ENTRE O PRESENTE E O PASSADO
CAPÍTULO 139 – Vida de Professora
Zinara arrumava suas coisas na sala onde sempre trabalhou.
--Então quer dizer que mês que vem a professora Zinara Raed volta pro batente? -- Werneck apareceu na porta e perguntou bem humorado
--Já voltei! -- respondeu sorrindo -- Oficialmente é que vai ser no mês que vem, inshallah (se Deus quiser)! -- desejou
--E volta a receber pagamento a partir de quando? -- perguntou curioso
--Segundo fui informada, em novembro. -- continuava arrumando tudo -- Sabe que me surpreendi com a rapidez do processo? -- comentou -- E torço pra que seja isso mesmo, porque já não dou mais conta de ficar na dependência de maama e baba. Xajlaan... (Vergonha...)
--Tá faltando professor, mulher! -- correu para ajudá-la com uma caixa -- Quase ninguém quer mais se dedicar à docência, então tem que manter os poucos que querem, não sabe?
--E por que será que tá faltando? -- perguntou ironicamente -- Chukran. (Obrigado.) -- agradeceu pela ajuda e olhou ao redor -- Vou botar esse trem ali. -- apontou
--Você não tem muita tralha. -- observou -- É basicamente livro, CD, tese de aluno e lente de telescópio. -- pegou outra caixa para ajudar a amiga -- Eu é que tenho tanta coisa...
--Posso não ter muito trem mas a primeira tarefa é voltar com eles pro lugar certo. -- mexia na pequena estante -- E isso toma tempo...
--Pode arrumar com calma, ainda mais agora que conseguiu sua sala e seus móveis de volta. -- achava graça -- Ainda vejo Paulo e Raul suspirando pelos cantos. -- lembrou-se dos colegas e riu brevemente
--Humpf! -- fez um bico -- Diacho de dois homenzinhos abutres! -- resmungou -- Ralã! -- exclamou com desgosto
--Ah, mas não se aperreie, não. Eles não passam dessas eleições, porque um vai matar o outro por conta de Vilma e Décio. -- riu de novo
--É, eu percebi isso aí. -- comentou ao abrir a última caixa -- Aliás, o povo de Terra de Santa Cruz parece que ensandeceu por causa dessas eleições. -- comentou -- Nunca vi isso na minha vida! -- fez cara de contrariedade -- Absurdo! -- exclamou com desgosto
--E tu vai votar em quem, mulher? -- queria saber -- Eu vou anular!
--Eu também! -- respondeu de pronto -- Vilma foi uma decepção, Osvaldina não tem a menor condição de chefiar o país e Décio é... -- suspirou -- Sem comentários!
--Eu andei pensando em votar na Fabiana Tenro, mas não sei... -- coçou a cabeça calva -- Não conheço ela...
--Nem eu. -- olhou para ele -- A síndica do prédio é que quer me convencer a votar em Osvaldina: a candidata santa! -- achou graça -- Já disse a ya Julieta pra desistir dessa maluquice, mas não dá jeito! -- esvaziava a caixa -- Quando a vejo com santinho e adesivo na mão, vou logo dizendo: la te shaghilny (não me aborreça)! -- separou alguns livros -- Mas ela é custosa que chega dói! -- balançou a cabeça negativamente -- Enquanto isso, Sahar anda querendo me convencer a votar em Vilma, só que não dá! -- desabafou -- Especialmente depois do leilão do Campo de Balança. -- colocou os livros na estante
--Quem é Sarrá?! -- repetiu a palavra com seu sotaque
--Ah! -- ficou sem graça -- É Clarice... -- respondeu de cabeça baixa -- É o apelido dela... -- abriu uma gaveta e guardou CDs -- "Que furo, hein, Zinara? Ave Maria, bicha besta!” -- condenou-se mentalmente -- "Mas também... por que eu tenho que esconder que ela é minha amada, minha alma gêmea, a mulher que desejo pelo resto de minha vida?” -- pensou envergonhada pela falta de coragem em se assumir
--Eu hein. -- estranhou, mas não fez comentários -- E ela ainda gosta de Vilma?
--Não é que ela goste... -- aproveitou a deixa para fugir do assunto -- Ela apenas entende que Décio representa todos os interesses, menos os do nosso país. -- pegou mais alguns CD -- Votar nele é retrocesso, é seguir a mesma cartilha do liberalismo econômico que quase levou nossa economia à mais completa estagnação no governo de Armando Patrick. A mesma receita de bolo que levou Godwetrust, Urubba e Nippon à crise que eles vivem hoje. -- olhou para Werneck -- Com a diferença que eles têm as válvulas de escape, né, que são os países que nem o nosso. -- separou as teses e as dissertações dos ex alunos -- Vilma é a candidata que é capaz de derrotar essa gente, e com o partido dela, queira-se ou não, tivemos muitos avanços sociais além da retomada do desenvolvimento. -- explicava -- É por isso que Sahar vai votar em Vilma e é isso que alega pra me convencer. -- pausou brevemente -- Só que desde 2010 Vilma vem fazendo coisas muito parecidas com o que os liberais fazem... -- não parava de se movimentar -- Ela protegeu o Prima di Sale, mas em compensação estragou um bocado de coisa!
--Vilma e Luis Horácio foram os governantes que olharam pra nós aqui no nordeste, isso eu também não nego. Sem contar de que a vida nas universidades melhorou bastante. No governo de Armando Patrick a gente tava a ponto de fazer vaquinha pra comprar papel higiênico! -- concordava com a morena -- Mas também não engoli o Plano de Infra, nem o leilão do Campo de Balança e mais aquele corte de verba que pegou todo mundo de calça arriada, lembra? -- a astrônoma balançou a cabeça confirmando -- E essa roubalheira toda que a Operação Caça Rato tá mostrando aí me deixa fulo da vida! -- gesticulou
--Também não engulo essas coisas. -- abriu mais uma gaveta e guardou alguns documentos -- Mas sabemos bem que essa roubalheira não começou com o partido dela. Isso é coisa antiga! -- fechou as gavetas que havia aberto -- O que se quer hoje, infelizmente, não é acabar com o problema da corrupção. Esse é o pretexto, a desculpa bonita dessa Grande Imprensa podre que distorce os fatos a seu bel prazer em Terra de Santa Cruz. É o escudo que a oposição usa pra disfarçar sua vontade de voltar ao poder. -- novamente olhou para o outro -- O que se quer são basicamente três coisas: -- mostrou os dedos -- acabar com a grandeza da empresa estatal de petróleo, acabar com as exigências de conteúdo pátrio nas obras e...
--A Presidência da República! -- completou o raciocínio da morena
--Aywah! (Sim!) Principalmente a Presidência da República. -- cruzou os braços -- Mas como o partido de Vilma meteu muito os pés pelas mãos, não tenho ânimo pra votar nela. -- suspirou -- Ya wail... (Que pena...)
--Era bom que ganhasse um partido diferente, só pra quebrar os esquemas e dar uma arejada. -- opinou -- Mas sem os radicalismos e inconsistências de Osvaldina. -- fez um bico -- Por isso que pensei na Fabiana Tenro, mas ao mesmo tempo... fiquei cabreiro.
--Já me falaram sobre ela, mas também fico receosa. -- passou a mão nos cabelos -- Laa acrif (Eu não sei), Werneck, vamos mudar de assunto que tudo isso me deixa tensa! -- balançou a cabeça como se quisesse esquecer -- Agora eu tenho que terminar de arrumar essa bagunça aqui e voltar a minha rotina.
--E assumir o Departamento de volta faz parte de voltar a rotina, por que não? -- ofereceu -- Vou lançar teu nome pro ano que vem! -- afirmou enfático
--Ainda não, min fadlak (por favor). -- pediu -- Tenho que tomar algumas decisões e não sei se seria bom chefiar o Departamento de novo por agora. -- aproximou-se dele -- Preciso retomar meus projetos, voltar pras salas de aula, estudar com mais fôlego e orientar meus alunos. -- explicava-se -- Uma coisa de cada vez, pode ser?
--Ave Maria... -- suspirou desanimado -- Então vou passar pra outro, porque já cheguei no meu limite! -- confessou -- É muito aperreio, muita consumição e um desgaste da porr*! -- gesticulava -- Além do fato de ser babá de aluno, que reclama de tudo e nunca reconhece o que a gente faz, não sabe? Não sei como você aturava! -- caminhou até a porta da sala
--Acho que é porque eu gosto de ser brofeseer (professora). -- sorriu -- Desde awlaad (criança) era o que eu queria ser.
--Professora, a senhora voltou!! -- uma jovem sorridente apareceu na porta -- Será que eu podia aproveitar esse retorno pra tirar uma dúvida sobre as cefeidas? -- entrou na sala -- Eu não tô conseguindo registrar uma diferença considerável entre os períodos de variação da magnitude de duas cefeídas que eu sei que são de tipos diferentes! -- olhava para a morena -- A teoria não tá batendo com a prática, e agora?
Prestava atenção na outra. -- Deixa eu ver os gráficos de variação de amplitude que você obteve. -- pediu -- E me explica a metodologia de medição que você tá usando.
--Ih, olha que massa, professora Zinara tá de volta! Bem que eu escutei a voz! -- um rapaz veio também -- Então... -- aproximou-se -- será que a senhora podia me tirar uma dúvida em diagrama HR? É que é uma dificuldade entender... -- fez uma careta
--Ah, eu cheguei primeiro! -- a moça reclamou -- Professora, olha só isso! -- deu queixa que nem criança
--Mas o meu é rapidinho! -- protestou
--Ó, Zinara, tô indo. -- Werneck pressentia o pior -- Seja bem vinda! -- saiu apressadamente
--Macasalaama! (Até logo!) -- respondeu para o amigo -- Deixa eu falar com sua colega aqui, -- olhou para o rapaz -- que a gente vê qual é a sua dúvida especificamente.
