Prólogo
Fazenda Barros -- São Paulo --Janeiro de 1969
Eu me encontrava um tanto quanto anestesiada pelo vinho que ingeria lenta e suavemente. Os grossos pingos de chuva que caiam, impiedosamente, sobre o telhado da minha casa ajudavam a tornar o ambiente ainda mais tenso, mais sombrio. Apenas um abajur iluminava debilmente a antessala do meu quarto, favorecendo uma penumbra aconchegante. Naquele momento eu não tinha a menor disposição para me expor a uma luminosidade intensa. Tinha a impressão de que iria fraquejar; a penumbra me daria forças. Poderia me agarrar a ela, me ocultar de certa maneira e expor para Augusto, meu noivo, a decisão que eu havia tomado. Há tempos que vinha adiando aquela conversa, tentando a todo custo me enganar quanto aos meus sentimentos por ele, por mim mesma, enfim por tudo que me aconteceu de dois anos para cá. Eu fui levada pela correnteza de acontecimentos que me fugiram ao controle. Sempre fui uma pessoa centrada e dona das minhas próprias decisões. A razão sempre prevaleceu sobre mim, mas quando me apercebi, estava totalmente envolvida no turbilhão de acontecimentos. E, depois de muito relutar, percebi, ou melhor, conclui que a única forma de me livrar daquela armadilha que a vida me pregou era encarar a situação, admitir para mim mesma, o que estava acontecendo e tentar superar tudo. Mas nós, pobres seres humanos, somos apenas peças pequenas desse grande jogo que se chama destino. Eu, depois de muito lutar, me dei conta de que estava irremediavelmente perdida.
Era noite, eu estava sentada numa confortável poltrona e bebericava o meu vinho favorito o Château de Graves, fabricado em Graves, sub-região de Boerdeaux, França onde nasceu minha mãe. Grande produtora de vinho desde séculos atrás, a família da minha mãe ainda era tradição nesse tipo de cultura.
Meu olhar se perdia nas sombras que se projetavam nas paredes. Eu estava cansada, sentia-me no limite da minha tolerância para com Augusto meu noivo. Ele, na verdade, não tinha culpa do que estava acontecendo comigo. O problema era meu, eu tinha que resolvê-lo, e essa conversa com ele era o ponto crucial para eu tomar novamente as rédeas da minha vida, dos meus sentimentos.
Augusto se encontrava cabisbaixo, jogado em outra poltrona a alguns metros de distância. Ele, sem o saber, facilitou as coisas para mim ao me perguntar se eu ainda o amava. E agora estava ali angustiado, esperando minha resposta. Eu não tinha pressa em responder. Estava entorpecida pelo vinho, já era o meu terceiro copo. Nunca fui muito adepta ao álcool, mas depois que me perdi naquele inferno de sentimentos conturbados, lancei mão do amigo vinho para me consolar em minhas noites insones.
Augusto Monteiro de Siqueira, meu noivo há mais de 4 anos, percebera a minha mudança, a minha frieza para com ele. Eu comecei a evitá-lo, não suportava mais seus carinhos, seus abraços e beijos, não suportava mais sua presença. O desespero começou a dominá-lo e eu me vi pressionada, sem ter como evitar essa conversa. Em sua angustiosa espera, ele me observava. Encantara-se comigo quando ainda fazíamos faculdade na Sorbonne. Na verdade, nos conhecemos numa festa de vinho em Paris. Eu acompanhava minha mãe, pois ela fazia questão que a família estivesse presente, uma vez que o vinho Chateau de Grave seria destaque especial naquela exposição. Depois de dois anos de namoro, ficamos noivos e hoje eu me pergunto, aonde foi parar meu sentimento por ele? Como os nossos sentimentos são frágeis e ao mesmo tempo avassaladores! O que eu sentia no momento, não por ele, era avassalador, me dominava o corpo, a alma, a razão. Sentia a dor causada por aquele sentimento correr em minhas veias, dominar meu cérebro e sugar todas as minhas energias.
Lentamente pousei a taça de vinho sobre a mesinha aos meus pés e lhe dirigi o olhar. Ele estremeceu. Temia a resposta que, com certeza, já adivinhava, pois em muitas das nossas discussões eu ameaçava terminar a nossa relação. Depois de um minuto ou dois fitando-o, tentando esquadrinhar aquele rosto bonito e suave que tantas vezes afaguei, pronunciei na minha costumeira voz baixa e suave, porém, naquele momento, fria. Ele mais uma vez estremeceu como se chicoteado por minhas palavras.
