Capítulo 3
Augusto Monteiro de Siqueira observava as ruas de São Paulo impressionado com a imponência daquela cidade. O carro que o buscara no aeroporto deslizava numa velocidade que lhe permitia apreciar a bonita paisagem urbana. Só visitara o Brasil uma ou duas vezes, acompanhado da noiva Sylvia. Assim que respirou o ar tropical, sentiu sobre a pele o calor gostoso dos raios solares, inalou o cheiro do mar das diversas praias que visitou, se apaixonou pelo país e acalentou o desejo de ali morar quando se casasse com sua amada. Teria uma vida tranquila naquele país lindo e maravilhoso e iria aproveitá-la da melhor forma possível. Sua família era rica, mas nada comparada à de Sylvia e, casando-se com ela, não mais precisaria trabalhar. Viveriam os dois, um para o outro e para os filhos que teriam. Tinha pressa no casamento, mas não entendia o porquê da noiva protelar tanto. Acreditava-se amado por ela, mesmo ela não sendo tão efusiva em suas demonstrações de amor. Cada pessoa tinha seu jeito de ser e Sylvia era um tanto reservada, não muito afeita a arroubos e grandes paixões. Na verdade, ela não era lá muito romântica. Assim, justificava para si mesmo, o jeito um tanto distante da noiva.
Assim que soube do estado grave de saúde do futuro sogro deixou Lisboa, sua terra natal às pressas. Não poderia se furtar a prestar seu apoio a sua querida noiva. Gostava profundamente do senhor Antenor, que sempre foi gentil com ele. O fazendeiro já lhe chamara a atenção algumas vezes, sobre a necessidade de assumir os negócios da família com mais seriedade. Ele bem que tentava, mas não tinha muita inclinação para ficar sentado atrás de uma mesa e fechado numa sala. Sentia-se sufocar. Gostava mesmo de tocar seu piano, sua flauta e ler um bom livro, enquanto saboreava um velho vinho e tragava um perfumado charuto.
O funcionário, encarregado pela família Leme de Barros, de buscá-lo no aeroporto levou-o direto para o hospital, pois lhe informou que sua noiva estava em observação no hospital. Passara mal ao ver o pai morto.
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Helena tentou amparar Sylvia que, de repente, amoleceu em seus braços. Júlia, vendo a dificuldade da prima, saiu do transe em que estava assim que seus olhos se encontraram com os castanhos esverdeados daquela que, pela descrição de Antenor e pelas fotos que ele já lhe mostrara, era sua enteada. Trêmula, correu em socorro e ajudou Helena e Julieta a deitá-la na cama de acompanhante. Depois de ajeitá-la adequadamente, Helena saiu correndo atrás de um médico. Júlia sentou-se na beirada da cama e ficou a observar aquele rosto pálido e perfeito: a pele lisa e sem manchas, os lábios cheios e delicados, os cabelos castanhos claros, quase louros, de uma cor nunca antes vista por ela. Lindos! Sem resistir tocou-lhe levemente o rosto, os cabelos. Seus olhos desceram para o pescoço elegante, ornado por uma fina corrente de ouro, para o colo, parcialmente revelado por uma camisa rosa claro de botões, num elegante corte feminino. Sem conseguir evitar, seus olhos avançaram em direção ao restante do corpo. A calça num tom grafite caia com graça sobre o corpo harmonioso e bem desenhado. Júlia respirou fundo e sacudiu a cabeça. "Deus, o que estou fazendo? " Pensou. Quando voltou seu olhar novamente para o rosto, assustou-se com o par de olhos brilhantes fitando-a de maneira intrigada. Júlia sentiu o ar lhe deixar os pulmões. Tentou esboçar alguma palavra, mas nenhum som foi articulado. Procurou desviar os olhos, sem, no entanto, conseguir. Estava completamente hipnotizada por aquele verde folha-seca e completamente tomada por uma fraqueza e imobilidade que lhe impediam de mover um músculo sequer. A mão que acariciara o rosto se encontrava agora inerte e pousada entre a face e o pescoço. Sentia-a queimar, queria afastá-la, mas simplesmente não conseguia. Percebeu que a respiração dela estava ficando acelerada. O tórax subia e descia rapidamente. Foi tomada por uma espécie de vertigem quando ela abriu levemente a boca em busca de ar e a ponta da língua passeou pelos lábios para umedecê-los. Uma força estranha a prendia àquele olhar, àquele rosto, ao calor daquela pele em sua mão, ao perfume que exalava daquele corpo. "Meu Deus, o que está havendo comigo? Preciso sair daqui". Pensou com desespero. Olhou para Julieta, mas esta estava em pé ao lado da cama, com os olhos fechados em atitude de oração. Queria se afastar, mas seu corpo não lhe obedecia. Só conseguia olhá-la e descobriu-se querendo ficar cada vez mais e mais presa ao poder daquele olhar. O verde castanho daqueles olhos mergulhava na sua alma, como se estivesse despindo-a, tragando-a, sugando-lhe todas as forças. De repente, um leve sorriso se esboçou naqueles belos lábios e, então, Júlia se pegou desejando-a para si, em sua vida.
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Depois de fitar aquele ser maravilhoso, parado à porta do quarto de meu pai no hospital, me vi caindo num buraco negro. Não sei depois de quanto tempo, comecei a sentir um calorzinho gostoso no meu rosto. Era um calor que me aquecia por inteiro. Um perfume delicioso invadiu minhas narinas e me trouxe do mundo da inconsciência. Abri os olhos e quase desmaiei de novo. Ao meu lado, com a mão em meu rosto, estava aquele anjo descido dos céus. Seus olhos vagavam pelo meu corpo. Deixei-me ficar ali sob aquela sensação maravilhosa de tê-la tão perto. Sentia emanar dela uma energia suave, confortável e que me transmitia paz e confiança. Aos poucos fui me recordando da razão pela qual estava ali. Meu pai jazia morto na cama ao lado e, ali ao meu lado, com a mão parada em meu rosto, a amante dele. Não tive forças para reagir. Simplesmente abandonei-me, passiva, à vistoria de seus olhos. Quando ela voltou o azul em direção ao meu rosto senti novamente a vertigem e respirei fundo para não desmaiar novamente. Passeei meus olhos por aquele rosto lindo, agora tão perto. Dei razão ao meu pobre pai. Eu também perderia a cabeça, qualquer pessoa perderia. Uma intensa dor de perda, não só por meu pai, mas como, se por algo que não poderia jamais se concretizar, tomou-me o peito e as lágrimas puseram-se a escorrer dos meus olhos. A minha respiração começou a se agitar, o ar não chegava a meus pulmões.
-- Co... Como... está... se sentindo?