--Professora!! -- três rapazes e duas moças chegaram juntos -- Oi!
A morena e os dois alunos que chegaram primeiro olharam para o grupinho.
--Que bom ver a senhora! -- um deles falou -- Será que dá pra eu passar minha dissertação pra senhora ler? -- pediu -- Professora Bernadete demora que só... -- revirou os olhos
--Professora, eu queria conversar sobre estrelas de nêutrons! -- uma das meninas foi dizendo -- Tenho que fazer um trabalho sobre elas e professor Paulo não explica direito!
--Professora, minha nota de Astrofísica Básica veio errada! -- uma outra moça reclamou -- Já falei com professor Werneck, mas ele não resolve!
--Professora, eu não tô sabendo usar o espectrógrafo! -- outro rapaz falou -- A senhora me ajuda?
Não davam tempo para a astrônoma responder.
--A senhora acredita que professora Lígia me deixou ir pra final no período passado por causa de 0,5 ponto? Fuleiragem, visse? -- o outro jovem reclamou -- Acho que vou reprovar nela de novo... Será que dava pra senhora me ajudar?
--E a mim, a senhora ajuda? -- vários perguntaram
--Professora, professora, professora... -- falavam todos ao mesmo tempo
Zinara olhava para eles com vontade de rir.
“Sim, Kitaabii, eu gosto disso apesar de tudo. Eu gosto de ser professora. É o que sei fazer...
Um dia eles serão profissionais e estarão por aí fazendo o país crescer... E viverão honestamente com o fruto de seus esforços.
É isso, Kitaabii. Gosto de semear e professores nada mais são que semeadores de sonhos.
Mesmo que a semeadura seja pesada demais e quase nunca devidamente reconhecida...”
CAPÍTULO 140 – Coincidências
Jamila consultava seus arquivos eletrônicos para se garantir de que nenhum processo que conduziu havia ficado com pendências. Havia delegado alguns mais simples para outros colegas e estava ciente de que seriam exitosos. Ao finalizar o trabalho percebeu que somente um estava sem qualquer desfecho.
--Tem esse recurso de Zinara contestando a recusa do Governo de Suriyyah em indenizá-la... -- leu em voz alta -- Olha há quantos anos que isso se arrasta... AHHa! -- fez cara feia -- Por quanto mais tempo vai se arrastar? -- levantou-se da cadeira e andou pela sala -- Hoje você tem influências, Jamila... -- considerava -- Quem eu posso tentar acionar pra dar uma força nisso? -- pensava em possibilidades
--E aí, Cátia? -- Paola se encostou ao portal da sala da colega -- Malas prontas ou não? -- sorriu
--Menina, eu tô correndo contra o tempo! -- olhou rapidamente para ela e sorriu -- É tanta coisa que tem pra fazer pra deixar redondo antes de ir... -- mexia nos livros sobre sua mesa -- "E mais esse monte de coisas passando pela minha cabeça...” -- pensou em Lídia
--Outubro já tá batendo à porta. -- cruzou os braços -- Imagino sua correria. -- acompanhava os movimentos da outra com o olhar -- Lembra que se precisar de um apoio, tô aqui. -- ofereceu
--Obrigada, querida. -- agradeceu polidamente -- Pode deixar que vou te alugar um pouco! -- piscou para a outra -- O que seria de mim sem minha professora convidada favorita? -- foi até a estante procurar por algo
--Eu tô com uma amiga lá em casa que tá nessa mesma correria que você. -- comentou -- Ela tá sofrendo umas perseguições aí e precisa sair do país urgentemente! -- continuava prestando atenção nos movimentos da loura -- Vai embora em outubro também.
--Perseguições? -- perguntou sem dar muita atenção -- Nossa, coitada. -- abriu uma gaveta -- Onde foi que aquele DVD foi parar? -- questionou-se intrigada -- Tinha um monte de resultado de sísmica gravado ali! -- resmungou
Paola sentiu que era o momento de se despedir. -- Não vou te atrapalhar mais. -- afastou-se da porta -- Você tem um monte de coisas pra fazer. -- passou a mão nos cabelos -- Qualquer coisa, pode me chamar. -- deu tchauzinho -- Até mais.
--Até mais, querida. -- respondeu sem olhar para a colega -- Onde eu enfiei aquele DVD?? -- remexia as gavetas
***
--Mãe, meu pai tá morando aonde, hein? -- Deodoro perguntou intrigado -- Todo mundo agora mora em outras casas... -- coçou a cabeça -- Cadê ele?
Raquel voltava com Deodoro da escola. Coincidentemente passavam perto do albergue onde Getúlio estava vivendo. -- O papai... -- pensou no que dizer -- Ele tá morando... aqui perto... -- olhou receosa para o menino
--Eu queria ver ele. -- pediu com saudades -- Leva eu?
“Será que eu deveria fazer isso?” -- pensou preocupada
--Eu quero ver meu pai! -- insistiu -- Leva eu?
Após uns segundos em silêncio a mulher deu um suspiro e concordou. -- Tá bom, querido, mas a mamãe não vai falar com ele, só você que vai. -- respondeu sem olhar para ele
--Por que? -- não entendia -- Vocês tão de mal? -- olhava para a mãe
--É, meu bem... -- pausou brevemente -- A gente ficou de mal.
***
--Vai com o moço, meu amor. -- Raquel orientou -- Ele vai levar você até o papai. -- sorria para o filho -- Quando acabar de conversar com ele, volta pra cá que a mamãe vai ficar esperando ali fora, tá?
--Tá. -- balançou a cabeça concordando
--Eu vou ficar lá fora. -- Raquel repetiu para o homem do albergue -- Quando acabar e ele voltar, me chama, tá? -- pediu
--Pode deixar, senhora. -- respondeu sorridente e olhou para o garoto -- Vem comigo? -- estendeu a mão para ele
--Vamos! -- segurou a mão do outro -- Tchau, mãe! -- acenou e foi
Seguiram por alguns corredores até que chegaram a um imenso dormitório onde havia muitos homens. Um falatório chamava atenção mas não se podia ver da onde as vozes partiam.
--Valdir!! -- uma senhora apareceu apavorada -- Vem que tá tendo uma briga!!! -- gesticulava nervosamente -- Anda, vem!!
--Mas que diabo! -- resmungou contrariado -- Di, -- olhou para o garoto -- seu pai tá ali, filho. -- apontou -- Pode ir lá falar com ele. -- fez um carinho na cabeça da criança -- Qualquer coisa, é só chamar que o tio vem.
--Tá... -- respondeu chocado com o local
--Vambora ver isso! -- Valdir seguiu atrás da senhora que o chamou
Getúlio estava deitado em uma cama imunda, maltrapilho como um mendigo. Perto de seu leito, um prato com restos de comida servia de banquete para moscas.
Deodoro sentiu-se perdido e não conseguia entender o que se passava. “Por que meu pai tá assim?” -- perguntava-se entristecido -- "Esse lugar é grande e feio!” -- caminhava receoso até o homem -- "E fedorento...” -- pensava -- "Sujo e cheio de mosca!” -- parou diante do leito -- Pai?
--Hã?! -- Getúlio abriu os olhos sem entender -- Moleque?! -- sentou-se rapidamente -- Caraca, aí... -- sorriu sem graça -- Malandragi... -- não sabia o que dizer
--Você virou mendigo, pai? -- perguntou com tristeza
--Qué isso, moleque? -- riu sem vontade -- Mendigo, nada! Eu tô é numa nice no meio dos amigo, sabe cumé? -- abriu os braços brevemente -- Rapaziada responsa, tudo sangue... -- olhava para os outros homens
--Aqui é feio, sujo e fedorento! -- retrucou
--Ah... -- ficou sem graça -- É que home num fica bolado com certas parada, tá ligado? -- continuava tentando disfarçar
--Mas quando você era namorado da mamãe não era assim! -- respondeu com tristeza
Getúlio sentiu uma pontada de dor ao ouvir aquilo. -- Num era mermo... -- concordou falando mais baixo
--Você não pode virar mendigo, pai! Senão nunca mais vai ser namorado da mamãe! -- aconselhou inocentemente
Deu um sorriso triste. -- Tua mãe tá nôtra, moleque... -- abaixou a cabeça
--Porque você bem deixou! -- reclamou
--Como assim, bem deixei? -- olhou para o filho sem entender
--Você não faz as coisa que tem fazer! -- argumentava -- Olha só eu! Eu acordo cedo, vou pra escola, presto atenção no que a tia fala, volto pra casa, faço o dever de casa e depois é que vou brincar!
Achou engraçadinho.
--Você acordava tarde, não ia trabalhar, não fazia as tarefas de casa, não cuidava de nada! -- continuava falando
Getúlio ficou mais envergonhado.
--E você nem sabia namorar a mamãe! -- acusou
--Qual é moleque?! -- perguntou indignado -- E tu lá manja dessas parada?
--Eu bem sou namorado da Khadija e você nem sabe namorar! -- respondeu de pronto -- Você não andava de mão dada com a mamãe, não fazia desenho, não conversava, não brincava! -- expunha seu inocente modo de pensar -- Quando eu tô na roça a gente brinca o dia todo! -- olhava para o pai -- E eu bem já dei flor, desenho e boneco da massinha pra ela; você nunca deu nada disso pra mamãe!
Não sabia o que responder.
--Por isso que a mamãe não quer mais, pai. Porque você não era bom namorado! -- acusou
--Acho que num devia sê mermo... -- admitiu envergonhado
--E agora fica aqui nesse lugar feio! -- olhou ao redor -- Não pode, pai! -- afirmou enfático
--Eu num tenho um cafofo pra onde ir, moleque... -- confessou com tristeza -- É tu ou tu mermo.
--Fala com a vovó que ela ajuda! -- aconselhou -- Ela ajuda todo mundo que pede!
“Sogrona?!” -- pensou descrente -- "É ruim!”