-- Eu não estou mudando com você Augusto. Eu mudei -- Não tirava os olhos dele, estudando-lhe as reações. Respirando fundo, continuei -- Como tudo um dia se finda, o meu amor por você, ou melhor, o que julguei ser amor, acabou, transformou-se. -- Apanhei novamente a taça de vinho e levei-a aos lábios. Depois de saborear mais uma dose, enquanto o aguardava digerir a nova realidade, voltei a fitá-lo. Dessa vez ele pareceu ler em meu olhar o misto de piedade e desprezo, pois era isso que eu estava sentindo por ele naquele momento. Ele, empalidecendo, suspirou longamente, passou as mãos pelos cabelos, levantou-se agitado, caminhou de um lado para o outro e tornou a se sentar. Em seu semblante, a incredulidade se estampava claramente. Num repente se jogou aos meus pés dando início a um choro ridículo para um homem de 32 anos. Em meio a soluços desesperados, afundou o rosto no meu colo e pôs-se a implorar:
-- Pelo amor de Deus Sylvia, não faça isso comigo. Não me deixe. Você sabe que eu... preciso, mesmo você não me amando mais, me casar... com você.
Suas lágrimas começaram a molhar minhas pernas, uma vez que eu estava vestida apenas com um penhoar de seda preta. Boa parte das minhas coxas estava exposta, e ele sem perceber, enroscou o rosto de encontro a elas. Tomada de repulsa e indignação pensei em afastá-lo de mim, mas me contive, pois ele estava verdadeiramente temeroso com o andamento da conversa. Bebi o resto do vinho e olhei-o mais uma vez. Seus fartos cabelos louros e brilhantes estavam molhados de suor, apesar da temperatura amena da noite. Toquei-lhe o queixo forçando-o a olhar para mim. Nossos olhos se encontraram, os dele ansiosos e agoniados, os meus, acredito, entorpecidos e frios. Eu estava totalmente encharcada de vinho, mas minha decisão já estava tomada.
-- Não se preocupe Augusto. Não vou deixar seu pai deserdá-lo. -- Soltei seu rosto e me levantei indo de encontro à varanda. Pus-me a contemplar a noite escura, tão escura quanto estava minha alma naquele momento. Ele se aproximou de mim e, como quem teme ser rejeitado, tocou levemente suas mãos em meus ombros. Suavemente me esquivei do seu toque, pois por mais discreto que fosse, um toque seu me causava angústia, repugnância.
-- Como você vai convencer meu pai a não me deserdar, Sylvia. Ele deixou bem claro que só daria minha parte na herança se eu me casasse com você.
Voltei-me para ele já impaciente. Aquela história toda já estava me esgotando.
-- Iremos nos casar, e assim que ele lhe der o que lhe cabe na herança, nos desquitaremos, depois pedirei o divórcio.
Vi seu rosto iluminar, a esperança renascer em seus olhos.
-- Nós poderemos tentar viver até ele me dar a herança, quem sabe você não volta a me amar?
Percebi claramente as intenções dele. Depois de casados ele pediria ao pai para protelar a doação dos bens. Com um sorriso deixei bem claro que eu não era uma idiota.
-- No momento do nosso casamento, quando estivermos assinando os papéis seu pai transferirá para o seu nome a sua parte da herança. Essa é a minha condição e já deixei bem claro isso para ele. Eu só espero que você não conte a ele a minha decisão em me separar de você. Se fizer isso, eu nem me darei ao trabalho de vestir o vestido de noiva.
Ele abaixou a cabeça e depois de alguns segundos me encarou com um olhar que cintilava raiva mesclada com uma profunda mágoa.
-- Você já pensou em tudo, não é Sylvia? Não quer mesmo saber mais de mim. O que aconteceu com você?
Com voz de enfado, mostrando a ele o quanto aquela conversa já estava me cansando conclui.
-- Dê-se por satisfeito por eu ainda me sujeitar a esse casamento para não lhe prejudicar, poderia simplesmente não me casar mais e pronto. -- Caminhando em direção a porta e abrindo-a finalizei a conversa. -- Agora saia, arrume suas coisas e volte para sua casa, pois só nos veremos no dia desse fatídico casamento.
--Sylvia... Sylvia, estou desconhecendo você.
Sua voz embargada prenunciava mais uma chuva de pranto.
-- Augusto, vá embora! Não quero ouvir mais nada. Não me faça perder a paciência, pois não quero ser indelicada com você. Poupe-nos de mais mágoas.
Ele saiu chorando feito uma criança. Bati a porta e me dirigi ao quarto para me jogar sobre a cama, pois meu corpo todo doía. A tensão dos últimos meses estava acabando comigo. Estava exausta, entregue. Teria que dormir, amanhã seria mais uma segunda feira e muito trabalho no escritório me esperava. Desde que meu pai morreu toda a responsabilidade pelos negócios da família caiu sobre meus ombros. Tudo bem que eu, desde pequena, fui preparada para gerir aquele império, mas ele morreu tão rápido. Eu e meu irmão de apenas três anos éramos os únicos herdeiros e eu fui, pela vontade do meu pai, nomeada gestora de seus bens. Ao pequeno Antenor coube apenas 25% dos bens, já que não era filho do casamento, ou seja, da minha mãe. Ele era filho de Júlia, a mulher que deu o golpe de misericórdia no casamento dos meus pais e que, desde que a conheci, vinha destruindo a minha vida. Joguei-me sobre a cama e fechei os olhos na esperança de que o sono me embalasse em seus braços. Mas em meus olhos, sono nenhum queria pousar, apenas e tão somente, a única imagem que me acompanhava obsessivamente do amanhecer ao anoitecer.