Ouvir aquela voz, mesmo entrecortada, tensa, foi como música em meus ouvidos. Senti o som delicioso e suave de sua voz percorrer por todo o meu ser, sacudir todas as fibras da minha alma. Sei que pode parecer exagero, mas foi justamente isso que senti. Fechei os olhos, para não obedecer à vontade do meu corpo que, naquele momento, quis refugiar em seus braços, senti o seu calor, seu perfume, mas, ao mesmo tempo, correr para longe dela. O magnetismo dos seus olhos e a energia emanada do seu corpo me atraiam como a um passarinho para a boca de uma cobra.
Fui arremessada de volta à realidade de forma violenta pela entrada esbaforida de Helena e do médico. Senti sua mão sendo rapidamente retirada do meu rosto. Ela levantou-se, mas seus olhos não se desgrudavam de mim. O médico me examinou e deu o diagnóstico de uma queda de pressão devido ao momento de forte emoção. Aconselhou-me a ir para casa. Antes, porém pediu um café para mim. Saí do quarto, acompanhada por Helena. Ela nos seguiu mantendo uma distância reservada. Na recepção encontrei Augusto que acabara de chegar ao hospital. Ele me abraçou e tentou me beijar, mas simplesmente, recusei. Sinceramente, não desejava a presença dele naquele momento. Era muito pegajoso e eu não estava disposta a aguentar seus arroubos românticos. Apresentei-o a Helena e vi que ela percebeu a minha frieza para com ele. Como meu pai seria velado na chácara, pedi ao motorista que me levasse direto para lá. Antes de sair, olhei mais uma vez na direção dela que se mantinha em pé me olhando fixamente, com aquele olhar terno que agora brilhava, rasos d´água. Ela, de uma forma discreta, chorava. "Deve amar meu pai". Pensei. Meus olhos percorreram seu corpo, era impossível não olhar, ela era linda, fascinante. Meu pai estava morto e meu coração sangrando por isso, mas a minha razão, meus sentimentos me abandonaram ao olhar para ela. Nunca imaginei que sentiria aquilo que estava sentindo. Quando olhava suas fotos, sentia um misto de curiosidade, fascínio e repulsa, mas agora a repulsa, simplesmente, não existia, apenas o fascínio e o encantamento tinham lugar. Girei nos calcanhares e sai dali o mais rápido possível.
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Helena aproximou-se de Júlia e a abraçou. Seguiram para casa. Percebeu a tensão entre as duas e os olhares fixos de ambas. Entraram e Helena a pegou pela mão e seguiu direto para a cozinha. Precisava urgente de um café. Puxou uma cadeira para que ela se sentasse e deu início ao preparo da bebida. Mantinha-se em silêncio, pois sabia que logo, logo ela lhe contaria o que realmente aconteceu. O olhar da prima estava perdido, distante, como se estivesse em estado de choque. Não dissera uma palavra no trajeto para casa e, conhecendo-a tão bem como a conhecia, sabia que algo muito sério havia acontecido. Só esperava que elas não tivessem se agredido. Desejava profundamente que elas pudessem se tornar amigas. Eram duas pessoas raras, especiais, únicas. Seria fundamental, para o bem de Antenor Júnior, que uma amizade nascesse entre as duas. O café ficou pronto e Júlia ainda se mantinha em silêncio. Helena serviu as duas xícaras, sentou-se de frente para ela e continuou esperando.
Júlia tomou um gole e olhou a prima, depois fechou os olhos e as lágrimas desceram. Recostou a cabeça no espaldar da cadeira e ali ficou por mais alguns minutos. Helena, pacientemente, continuava respeitando seu silêncio.
-- Eu acho que estou louca! -- Disse encarando a prima. -- Helena, estou louca!
-- Como assim, Júlia? Não estou entendendo.
Ao pousar a xícara no pires, Helena percebeu que suas mãos tremiam.
-- Eu... eu estou... com medo... muito medo, Helena.
Helena começou a ficar preocupada, pois a pressão que ela vinha sofrendo desde que conheceu Antenor era muito pesada, muito forte.
-- Preciso... que me... ajude prima. O... O que senti... hoje... no hospital foi...
Rompeu num pranto que lhe fazia tremer todo o corpo. Helena aproximou-se em seu socorro. Sentou-se perto e a abraçou.
-- Calma, calma, meu amor. Conte-me o que aconteceu. Só assim poderei ajudá-la.
Júlia agarrou-se a ela num desesperado pedido de socorro.
-- Helena... eu nem... sei como lhe... lhe falar... foi tudo... muito, muito louco. -- Afundando o rosto no colo da prima pôs-se a desabafar. -- Helena... hoje, quando vi... aquela menina... quando a vi... eu senti uma coisa... estranha. Eu compreendi... compreendi o que sentia... todas as vezes em... que vi as fotografias... dela, quando... quando Antenor me... mostrava....
Helena estranhava o que ouvia.
-- O que você compreendeu, Júlia? O que você sentia quando via as fotografias de Sylvia?
-- Eu... eu não sei... se posso... lhe falar...
Helena lhe acariciava os cabelos para acalmá-la. Adorava aquela prima. Adorava a pessoa que ela era. Tão honesta, tão bondosa e tão íntegra. Fosse o que fosse que estava para lhe confessar, lhe daria apoio. Ficaria do seu lado.
-- Lena... eu senti o mundo... parar quando a vi. Esqueci de tudo... do mundo, do que fui fazer lá no... hospital... do Antenor morto. Tudo desapareceu e eu só enxerguei a ela... você entende?
Helena ouviu e sentiu o coração disparar no peito. A suspeita que vez ou outra lhe assaltava a respeito da prima, parecia que agora perdia o status de simples suposição.
-- Continue, meu bem. Estou aqui para lhe ouvir e estarei do seu lado sempre. Sabe que pode confiar em mim.
Levantando-se do colo da prima, Júlia serviu-se de mais um pouco de café. Sentia-se mais calma. Helena lhe passava muita segurança, amparo. Recostou a cabeça em seu ombro, fechou os olhos e deixou as palavras fluírem, com o coração mais leve.
-- Lena eu nunca... nunca senti aquilo na minha vida. Meu corpo todo ficou mole, minhas pernas se acabaram, meu coração disparou tanto que temi que me saísse pela boca. Fiquei tonta, só não cai porque me apoiei na porta. -- Encarando Helena, fez a pergunta que Helena temia e não sabia como responder. -- O que foi isso que aconteceu comigo, Lena? Estou com medo.
Helena procurava ao máximo se controlar pois, agora não tinha mais dúvidas sobre suas suspeitas, mas não podia falar com ela naquele momento, ou talvez nunca. Pois ao que parecia, ela não se dava conta do que significavam aqueles sinais.