--Com licença. -- um rapaz se aproximou dos dois -- A senhora Raquel me pediu pra vir chamar o menino. -- sorriu -- E... é melhor ele ir mesmo. -- olhou para Getúlio -- Você tá escutando a confusão lá fora, né? -- referia-se a briga -- Valdir apartou os caras mas o clima tá tenso!
--Vai lá, moleque. -- Getúlio falou com carinho -- Não deixa tua mãe esperando que ela deve tá bolada. -- sorriu tristemente
--Pensa nos meus conselhos! -- afirmou com seriedade -- Você tem que tomar jeito, pai! -- deu um beijo no rosto dele -- Tchau!
Estava morrendo de vergonha. -- Tchau, moleque! -- conteve-se para não chorar
Deodoro seguiu acompanhado pelo rapaz que veio buscá-lo.
--Cara! Ei, você! -- um homem mais velho chamou por Getúlio
--Qual é a tua, mermão? -- olhou para ele desconfiado
--Quando a gente chega a ponto de levar carão de menino novo é porque a coisa tá foda!
--Ih, qual é, cumpadi? -- invocou-se -- Ficô aí de butuca só ouvindo meu papo com meu moleque, porr*? -- fez cara feia
--Aproveite enquanto ele ainda se importa e lhe diz alguma coisa. -- aconselhou -- Pra que não te aconteça o que aconteceu comigo. -- ajeitou-se nas cobertas -- Não vejo meu filho há mais de quinze anos. -- virou-se de lado e se calou
Getúlio ficou pensando na própria vida e nas palavras que ouviu do filho, uma criança que parecia ter mais visão do que ele. “Eu só fiz merd* a vida toda...” -- pensou arrependido -- "Cumé que conserta?” -- não sabia por onde começar
***
--Ora, ora, quem vejo depois de tantos anos? -- o homem negro e forte se levantou para cumprimentar -- Marco Vasconcellos, Kid Marcão, o boxeador mais ligeiro que se tem notícia! -- abraçou o outro -- Que surpresa boa, hein, sô? -- deu tapas nas costas dele -- É bão! -- sorriu
--São mais de dez anos, hein, camarada? -- sorriu também -- E você continua em forma! -- elogiou
--Você também, homi! -- respondeu com sinceridade -- Parece até mais novo! -- reparou -- Quê que é isso? -- aproximou-se mais -- Tá comendo alguma garotinha, é isso? -- piscou malicioso
--Na verdade tô muito apaixonado por uma mulher. -- respondeu com seriedade -- Mas não é nenhuma garotinha. E nem gosto que se fale de um relacionamento meu nesses termos!
--Ô, negão, fica bravo, não, sô! -- brincou com o outro -- Eu falei só de troça! -- fez um gesto despreocupado -- Até parece que não se lembra como Tião do Gancho de Ouro é homem de falar bestagem! -- bateu no peito e sorriu -- E esse encontro aqui é coincidência ou você veio me procurar?
--Será que a gente podia conversar? -- perguntou -- Vim te procurar, sim e é por causa dela; da mulher que eu amo.
--Eita, que agora fiquei curioso que só! -- concordou -- Simbora pro meu boteco que a gente proseia bebendo uns golinho de pinga.
***
--Nós era da pesada, né não? -- Tião relembrava com um copo na mão -- Dois negão saído de Guaiás que fizeram miséria no boxe desse país! -- balançou a cabeça -- Ganhemo foi é prêmio, cinturão, troféu e mais um monte de trem! -- falava saudosista -- E botemo foi é muito gringo arriado na lona! -- riu brevemente
--Foram bons tempos... -- Marco rememorava -- Saímos do completo anonimato pra uma fama que cruzou as fronteiras de Terra de Santa Cruz...
--E a fama é uma bicha traidora por demais da conta... -- bebeu um gole -- Hoje em dia ninguém lembra mais de nós! -- afirmou desgostoso -- Nessa terra que não tem memória, você vai pra tumba do esquecimento logo, logo.
--Pois é... -- concordou -- Quando é fé nem os boxeadores de hoje em dia sabem quem a gente é. -- riu ironicamente -- Não duvido.
--E eles são tudo muito fraco! Depois de nós e do Gorila não teve mais boxeador decente nessa terra! -- retrucou de cara feia -- E esses lutadores de BFP, que tão tudo na moda aí? -- gesticulou -- Sem técnica, sem disciplina, sem resistência... Bando de bostas! -- afirmou com desprezo
--BFP tá na moda... -- bebeu um gole -- E eu não dou nem tchum praquilo lá!
--Anêim! -- concordou e bebeu tudo de um gole só -- AH! -- exclamou sacudindo a cabeça -- Botar mais pinga aqui pra nós! -- serviu os dois -- A gente nasceu na época errada. -- olhou para o colega -- Nós tinha que ser jovem hoje, pra mostrar presse povo o quê que é lutar! -- falou mais alto -- E pra receber a dinheirama que esse bando de bosta recebe fazendo muito menos do que nós fazia!
Achou graça. -- Mas você não tem do que reclamar, Tião. -- sorriu -- Lutou por muito mais tempo do que eu, conseguiu fazer um bom dinheirinho... Você ficou sob os holofotes por mais tempo.
--Eu sempre achei que você se aposentou do boxe muito cedo!
--Minha ex mulher me implorou pra parar de lutar depois que quase morri no ringue e eu atendi. -- bebeu um gole de pinga -- Não queria passar por aquilo novamente. Foi muito difícil...
--Quase morreu, mas ganhou a luta! Não só ganhou, como simplesmente nocauteou Jack Stone! -- observou -- Acabou com aquele gringo que tava acostumado a jogar todo mundo na lona! -- bebeu mais um gole também -- Só que você podia ter insistido um pouco mais. Esse negócio de trabalhar treinando os novato no boxe não dá camisa, não! -- fez uma careta
--Eu sei. -- achou graça -- Não é à toa que hoje eu sou um homem de classe média baixa. -- colocou o copo na mesa -- Mas não me arrependo da decisão que tomei.
--Aquela tua luta com o gringo foi... -- pensava em como dizer -- Nem sei explicar! -- olhava para o outro -- Nunca lutei com aquele diacho e o cinturão que você levou, eu também nunca que ganhei! -- comentou meio magoado -- Foi um dos trem que faltou na minha coleção...
--Eu sei. -- cruzou os braços e encarou Tião -- Por isso vim te procurar. -- pausou brevemente -- Que tal faturar mais esse e completar a coleção de títulos que você tem?
--Uai?! -- não entendeu
--Minha namorada tá precisando de dinheiro e de muito dinheiro. -- falava com sinceridade -- E eu sei que um cinturão daqueles não vale menos que duzentos mil reales.
--O que?! -- deu uma gargalhada sonora -- Ai, ai, seu moço... -- colocou o copo na mesa e contemplou o colega -- E você acha que eu vou comprar um cinturão? Cinturão não se compra, se conquista no ringue! Na luta, na porr*da! -- deu um tapa na mesa
Marco pensou antes de propor: -- Quer disputar ele comigo? -- debruçou-se sobre a mesa -- A luta que nunca travamos: você e eu batalhando pelo cinturão!
--Mas o cinturão já é teu, uai! -- respondeu de pronto -- Não tem sentido isso!
--A gente procura a Federação de Boxe e diz a eles que Tião Gancho de Ouro e Kid Marcão vão se enfrentar numa luta que ficou devendo acontecer lá atrás. -- olhava nos olhos -- Se você ganhar leva o cinturão e se eu ganhar, você me paga os duzentos mil reales que ele vale.
--Arre! -- estranhou -- E por que eu ia concordar com um trem desse? -- esperava uma resposta sincera
--Porque você nunca se conformou de não ter a glória de ter derrotado Jack Stone, coisa que eu fiz. -- afirmou orgulhoso -- E você também sempre quis me desafiar, o que faltou foi oportunidade. -- reparava nas reações do outro -- Além do mais, você mesmo disse que o cinturão era a peça que falta na tua coleção de conquistas.
--Mas ganhar cinturão dos outros e depois de tanto tempo? -- franziu o cenho
--Fica sendo um acerto de contas com o passado. -- sorriu
Pensou antes de responder. -- Você tá muito enrabichado por essa mulher! Pra me propor um trem desses... -- estava boquiaberto -- Trem doido, sô!
--Sim, eu tô totalmente enrabichado por ela! -- afirmou convicto -- Mas e aí, você aceita o desafio ou não? -- insistiu -- Será que Tião Gancho de Ouro ficou medroso depois de velho? -- provocou
--Anêim! -- deu um tapa na mesa que derrubou os copos no chão -- Coisa que Tião Gancho de Ouro não conhece é medo! -- afirmou enfático -- E velho é o diabo que te carregue, porque não sou velho! -- gesticulou revoltado -- Eu sou veterano, é diferente!
--Uma luta entre dois veteranos. -- estendeu a mão como se fosse disputar uma queda de braço -- Os dois melhores boxeadores que esse país já viu.
--Se prepara, Kid! -- segurou a mão dele e aproximou o rosto -- Eu ainda tenho o mesmo gancho de ouro que me deu fama! -- rosnou ameaçador
--Se prepara, Tião! -- respondeu no mesmo tom -- Ainda sei pegar o adversário antes que ele se dê conta!
CAPÍTULO 141 – Por que??
Zinara e Clarice conversavam ao telefone. Enquanto isso, Leda continuava sua pesquisa sobre os asilos de São Sebastião.
--Agora que eu já te contei todas as minhas novidades a senhora pode parar de me enrolar e me responder... -- afirmou melosa -- Tá se tratando direitinho? -- perguntou interessada -- Tem comido bem, descansado...? Você não anda trabalhando demais, né, amor?
--E caipira lá é mulher corpo mole, uai? -- respondeu divertida -- Eu vou pra labuta, estudo, cuido da saúde e tenho comido com fé! -- falava a verdade -- Tô retomando minhas pesquisas e já volto pra academia na semana que vem.
