada e manifestou claramente suas dúvidas. Afinal ele é o pai dela. Um pai amoroso, dedicado. Ela sempre foi tratada por ele como uma princesa. Ela cresceu achando que ele era perfeito.
Júlia balançou a cabeça em sinal de concordância.
-- Claro, claro! Qualquer um ficaria com dúvidas.
Helena olhou fixo para Júlia, deu um pequeno sorriso e revelou.
-- Assim que ela viu o porta-retratos seu com o Antenor Júnior, ela o guardou na gaveta da escrivaninha. Mas, no desenrolar da conversa ela o pegou novamente e ficou analisando a fotografia. -- Continuou olhando fixo para Júlia e complementou -- Achou a sua beleza ímpar! Mas todo mundo acha, não é? Não sei quem você puxou, Julinha-- riu -- Na nossa família não tem ninguém com essa beleza toda.
Júlia sorriu abanando a cabeça e um lado para o outro.
-- Não me acho bonita. As pessoas vivem me falando isso, mas, sinceramente, não vejo nada demais em mim.
-- Ah! Você é tão simples, tão voltada para sua música, para sua arte que não consegue perceber o quanto é encantadora.
-- Vamos parar de falar da minha plástica, ok? Voltemos ao assunto da moça. Você disse que ela ficou olhando o porta-retratos...
-- Exato.
-- Deve estar me odiando e odiando meu filho... Irmão dela! -- Virando-se para Helena, curiosa perguntou: -- Como ela se referiu ao meu filho? Ela já o vê como... Como seu irmão?
-- Não posso lhe afirmar o que Sylvia sente em relação ao irmão, Júlia. Mas no que diz respeito à herança, ela achou justa a decisão do senhor Antenor.
-- Não contestou nada? Não reclamou?
-- Não! De forma nenhuma! Mas... -- Helena titubeou em continuar.
-- Mas, o que Helena? -- Júlia alarmou-se. Tudo estava indo muito bem para ser verdade.
-- Nada demais. É que ela só ficou um pouco incomodada quando ficou sabendo que foi nomeada tutora do irmão.
-- Tutora do meu filho? Mas como? Eu estou bem viva e não sou nenhuma doente ou incapaz!
Helena deu de ombros.
-- Na verdade será a tutora dos bens dele. Ela é quem administrará as finanças do Antenor Júnior.
-- Mas, mesmo assim ele tinha que ter me falado. Afinal eu sou a mãe!
Helena contestou a colocação dela.
-- Não, ele não precisava lhe dizer nada. O menino é seu filho, mas a herança vem da parte dele, do Antenor. E, além do mais, você não leva o menor jeito para lidar com dinheiro Júlia. Seria um desastre nas finanças do garoto. -- Finalizou com uma risadinha.
Júlia vendo que ela tinha razão riu também em concordância. Ela, em se tratando de dinheiro, era um horror. Como seu espírito era voltado para as artes, não sabia lidar com finanças.
Júlia levantou-se, a pegando pela mão.
-- Venha, vamos até a cozinha fazer um café! Fico tão desanimada sozinha nesta casa, que fico protelando até para fazer algo para comer.
-- Por que não coloca essa casa a venda e compra uma menor, querida? É muito grande para você e o Antenor Júnior.
Júlia enlaçando-a pela cintura e continuando a caminhar para a cozinha, desabafou:
-- Lena, se eu lhe disser que não tenho ânimo para nada, você não vai acreditar! A única coisa que ainda faço com um pouco de prazer é cuidar do meu filho. -- Limpou os olhos cheios de lágrimas -- É nele que encontro forças para continuar. Ele precisa de mim. Nós temos apenas um ao outro.
Helena a abraçou.
Entraram na cozinha e Helena a conduziu até uma cadeira:
-- Fique sentadinha aqui que vou fazer o café. -- Olhou para ela e fazendo uma cara de sonsa, brincou: -- afinal eu também quero beber...
-- Ah! Se eu fizer você não toma, não é sua danada? Acha meu café tão ruim assim? -- Perguntou sorrindo.