-- Não deve ter medo. Deve analisar seus sentimentos quando a vir novamente. Imagino que tenha sentido tudo isso, devido ao momento. Como temia que ela a maltratasse, sentiu-se fragilizada -- Helena se esquivou de revelar o que, até então, suspeitava.
-- Pode ser. -- O rosto de Júlia transpareceu um certo alívio. Resolveu omitir o que aconteceu depois. Não iria se expor assim, mesmo para Helena. Afinal de contas, tudo aconteceu muito rápido e bem que podia ser consequência do seu receio, do seu momento de fragilidade. Seria melhor deixar a poeira assentar, sua cabeça voltar ao normal e analisar tudo com calma. Sempre foi uma pessoa tranquila, sensata e controlada, não iria se deixar levar por emoções causadas por momentos de fortes tensões, de desespero.
Helena beijou-lhe o rosto e lhe sorriu docemente.
-- Fique tranquila meu bem. Tudo isso é efeito das fortes emoções que vem sofrendo. Com o tempo, tudo vai se ajeitar e você e Sylvia se tornarão grandes amigas. -- Olhou-a bem dentro dos olhos e viu o brilho que se agitava nas íris azuis. Suspirou, beijou-a novamente -- Agora vá se deitar um pouco. São quase sete horas, daqui a pouco seu rapazinho acorda querendo seu peito.
Júlia abanou a cabeça em concordância e seguiu a passos lentos para o quarto. Seu coração estava muito agitado. Entrou nas pontas dos pés, aproximou do berço. Seu filho dormia tranquilamente. Dirigiu-se a sua cama e, mesmo sem trocar de roupa, deitou-se. Fitou o teto por alguns segundos, depois fechou os olhos. As cenas do hospital lhe assaltaram a mente. Pareceu-lhe, de repente, que tudo o que aconteceu foi apenas um sonho. Como tivera coragem de tocá-la, de ficar olhando-a daquele jeito? Levou a mão que acariciara o rosto dela, ao nariz e aspirou. O cheiro dela continuava presente. A sensação da face dela na palma de sua mão ainda estava lá, queimando. A lembrança do sorriso, da língua umedecendo os lábios, do brilho dos olhos verdes castanhos, do início dos seios exposto pela blusa entreaberta voltou-lhe à memória de forma tão intensa, tão palpável que um suspiro lhe saltou dos lábios. "Meu Deus, me ajude! O que está acontecendo comigo? Por que estou sentindo isso de novo? Eu não posso sentir isso! De novo não, meu Deus. Eu não sou assim! " Encolheu-se na posição fetal e deu vazão ao pranto.
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Antônio Castro providenciou para que o corpo do seu patrão fosse levado para a chácara onde seria velado e enterrado. Depois que o carro da funerária seguiu em direção à chácara ele correu a sua casa a fim de tomar um banho, comer alguma coisa e seguir para o velório acompanhado de Helena.
-- Como ela está? -- Perguntou tomando um café com leite.
-- Muito abatida. Marilda vai ficar essa noite aqui com ela. Não é bom que ela fique sozinha.
-- É. Júlia tem sofrido demais, coitada! Não sei como ela estava aguentando. Lamento que o senhor Antenor tenha perdido a razão. Não o imaginava capaz de tamanha loucura!
Helena serviu-lhe mais um pouco de leite.
-- Não vai comer nada, querido?
-- Não. Parece que tenho um bolo no estômago. Se sentir fome, como alguma coisa por lá. -- Pousou a xícara no pires e levantou-se para sair -- Você irá mais tarde, então?
-- É meu bem. Vou providenciar para que Júlia fique bem e ajeitar algumas coisinhas por aqui. Mas logo estarei lá. -- Beijou-o levemente nos lábios e o acompanhou até a porta.
Quase uma hora depois Antônio chegou à chácara. Seguiu direto à capela e constatou que tudo já havia sido organizado pelo pessoal da funerária. Aproximou-se do caixão e olhou o rosto daquele que foi como um pai para ele. Começou a trabalhar no Grupo Leme de Barros ainda garoto, aos 14 anos de idade. Trabalhava de dia e estudava de noite. Começou na função de office boy, fazendo serviços de entregas, indo a bancos, correios, redigindo cartas e etc. Um dia se esbarrou com o senhor Antenor pelos corredores da matriz em São Paulo, derrubando os papéis que o patrão levava nas mãos. Pediu desculpas e se abaixou para recolher as folhas que se espalharam pelo chão. Antenor, vendo o jeito do garoto, sorriu e tratou de acalmá-lo. Dali em diante começou a prestar a atenção no jovem Antônio, viu seu desempenho, seu esforço e passou a lhe dar maiores atribuições. Praticamente adotou-o, assumiu suas despesas e cuidou dele. Tudo o que era hoje, devia ao senhor Antenor Leme de Barros. Secou as lágrimas e saiu da capela.
Alguns carros começavam a tomar os jardins da casa e algumas pessoas já circulavam por ali; pessoas que passariam o resto do dia e a noite velando o corpo. Como ele era muito querido, tinha muitos amigos e, também, sua família era extensa. Chegavam pessoas de várias cidades do estado de São Paulo. O enterro seria no outro dia pela manhã.
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Eu e minha mãe conversávamos no escritório de meu pai. Ela insistia em se furtar ao velório, alegando enxaqueca. Eu sabia que era mentira. Mas exigi que ela fizesse o papel de esposa, velando o corpo do marido e recebendo os cumprimentos dos presentes.
-- Você ficará sim! Não tem tanto medo da língua do povo? Pois, se se esconder em seu quarto com sua preguiça e indisposição, os jornais de amanhã noticiarão em manchetes bem grandes, a sua insensibilidade.
-- É doloroso demais para mim...
-- Pare! Não ouse completar a frase. Esquece-se de que a conheço? Sei que não está sentindo nada. O que você está querendo na verdade é pegar o primeiro avião e voltar para a sua vidinha em Paris. Depois que ele for enterrado, depois da missa de sétimo dia, você poderá sumir no mundo, sumir das minhas vistas. Mas antes disso, não!
-- Como você pode falar assim comigo? Sou sua mãe e exijo respeito.
Meu Deus, naquele momento, senti vontade de esganá-la. De que ela desaparecesse da minha frente. Mas, apenas me joguei num sofá e fiquei observando-a. Como podia ser tão fria, tão ausente de sentimentos, de amor pelo homem que compartilhou a vida com ela, que compartilhou seu leito, que lhe deu uma filha. Com certeza não devia sentir nada por mim também. Deixei meus olhos vagarem por seu corpo. Ela estava em pé no meio da sala, trajando um elegante vestido preto. Era linda, deslumbrante, charmosa demais. Eu era o retrato dela quando tinha minha idade, mas a nossa semelhança era só por fora. Agradeci a Deus naquele momento por ter saído à família do meu pai, que era amorosa e muito unida.