--Hum. -- sentou-se -- Vai devagar, amor. -- aconselhou -- Você tá se recuperando, não convém exagerar.
--E eu lá sou mulher de lesco lesco, Sahar? Comigo é tudo na raça! -- continuava divertida -- Até porque, pra manter a mulher que eu tenho do meu lado tem que ter energia! -- respondeu enfática -- Ya bajat al-rouh... (Prazer da minha alma...) -- sussurrou -- A'aleem illaah ish kaddi gharami iw-hobbi laake. A’aleem illah bilma yinqaal... (Deus sabe o quanto minha paixão e meu amor são por você...) -- continuava sussurrando -- Queria tanto poder sentir seu cheiro, sua pele...
--Minha bousa... -- completou sem pensar e suspirou
--Choo?? (O que??) -- não entendeu -- Você falou o que?
Corou de vergonha. -- Eu disse... -- ajeitou-se no sofá -- Você fica aí falando essas coisas só pra me engabelar e não me falar a verdade sobre a vida que leva aí em Cidade Restinga! -- disfarçou
Achou graça. -- Você fala como se minha vida aqui fosse bandida... -- riu brevemente -- Ai, ai...
--Bandida não é, mas você não se cuida muito bem! -- afirmou enfática
--Que nada, uai! Comigo tá tudo mumtaz (excelente)! -- continuava bem humorada -- Eu tô me cuidando, sim. Pode perguntar pra doktuur.
--Acho bom! -- fez um charme
--Você vai perceber a melhora quando a gente se encontrar de novo... -- afirmou maliciosamente -- Wallahi! (Prometo!)
Sorriu. -- Ai, você diz essas coisas todas mas... sei muito bem que não sou sua amante preferida... -- afirmou pirracenta
--Uai?! Ma hatha?! (O que é isso?!) -- não entendeu -- Sahar Sadiikii! (Sahar é minha namorada!) A única! -- afirmou convicta -- Como pode isso de não ser minha amante preferida?
--Eu não tô falando de tempo presente, tá Zinara? Falo de tempo passado! -- levantou-se -- Tempo passado! -- repetiu
--Laa acrif! (Eu não entendo!) Você tá falando de que, Sahar? Que tempo passado?
--Não se faça de boba, Zinara Raed! -- fez cara feia -- Eu falo daquela sua bailarina ruiva da Gália! -- andava de um lado a outro pela sala -- "Ah, mas agora eu vou falar!” -- pensou decidida
--Ah! -- teve que rir -- Sahar eu não acredito que você tá com ciúmes de Emille... -- riu novamente -- Ai, ai...
--Sem dúvida essa é uma boa hora pra dar risada! -- respondeu irônica -- Eu vi as descrições picantes e bem safadinhas no seu Kitaab! Eu li tudo, Zinara, tudo! -- afirmou chateada -- "Eu e Magali, né?” -- pensou contrariada
--Oxi! -- exclamou sem entender a reação
--Você é muito enrolona, eu fico só vendo! Morou com a professora, morou com a bailarina e comigo fica só fugindo do compromisso! -- acusou
--Mas é diferente, Sahar, o contexto era diferente! -- tentava se explicar -- E eu não tô te enrolando! -- sentia-se perdida -- Bitichkii min eh? (Qual é o problema?) O que aconteceu que você agora me veio com essa? -- estava intrigada -- "Mas o que diacho botaram na cabeça de minha Sahar?” -- queria saber
--Eu não entendi qual foi a sua de ficar detalhando aquela pouca vergonha toda com a bailarina! -- gesticulou -- Tanto detalhe, tanta cena... Parece até um... Kitaab pornô!
--Smallah! -- exclamou espantada
--O que você queria que eu soubesse quando escreveu aquilo, hein? Qual era o objetivo? -- perguntou inquisidora
--Mas, Sahar, o Kitaab é o relato da minha vida! Eu escrevi porque tava numa fase de resgatar minhas memórias, meu passado, minha aprendizagem. -- justificava-se -- E no final quis dividi-lo com você, como prova da minha confiança, do meu amor, da minha entrega... -- pausou brevemente -- Não há razão pra você ficar assim e nem pra que tenha ciúmes de mulheres que fizeram parte da minha vida em algum momento... Oh, ya noori... (Oh, minha luz...) -- falava mansamente -- Será que não vê que...?
--Você é uma verdadeira barba ruiva, Zinara Raed! -- interrompeu a astrônoma -- É isso que eu vejo!
--Barba ruiva?! -- nunca tinha ouvido aquilo
--Olha, eu tenho um monte de coisa pra fazer. Vou desligar! -- decidiu subitamente
--Mas, Sahar, eu... -- ouviu o telefone sendo desligado -- Sahar? -- chamou sem sucesso -- Oh, Aba, o que será deu nela? -- ficou sem entender
Leda reparou que Clarice passou como um foguete pelo corredor.
--Quê que houve, menina? -- perguntou curiosa -- Não me diga que já brigou de novo com Zinara? -- queria saber -- Bastou a mulher ressuscitar que vocês só vivem se arengando! -- comentou -- Ô, casalzinho... -- resmungou
--Dei nome aos bois, mamãe! -- respondeu da cozinha -- Dei nome aos bois!
Achou graça. -- Eu diria que deu nome às vacas! -- falou para si mesma e riu brevemente -- Vai entender... Vida de casal lésbico é troço complicado... -- voltou a se concentrar no computador -- Hum... -- lia uma página -- Asilo com piscina? Tô fora! -- descartou -- Depois de esclerosar, pra morrer afogada é um pulo!
***
--Mas que merd*, hein? -- Cláudia comentou enquanto examinava a amiga -- Então Clarice ficou cheia de ciúmes da bailarina ruiva? -- achou graça -- É cada uma...
--Ri não, que o trem é sério! -- pediu que nem criança -- E ela ainda tá zangada comigo... -- comentou entristecida -- E eu nem sei o que fazer!
--Tem o que fazer, não, filha. -- deu-lhe um tapinha no braço -- Deixe que o tempo resolva. -- aconselhou -- É uma ciumeira passageira, até porque não tem razão de ser.
--Wana amil eh? (Fazer o que)? -- lamentou -- Sahar zangada comigo... -- suspirou -- Ya wail... (Que pena...) -- olhou para a médica -- Ela até me chamou de barba ruiva!
--Que diacho é isso?! -- não sabia
--E eu sei? -- respondeu de pronto -- Coisa boa é que não deve ser!
Achou graça de novo. -- Como eu falei, -- concluiu o que fazia -- dê tempo ao tempo. -- sorriu -- Pode levantar e vestir sua roupa. -- voltou para a mesa e se sentou
--É... -- levantou-se e tirou o jaleco -- Mas que fico triste, fico... -- começou a se vestir
Cláudia reparou na morena -- A gente podia sair e tomar um suco por aí, comer umas tapiocas na beira mar... -- propôs -- Não gosto de te ver desanimada... -- pausou brevemente -- Meu marido e minha filha foram pra um aniversário na casa de um primo dele. -- comentou -- Eu não tô a fim de ir nessa festa e cá pra nós, não suporto aquele cabra! -- revirou os olhos -- Mas ficar em casa sozinha também é tão xôxo... -- cruzou os braços -- Que tal? Vamos?
--Yaalah. (Vamos.) -- concordou
***
--Então... falando no pivô dessa birra toda de Clarice... -- bebeu um gole de suco -- você podia aproveitar e me contar o resto da história da ruiva. -- queria saber -- Lembro bem que você parou no primeiro ano depois do regresso pra Gália... Conta mais? -- pediu cheia de curiosidade
“Ave Maria, Emille desperta fúria ou fogo no meio da mulherada!” -- pensou surpreendida -- Quer saber o que, especificamente? -- perguntou sem muito ânimo
--Como foi o primeiro natal de vocês, por exemplo? Tu fosse pra casa da família dela, é? Conhecesse os pais dela?
Bebeu um gole de suco. -- A família dela morava no norte da Gália e eles não eram muito ligados. Ela também não gostava de ir lá e acabou que eu não conheci ninguém. -- olhava para a amiga -- Parece que o pai dela tinha uma amante, a mãe sabia de tudo e fingia que não sabia... era uma emboleira danada e Emille ficava mordida com a situação! -- contava -- Então ela costumava a passar as festas com algumas bailarinas e naquele ano foi todo mundo pra uma casa bem grande no subúrbio de Villeparisis. -- fez um gesto -- Coisa arrumada por Naima, nem sei como... -- deu um suspiro -- Eu não queria ir, mas Emille insistiu tanto que mudei de ideia... AHHa! -- reclamou
--Naima era aquela bailarina que nasceu em Cedro, né isso? -- lembrava
--Nasceu em Cedro... -- riu brevemente -- Aquela garota era uma cobra, isso sim! -- afirmou enfática -- Bint il-Homaar!! (Filha de um burro!) -- resmungou -- Eu não queria ter ido pra tal casa exatamente por causa dela!
--Mas por que? -- ficou mais curiosa -- Ela era traíra, rapariga ou o que?
--Desde o começo ela incentivava Emille a não querer nada comigo. -- cruzou as pernas -- Dizia que a gente não tinha nada a ver, que a ruiva era um pássaro louco pra voar e eu uma árvore muito bem presa ao chão, que ela era chique e eu uma bicha fuleira... coisas do tipo. -- passou a mão nos cabelos -- Ela também era muito desconfiada comigo, porque desde o começo achei que mentia. -- olhava para a médica -- Aquele sotaque, os costumes, as besteiras que dizia, a falta de conhecimento do nosso idioma... -- balançou a cabeça contrariada -- Tão nascida em Cedro quanto eu sou nascida em Godwetrust! -- riu -- Abadan! (Nunca!)
--Oxi! -- estranhou -- Então era mentira da bicha? Ela não era tua conterrânea?