-- Júlia meu bem, você há de convir que seu cafezinho, nem você mesma consegue beber...
Júlia abanou a cabeça dando-se por vencida. Nublando o semblante, mais uma vez preocupada, confessou:
-- Lena, mais dia menos dia, eu e a filha do Antenor, vamos nos esbarrar. Isso... me preocupa.
Helena recostou-se na pia e virando-se para ela, procurou tranquilizá-la:
-- Já lhe disse que ela é uma pessoa tranquila, Júlia. Não precisa se angustiar. Com certeza vocês vão se esbarrar. Será inevitável. Mas não pense nisso agora.
Brincando com os dedos sobre a toalha da mesa, uma mania que tinha quando estava nervosa, Júlia continuou seu desabafo.
-- Nosso convívio, mesmo que venha a ser o menor possível -- eu até prefiro assim -- não será dos melhores. Para ela, eu sempre serei aquela que estragou o casamento dos pais.
Helena estranhou a preocupação dela com a opinião de Sylvia.
-- Júlia, que importa o que Sylvia pensa ou deixa de pensar a seu respeito, querida? O importante é que você sabe que você foi e é uma vítima nessa história toda. Eu sei, o Antônio sabe, seus amigos sabem e isso basta. -- Colocando o pó de café no coador, acrescentou -- Tenho certeza de que com o tempo, ela vai entender que você não teve culpa nenhuma. Sylvia é uma pessoa inteligente, Júlia. Ela sabe que o casamento dos pais está acabado há muito tempo, mesmo antes do Sr. Antenor lhe conhecer.
-- Não sei... A razão dela pode entender isso, mas o coração... A mulher é a mãe dela... não, não é tão simples assim, Lena. -- Lágrimas desceram novamente pelos belos olhos. -- Não é bem assim. Ela nunca vai me aceitar...
Helena, pousando a chaleira sobre o fogão, virou-se para ela e perguntou de chofre:
-- Por que se preocupa tanto com a aceitação de Sylvia?
-- Lena ela é irmã do meu filho. Um dia eles vão se aproximar, e tenho receio de que ela o despreze, o rejeite por minha causa. -- Fechou os olhos, soltou o ar dos pulmões e continuou -- Ele só tem a mim e a ela nesse mundo. É apenas um bebezinho indefeso e eu tenho muito medo de morrer e ele ficar sozinho. -- Fez uma pausa para respirar melhor -- Já pensou se ela rejeitá-lo e eu, de repente, morrer? O que vai ser do meu filho?
Helena que acabava de encher a garrafa de café, antes de comentar alguma coisa, pegou duas xícaras no armário e sentou-se de frente a ela. Depois de servir o café, segurou-lhe as mãos e mais uma vez procurou acalmá-la.
-- Meu amor, você está muito abalada! Está ficando muito sozinha nesta casa. Vou te fazer uma proposta: Arrume as suas coisas e as do Júnior e venha passar uns dias lá em casa. Ficar aqui neste museu sozinha, não está lhe fazendo bem. -- Levantando-se e aproximando-se dela declarou - Nem você e nem o Antenor Júnior estão só neste mundo. Vocês têm a mim e ao Antônio. Nós nunca vamos lhes virar as costas, Júlia. -- Acariciando-a levemente nos cabelos concluiu: -- Depois do café, vá arrumar suas coisas.
-- Não quero lhe dar trabalho, Lena e, depois, tem meus alunos de violão...
-- Isso não é motivo para você me negar o prazer de ter vocês dois em minha casa. O Antônio vai adorar. -- Tomando mais um gole do café, deixou totalmente a modéstia de lado -- Está divino esse café, não está? Sua prima aqui, em matéria de café, é perfeita.
Júlia sorriu e aprovou com um aceno de cabeça.
Helena retomando a conversa decidiu.
-- Vamos ainda hoje. Quanto aos seus alunos você, se quiser, pode continuar dando as aulas aqui mesmo. Moro pertinho daqui esqueceu?