-- Minha mãe, pelo amor de Deus! Ponha a mão na consciência! Não percebe como o seu coração é de pedra? Sei que não sente nada por ele, e, acredito que também não sinta nada por mim, mas, pelo menos finja para os presentes que lamenta a morte do seu marido.
Ela se aproximou e sentou-se ao meu lado. Olhou para mim por alguns instantes e me abraçou. Com a voz chorosa pronunciou:
-- Duvida agora do meu amor por você, Sylvia? Isso é um absurdo! Você é a única coisa boa que me restou desse casamento. -- Apertando-me mais e me beijando o rosto declarou:
-- Eu te amo, minha filha! Te amo mais que minha própria vida. Nunca duvide disso. Só queria que ficasse do meu lado.
Aquela nossa aproximação foi interrompida por Antônio que se anunciou constrangido.
-- Desculpem-me, mas atrapalho?
Soltando-me dos braços da minha mãe convidei-o a entrar.
-- Pode entrar, Antônio. Fique à vontade.
-- Bom dia senhora Madeleine, bom dia Sylvia.
Minha mãe apenas acenou com a cabeça e, sem pronunciar uma palavra sequer, retirou-se da sala.
Fiquei olhando-a sair. Minha mãe era um ser incomum, estranho. Só podia ser doente.
-- Sylvia, meus sentimentos -- Antônio aproximou-se e me abraçou. Sentou-se comigo num sofá e ficou ali por alguns minutos me amparando. Eu chorava baixinho.
-- Meu amigo, o que será de mim sem meu pai? Estou sozinha no mundo. Minha mãe você sabe...
-- Você não está sozinha, Sylvia. Sei que nunca vamos substituir o seu pai, mas você tem a mim e a Helena. Esteja certa disso.
-- Eu sei, Antônio... eu sei e lhe agradeço muito por isso.
Julieta entrou com uma bandeja contendo duas xícaras e um bule de chá. Serviu-nos silenciosamente, retirando-se e em seguida.
Depois de tomar alguns goles, Antônio pousou a xícara no pires e voltou-se para mim.
-- Sylvia, depois do sepultamento, teremos que proceder à leitura do testamento.
-- Prefiro que seja feita aqui mesmo. Não tenho ânimo para me deslocar a nenhum fórum.
Antônio se remexeu no sofá inquieto. Não sei por qual razão, mas ele ficou constrangido, incomodado.
-- Não poderá ser aqui, Sylvia, a menos que... -- Fez uma pausa.
-- A menos que... --Incentivei-o a continuar.
-- A menos que você autorize a entrada de Júlia aqui, pois o testamento só será aberto com a sua presença, a dela, a do menino e a minha.
Levantei-me num pulo como se ferroada por uma vespa. Senti uma contração violenta no estômago. A possibilidade de tornar a vê-la me deixava em pânico, mas, ao mesmo tempo, ansiosa por isso. Temia sentir todo aquele turbilhão de emoções novamente. As lembranças dela me olhando, do calor da sua mão em meu rosto ainda estavam palpáveis. Até o perfume dela ainda permanecia em minhas narinas. Eu não sei o que aconteceria comigo se a visse de novo. A vontade que senti de mergulhar em seus braços, o ímã que me puxava para ela, eram fortes demais. Eu estava apavorada com tudo o que senti. Nunca em toda a minha vida experimentara sensações tão fortes, tão arrebatadoras.
-- Quando será a leitura do testamento?
-- Depois da missa de sétimo dia. Mas você pode adiar, caso queira.
Pus-me a andar pelo escritório enquanto refletia. Eu não podia permitir a entrada dela naquela casa enquanto minha mãe ali estivesse, mas depois que ela fosse embora, não teria nenhum problema. Minha mãe pouco estivera naquela casa, então, analisando friamente, ali não poderia ser considerado seu lar. E a leitura se daria de forma reservada, apenas algumas poucas pessoas. Sentir-me-ia mais segura ali na chácara, onde decidira fixar residência. Voltei a sentar ao lado de Antônio e disse com a voz tensa, pois só de imaginar-me frente a frente com ela de novo, ficava alarmada.
-- Prefiro que seja aqui Antônio, mas vamos esperar minha mãe voltar para a França. Ela irá logo depois da missa de sétimo dia.
Ele me olhou admirado.
-- Não se incomoda que ela entre aqui?
-- Não. Não mais. Estou inclinada a acreditar que ela é uma grande vítima nessa história.
Ele esboçou um sorriso lindo e suspirou aliviado.
-- Ah Sylvia! Que bom que você é uma pessoa inteligente, sensata e tem um coração enorme. Você não faz ideia do quanto ela tem sofrido. Será bom para vocês, para o menino que vocês duas sejam pelo menos cordiais uma com a outra.
Dei-lhe um pequeno sorriso. Se ele soubesse do caldeirão fervente que se tornara meu emocional depois que a vi.
Augusto entrou e o assunto foi, temporariamente, adiado.
-- Minha querida! Estava a sua procura. Ainda não ficamos a sós para conversar.
Eu teria que exercitar e muito minha paciência com a aderência dele.
-- Augusto, este é Antônio, o vice-presidente das empresas do meu pai.
Antônio lhe estendeu a mão que foi apertada frouxamente por Augusto. O meu noivo olhou-o, visivelmente contrariado. Ele sentia ciúmes de qualquer pessoa que se aproximasse de mim. E Antônio, sendo o vice-presidente, estaria constantemente ao meu lado.
-- Fez boa viagem, Senhor Augusto?
Soltando a mão e passando-a na roupa, mania que ele tinha de sempre limpar as mãos quando tocava em alguém, respondeu num tom de pouco caso.
-- Sim, sim.
Antônio, percebendo os ânimos do meu noivo, despediu-se.
Augusto voltou-se para mim e me abraçou.
-- Estava morrendo de saudades, meu amor. Preciso ficar a sós com você.
Afastei-me dele. Era impossível que ele quisesse intimidades comigo num momento como aquele.
-- Você só pode estar brincando! Acha que vou me deitar com você agora? Com o meu pai num caixão?
Ele me olhou assustado percebendo a bobagem que havia dito.
-- Não! Não é nada disso, meu amor! Só queria lhe dar carinho, lhe abraçar, lhe consolar.
Ele se aproximou do bar e serviu uma dose de uísque bebendo num só gole. Serviu outra só que dupla. Caminhou em minha direção e sentou-se ao meu lado. Puxou-me e invadiu minha boca com sua língua áspera e amarga de charuto e álcool. Meu estômago revirou e o empurrei. Ele insistiu e eu me levantei deixando-o sozinho no escritório. Saí dali e a ideia de romper o noivado, mais uma vez, surgiu em minha cabeça. Segui em direção à capela. Seria um dia longo para mim, teria que permanecer firme, recebendo as condolências de todos. Mas faria isso sem me queixar, pois o meu pai merecia muito mais de mim.
