Capítulo 1
Paris - janeiro de 1967
Acordei naquela manhã com os soluços da minha mãe no quarto ao lado. Seu quarto ficava ao lado do meu, porque assim que as visitas do meu pai começaram a ficar mais espaçadas ela, para não se sentir tão sozinha, mudou para o quarto mais próximo ao meu. Na verdade, minha mãe - ela não admitia - tinha medo de dormir sozinha e nossos quartos se comunicavam por uma porta em comum. Ouvi os seus soluços, sabia que a situação dos dois não estava muito boa. Meu pai, praticamente, a havia abandonado. Com a desculpa de morar no Brasil ia tornando sua presença em nossa casa menos regular. Mamãe não gostava do Brasil, era muito agarrada a sua terra, França. Crescera em Paris e não havia nenhum lugar no mundo, dizia ela, que pudesse morar que não fosse Paris. Não se adaptou ao Brasil, odiava o clima tropical. Papai por sua vez, brasileiro, e com a maior parte de seus negócios concentrada no Brasil, se recusava a morar na França. Minha mãe, é preciso reconhecer, deu muito espaço para meu pai sentir-se sozinho.
Ultimamente ele só vinha à França uma vez a cada seis meses. Minha mãe parecia já haver se acostumado a isso. O casamento, depois de muitos anos, tornara-se apenas mais um adendo em sua vida. Para ela, abrir mão das tardes de chá com suas amigas, de acompanhar desfiles de moda e circular pelas lojas de grife, a morar num país subdesenvolvido e extremamente quente era o que de mais absurdo poderia lhe acontecer. Para ela o importante mesmo era que meu pai estivesse cada vez mais longe, desde que continuassem casados, pelo menos no papel. Para ela manter as aparências era o que bastava. Amor por ele, não sei se ela ainda sentia ou se já sentiu alguma vez.
A senhora Madeleine Bordeaux Leme de Barros era uma mulher mimada e que não sabia lidar com perdas. Para ela, era inadmissível que meu pai não estivesse a seus pés, sempre pronto a satisfazer seus caprichos. Não importava que ele ficasse longe, desde que continuasse pertencendo a ela. Eu, apesar de ter sempre morado com ela, não absorvi, graças ao meu temperamento e amor aos estudos e trabalho, o seu jeito fútil de viver. Gostava de grife, das coisas de boa qualidade, apreciava e cuidava muito da minha aparência, mas também priorizava outras coisas da vida.
Dirigi-me ao seu quarto e depois de bater à porta e abri-la vagarosamente, entrei. Em cima da cama, minha mãe esmurrava o travesseiro de modo descontrolado. Corri até ela e tomei-a nos braços tentando acalmá-la.
--Ma mère, Qu'est-ce qui se passe? Séjour calme! (Minha mãe, o que aconteceu? Fique calma!).
Ela agarrou-se aos meus ombros e começou a me sacudir, desesperada:
-- Seu pai Sylvia, seu maldito pai, decidiu se separar de mim. -- Desabafou jogando sobre mim uma carta amassada. -- Leia você mesma!
Com as mãos trêmulas abri a carta e comecei a ler a caligrafia impecável do meu pai. Era uma carta curta, clara e direta. As palavras não davam margem a falsas interpretações. Ele dizia com todas as letras que queria a separação, pois pretendia se casar com outra mulher que já era mãe de um filho seu, um garotinho de meses de idade. Pasma, dobrei novamente a carta e abracei minha mãe que se jogou no meu colo, desconsolada. Depois de alguns minutos acariciando seus cabelos e permitindo que ela desse vazão ao choro, perguntei.
-- Mamãe, essa mulher é aquela, bastante jovem e bonita, que a senhora me disse que sua amiga viu certa vez aqui em Paris em companhia de papai?
-- Exatamente, minha filha -- Disse ela se levantando do meu colo e se dirigindo a uma cômoda. Abriu uma gaveta tirando de lá um envelope pardo e estendendo-o em minha direção -- Veja com seus próprios olhos. Quando a Nicole me contou, eu fiquei sem chão e contratei um detetive, que acompanhou todos os passos do seu pai na última vez que ele esteve aqui. E continuou investigando, no Brasil, a vida dessa golpista.
-- Mamãe? A senhora não me disse nada a respeito! -- Eu estava chocada. -- O que descobriu a respeito dela?