Júlia não tinha forças para questionar. Estava, mesmo com a sensação de liberdade, se sentindo perdida com a doença de Antenor. Mesmo detestando viver ao lado dele, detestando a situação em que ele a colocou, sabia que com ele, seu filho estava protegido. Ele era alucinado pelo menino.
Algumas horas depois entrava na casa da prima com o filho nos braços.
*********
Quando cheguei ao hospital, a primeira coisa que fiz, foi conversar com o médico que estava acompanhando meu pai. Ele não me deu muitas esperanças de que ele saísse do coma com vida. Na verdade, o que o afetara, não foi apenas o enfarte e sim um tumor no cérebro. O doutor José de Morais revelou-me que meu pai sabia que estava doente, e, por decisão própria, resolveu não se tratar, já que havia poucas garantias de que iria sobreviver por muito tempo. Ele acreditava que se mexesse no tumor aceleraria a doença. O médico tentou convencê-lo a se tratar, mas ele era muito teimoso. Só me restava agora aguardar. Mas, mesmo com a revelação do médico, eu tinha esperanças de que ele saísse do coma pelo menos para que eu pudesse conversar com ele pela última vez. No meu desespero eu alimentava a esperança de que ele pudesse ainda viver algum tempo. Ele sempre fora tão forte! Manifestei ao médico meu desejo de transferi-lo para um país onde a medicina fosse mais avançada, mas ele foi categórico comigo:
-- No caso do seu pai Sylvia, não tem mais jeito. Eu não sei como ele estava aguentando em pé. -- Um tanto constrangido ele complementou -- A dona Júlia me contava das tonturas e desmaios que ele sentia. Ela insistia para que ele procurasse um médico, mas você sabe como ele é teimoso demais.
-- Então não tem mais jeito doutor? -- Perguntei com os olhos cheios de lágrimas.
Ele balançou a cabeça.
-- Eu sinto muito, querida. Sinto muito mesmo. Mas, não há nada a ser feito.
Minha mãe ouviu o relato do médico e não disse uma palavra. Eu entrei no quarto em estado de choque. Não conseguira absorver claramente o que o médico me dissera. Só depois que o vi na cama e que o chamei e o toquei e ele não reagiu foi que a realidade começou a se desvelar para mim. Mas, eu só iria acreditar que o caso de meu pai era irreversível com a morte dele. Enquanto ele estivesse respirando, a minha esperança continuava viva.
Parada ao lado do meu pai, eu o olhava com lágrimas nos olhos. Meu coração doía ao vê-lo naquele estado. Ele fora sempre tão alegre, tão entusiasmado com as coisas, com o trabalho, com a vida. Envolvi meus dedos, com cuidado, em seu cabelo cheio, macio e grisalho. Desci a mão pelas faces, contornando-a, como para gravar as linhas, o desenho. Quantas e quantas vezes ele pousara para mim, quando eu estudava desenho. Ele ficava parado o tempo que fosse necessário para eu construir inúmeros esboços. Sempre paciente e orgulhoso de mim. Eu não podia acreditar que ele tivesse lançado mão de um artifício tão baixo por paixão a uma mulher, por egoísmo. Só podia ser paixão, porque se fosse amor ele não a obrigaria a nada. Se é que ele realmente a havia obrigado. Eu ainda tinha dúvidas, mas, ao mesmo tempo, algo me dizia que Helena e Antônio diziam a verdade. Segurei-lhe as mãos e pedi a Deus que o tirasse daquela cama e o trouxesse de volta para mim, para todos nós.
-- Papai, acorde. Preciso tanto do senhor! -- Sussurrei em seu ouvido. Lembrei-me do meu irmãozinho que ele devia amar com loucura -- O seu filhinho também precisa do senhor... volte por ele, por mim, por nós!
Depois de um tempo observei minha mãe que continuava parada ao lado cama. Trazia no semblante uma máscara glacial. Era visível em seu olhar, a insensibilidade diante do marido. Ela o fitava, e era como se tivesse fitando o nada. Eu fervia por dentro com a frieza dela. Às vezes sentia vontade de sacudi-la para ver, se de algum lugar daquela alma gelada, brotasse alguma chama de comiseração pelo sofrimento alheio.