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A janela do quarto, destinado à Júlia na casa da sua prima Helena, estava aberta e uma brisa suave, apesar de ser janeiro, entrava abraçando todo o ambiente. Antenorzinho, agarrado ao peito da mãe, enchia a barriguinha de leite materno. Enquanto se alimentava mantinha, presos ao rosto da mãe, seus expressivos olhos azuis. Era sempre assim, só mamava encarando a mãe e com uma mãozinha pousada sobre o seio. Em momentos como aquele, Júlia se esquecia de seus problemas; para ela, o mundo deixava de existir, importava apenas a alegria de ter em seus braços, o seu bem mais precioso. Ambos se encaravam e se comunicavam na magia azul da troca de olhares. Enquanto admirava o filho amamentando, acariciava os cabelos negros e fartos que emolduravam o rostinho angelical.
A cena da mãe contemplando o filho enquanto lhe dava o peito, impediu que Helena anunciasse a sua presença. Ficou parada à porta contemplando a cena. Observou o semblante da prima e, aos seus olhos, vieram lágrimas, pois, jamais em sua vida, vira tanta ternura, tanto amor e beleza expressos num rosto humano. Helena teve a certeza, de que naquela cena, via materializada a expressão do amor materno. A postura, delicadeza e expressão daquela mãe era a mais pura, a mais sublime demonstração do vínculo de união entre dois seres. Ali ficou parada, quieta até que Júlia, sentindo sua presença, voltou o rosto em sua direção. Helena sorriu, agradecida, por ter o privilégio de contemplar tamanha beleza. Pode ver no rosto materno, que agora a fitava, tanta pureza e angelitude, que ficou sem palavras. Apenas continuou admirando-a. A boca de Júlia desmanchou-se num sorriso de acolhimento àquela prima que era sua irmã muito amada.
Numa voz baixa para não desconcentrar o filho, chamou-a.
-- Venha querida! Sente-se aqui ao meu lado. Daqui a pouquinho ele termina. -- Voltou os olhos para o filho.
Helena, em passos suaves, entrou no quarto e se sentou numa poltrona de frente para a prima. Seus olhos captaram a imagem do bebê sugando o mamilo. Os seios, cheios de leite, transbordavam vida e Helena compreendeu claramente, naquele momento, o quão belo era ser mulher, o quão belo era ser mãe. Lamentou a esterilidade do marido. Aguardou o garotinho terminar e, só depois de alguns minutos, quando ele se deu por satisfeito e Júlia o colocou no berço, pode ter a atenção da prima.
-- Ele dormiu. -- Júlia tomou-a pela mão seguindo em direção à saída do quarto. -- Vamos conversar lá fora, é melhor.
-- Parece um bezerrinho! Nunca vi tanta gula! -- Tocou levemente nos seios da prima -- Nossa! Parece que ainda estão cheios de leite!
Júlia sorriu satisfeita. Agradecia a Deus por ser farta de leite. Deixaria seu filho amamentar até quando ele quisesse, já que o leite materno era o melhor alimento para uma criança.
Sentaram-se no sofá da sala. Helena virou-se para ela e anunciou tentando disfarçar a preocupação em ter que deixá-la sozinha pelo resto do dia e toda a noite.
-- Meu bem, você sabe que terei que ir ao velório. Tem certeza de que vai ficar bem?
-- Claro, Lena! Não se preocupe. Estou bem.
-- Marilda vai dormir aqui esta noite. Qualquer coisa que você precisar é só pedir para ela. Não faça cerimônia, você está em sua casa.
Júlia se aproximou abraçando-a. Apertou-a bem forte e lhe deu um demorado beijo no rosto.
-- Eu sei, querida. Não vou fazer cerimônia. Pode ir tranquila que eu e o Antenor Júnior ficaremos bem. --Depois de alguns segundos abaixou os olhos e entrelaçou os dedos, momentaneamente, tensa.
-- O que houve Júlia? Quer me dizer alguma coisa?
Helena percebeu que ela fazia uma força tremenda para deixar as palavras saírem.
-- Você... érr... você pode... ficar de olho... nela? -- O rosto que encarou Helena parecia em chamas de tão ruborizado.
Helena sentiu novamente o coração disparar. Não tinha preconceitos, mas era difícil constatar que a prima nutria aquele tipo de amor. Se ela se deixasse envolver por aquele sentimento, iria sofrer, e muito. Pelo que sabia, Sylvia não compartilhava das mesmas preferências. Tinha um noivo e, era provável, que logo se casasse. Vendo-a abaixar as vistas, tocou-lhe o queixo fazendo-a voltar-lhe o olhar.
-- Você está falando de quem Júlia? -- Fez-se de desentendida. Queria que ela se soltasse, pois seria melhor jogar aqueles sentimentos novos para fora. Seria como um exorcismo, ela poderia se libertar.
Júlia levantou-se e passou as mãos suadas pelo robe de cambraia que usava. Caminhou até uma das janelas da sala e ficou por alguns segundos brincando com um cordão da cortina. Na mesma posição, suspirou e falou com a voz trêmula.
-- De... dela, Helena! Você... sabe. -- Um soluço aflorou-lhe pelos lábios. -- Tenho... tenho medo de... de que ela... passe mal... novamente.
Helena, se condoendo, foi ao encontro dela e abraçou-a por trás, envolvendo-a pela cintura e pousando o queixo em seu ombro. Beijou-lhe uma face e, num tom compreensivo, confortou-a.
-- Não se preocupe, meu amor! Eu ficarei de olho nela. -- Fez uma pausa enquanto a aconchegava mais em seus braços. E assim ficaram por um ou dois minutos, cada uma com seus pensamentos: Júlia pensando em Sylvia e Helena na possível via crucis que a prima estava em iminência de atravessar se se deixasse envolver pelo roldão dos sentimentos novos que a espreitava.
Depois que Helena saiu, Júlia se dirigiu à biblioteca. Havia deixado seu diário lá na noite anterior. Sentiu uma necessidade premente de anotar aquela loucura que lhe ocupava o coração, a mente. Entrou e de longe viu a encadernação de couro marrom iluminada pela luz que atravessava as janelas de vidro. Tomou-o nas mãos e abriu na página que estava marcada com sua caneta tinteiro preferida, uma Sheaffer Imperial Azul, presenteada por seu pai, um ano antes de morrer. Sentou-se numa confortável poltrona e deu início à redação do que lhe ia à alma. Precisava expressar o que estava sentindo e nada melhor do que o secreto e confidente caderno de anotações, para extravasar suas dores. Depois leria calmamente e refletiria a respeito para, assim, compreender o que lhe conturbava o coração.