--Laa! (Não!) -- fez um gesto de negação -- Lembra que eu te falei que frequentava uma casa de apostas por causa da previsão do tempo? -- Cláudia balançou a cabeça confirmando -- É uma longa história, mas graças a uma pessoa de lá descobri que Naima era uma filhinha de papai nascida na Gália, que por algum motivo saiu de casa e não sei porque inventou essa de que veio de Cedro. -- revelou -- Vai ver era tudo pra chamar atenção, sei lá! -- considerou -- Eu nunca tinha visto alguém do Ocidente achar que nascer em Cedro era status, uma vez que nosso povo sofre tanto preconceito com a eterna imagem de “terrorista”. -- fez aspas com os dedos -- Mas pra ela devia ser vantagem, sei lá!
--Mas que mentirinha da porr*! -- estranhou
--Pois é. -- bebeu mais um gole -- Durante os dias que passamos na tal casa, ela implicou comigo várias vezes. Tudo que eu falava ou fazia, lá vinha Naima se metendo. -- balançou a cabeça contrariada -- Lá pelas tantas não aguentei e cuspi a verdade na cara dela: -- rememorou -- "Você me critica tanto, mas eu sou quem realmente aparento ser, ao contrário de você, que é uma grande farsa! Eu já sei de tudo! Sei que essa história de vida que você conta para todo mundo é uma mentira! Sei até seu verdadeiro nome, mademoiselle Nami Gillard!” -- repetiu na língua da Gália -- Se tivesse um buraco no chão a bicha tinha se enfiado! -- riu brevemente
--Ave Maria! -- ficou pasma -- Fim de ano tenso... -- bebeu o último gole de suco -- E depois disso? Ela continuou te marcando? -- perguntou curiosa -- Ou será que tua ex namorada não quis mais saber de amizade com essa uma?
--Aparentemente Naima deixou de se meter comigo e a verdade sobre a real identidade dela morreu naquela casa. -- esclareceu -- Emille ficou muito cismada depois que soube da mentira, mas elas continuaram se relacionando. O balé também ajudava nesse sentido porque as duas eram da mesma Companhia. -- limpou os lábios com um guardanapo -- Quando as coisas entre Emille e eu foram ficando difíceis, Naima voltou a nos envenenar. -- suspirou -- Ralã! -- exclamou em desgosto
Claúdia gastou uns segundos calada até que resolveu perguntar: -- E foi por causa dela que vocês se separaram? -- falou com jeito -- Se quiser responder, é claro...
--Dizer que foi por causa dela seria injusto... Na verdade, foi por uma sucessão de coisas, doktuur... -- viajou no tempo -- Uma sucessão de coisas...
“Emille passou boa parte do ano de 2004 e quase todo o primeiro trimestre de 2005 se preparando para protagonizar a estréia do Grande Festival de Dança Clássica de Villeparisis. Havia participado de importantes espetáculos no período, tendo recebido muitos elogios dos críticos, o que a fez acreditar que seria escolhida por unanimidade. Só que, novamente, acabou sendo preterida por Isabelle Chevalier e não aguentou o baque; o impacto da notícia foi tão intenso que a ruiva desmaiou e teve de passar uma noite internada. E foi a partir daí que tudo mudou...
Hoje em dia, ao relembrar essa história, percebo que deveria ter sido mais cuidadosa com meus sentimentos, Kitaabii. Meu coração sabia que Emille me trocaria pelo brilho do sucesso mais cedo ou mais tarde, só que eu evitava pensar e me permitia iludir cada vez mais... Esquecia que o “pra sempre, sempre acaba”...
Reconheço que busquei nela uma tentativa pueril de trazer Zahirah para mim de novo e fico pensando em como me machuquei ao longo de minha vida amorosa com esta triste mania de procurar pessoas que já partiram em outras que aqui estavam. Felizmente, Kitaabii, por uma série de razões, Emille representou minha última busca pelo que não posso ter e, infelizmente, ela representou uma das maiores desilusões de minha vida.”
--Oh, finalmente em casa! -- a ruiva chegava tarde da noite -- Estou exausta! -- jogou a bolsa sobre o sofá -- Merda! -- sentou-se para tirar os sapatos
--Imagino que esteja. -- a astrônoma respondeu sem alegria -- Chegando em casa quase às onze da noite depois de ter saído às oito da manhã, deve estar realmente exausta! -- acompanhava os movimentos da mulher
Emille respirou fundo e olhou para Zinara de cara feia. -- Estou cuidando de meu futuro, construindo um nome, subindo degraus na escada que conduzirá ao sucesso! -- retrucou gesticulando -- Não posso viver à sombra de Isabelle Chevalier pela vida inteira! -- afirmou com rispidez -- Se não é capaz de entender isso... -- levantou-se contrafeita
--Não acho nada de errado em ver você perseguindo seus sonhos. -- levantou-se também -- Pena que é só o que faz, especialmente depois que esse ano começou. -- encostou-se na parede e cruzou os braços -- Não tenho mais mulher desde janeiro. -- queixou-se
Riu brevemente. -- Oh, meu Deus, Zinara, será que você não entende? -- olhou para a outra impacientemente -- Dei tudo de mim, me dediquei ao máximo e foi para que? -- quase chorava -- Para ver aquela maldita usurpando o que é meu mais uma vez! -- gesticulava -- Se eu parar agora, se reduzir o ritmo e relaxar, nunca mais conseguirei coisa alguma! -- caminhou em círculo com as mãos na cintura -- Estou com fome. -- seguiu rapidamente pelo corredor -- Você fez comida? -- perguntou ansiosa
--Na geladeira... basta esquentar. -- caminhou até a janela e olhou para fora com tristeza -- Eu vou começar uma graduação em matemática no mês que vem. -- anunciou falando mais alto -- Estudarei à noite e chegarei em casa por estes mesmos horários que você tem chegado.
--Matemática, Zinara?? -- voltou correndo para a sala -- Matemática?? -- a bailarina quase gritava furiosa -- Como se não bastasse você viver trabalhando tanto, ainda inventa esse capricho de estudar matemática?? -- estava possessa
Riu pelo absurdo. -- Quando sou eu que persigo meus sonhos é capricho? -- virou-se de frente para a amante -- No seu caso não é? -- respondeu chateada -- Admiro muito seu senso de justiça! -- afirmou ironicamente
Fingiu não ter ouvido. -- Aposto que inventou isso apenas para me aborrecer! -- pôs as mãos na cintura -- Porque se incomoda com meus horários!
--Não é nada disso! -- negou -- Apenas percebi que para evoluir mais na minha tese preciso estudar matemática e é por isso que vou cursar essa nova graduação. -- justificou-se -- Não tenho interesse em fazer pirraça com você!
--Ótimo! -- cruzou os braços de cara feia -- Magnífico! Perfeito! -- falava com ironia -- Très bien! (Muito bem!) -- virou-se de costas para a amante -- Estou muito feliz!
--Eu não entendo você, Emille! -- virou-a de frente para si -- Por que se incomodou tanto com isso? -- olhava para a ruiva -- Você tem passado a maior parte do tempo fora de casa, longe de mim... -- afirmou com uma certa tristeza -- Não vai nem perceber que começarei a estudar à noite. Não fará a menor diferença!
--Gosto que você esteja em casa quando chego... -- respondeu como criança mimada -- Não estará mais... -- fez biquinho -- Você nem pensa mais em mim... no que eu gosto... -- falou com voz de choro
--Own… -- abraçou-a pela cintura -- Je pense a toi, mon amour, ma bien aimee!
(Eu penso em você, meu amor, minha amada!) -- beijou-a repetidas vezes -- Você tem trabalhado demais, treinado demais e eu sofro sentindo sua falta... -- colou testa com testa -- Sei que está perseguindo um sonho e tento respeitar. -- segurou o rosto dela delicadamente -- Eu persigo o meu... -- beijou-a novamente -- E isso não deveria nos afastar.
--Ne m’abandonne pas, mon amour, ma cherie…
(Não me deixe, meu amor, minha querida...) -- envolveu o pescoço da morena com os braços -- Eu não quero perdê-la! -- beijou-a
--Não vai me perder, eu juro! -- respondeu com verdade -- Não vai me perder... -- beijou-a mais uma vez -- Je t’aime trop fort, ça te dérange... (Eu te amo tanto, que te aborrece...) -- sussurrou no ouvido -- Você é meu tesouro na Gália... -- mordeu-lhe a orelha de leve
--Faz amor comigo, Zinara! -- beijou-a -- Faz... amor… comigo… -- pediu entre beijos -- Agora! -- deu um pequeno salto e envolveu a cintura da morena com as duas pernas -- Agora!
--Agora... -- guiou a bailarina para o quarto -- Agora... -- deitou-se por sobre ela beijando-a apaixonadamente
--Ne... m’abandonne pas... -- fechou os olhos entregando-se às carícias da morena
-- Eu te amo... -- sussurrou como se pedisse socorro -- Behebbik ya... (Eu te amo...) -- repetia entre beijos e mordidas
--E como ficaram as coisas depois que tu começasse com essa matemática? -- Claúdia ouvia com interesse -- Melhorou, piorou, ficou na mesma...?
--Não foi o fato de cursar matemática que nos separou... -- mexia no guardanapo -- Mas a distância que gradualmente se impunha entre nós... -- pausou brevemente -- Emille sonhava muito alto e não havia espaço pra mim no sonho dela. -- olhou para a médica -- Isso ficou mais forte ainda quando Vivian Woods apareceu. -- sorriu -- Naima fundou um verdadeiro clubinho de alcoviteiras pra incentivar Emille a ficar com ela. -- achou graça -- Era ridículo! WjaHiim! (E um inferno!) -- acabou rindo -- Ridículo mesmo!
--E quem é essa tal de Vivian Woods?? -- não sabia
--Smallah! -- surpreendeu-se -- Jura que não sabe? -- achou graça -- "The greatest artist under the Sun! (A maior artista sob o Sol!)” -- imitou a mulher -- Uma bailarina que fundou uma escola de dança contemporânea famosíssima em Godwetrust.