Olhando-me com o mesmo olhar frio, ela destilou o veneno.
-- Devia ter sussurrado mais baixo, Sylvia e me poupado da sua demonstração de amor fraternal. -- Um riso sarcástico deformou seus lábios. -- Só me falta agora você cair de amores pelo irmãozinho bastardo. E quem sabe pela mulher que destruiu meu casamento.
Respirei fundo, contei até dez e olhei para ela fixamente, avaliando-a. Depois de uns longos minutos, eu desabafei com a voz calma e baixa, o que estava engasgado na minha garganta há muito tempo.
-- Olhe mãe, eu compreendo que seu amor pelo papai tenha acabado. Isso acontece com muitos casais. Você não é a primeira mulher a ser rejeitada por um homem e nem será a última. E também não é vítima nessa história. Tem uma grande parcela de culpa pelo afastamento de papai.
Ela tentou me interromper, mas não permiti e continuei:
-- Não vou dizer que aprovo o envolvimento dele com essa moça, porque estarei mentindo. Ele deveria ter se separado antes de você. Mas, conhecendo meu pai como conheço, se você não o tivesse deixado tanto de lado, ele não teria se envolvido tão seriamente com outra mulher.
Ela arregalou os olhos e veio na minha direção com o dedo em riste:
-- Como ousa defendê-lo! Ele me pediu a separação! Ele quis me largar, lançar meu nome na boca do povo! Você está do lado dele, Sylvia?
-- Não, mãe! Eu não estou do lado dele, nem do seu. Eu estou do lado da verdade e quem estiver com a razão nesse dramalhão, vai ter meu apoio.
-- Dramalhão? Você ainda zomba do meu sofrimento?
A enfermeira, ouvindo a voz alterada da minha mãe, entrou no quarto.
-- Senhoras, não podem fazer barulho aqui. Vai incomodar o paciente. Por favor, queiram se retirar. Já ficaram tempo demais.
Minha mãe olhou-a como se olha para um objeto sem valor. Sem dizer uma palavra saiu do quarto. Desculpei-me com a enfermeira e também sai do quarto.
Na recepção ela se jogou numa poltrona, visivelmente incomodada. Não fazia questão nenhuma de esconder sua contrariedade. Eu estava irritada com ela e um diabinho me levou a provocá-la:
-- Não tem medo do que as pessoas vão falar? A senhora está com a cara azeda. Todo mundo está percebendo. Você é uma Bordeaux, lembre-se disso, mamãe!
Ela respirou fundo e fingiu não me ouvir. Depois de uns longos segundos ela voltou à carga:
-- Você está do lado dele. Antônio já lhe virou a cabeça contra mim.
-- Antônio, ou melhor, Helena sua esposa, me contou com detalhes, tudo o que aconteceu. Se ela tiver razão, mamãe, essa moça é uma vítima. Eu estou relutando em aceitar esse fato, mas conhecemos Antônio e Helena, eles jamais inventariam uma história dessas.
-- O meu detetive me disse o mesmo, já lhe falei. -- Levantando-se abruptamente deu por encerrada a conversa - Mas, isso não muda nada. Ela tem culpa, pois ele só me pediu a separação por causa dela. -- Trincando os dentes, me encarou com um olhar que indicava que queria distância de mim -- Vou embora, vai ficar?
Sem esperar minha resposta saiu com o passo rápido.
Deixei que ela fosse sozinha. Também não aguentaria mais sua companhia naquele momento. Segui para a cantina do hospital e pedi um café. Minha cabeça estava doendo muito e eu ainda não havia descansado da viagem. Queria ficar a sós com meu pai. Tinha esperanças de que ele me ouvisse e reagisse com minha presença.