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Júlia e o irmão Alexandre eram os únicos filhos do finado casal Ana Maria e José de Almeida Pires. Seu pai, viúvo, quando os filhos eram ainda pequenos, fora um sólido comerciante de carne, muito bem-conceituado na capital paulista, até o momento em que começou a se endividar por causa do vício em jogos. Dera aos filhos uma boa formação. Júlia estudou no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro e Alexandre, Direito na USP. Teve tudo para ser um bom advogado, mas possuía a mesma fraqueza do pai. Júlia estudou no conservatório dos sete aos vinte e dois anos de idade. Estudara violão clássico, o instrumento que sempre foi a sua paixão. Até o pai adoecer, ela dava aulas no conservatório. Vez ou outra se apresentava em eventos particulares. De natureza reservada, evitava grandes aparições, sendo conhecida apenas pelos colegas e pelo seu público fiel. Depois que o pai adoeceu e se perdeu no vício, ela praticamente abandonou a carreira, conservando apenas alguns alunos para ajudar no sustento da família, uma vez que o pai perdera tudo que tinha. Depois da falência, o patrimônio de Júlia se resumiu apenas à casa em que morava e a um pequeno sítio, herança da mãe, numa cidade do interior. O irmão, vendo a bancarrota da família e, não sabendo viver na dificuldade, escolheu deixar a vida com um tiro no ouvido. Essa tragédia acelerou a doença do pai, vindo este a falecer, poucos meses depois.
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Sempre soube que meu pai era um homem muito querido, mas nunca imaginei que fosse tanto. Muitas pessoas ali presentes choravam um pranto sentido, principalmente nossos parentes. A família dele era muito unida. Aquele tipo de parente agarrado um ao outro, que se preocupa, que assume os problemas e se prontifica a ajudar. Os abraços dos primos, que pouco conhecia, me pareceram sinceros. A irmã mais velha do meu pai, que eu vira poucas vezes, não saiu do meu lado. Em seus olhos, vislumbrei um brilho de piedade para comigo, ela estava, realmente, com muito dó de mim, pois sabia muito bem quem era minha mãe, e acredito que sem perceber, pôs-se a me tratar como a uma filha. Ela não tivera filhos e, pelo que meu pai me falava, adorava os sobrinhos. Ela e minha mãe nunca se deram bem e eu estava morrendo de curiosidade para saber a opinião dela sobre a senhora Júlia, amante viúva do meu pai, se é que se pode dizer assim. Que minha mãe não me ouça!
-- Filhinha, você precisa descansar! -- Disse-me ela olhando no fino relógio de pulso. Já passa da meia-noite! Venha, vamos comer alguma coisa e repousar um pouco.
Deixei-me levar por ela. Seus cuidados me confortavam. Eu tinha carência materna e senti, naquele momento, que a amizade, o carinho da minha tia, me fariam muito bem, me dariam força para seguir com a minha nova vida.
Entramos na cozinha e encontramos Helena e Antônio tomando café. Juntamo-nos a eles. Minha tia me serviu uma xícara de café com leite, acompanhada de uma enorme fatia de bolo. Jamais comeria tudo aquilo. Meu alimento sempre fora o de um passarinho. Na verdade, se havia uma coisa de que eu tinha preguiça, era de comer. O simples fato de parar para alimentar, me cansava. Eu achava um aborrecimento sem tamanho, o processo de levantar um garfo. Para mim era uma terrível batalha.
Helena dirigiu a mim um olhar terno e sereno. Gostava dela, apesar do pouco convívio. Mas, além da ternura e serenidade, percebi um ar curioso em seu semblante. Apesar de eu estar num momento de muita dor, a minha capacidade de observação continuava afiada. Sempre fui muito observadora, principalmente no que diz respeito ao ser humano. Como fui treinada, desde pequena, para dar continuidade aos negócios da família, me ensinaram desde cedo a observar tudo e todos a minha volta. Aprendi a estudar as pessoas e gostava muito de fazer isso.
-- Sylvia, você precisa dormir um pouco, se me permite dizer. -- Helena se manifestou com uma voz terna. Ela passava uma energia muito confortável. Eu me sentia bem na presença dela.
-- Consegui trazê-la para se alimentar um pouco, Helena. E depois vou levá-la para descansar. -- Tia Cláudia olhou para meu prato e, com uma cara, de espanto, observou -- Mas pelo jeito vai dormir de barriga vazia. Não comeu quase nada do bolo. -- Meneou a cabeça -- Seu pai sempre me disse que você apenas beliscava a comida, mas agora vejo que nem isso você faz! Tem que se alimentar minha filha.
Olhei para ela, para o seu rosto muito parecido com o de meu pai. A pele clara, os olhos castanhos e grandes, os cabelos castanhos. Uma sexagenária bonita.
-- Não sinto vontade, tia. O pedaço que comi me basta por hora. Mais tarde, prometo que comerei mais.
Levantei-me e segui em direção ao meu quarto com ela me acompanhado.
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Depois do enterro do marido, Madeleine se retirou para o seu quarto. Estava exausta e um vazio profundo lhe machucava o coração. Ela mesma estava surpresa com o que estava sentindo. Quando viu o corpo de Antenor baixar à sepultura, sentiu o chão fugir-lhe de sob os pés. Apesar de estarem afastados há bastante tempo, ele era o seu porto seguro e, naquele momento o viu como o seu primeiro homem, seu primeiro amor, o pai do seu único tesouro, Sylvia. Sua filha era a parte dele que continuava viva. Só o veria agora através dela. Deixou as lágrimas descerem e lembranças de quando eram apaixonados vieram-lhe à mente. Do quanto ele era bonito, carinhoso e atencioso!
Lembrou-se de quando foram apresentados. Da insistência de seu pai para que ela o conhecesse. Dizia-lhe que ele era um excelente partido. Ela foi para aquele jantar de apresentação, contrariada, mas quando o viu, quando percebeu o jeito tão educado e gentil dele se encantou. Deitada na cama, chorou de saudade dos momentos felizes que viveu ao lado dele, chorou de tristeza pelos que deixou de viver. Chorou pelo abismo entre ela e a filha, abismo este, reconhecia, criado por si mesma. Chorava também pela maior distância que seria imposta entre as duas, uma vez que Sylvia teria que, de agora em diante, morar no Brasil.
Deixou o pranto soar alto. Precisava extravasar o misto de dor, impotência e raiva que sentia. Naquele instante, Madeleine percebeu o quão sem sentido era sua vida, mas agora era tarde para dar um novo rumo a ela, uma vez que não saberia, e talvez não quisesse viver de outra forma. Só lhe restava agora esperar a missa de sétimo dia e voltar para o seu mundo "seguro", Paris.