--Oxi! -- franziu o cenho -- Pois eu nunca ouvi falar nessa mulher! -- ajeitou-se na cadeira -- Só ouvi falar da Deborah Cooler e olhe lá.
--Pois é... Você não se liga em dança e por isso não conhece a peça. -- passou a mão nos cabelos -- Enquanto isso, Emille sabia da vida da mulher de cabo a rabo... -- viajou no tempo mais uma vez -- Só vivia na internet assuntando...
“E em setembro ela apareceu, Kitaabii: Vivian Woods, a grande bailarina contemporânea de Godwetrust. O fenômeno mundial que se apresentava o ano inteiro em diversos países, mostrando o trabalho de sua famosa escola e centro de dança.
Lembro perfeitamente do dia em que Emille chegou em casa de madrugada, bêbada e empolgada com o balé contemporâneo, após ter assistido a palestra da eminente artista recém chegada na Gália. Lembro da alegria ao me dizer que Vivian sabia quem ela era e que já havia lhe assistindo quando fora dançar na Germânia, no ano anterior. Seus olhos brilhavam de um jeito como ainda não tinha visto. Vivian a convidou para jantar e tomar uns drinques com um seleto grupo de artistas depois da palestra. Um jantar que definitivamente mudou tudo...
E depois daquela noite, a internet passou a ser a melhor amiga de Emille em seus tempos vagos. Quase não interagíamos, a menos que eu procurasse uma discussão...”
--Oh, Zinara, que susto! -- a ruiva reclamou quando percebeu que a amante estava por perto -- Você não dorme? -- olhou para a outra de cara feia -- Parece um fantasma perambulando pela casa!
--Somente eu não durmo? -- parou diante da mulher -- Você tem passado horas no computador pesquisando a vida dessa Vivian Woods e eu não reclamo por isso! -- respondeu de cara feia
--Parece que está reclamando agora. -- afirmou com ironia
Ficou aborrecida. -- O que pretende, Emille? -- perguntou à queima roupa -- Partir com ela para Godwetrust da próxima vez que essa mulher vier para Gália? Está se preparando?
--E se estiver? -- levantou-se e encarou a morena desafiadora -- O que você vai fazer? -- provocou -- Acha que pode me impedir? -- sorriu
“Eu não sabia mais quando era um jogo, Kitaabii, ou quando ela dizia o que realmente desejava. No entanto, preferia sempre agir como se estivéssemos bem e tudo fizesse parte de nossas fantasias sensuais.”
Zinara segurou a amante pelos braços e virou-a de costas para si, imprensando-a contra a parede. -- Você só faz o que eu quero... -- sussurrou no ouvido -- Não vai para lugar algum... -- espalmou as mãos da ruiva na parede e cobriu-as com as suas -- Você fica aqui e permanece como o que é... -- mordeu-lhe a orelha -- Minha mulher!
--Oh! -- gem*u e mordeu o lábio inferior
--Você fica comigo aqui! -- deslizou as mãos lentamente pelos braços da outra -- Aqui! -- expirou ar quente no pescoço da bailarina, fazendo-a se arrepiar -- Porque você é minha! -- afirmou com voz gutural -- E só minha! -- deslizou uma das mãos até um seio da amante -- E de ninguém mais! -- a outra mão encontrou lugar entre as pernas da mulher
--Oh, Zinara... -- gem*u e fechou os olhos
A astrônoma beijava e mordia pescoço e orelha da ruiva, enquanto suas mãos a provocavam de todas as formas.
--Puisque tu... (Mas se você...) -- interrompeu bruscamente o que fazia e se afastou da outra -- penses que c'est mieux... (pensa que é melhor assim (ir embora)...) -- cruzou os braços -- alors adieu (adeus). -- Emille virou-se de frente para a morena -- Alors adieu! (Então adeus!)
--Eu não vou a lugar algum! -- respondeu excitada ao se despir com pressa -- E nem você! -- falava cheia de desejo
--E nem eu! -- também começou a se despir com ansiedade
--Vem! -- ordenou ao pular em cima da morena, envolvendo-lhe a cintura com as pernas -- L'intérieur de moi! (Dentro de mim!) -- beijou-a com paixão
As duas se abraçaram com força enquanto se beijavam loucamente. A astrônoma imprensou a mulher contra a parede e mais uma vez começou a explorar seu corpo com as mãos e os lábios famintos.
--Fomos vivendo na corda bamba ao longo dos meses -- lembrava -- e eu até pensei que as coisas entre nós ficariam melhores depois das festas de fim de ano, porque Emille sugeriu de passarmos as festas sozinhas, de um jeito bem romântico e tal... -- balançou a cabeça negativamente -- Hoje acho que ela estava se despedindo de mim... -- concluiu -- Estava tudo lá, osad ainy (em frente aos meus olhos), mas eu não queria ver...
--Nossa... -- olhava para a amiga -- Você investindo, acreditando e ela indo embora aos poucos... -- considerou a situação -- Que coisa horrível! -- colocava-se no lugar da professora -- Fuleiragem da porr* que essa bailarina fez contigo, não sabe? -- fez cara feia -- Deduzo que foi daí que tu considerasse ir para GanarÄ�jya, não foi, não? -- queria saber
--Aywah... (Sim...) -- pausou brevemente -- Quer dizer, sim e não. Na verdade eu joguei com possibilidades e esperei pra ver no que daria. Foi um misto de coisas. -- sorriu -- A vida é muito interessante, doktuur. Allah sempre envia seus mensageiros na hora certa... -- olhou para a médica -- Vivian Woods apareceu em setembro; os filhos de GanarÄ�jya vieram em novembro... -- lembrava
“Recebemos a visita de astrônomos de GanarÄ�jya e todos ficaram fascinados com meu trabalho. Eles eram muito mais evoluídos em ciências básicas do que nós, Kitaabii e ficou meio evidente para mim que a Gália os superava apenas em recursos materiais; o nível dos pesquisadores era consideravelmente inferior.
Certa vez, brofeseer Subramanyan, o líder do grupo, almoçou a sós comigo e me fez um convite que mudaria minha vida.”
--My colleagues and me are very impressed with your research project, miss Raed. (Meus colegas e eu estamos muito impressionados com seu projeto de pesquisa, senhorita Raed) -- Subramanyan dizia com formalidade -- And we were talking about you yesterday night. (E nós estávamos falando sobre você ontem à noite) -- olhava para a jovem -- É nítido que você é uma estudante de nível muito superior ao dos jovens da Gália. -- pausou brevemente -- Com todo respeito a este país. -- fez questão de adicionar
--Oh. -- ficou encabulada -- I don’t know what to say... Thank you, Mr Subramanyan. (Eu não sei o que dizer… Obrigado, senhor Subramanyan.) -- sorriu -- Mas devo dizer que percebi que sua equipe de trabalho tem um conhecimento muito mais elevado que o nosso. -- afirmou com humildade -- Iniciei uma graduação em matemática neste ano porque senti que me pesava a falta de intimidade com certas ferramentas para avançar no desenvolvimento do modelo que me propus a estudar.
--Está cursando matemática ao mesmo tempo em que se dedica ao doutorado? -- surpreendeu-se -- É de se admirar! -- balançou a cabeça do jeito típico dos habitantes de seu país -- Você sabia que o instituto de matemática mais antigo mundo está localizado a poucos metros do departamento onde trabalho? -- limpou os lábios com o guardanapo -- Basta cruzar uma rua. -- sorriu --Você não teria problemas em continuar sua graduação enquanto trabalhasse conosco. -- levou uma das mãos ao bolso do paletó e retirou um cartão de visitas -- As mulheres são muito bem vindas no Instituto e no Observatório. -- colocou o cartão em frente a ela
--Smallah! -- surpreendeu-se -- "Oh, Aba, ele tá me convidando pra passar uns tempos na terra dele??” -- não acreditava
--Eu sei que você já está inserida em um programa de doutorado sanduíche, mas quem viajou de Terra de Santa Cruz até a Gália, também pode viajar da Gália até GanarÄ�jya. -- balançava a cabeça -- Temos simplesmente alguns milênios de observações astronômicas registradas para você pesquisar. -- olhava para ela -- Pode ser interessante.
“Fiquei sem fala, Kitaabii. Totalmente muda. Imagine o que representa para uma astrônoma apaixonada como eu, o fato de poder ter contato íntimo com alguns dos registros sobre o céu mais antigos do mundo.”
--Imagine como eu fiquei doidinha! -- gesticulou -- Brofeseer Cozette quase teve um troço! Pra ele a ideia era o máximo! -- achou graça -- E brofeseer Oséias? Pensei que fosse reclamar, só que ele adorou! Disse que seria a primeira vez que orientava uma aluna passando por três continentes distintos e que isso daria mais visibilidade pro trabalho. -- contava -- Só que eu não sabia o que fazer... Se eu fosse, seria o máximo pra minha carreira, mas com certeza perderia Emille em definitivo. E se não fosse... será que valeria a pena?
--E quando você decidiu que iria? -- perguntou curiosa -- Oxi, que essa história fica cada vez melhor!
Riu brevemente. -- Ai, ai, doktuur, você gosta de um bom causo...
--Conta, mulher, Ave Maria! -- reclamou -- Como enrola! -- franziu o cenho
--Eu vou me poupar dos detalhes sórdidos e te dizer que comecei a correr com a burocracia em fevereiro de 2006, quando Emille veio com uma conversa de participar de um musical em Godwetrust à convite de Vivian Woods. -- lembrava -- A viagem dela tava marcada pra junho e eu não era tão idiota quanto parecia... Sentia que seria o fim da gente. -- passou a mão nos cabelos -- Aí joguei com possibilidades: ela ia pra um lado, eu pro outro, e fosse o que Deus quisesse! -- fez um gesto -- Não dava pra congelar minha vida por causa dela... -- suspirou -- Acho que... mustakeel (eu desisti)... mesmo que inconscientemente...