Fiquei por um longo tempo no quarto do meu pai, sentada ao lado da cama segurando sua mão. Conversei com ele, falei da minha vida em Paris, do trabalho na filial de lá. Do meu namoro com Augusto, que insistia em casar e das minhas dúvidas se queria assumir um compromisso mais sério. Pois, apesar de gostar dele, ainda me achava nova para casar, se bem que muitas das minhas colegas de faculdade já estavam casadas. Relembrei de nossos passeios por diversas partes do mundo; das nossas disputas nas corridas de cavalo em que eu, na maioria das vezes, saia vencedora. Do primeiro pônei que ele me deu e do medo da minha mãe quando ele me colocou sobre o animalzinho. Relembrei todos esses momentos com as lágrimas caindo. Fiz muita força para não chorar, mas era impossível, pois eu não conseguia acreditar que aquele homem inerte, que parecia não ouvir nada do que eu dizia, fosse o meu pai, meu querido pai. Cansada acabei dormindo com a cabeça apoiada na beirada da cama. Acordei, depois do que me pareceu uma eternidade, com um toque de Antônio no meu ombro. Olhei-o e o cumprimentei com um leve sorriso. Ele ficou observando meu pai por alguns segundos, até se pronunciar.
-- Vim buscá-la para que descanse um pouco, Sylvia. Você deve estar exausta.
-- Não, Antônio, eu não vou sair daqui. Quero estar ao lado dele quando ele acordar.
Ele se aproximou de mim e alisou meus cabelos com carinho.
-- Vamos tomar um café? Lá a gente conversa melhor.
Eu o acompanhei até a cantina. Com muito esforço consegui comer um pãozinho de forno com um pouco de café com leite.
Seus olhos castanhos claros pousaram sobre mim com ternura.
-- Você sabe que seu pai pode acordar hoje, amanhã, daqui um ano ou não acordar...
-- Eu sei Antônio, mas me recuso a acreditar nessa dura realidade. -- Mordi o pão que pareceu inchar na minha boca. Tomei um gole do café e não senti gosto de nada.
-- Vou lhe levar para o apartamento daqui do Morumbi, pois fica perto do hospital. Tomei a liberdade de mandar buscar algumas roupas suas, se não se incomoda.
-- Claro que não, Antônio. Eu agradeço.
Ele esboçou um sorriso tímido. Bebia o café lentamente. Todos os seus gestos eram comedidos, calmos. Sua voz era modulada, pausada, muito agradável aos ouvidos. De repente me senti menos sozinha no mundo. Com ele ali, perto de mim, me senti protegida, amparada. Ele era tão transparente que exalava confiança. Meu coração se aqueceu e me pareceu que uma tonelada me saiu de sobre os ombros.
-- Vamos? - Postou-se atrás de mim e segurou a cadeira para que eu me levantasse. Em seguida ofereceu-me o braço. Que sorte Helena teve! Ele era educado demais, fino demais. Um verdadeiro gentleman.
Entramos num apartamento grande, bastante claro e arejado. Bem ao gosto do meu pai. Uma senhora baixinha e morena veio nos receber. Olhou-me como se olhasse para uma rainha. Eu já devia estar acostumada com aquele tipo de olhar, pois a maioria dos empregados me olhava assim, mas era algo que me deixava um tanto constrangida, incomodada.
-- Seu pai costumava ficar muito aqui Sylvia, quando as reuniões se estendiam noite adentro. Ele gostav... gosta daqui porque é amplo. Você sabe ele tem fobia de lugares pequenos, apertados e escuros.
-- É, eu sei.
Antônio pareceu se lembrar de me apresentar à empregada.
-- Sylvia, esta é Julieta. Ela trabalha com seu pai há muitos anos.
Ela me olhou e inclinou levemente a cabeça, mas não me ofereceu a mão, na certa com receio de que eu pudesse não gostar. Olhei-a nos olhos e vi neles uma fidelidade a tudo o que cheirasse a Leme de Barros. Para deixá-la à vontade e dissipar seu receio, ofereci-lhe a mão.
-- É um prazer conhecê-la, Julieta.
Seu sorriso me exibiu duas fileiras de dentes branquíssimos e bem tratados.