Abrindo a cigarreira, tirou um Lucky Strike e acendeu-o com um belo isqueiro de ouro. Depois de uma longa tragada, jogando a fumaça para o alto, me revelou numa voz baixa que destilava muita raiva, despeito e orgulho ferido:
-- Por mais que eu não queira aceitar, essa mulherzinha não é golpista, Sylvia!
-- Não!?-- Eu fiquei admirada. Meu pai devia ser bem mais velho do que ela. Ela poderia ter qualquer homem que quisesse se fosse realmente muito bonita como havia dito a amiga da minha mãe. Mas quis logo meu pai, um homem extremamente rico. Era difícil acreditar que ela não estivesse dando o golpe do baú.
-- A digníssima senhora com carinha de anjo é, segundo o meu detetive, um anjo e uma vítima.
-- Como assim, mamãe, seja mais clara!
-- Sylvia, eu não sei por qual motivo, o detetive não conseguiu descobrir, mas parece que ela foi constrangida, obrigada a se envolver com seu pai.
Levantei-me da cama sem acreditar no absurdo que minha mãe acabara de falar. Como ela fora obrigada a se envolver com meu pai?
-- Mamãe nós estamos a pouco menos de trinta anos do 3º milênio e a senhora acredita nessa conclusão do seu detetive? Se essa mulher não for golpista, mesmo sendo difícil de acreditar, ela pode muito bem ter se apaixonado pelo papai. Ele é um homem bonito e, apesar de ser bem mais velho do que ela, é ainda relativamente jovem.
-- Minha filha, eu só sei que não vou assinar a separação. Morro lutando, mas não aceito me separar do seu pai e ficar com a pecha de mulher separada. Isso não!
Aproximei-me da grande janela, abri-a e aspirei o ar gelado daquela manhã de inverno. O quarto pareceu-me abafado de repente, ainda mais com o cheiro insuportável do cigarro da minha mãe. Aquela história estava muito mal contada e eu pretendia descobri o que realmente estava acontecendo. Mesmo minha mãe sendo volúvel, injusta e negligente muitas vezes com meu pai, acreditei-me no dever de tentar salvar o casamento deles.
Ela se aproximou de mim na janela, me olhou com os belos olhos verdes inchados de tanto chorar. Neles, eu enxerguei a raiva e a crescente preocupação com o que suas amigas iam dizer. Ela, uma mulher rica, elegante, culta, ser trocada por uma brasileirinha selvagem, era inadmissível. Dando um longo suspiro, olhou-me profundamente e me revelou o que de antemão eu já sabia.
-- O seu pai não me fará falta alguma, Sylvia. Há muito tempo deixei de amá-lo. Eu não me incomodo que ele tenha outras mulheres... Ele é homem... e os homens são fracos... não conseguem resistir ao apelo da carne... Sempre soube que teve seus casinhos... Mas, se separar de mim? Eu sou uma Bourdeaux, será que ele se esqueceu disso? Ele foi longe demais...
Aquela arrogância dela por causa da nobreza da família me dava nos nervos.
-- Mamãe quando você vai crescer? Até quando vai continuar agarrada a essa bobagem de tradição de família?
-- Isso não é bobagem, minha filha! O nome da família é muito importante. Seu pai devia saber disso!
-- Mamãe, por favor! A senhora sabe que a família de papai é tão ou mais importante que a sua. E também muito mais rica. -- Eu estava incrédula! Como num momento como aquele, com o seu casamento em crise, ela ainda ficava pensando em nome de família?
Eu ainda não havia aberto o envelope. Ela, com a voz cortante de ódio me perguntou, indignada.
-- Não vai abrir? Não quer ver por quem eu fui trocada? -- Com um sorriso de puro escárnio, que eu nunca havia visto em seu semblante, ela me alfinetou -- Tenho certeza que você compreenderá seu pai muito bem... -- Olhando-me profundamente, como tentando adivinhar minha reação quando visse o conteúdo do envelope, me preveniu -- Não se assuste com o que você vai ver, minha filha. Mesmo inconformada e revoltada, eu ainda consigo compreendê-lo. Qualquer homem perderia a cabeça...