***********
Os últimos presentes que estiveram no velório do meu pai acabavam de se despedir. Assim que saíram, eu e tia Cláudia, seguidas de Augusto, Antônio e Helena entramos em casa. Julieta correu a nos servir um pouco de café. Eu estava mesmo precisando de um bem forte. Minha cabeça doía e minhas ideias estavam um tanto confusas. Desde que chegara de viagem, não havia dormido direito. Sentei-me num sofá e o meu "digníssimo" noivo, se postando ao meu lado, pousou o braço sobre meus ombros. Aquilo me irritou, mas não o repeli. Ele não tinha culpa do meu estado de espírito e acreditava que estava me confortando. Num gesto de retribuição recostei minha cabeça em seu ombro. Percebi os olhos de Helena nos observando, curiosamente. Ela devia imaginar que eu era uma noiva apaixonada. Julieta trouxe café com biscoitos e eu me descobri com fome. O café estava uma delícia e os biscoitinhos de nata, sublimes. Tia Cláudia sentada também ao meu lado segurava uma das minhas mãos, e de vez em quando a levava aos lábios. Eu havia ganhado uma mãe e isso me encheu de felicidade. Olhei-a bem fundo e fiz o convite, que desde o momento que nos aproximamos no dia anterior, se apresentou a mim.
-- Tia, quero lhe pedir algo.
Ela me sorriu.
-- O que você quiser, meu bem.
-- Tia, sei que a senhora mora sozinha no interior. Sei que tem sua vida lá...
-- Sim?
-- É... -- Estava sem jeito para falar com ela, pois não sabia ao certo como ela iria interpretar meu convite. Poderia achar que era egoísmo meu, carência, sei lá. O que não deixava de ser um pouco, devo esclarecer.
-- Diga meu bem -- Sorriu e beijou minha mão mais uma vez, me encorajando.
--Gostaria que a senhora viesse morar aqui comigo -- Disse tudo num só fôlego --Se não for lhe... atrapalhar.
Ela sorriu de rosto inteiro e me puxou para um abraço, quase me colocando em seu colo.
-- E você acha que eu iria lhe deixar sozinha, agora que perdeu seu pai? --Enchendo minhas bochechas de beijo, disse numa voz doce e com lágrimas nos olhos -- Claro que ficarei aqui com você, meu amor, o tempo que você quiser.
Aconcheguei-me mais aos seus braços e deixei-me ficar ali, sentindo aquele conforto e calor tão protetores.
Augusto, deixando todos perceberem seu ciúme, levantou-se de cara amarrada e se dirigiu ao carrinho de bebidas e serviu a sua costumeira dose dupla de uísque.
Ficamos por mais algum tempo ali conversando. Tia Cláudia contando algumas aventuras do meu pai, da família. Num dado momento ela e Helena conversavam em pé ao lado de uma janela e eu desconfiei que o assunto fosse a amante do meu pai, pois pude perceber que falavam mais baixo do que normalmente falariam se não se incomodassem que o assunto fosse ouvido pelos demais. Como quem não quer nada arrastei Augusto para perto mantendo uma certa distância, que desse para ouvir alguma coisa. Tia Cláudia, por mais que quisesse, nunca conseguiria falar baixo o suficiente, para o que pudesse ser chamado de sussurro. Mesmo que eu não quisesse, de onde parei ao lado de Augusto, pude ouvi-la perfeitamente. Abracei-me a ele, para que elas pensassem que estávamos apenas trocando carinho e apurei meus ouvidos.
--Não, dona Cláudia, ela em nenhum momento falou em vir.
-- Tive medo de que ela aparecesse por aqui. Você não sabe como sinto pena daquela menina, Helena. Não sei o que deu no meu irmão para fazer uma barbaridade dessas com ela -- Seus olhos vieram em minha direção e, depois de alguns segundos, voltaram-se para Helena -- Não sei se o Antenor a deixou amparada... Só saberemos após a leitura do testamento. Caso ele tenha se esquecido dela, eu a ampararei, não se preocupe.
-- Eu agradeço, dona Cláudia! Ela está tão perdida, coitada! -- Helena abaixou um pouco mais a voz, mas pude ouvir, inclusive a menção ao meu nome -- Ela tem medo de morrer e deixar o filho só no mundo. E... -- voltou a cabeça em minha direção -- teme que Sylvia o rejeite, deixando-o só no mundo.
Constatando que falavam dela, meu coração disparou como um cavalo desembestado. E sabendo-a perdida e praticamente desamparada no mundo, uma vontade de vê-la e protegê-la encheu meu coração. Deixei as lágrimas descerem, pois, ao ouvir as palavras de tia Cláudia, tive a plena certeza de que ela fora uma vítima nas mãos do meu pai. Decidi, naquele momento, que se ele não a tivesse mencionado no testamento ou deixado ao menos uma pensão, eu cuidaria para que nada lhe faltasse. Eu me senti na obrigação de cuidar dela, de protegê-la. Era uma forma de reparar, o mínimo que fosse, o dano que meu pai lhe causou.
O tolo do meu noivo me abraçava apertado achando que meu coração estava disparado de emoção por estar abraçada a ele.
-- Calma, minha querida. Eu estou aqui do seu lado. Está com saudades de mim, não está? -- Beijou minha cabeça -- Também estou muito emocionado! Meu coração também está disparado...!
Minha mãe sempre teve razão quando me dizia que os homens são tolos e que só enxergam o próprio umbigo.
Afastei-me dele e fui de encontro a elas, que vendo minha aproximação se calaram.
-- Podem continuar. Eu tenho ouvido de tuberculoso. Ouço a quilômetros de distância. -- Sorri para deixá-las mais tranquilas --Sei que falavam da senhora Júlia.
-- Sylvinha.... É... É um assunto delicado.... Não precisa se preocupar...
-- Tia, Helena me contou toda a história e, mesmo amando o meu pai, fiquei inclinada a acreditar nas palavras dela, e ouvindo a confirmação da senhora, não me resta mais nenhuma dúvida.
-- Que bom, Sylvia! Alegra-me saber que acredita na verdade.
Olhei nos olhos de Helena, pois queria que ela visse as minhas intenções.
-- Helena, quero que saiba, que apesar de não conhecer meu irmão, de só saber da sua existência há poucos dias, jamais o deixarei jogado à própria sorte, caso a mãe venha a faltar. Vou protegê-lo sempre. E quanto à mãe dele, o mínimo que poderei fazer para atenuar o mal que meu pai lhe causou, é dar-lhe o único amparo ao meu alcance, o material.