-- O prazer é todo meu, patroazinha. Sempre tive vontade de conhecê-la pessoalmente. O seu Antenor não tira seu nome da boca. -- Seus olhos marejaram. Mas, logo se recompôs -- Vou preparar um banho para a senhora e quando quiser, servirei o jantar.
Sorri levemente concordando e me voltei para Antônio.
-- Pelo que o médico me falou, vou ter que me mudar de vez para cá... Eu adoro Paris... Vai ser difícil me acostumar aqui...
--Eu imagino, mas logo, logo se acostuma. Esse país é uma maravilha, você verá! -- Fez uma cara marota.
-- Bairrista! -- Brinquei. Eu adorava o Brasil, mas só tinha vindo a passeio, morar era outra história. Não tinha amigos aqui, não era acostumada com o clima e, além do mais, tinha agora que carregar todo um império nas costas, aos 23 anos de idade. Quando pensava nisso, sentia um frio na barriga. Tinha medo, não tanto por mim, mas pelos empregados que dependiam das nossas empresas para viverem. E se eu não conseguisse dar conta do recado e falisse, o que seria dessas pessoas? Às vezes esse receio me assaltava. A filial de Paris que eu administrava não era nada diante de todo o grupo.
-- Antônio, tenho medo de não conseguir...
-- De não conseguir o quê, Sylvia? -- Ele me perguntou, mas com certeza já sabia do que se tratava o meu receio.
-- Seu eu não conseguir levar adiante as empresas... se eu colocar tudo a perder...?
Ele sorriu compreensivamente. Olhou para mim por alguns segundos permanecendo em silêncio. Depois, me tomou as mãos e me encarando, falou naquela voz pausada e doce de se ouvir.
-- Você vai conseguir e, além do mais, o patrimônio do seu pai é muito sólido. Mesmo que as empresas fechem você continuará rica e viverá sem preocupações.
-- Não tenho medo por mim, pois mesmo que não tivesse a herança do meu pai, terei a da minha mãe. Tenho medo pelos empregados. Eles precisam das empresas para garantir a sobrevivência.
-- Você não está sozinha, Sylvia. Tem a mim e muitos outros administradores. E logo, logo você tomará pé das coisas. Fique tranquila.
-- Ainda bem que tenho você.
Ele sorriu mais uma vez e se despediu alegando que ainda teria que ir ao escritório.
Depois do banho cai na cama e dormi imediatamente.
Eu olhei no relógio e vi que era madrugada. A campainha do telefone me assustou e meu coração batia disparado em meu peito. Atendi.
-- Dona Sylvia? - Era a voz do médico. Meu coração disparou mais ainda. Para ele mesmo me ligar, era porque tinha acontecido alguma coisa grave.
-- Dona Sylvia? A senhora está me escutando?
-- Sim -- Não consegui dizer mais nada
-- Eu... eu sinto muito.... Seu pai acabou de falecer.
-- Estou indo para aí.
Coloquei o telefone no gancho e, como um autômato, levantei da cama e fui ao banheiro. Lavei o rosto e troquei de roupa. Já na sala encontrei Julieta que me aguardava assustada.
-- Chama-me o motorista, Julieta. Meu pai acabou de morrer.
Ela arregalou os olhos e correndo para o telefone chamou o motorista em meio a soluços. Depois se virou para mim.
-- Devo avisar a senhora sua mãe?
-- Eu mesma a aviso. -- Peguei o telefone e liguei o número da fazenda. Eu tinha certeza que ela não iria para o hospital. Mas, me senti no dever de avisar.
Depois de alguns segundos ouvi o seu alô sonolento e mal-humorado. Dei a notícia e ouvi sua respiração se acelerar.
-- Sei que você não vai querer ir ao hospital. Não tem problema, mamãe. Também não vai adiantar de nada.
-- Sei que não acredita em mim, Sylvia, mas eu sinto falta dele. Agora eu percebo isso.
-- Um pouco tarde, não acha? -- Novamente o diabinho me cutucou. Tive como resposta o clique do fone sendo colocado no gancho.