Abri o envelope e, para minha surpresa, meus dedos puxaram algumas fotografias. Meus olhos se arregalaram e minha boca abriu sem que eu pudesse controlar. Em minhas mãos algumas fotografias revelaram o rosto e o corpo de uma mulher detentora de uma beleza rara. Parecia um anjo, ou sei lá o quê. Os olhos azuis, de um azul profundo pareciam iluminar todo o rosto. A pele branca e levemente corada nas faces enchia-a de vitalidade. O sorriso se abria iluminando um rosto encantador e exibindo dentes alvos e perfeitos. A boca cheia e naturalmente rubra pedia para ser beijada. Não conseguia desgrudar meus olhos daquelas fotografias. Sem me conter, olhei para minha mãe e pedi:
-- Deixe-me ficar com essas fotos.... Quero analisá-las direito.
Minha mãe olhou-me franzindo a testa.
-- Para que você quer? -- Apertando os olhos, sussurrou incrédula - Pelo amor de Deus Sylvia, não vai me dizer... -- Suspirando profundamente, abanou a cabeça de um lado para o outro -- Eu espero que o seu passado de adolescente não retorne... Que tenha ficado enterrado naquele colégio.
-- Mamãe! -- Meu coração disparava no peito. Não sei que loucura me deu para pedir as fotos, mas senti uma necessidade enorme de ficar com elas. Precisava olhar aquele rosto mais vezes. -- Está maluca? Que cabecinha, hein?
-- Desculpe minha filha, mas sempre tenho medo de que tudo aquilo volte novamente! -- Apertando o cigarro no cinzeiro sugeriu -- Devia queimar isso. Continuar guardando essas fotos vai alimentar meu ódio. -- Deu de ombros e concluiu -- Faça como quiser desde que eu não me esbarre mais com elas...
Jogou-se na cama novamente esmurrando o travesseiro e pondo-se a chorar. Eu, com as fotos nas mãos, saí do quarto.
Entrei no meu escritório, sentei-me à escrivaninha e pus-me a observar as fotos uma por uma, detalhadamente. Ela era linda demais! Uma beleza suave e, ao mesmo tempo, extremamente sensual. Senti pena do meu pai. Era compreensível que ele tivesse se sucumbido aos encantos dela! O meu coração continuava disparando no peito. Meus olhos não conseguiam se desgrudar daquelas fotos. Mais que rapidamente, abri uma gaveta da escrivaninha e peguei um bloco de papel e comecei a desenhar aquele rosto divino, soberbo. O desenho era uma paixão que eu tinha, e desenhar retratos, era um dos meus passatempos preferidos. Ao começar a traçar seu rosto, senti a alegria intensa que sempre me tomava ao desenhar e, logo em seguida, já me antevi trabalhando aquele rosto maravilhoso num óleo sobre tela. Fiquei trabalhando no esboço por alguns minutos e, em seguida, comecei a aprofundar os traços do desenho com o jogo de sombra e luz.
De repente eu me dei conta do que estava fazendo e joguei longe a caneta. Não podia me deixar levar pela plástica dela e me enredar no magnetismo do seu rosto. Ela estava acabando com o casamento dos meus pais. Ela podia ser bela, ter um rostinho de anjo, mas estava trazendo sofrimento para minha mãe. Depois de alguns minutos tentando me recompor, peguei o telefone e pedi uma ligação para o Brasil. Meu grande amigo Miguel Andrade iria me prestar um grande serviço: descobrir para mim tudo sobre a relação de meu pai com aquela vadia.
Uma hora depois eu me dirigi à empresa. Aquele seria mais um dia cheio, teria uma reunião pela manhã e outra longa à tarde, que com certeza, se estenderia noite adentro. Estava tentando fechar um contrato com uma rede de frigorífico na Itália. Meu pai exportava carne bovina para vários países e o frigorífico Santa Lucia dominava o mercado italiano, não podíamos perder aquele filão.
Quase no final da reunião da manhã, minha secretária Lisa Marie entra na sala com os olhos enormes e extremamente pálida. Um dos nossos representantes da filial em Portugal fazia uma explanação sobre nossos valores naquele mercado, mas silenciou-se quando a viu naquele estado. Ela se desculpando, aproximou-se de mim e falou ao meu ouvido:
-- Acompanhe-me senhorita Sylvia, é urgente...!
Devido ao estado dela eu nem questionei, pedi licença aos demais e sai. Depois que entramos no meu escritório ela fechou a porta e não mais segurando as lágrimas, soltou a bomba em cima de mim:
-- O senhor seu pai, passou mal esta manhã, senhorita... E é grave...
Eu senti um calor me dominar todo o corpo. Encarei-a perplexa. Ela continuou.