Helena se aproximou e me abraçou suavemente. Enquanto mantinha-me em seus braços acariciava meus cabelos. Seu abraço era protetor, acolhedor. Entreguei-me àquele carinho e assim ficamos por longos segundos. O meu coração ainda batia acelerado. Só o fato de falar dela, mencionar a pessoa dela, me deixava fora de prumo. Eu estava atônita com tamanho efeito que ela estava causando em mim. Atribui, na minha santa ingenuidade, que tudo fosse resultado do meu estado de fragilidade, devido às fortes emoções que vinha sofrendo desde os últimos acontecimentos.
Alguns instantes depois subi para o meu quarto e Augusto me acompanhou até a porta.
-- Enfim poderemos ficar um pouco a sós, querida.
-- Sinto muito Augusto, mas quero e preciso ficar sozinha. Vou tentar dormir.
Fazendo cara de menino birrento, ele protestou:
-- Desde que cheguei, não tivemos um momento a sós. Sou seu noivo, Sylvia!
-- Até mais tarde, Augusto. Faça o mesmo, vá descansar...
Ele me interrompeu me puxando para um beijo. Sua boca invadiu a minha. Senti repulsa. O amargo do hálito de uísque e charuto mais uma vez me repugnou. Empurrei-o. Sempre detestei beijar fumantes e, sempre que podia evitava os beijos dele. Muitas discussões já foram geradas por isso. Quantas e quantas vezes eu o obrigava a escovar os dentes antes de um beijo. Ele ficava possesso, mas acabava cedendo às minhas exigências.
-- Sylvia! Que diabos! Nem um beijo eu posso lhe dar...
Como resposta, fechei a porta na sua cara e tranquei-a para que ele não ousasse entrar. Estava tão cansada que mal acabei de vestir a camisola, desmaiei na cama.
No corredor dona Cláudia encontrou com Augusto praguejando. Segurou-o pelo braço.
-- Se pressioná-la, vai acabar perdendo-a. Minha sobrinha não foi feita para obedecer, meu filho! Deixa-a livre, como ela sempre foi.
-- Tia Cláudia, ela sempre foi arredia. Rejeita meus beijos, meus carinhos. Começo a pensar que ela não me ama.
-- Não se trata disso, meu querido. Pelo pouco que pude perceber, você a sufoca. Deixe-a respirar.
Augusto meneou a cabeça, indignado.
-- Tia Cláudia, a senhora não conhece Sylvia direito. Acredita que ela fica dias sem se encontrar comigo, sempre com a desculpa do trabalho? E muitas vezes só me beija depois de me obrigar a escovar os dentes, alegando não gostar do cheiro do charuto.
Cláudia esboçou um sorriso de satisfação, pois viu que a sobrinha não se deixava dominar.
-- Meu filho, se você sabe que ela não gosta do hálito de cigarro, custa agradá-la?
-- Onde já se viu recusar um beijo por causa do charuto. Nenhuma namorada que tive, reclamou.
-- As outras não eram Sylvia. -- Com uma pose orgulhosa, Cláudia concluiu -- Desde pequena Sylvia foi independente e determinada. Se realmente quer passar o resto da sua vida ao lado dela, vai ter que ceder Augusto.
Ele se afastou com passos duros e Cláudia pressentiu que aquele noivado estava com os dias contados.
***********
A semana passou e a família Leme de Barros retornava da missa de Sétimo Dia que foi realizada, na Igreja de Santo Antônio, na Praça do Patriarca, no centro de São Paulo. A família escolheu esta igreja porque Antenor era devoto de Santo Antônio e, sempre que podia, frequentava a igreja para assistir a missas e admirar sua arquitetura seiscentista.
**********
Assim que entramos em casa minha mãe me chamou para uma conversa. Fomos para seu quarto. Quando entramos ela fechou a porta e me abraçou, pondo-se a chorar. Ficou por longos minutos, grudada a mim. Quando seu pranto se acalmou, afastou-se secando os olhos.
-- Minha filha, quero lhe dizer que não posso mais me demorar aqui. Não aguento mais isso!
Abanei a cabeça concordando. Aquilo não era novidade para mim. Sei que para ela suportar aqueles dias foi uma tortura. Minha mãe era, realmente, uma criatura que parecia não ter alma, ser oca por dentro.
-- Você não vai ficar chateada comigo, se eu for embora logo, vai?
Olhei-a, tomei-lhe as mãos e disse com a maior sinceridade. Expressei o que estava sentindo naquele momento.
-- Mamãe, que importância tem o que eu vou sentir com sua partida? Desde quando se importou?
-- Sylvia! Não fale assim! -- Abraçou-me novamente -- Eu te amo, minha filha! Nunca se esqueça disso!
Afastei-me dela. Não podia pedir para ela ficar, por mais que quisesse. Nunca teria minha mãe, nunca a tive de verdade. O nosso tempo já havia passado. Não havia como voltar atrás. Vivi 23 anos ao lado dela e ela nunca deu um passo em minha direção, não seria agora que isso iria acontecer. A minha vida dera uma guinada. Há duas semanas, nem passava pela minha cabeça a possibilidade de morar no Brasil e agora estava ali, diante de minha mãe, constatando que a distância que sempre houve entre nós, se tornaria mais clara, mais evidente quando ela tomasse o avião de volta a Paris.
Fim do capítulo
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lusilenesetubal
Em: 26/06/2018
simplesmente estou adorando esse conto ele e maravilhoso .
por favor nao demore mto atualizar estou aki ansiosa por mas um capítulo
parabéns pelo conto
Resposta do autor:
Bom dia Lusilene,
Que bom que aprecie tanto a história. Vou postar o mais regularmente possível.
A história já está finalizada, então você saberá o final.
Bjs
Moura
Em: 26/06/2018
Nicole,
Não sou de comentar os contos, mas preciso dizer, novamente, sua maneira de escrever me encanta.
Terminei de ler este capítulo com desejo louco de saber mais desta história.
Se fosse um livro, passaria o dia e a noite lendo!
Não demora com um novo capítulo, por favor!
Estou com inveja de quem já leu este conto, e com certeza estaria neste grupo, relendo, se tivesse tido a sorte de ter conhecido esta história antes.
Resposta do autor:
Muito obrigada Moura,
Estarei postando mais de um capítulo por semana.
Bjs
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Moura
Em: 26/06/2018
Nicole,
Não sou de comentar os contos, mas preciso dizer, novamente, sua maneira de escrever me encanta.
Terminei de ler este capítulo com desejo louco de saber mais desta história.
Se fosse um livro, passaria o dia e a noite lendo!
Não demora com um novo capítulo, por favor!
Estou com inveja de quem já leu este conto, e com certeza estaria neste grupo, relendo, se tivesse tido a sorte de ter conhecido esta história antes.
Resposta do autor:
Obrigada Moura,
Muito bom ler palavras de incentivo. Espero que continue gostando.
A história já está finalizada e vou postar os capítulos regularmente.
Bjs
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