--E quando tu fosse pra Ganar�jya?
--Em junho, dois dias depois que ela partiu... -- mirou um ponto no infinito
“Como estavam minha cabeça e meu coração em junho de 2006, Kitaabii? Pode imaginar? Pois vou lhe dizer: em completo desalinho...
Eu havia feito de tudo para manter Emille a meu lado, mas era nítido que ela desejava ir. Quando me falou do tal convite de Vivian Woods, me pareceu uma espécie de adeus velado, porém ainda assim não quis ver a realidade. É verdade que comecei a me mexer para estudar em GanarÄ�jya, mas eu estava jogando comigo mesma. Não queria me sentir abandonada e se fosse para outro lugar seria como se a separação não fosse causada por ela mas pela vida. Eu não aguentava mais amar e me sentir rejeitada...
No dia em que a levei ao aeroporto, Kitaabii, pensei que fosse jogar tudo para o alto e implorar para que ficasse comigo, mas graças a Allah tive forças e me mantive firme.
Acho que Naima deve ter soltado foguetes...”
--Por quanto tempo pretende ficar em Godwetrust? -- Zinara perguntou receosa -- Precisa ter cuidado porque se demorar muito a direção do corpo de balé do Palais Garnier pode entender que não faz mais parte dele. -- advertiu
Sorriu para a astrônoma. -- Não se preocupe, ninguém perde seu lugar por ficar um ou dois meses envolvida em um outro trabalho. -- respondeu confiante -- Esse encontro do clássico com o contemporâneo dará mais oxigênio a minha carreira. -- falava com empolgação -- Quem sabe Jean Louis me valorizará mais depois disso?
--Inshallah... (Se Deus quiser...) -- não sabia o que dizer
As duas estavam paradas de frente uma para a outra, diante do portão de embarque internacional.
--E você? -- cruzou os braços -- Por quanto tempo ficará em GanarÄ�jya?
--Três meses, à princípio... -- colocou as mãos nos bolsos da calça -- Podendo chegar a seis... -- esperou pela reação dela
--Não é muito tempo. -- considerou
Aproximou-se um pouco mais. -- Quem sabe você poderia ir para lá e mostrar o seu trabalho? -- perguntou com ansiedade -- Com certeza as pessoas que gostam de arte gostariam de ver!
--Quem sabe... -- tocou o rosto da namorada -- você encontre o que procura... naquele país... -- falou com certo pesar
--Je ne veux que de l'amour! (Eu só quero amor!) -- respondeu olhando nos olhos
Recolheu a mão e desviou o olhar. -- Tenho que ir agora. -- olhou para o relógio -- Do contrário perco o avião. -- beijou o rosto da outra e a abraçou com força -- Eu te amo! -- falou baixinho
“Não consegui responder, Kitaabii. Fechei os olhos e desejei que ela permanecesse em meus braços para sempre.”
Desvencilhou-se com cuidado e gastou uns segundos em silêncio olhando para a amante. -- Au revoir (Até logo), minha astrônoma. -- deu tchauzinho -- E boa viagem quando chegar sua hora! -- derramou uma lágrima -- Daqui a dois dias você parte... -- andava de costas, afastando-se lentamente -- Tenha cuidado naquele país!
--Daqui a dois dias... -- repetiu mecanicamente
“Aquele olhar, Kitaabii, aquele olhar... Ele me dizia tudo que Emille não tinha coragem de verbalizar. Ele me dizia que nossa história terminava ali, por mais que fingíssemos o contrário. Os olhos não sabem mentir... eles revelam o que vai na alma, deixam escapar as verdades que os lábios negam e descortinam os segredos que o coração esconde. Não importa o idioma, a linguagem é praticamente universal.
Emille desatou o laço que nos unia, Kitaabii, tudo em nome do sucesso. Não era Vivian Woods que ela amava, eu tinha certeza, não era por essa mulher que ela mudava sua vida naquele momento. O sucesso e a perspectiva de alcançá-lo rapidamente; era isso que Vivian representava e era por isso que ela me deixava para sempre...
E lá estava eu, olhando para minha ruiva, sem querer acreditar no que estava acontecendo.
E lá estava eu, Kitaabii... lançada ao vento...”
--Au revoir! -- soprou um beijinho e seguiu caminhando rapidamente
“Acompanhei-a com o olhar até perdê-la de vista, Kitaabii, e não saí do aeroporto até que o avião que a conduzia sumisse de meu campo de visão. Eu dizia para mim mesma que ela se despediu com um ‘até logo’, então não deveria pensar em tantas coisas, mas era inevitável. Meu coração ouviu o adeus que somente seus olhos disseram.
Caminhei em direção a estação de trem e não conseguia ordenar meus pensamentos. Dali a dois dias era eu quem iria embora, mas minha alma já não estava em Villeparisis, tampouco dentro de mim...
O vento já a havia levado...”
https://www.youtube.com/watch?v=bDqHEArTo-Q
--Encore des mots toujours des mots, les mêmes mots, -- Zinara cantava em um barzinho cheio de bêbados e drogados -- rien que des mots... -- a música era o desabafo da tristeza que tomava conta de si -- Des mots faciles, des motos fragiles, c'était trop beau... -- fechou os olhos -- Tu es comme le vent qui fait chanter les violons, et emporte au loin le parfum des roses... -- derramou uma lágrima
(Outras palavras, sempre palavras, as mesmas palavras, nada além de palavras... palavras fáceis, palavras frágeis, era tudo tão bonito... você é como o vento que faz os violinos tocarem, e você foi embora e levou consigo as rosas...)
No avião, Emille ouvia a mesma canção enquanto mirava a escuridão da noite pela pequena janela.
“Paroles, paroles, paroles...”
(Palavras, palavras, palavras...)
--Écoute-moi! (Ouça-me!) -- Zinara cantava
“Paroles, paroles, paroles...”
(Palavras, palavras, palavras...)
--Je t'en prie! (Por favor!) -- a morena se entregava à canção
“Paroles, paroles, paroles...”
(Palavras, palavras, palavras...)
--Je te jure! (Eu te juro!) -- mais uma lágrima
“Paroles, paroles, paroles...”
(Palavras, palavras, palavras...)
--Encore des paroles que tu sèmes au vent... (Outras palavras que você jogou no vento...) -- cantou com mais sentimento -- Jogou no vento, como eu...
Dalida ft Alain Delon - Paroles, Paroles [a]
Emille fechou os olhos e chorou.
--Tu sempre fosse uma bicha doida, vou te contar! -- Cláudia balançou a cabeça negativamente -- Nas vésperas de uma viagem pra outro país, você me arruma de ir cantar numa birosca perdida pelas piores vielas de Villeparisis! -- achava estranho -- Ave Maria!
--Bem melhor do que tentar me matar, não acha? -- pegou a bolsa -- Olha... eu adoro prosear com você, sadikii (minha amiga), mas tenho que ir. -- pausou brevemente -- Ainda tenho que terminar um trabalho hoje.
--Eu também tô na minha hora... -- verificou o relógio -- Oxi, que essa história tua com a ruiva me mata de ansiedade, não sabe? Nunca termina de contar! -- fez cara de criança contrariada -- Já deu pra sentir o que aconteceu, mas eu fico me perguntando: por que??
“Não digo que Emille mexe com essa mulherada?” -- pensou sem entender
***
“Zinara não me liga desde ontem!” -- Clarice pensava enquanto caminhava pelos corredores da universidade -- "Será que ficou zangada porque desliguei o telefone na cara dela?” -- considerou -- "Que pergunta, né? Claro que ficou...” -- arrependeu-se
--Oi, amiga! -- Magali cumprimentou desconfiada -- Que cara é essa? -- estranhou -- Aconteceu alguma coisa? -- perguntou com jeito
--Não... -- respondeu simplesmente -- Eu que tô aqui pensando nas coisas que tenho pra fazer hoje e... -- disfarçava -- Eu também ando numa ansiedade por causa dessas eleições que nem te conto! -- parou de andar -- Desculpe, nem te disse um oi. -- sorriu envergonhada -- Bom dia!
--Bom dia... -- não acreditou no que ouviu, mas fingiu o contrário. -- Ih, amiga, despreza, porque senão vai pirar! -- aconselhou -- É muito estresse na cabeça da gente! Além do mais parece que o país endoidou! -- fez um gesto -- Só se fala em Décio, Vilma, Osvaldina e Operação Caça Rato!