Fim do capítulo
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Donaria
Em: 20/09/2018
Olá Autora...já tinha tempos que estava de olho neste conto, ouvi altos comentarios do quanto era bom e bem escrito, mas ainda me encontrava na reserva por ele não estar terminado. Hoje resolvi começar a le-lo e confesso que não consigo parar de ler, e ainda posso acrescentar que me arrependo de não ter acompanhado capitulo, tensão a tensão. A autora escreve muito e estou encantada com as personagens...você descreve muito bem suas personagens, cria personalidades, e como se soubesse até o signo da Sylvia, que pela intensidade e caliência, juntamente com o fato de ter nascido em outubro, chuto que é de Escorpião. Enfim estou encantada com sua historia e confesso que a tempos nenhum conto prendia minha atenção o suficiente, e o seu além de prender acho que vai fazer eu varar a noite...rsrsrsrsrs...amanhã te conto. Beijos autora. prometo deixar mais comentarios
Hellen300
Em: 06/08/2018
MDS, alguém deporta essa francesa,pela misericórdia!!!!
E essa julia hein?!!!...tô gostando de ver,revelando o "gingado" brasileiro,Silvya infarta uma hora dessas...rsrsrs
Cada vez mais apaixonada pelo seu conto.Parabens!!!!!!!
Resposta do autor:
Boa tarde Helle,
Muitas emoções ainda virão por aí.
Muitissimo feliz pela sua apreciaão e pelo comentário.
Bjs
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Veka
Em: 26/06/2018
Devo confessar, minha nemória é horrível. Eu já li a história, mas não recordo os acontecimentos. Apesar de ter um sentimento de ter me apaixonado pela história. Então, me apaixonarei de novo!
Obrigada por nos brindar com sua história mais uma vez!
Bjus
Resposta do autor:
Bom dia Veka,
O fato de não se lembrar totalmente, fará com que você se emocione novamente com o amor de Sylvia e Júlia. Espero que continue apreciando.
Bjs
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Vanessa
Em: 23/06/2018
Obrigada autora por postar essa história linda, não cheguei a terminar mais agora acho que vou.
Anciosa para começar a reler.
Mais uma vez obrigado.
Resposta do autor:
Bom dia Vanessa,
A história está completa. Fique tranquila que você saberá o final.rsrs
Obrigada por apreciá-la.
Bjs
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Flor de Liz
Em: 22/06/2018
Genteeeeee não estou acreditando, que vou conseguir ler o final dessa estória maravilhosa! Nicole seja bem vinda! E obrigada por postar a estória novamente.
Resposta do autor:
Bom dia Flor de Liz,
Você lerá o final sim, pois a história está concluida.
Fico muito feliz que goste tanto dessa história.
Bjs
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Morenaa
Em: 18/06/2018
Nossa não estou acreditando.
Minha história favorita do Abcles aqui no lettera. Será uma honra ler novamente e enfim saber do final ^^ ?
Bem vinda novamente Nicole.
Beijos!!
Resposta do autor:
Bom dia Morenaa,
Pois é, A madrasta está de volta. E, como está finalizada, você saberá o final.rsrs
Bjs.
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Penelope
Em: 17/06/2018
Estou muito contente que vc voltou a postar suas historias novamente.
Quando postará Um amor cantado em francês tbm??? Estou louca para saber a continuação de onde parou!
Resposta do autor:
Bom dai Penelope,
Fico feliz em saber que te agrada reler A madrasta.
Um amor cantado em francês, só vou postar quando estiver finalizada. Não posso afirmar quando isso vai acontecer, mas não demorará muito, espero. rsrs
Bjs
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Zizi
Em: 17/06/2018
Bom dia!!!!!!!!!! Que felicidade! Finalmente vamos saber o final da "A Madastra"!
Execelente história! Bem Vinda de volta!
Resposta do autor:
Bom dia Zizi,
Com certeza lerá o final, pois a história já está finalizada.
Espero que continue apreciando.
Bjs
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AureaAA
Em: 17/06/2018
Que alegria acordar com essa maravilhosa surpresa!
Sejam bem vinda minha querida autora...será um prazer reler esse romance que na minha humilde opinião é um dos melhores de todos os tempos!
Resposta do autor:
Bom dia Aurea,
Fico feliz que esteja gostando da história. E que bom que foi uma surpresa maravilhosa.
Bjs
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