Virei-me para Julieta que me olhava como quem quer perguntar alguma coisa.
-- Sim, Julieta?
-- Posso ir com a senhora? É perigoso eu pegar um táxi a essa hora.
-- Claro que sim! Vamos!
Alguns minutos mais tarde, entrei no hospital acompanhada de Julieta. As lágrimas desciam dos meus olhos, silenciosas. O doutor José de Morais me abraçou e me levou para ver meu pai. Peguei Julieta pela mão para que ela me acompanhasse. Ela merecia vê-lo também, já que, como me disse Antônio, trabalhava com meu pai há muitos anos. Eu a manteria comigo se ela quisesse. Gostei dela.
Aproximei-me da cama e toquei levemente as mãos frias do meu pai. Acariciei-as. Em seguida toquei-lhe as faces que já estavam pálidas, com a lividez da morte. Meu Deus, a morte é uma agressão às nossas vidas, pensei enquanto tateava a pele do rosto dele. Senti, naquele momento, uma necessidade urgente de compreender melhor o significado da morte. Era inconcebível para a minha lógica que, do homem que foi o meu pai, só restasse aquele corpo sem vida, que em breve seria devorado pelos vermes, pelas bactérias. Tinha que haver algo mais. A essência dele tinha que estar em algum lugar, ter ido para algum lugar, tinha que continuar viva. Eu precisava acreditar nisso para não enlouquecer. As minhas lágrimas continuavam a cair e molhar as mãos, o peito dele. Julieta do outro lado da cama chorava com seus soluços baixos e sentidos.
De repente a porta se abriu e por ela apareceu Helena. Ela estacou:
-- Desculpe-me Sylvia, ninguém me avisou que estava aqui, aí fui entrando. Pensei que ele estivesse só.
-- Tudo bem, Helena!
Ela se aproximou de mim e me abraçou. Da posição que estava abraçada a ela, fiquei de frente para a porta que foi deixada aberta. Quando abri meus olhos, senti meu corpo gelar e enrijecer. O meu coração começou a bombear e ensurdecer meus ouvidos e meu cérebro e me senti tonta. O quarto girou. Parada na porta, sem ousar entrar, estava o ser mais lindo que eu já vi em toda a minha vida. Pareceu-me que eu estava sonhando. Era um anjo, uma perfeição que estava ali parada, trajando um vestido reto azul, na altura dos joelhos, que caia harmoniosamente no corpo. Apertei mais Helena em meus braços, para me segurar, pois minhas pernas amoleceram. Eu, se me soltasse, não conseguiria ficar de pé. A mulher na porta me olhava com os olhos mais ternos, mais doces que alguém podia externar. Um sorriso leve brincou em seus lábios e seu rosto iluminou e, de repente, todo o quarto pareceu iluminar e meu coração se aqueceu. Eu imaginei que, quando a visse, sentiria raiva e vontade de estapeá-la, mas, ledo engano, senti encantamento. Era isso! A palavra certa era encantamento! Podia também ser fascínio, arrebatamento, sabe-se lá! Até hoje não encontro palavras para descrever, fielmente, o que senti naquele dia. Meus olhos não conseguiam se desviar dos dela. Aquele mar azul era hipnotizador. Eu me esqueci de onde estava, do que estava fazendo ali, me esqueci do meu pai morto, me esqueci de tudo. Ela continuava com aquele doce olhar dentro do meu. E eu me senti afundar nele, ser totalmente tragada para aquela imensidão azul, depois não vi mais nada.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Moura
Em: 25/06/2018
Boa noite Nicole!
Adorei seu texto e pelos comentários postados deu para ter uma ideia do seu prestígio.
Parabéns!
Estou ansiosa por mais e mais deste conto.
Um abraço.
Resposta do autor:
Muito obrigada Moura.
Essa história foi muito apreciada quando a publiquei no site ABCles, e fico muito feliz em perceber que está surtindo o mesmo efeito aqui no Lettera.
Bjs
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