-- Pelo que o senhor Antônio Castro me disse ele não está nada bem... pediu que a senhora ligasse para ele.
Praticamente sem fala pedi que ela fizesse a ligação. Alguns minutos depois o vice-presidente do grupo Leme de Barros me dava a terrível notícia de que meu pai sofrera, naquela manhã, um enfarte e estava em coma e que não tinha previsão de quando sairia daquele estado. Poderia ser dali a algumas horas, semanas, meses ou anos. Minhas pernas fraquejaram e eu me sentei para não cair. Lisa mantinha-se em pé ao meu lado tremendo e chorando. Olhava-me ansiosa esperando que eu não confirmasse o que ela temia.
-- Meu pai Lisa. Ele está em coma. -- Minha voz saiu num fio quase inaudível. -- Cancele meus compromissos dessa tarde e dos próximos dias e reserve duas passagens de avião para o Brasil. Eu e minha mãe partiremos ainda hoje. Chame Claude aqui. Ele presidirá a reunião da tarde -- Consegui falar tudo em um só fôlego.
Ela se aproximou de mim e me abraçou. Além de minha secretária era minha amiga leal, meu muro de lamentações. Ela me conhecia como ninguém. Depois de alguns minutos me consolando, foi até uma pequena jarra numa mesinha próxima e me serviu um copo d´água. Depois que bebi a água e respirei fundo, ela me perguntou:
-- Quer que eu vá com a senhorita?
-- Depois, Lisa. Fique aqui por enquanto resolvendo as coisas. É bem provável que terei que passar uma longa temporada ou me mudar para o Brasil -- Olhei firme para ela e praticamente sentenciei --Quero que você vá comigo. --. Não tinha certeza se ela abriria mão do seu país, da sua família para me acompanhar. Ela abaixou os olhos e ficou olhando os próprios pés. Senti medo que ela recuasse. A minha dependência de Lisa chegara a um ponto que seria praticamente impossível imaginá-la fora da minha vida. Ela era uma extensão minha, era o meu braço direito. -- Assim que forem cumpridas as formalidades da minha situação frente aos negócios, retornarei para providenciar nossa mudança--. Eu estava sendo egoísta. Nem ao menos perguntei se ela queria ir comigo, estava pensando apenas nas minhas necessidades. Como ela não era casada, só teria que abrir mão da mãe e dos irmãos. Ela me olhou profundamente e dando um leve sorriso se pronunciou.
-- Perfeitamente, senhorita. Sabe que sempre pode contar comigo. Eu irei.
Dei-lhe um pequeno sorriso e suspirei aliviada. Levantei-me, aproximei-me dela, segurei seu rosto com minhas duas mãos e olhei profundamente para aqueles olhos grandes e cor de mel. Esquadrinhei seu rosto corado e muito bonito, tentando encontrar uma razão que me explicasse tamanha fidelidade. Aproximei meus lábios de sua testa e ali depositei um beijo que significava gratidão e um profundo amor fraterno. Ela era para mim a irmã que eu não tive. Abracei-a fortemente. Como éramos da mesma altura, deixei meu rosto se emaranhar em seus cabelos cheirosos e dei vazão ao pranto que até então estava preso em meu peito. A ausência do meu pai tirava-me o chão e ela era a única pessoa em quem eu podia me ancorar. Ela correspondeu ao meu abraço e pôs-se a acariciar meus cabelos castanhos claros e sedosos.
Só uma hora mais tarde pude ir para casa. Lisa conseguiu um voo para aquela noite. Teria que dar a notícia a minha mãe e arrumar a viagem. Já previa o escândalo que ela faria e, também, sabia que no fundo, o escândalo seria a máscara para o alívio que ela sentiria com esse acontecimento. Ela, pelo menos temporariamente, escapara da pecha de mulher separada, situação que ela tanto temia.
Fim do capítulo
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LuBraga
Em: 18/06/2018
Supersa mais que agradável ver esse lindo conto aqui no Lettera.
Finalmente agora saberei qual foi o fim desta maravilhosa estória, tendo o prazer de mais uma vez reler cada capítulo!
Obrigada por compartilha-la conosco e seja mais que bem vinda Nicole!
Amo sua escrita.
Bjs,
LuBraga.
Resposta do autor:
Bom dia Lu,
Você saberá sim, o final da história, pois a mesma se encontra concluída.
Fico muito feliz que aprecie tanto a história.
Bjs
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