--E eu já ando cheia de ouvir tudo isso! -- revirou os olhos -- Nem acredito que o primeiro turno já vai acontecer na semana que vem! -- balançou a cabeça -- Desculpa, Magali, mas eu tô realmente com pressa. -- falou com jeito -- Preciso ir. -- deu tchauzinho -- Na hora do almoço a gente se vê. -- voltou a andar
--Vai lá... -- cruzou os braços e ficou olhando para a amiga -- Clarice ficou toda estranha comigo depois do negócio do Kitaab. -- falava consigo mesma -- E Lúcia ainda me castiga com um greve medonha! -- suspirou -- Me ferrei com todo mundo e nem descobri o desfecho da história da ruiva... -- lamentou
A paleoceanógrafa entrou em sua sala e imediatamente ligou o computador. -- Deixa eu ver se chegou o e-mail da Contratação. -- esperava a máquina iniciar -- Esse recurso tem que sair ainda esse ano, pelo amor de Deus! -- falava consigo mesma -- Se ficar só na dependência do governo a gente trabalha com pouca verba! Ainda mais se Décio ganhar. -- deu um tapinha sobre os lábios -- Nem brinca com isso, mulher! -- entrou em sua conta de e-mail -- Ai, graças a Deus, chegou! -- sorriu ao ver a mensagem tão esperada -- Zinara também me escreveu... -- visualizou o e-mail da namorada -- Mas não dá pra ler agora... Tem que fazer isso com calma. -- decidiu não olhar -- Deixa eu ver isso aqui e adiantar esse negócio do projeto. -- clicou
--Clarice, você viu? Chegou o e-mail da Contratação! -- a secretária da fundação apareceu na porta -- Se você despachar logo hoje, eu faço a minha parte e o recurso deve entrar em novembro. -- informou
--Tô mandando tudo agora! -- acabava de despachar -- A coisa toda já tava aqui em modo espera, só no aguardo desse e-mail! -- olhou para a outra mulher -- Agora tá com você! -- sorriu
--É pra já! -- piscou o olho e saiu
--Menos uma pendência. -- voltou a olhar para seus e-mails -- Por que?? -- leu o título da mensagem de Zinara -- Por que, pergunto eu, meu amor... -- falava consigo mesma -- Você rodou o mundo por causa daquela uma e é incapaz de pegar um avião e casar comigo aqui! -- reclamou que nem criança
CAPÍTULO 142 – Momentos Decisivos
--Nossa, quanto livro! -- Janaína ficou espantada ao entrar em casa -- Mal se vê você atrás deles! -- achou graça -- Parece que tua ida na biblioteca na cidade foi um sucesso! -- brincou
--Tô estudando, meu amor. Momentos decisivos! -- respondeu sorrindo -- As provas se aproximam e eu não sou mais aquela malandrona. Agora a coisa comigo é séria! -- voltou a se concentrar em seus estudos -- Olha, deixei a comida em cima do fogão. -- advertiu -- É só dar uma esquentadinha e comer.
--É só o tempo de tomar um banho e eu vou comer. -- beijou a cabeça da esposa -- É isso aí, você vai ser uma administradora das melhores que tem! -- fez um carinho rápido nas costas de Aisha -- Tenho certeza! -- foi andando para o quarto
--Espera só até eu pegar nossa fazenda de volta! -- prometeu
“Coitada de Aisha... É tanto dinheiro que se precisa pra pagar a papelada...” -- abriu o armário e pegou duas peças de roupa -- "Se ao menos eu pudesse ajudar com alguma coisa...” -- lamentou mentalmente -- "Mas sou uma dura, porr*!” -- fez cara feia -- Encontrei com Marco na rua hoje. -- falou em voz mais alta para Aisha ouvir -- Tava correndo como um desesperado. -- queria mudar de assunto -- Tinha que ver. -- seguiu para o banheiro -- Parecia até que tava treinando.
--Treinando pra que?? -- não entendia -- "Só se for pra aguentar o tranco com mamii!” -- pensou achando graça
--Sei lá. -- começou a se despir -- Mas que o cara tava na raça, isso tava! -- entrou no boxe -- Não parecia uma corridinha normal, não. -- abriu o chuveiro -- Me lembrou até aquele filme do Roque Balboa! -- riu brevemente
***
Hassan e Khadija estavam sentadinhos no centro de uma roda marcada por insígnias feitas a giz no centro do terreiro de mãe Agda. Ahmed Mateus estava no colo do primo e chorava um pouco. Amina, Raed, Najla e os pais das crianças estavam presentes. Uma bela canção era entoada pelos médiuns, enquanto jovens dançavam em torno da roda.
--Eu tô cum medo, muié. -- Ahmed sussurrou para a esposa -- Nossu fio num pára di chorá! -- estava preocupado
--Carma, homi. -- sussurrou de volta -- Eu num tenhu medu, num sabi? -- afirmou convicta -- Essi centro tem pudê! -- balançou a cabeça positivamente -- "Haja vistu qui ti botô na linha!” -- pensou satisfeita
Agda veio dançando no meio das jovens e parou diante das crianças. Ao erguer os braços, a música cessou.
--Oxi! -- Hassan ficou receoso
--Carma, mininu. -- Khadija olhava para a mulher -- Carma.
--Ocês num tão aqui pur nada. -- Agda dizia para os pequenos -- Ocês num tão junto sem mutivu. -- andava ao redor deles -- Cedro mandô os trêis módi trabaiá em Terra de Santa Cruz... -- falava sob a inspiração do guia -- e ocês vão uní as duas terra, as duas genti. -- sorriu -- Mas tudu acunteci nu tempo certo. -- parou no meio da roda -- E agora é tempu di isquecê. -- bateu uma palma e a música reiniciou -- Isquecê das memória antiga. Fica só us dia di hoji...
--As crianças parece que ficaram hipnotizadas! Ahmed Mateus até parou de chorar... -- Najla cochichou com Amina -- Eu não entendo o que tá acontecendo! -- comentou desconfiada
--Cala a boca e reza, muié. -- Amina respondeu simplesmente
Georgina pensava em certas reações estranhas que o filho já teve e atentava para o que acabou de ouvir Agda falar. “Será qui eli si lembrava da guerra di Cedro?” -- perguntava-se intrigada -- "Mas si eu pari meu minino aqui, comu qui podi issu? Será qui im ôtra vida eli viveu im Cedro?” -- refletia sobre a possibilidade -- "Será qui tem isso di ôtra vida?” -- achava incrível -- "Será qui um dia eu veju meu moreno di novu?” -- emocionou-se
--Washwishih, ya habibi... (Sussurre para meu coração, minha querida...) -- Khaled falou para sua amada -- E eu respondu suas pergunta. -- olhava para ela com carinho -- Nóis vai si vê di novu... Ocê, eu e nossu fio...
--Inshallah! (Se Deus quiser!) -- Youssef segurou uma das mãos do outro -- Mas agora é preciso que você se concentre, akhuuya (meu irmão)... -- pediu com gentileza -- As crianças precisam acalmar as memórias tristes que ficaram marcadas em seu psiquismo. -- olhou para Khaled -- Assim como você. -- mentalizou para que ele entrasse em estado de repouso
--Agora qui si têm cundição, -- Agda continuava falando -- ôtra fasi da vida si inicia. -- pegou um punhado de ervas secas e amassou entre as mãos -- Recumeço! -- soprou o pó que caiu sobre as crianças
--Eu venhu aqui e tudu mais ficu discunfiadu desses trem, num sabi? -- Raed cochichou para a esposa -- Num tô intendendu nada qui ela tá dizendu.
--Tem pricisão di intendê, não, homi. -- Amina respondeu de olhos fechados -- Cala a boca e reza. -- aconselhou
Sob a melodia que tomava conta da casa, os Espíritos da Luz trabalhavam para adormecer as lembranças traumáticas das crianças e de Khaled, os quais, na atualidade, encontravam-se em condições de receber esta ajuda.
--Usritina (Nossa família) finalmente irá encontrar o que buscou pela vida inteira... O que nós buscamos... -- Youssef dizia emocionado -- Salaam! (Paz!) -- fechou os olhos e mentalizou o Bem, fazendo com que pequenos flocos luminosos caíssem por sobre todos os presentes no terreiro de mãe Agda -- As-Salamu Alaikum! (Que a paz esteja convosco!)
***
Úrsula chegava em casa arrasada. Havia sido demitida do emprego e não sabia o que fazer.
--Puta que pariu, caralh*, porr*! -- fechou a porta com raiva -- Demorei que chega dói pra arrumar um trampo e quando arrumo... -- jogou a bolsa sobre o sofá -- Merda! -- seguiu para a cozinha -- É foda, ser pobre é foda, viu? -- estranhou o silêncio na casa -- Zeca? -- chamou enquanto enchia um copo de água -- Zeca? -- bebeu a água -- Cadê você, mulher? -- foi para o quintal procurá-la e entrou em pânico com o que viu -- AHAHAHAHAHAHAHAHAH!!!!!!!!!!!! -- deu um berro apavorado -- NÃO, NÃO!!! -- ajoelhou-se no chão desesperada -- Puta que pariu, caralh*!! -- começou a chorar -- CARALHOOOOOOOOOO!!!!!!!!
Úrsula não teve coragem de chegar perto do animal e por isso não percebeu que a pobre galinha estava morta após ter sido nitidamente mordida por um cachorro.
--Isso é coisa de eleitor do Décio, tô sabendo! -- concluiu odiosa -- Mas vocês vão ver, bando de filho da puta! -- gritava -- BANDO DE VIADO, FILHO DA PUTAAAAAAAA!!!!! -- gritou com ódio
Tosa chegava em casa e levou um susto ao ver as pichações recém feitas no muro da frente.
--Mas que merd*! -- fez cara feia -- A casa nem é minha e já vou morrer no prejuízo de pagar pintura! -- parou diante do portão -- Isso é coisa de eleitor de Vilma, tenho certeza! -- olhou para todos os lados procurando suspeitos -- Olha aqui, seu bando de filho da puta! -- falava mais alto -- Pode fazer essas babaquices pra me sacanear mas os momentos decisivos tão chegando, viu, fi? -- gesticulava -- Décio vai ganhar e acabar com essa putaria de vocês! -- abriu o portão -- VÃO TOMAR NO CU, BANDO DE BOLSA PARTILHA! -- gritou antes de entrar em casa
Tosa não percebeu que o pichador, um menino de dez anos, ria escondido da reação dela. “Sei lá quem é Vilma!” -- pensava divertido
***
Jamila acabava de se acomodar em seu lugar no avião e estava satisfeita por ter conseguido reservar um assento na janela.
“Ai, Meretíssima, por favor, que a viagem seja tranqüila!” -- desejou mentalmente -- Tomara que não tenha turbulência! -- disse para si mesma -- Ralã! -- exclamou desgostosa ao pensar na possibilidade
--Com licença? -- uma mulher a abordou -- Acho que seremos companheiras de voo. -- sorriu
Olhou para a loura que acabava de lhe falar. --Ah, desculpa, deixei minha bolsa no seu lugar. -- retirou a bolsa envergonhada -- Aasif. (Sinto muito.) -- desculpou-se novamente -- "Eu conheço essa mulher..” -- pensou desconfiada
“Da onde que eu conheço essa gata?” -- pensou intrigada -- Não se desculpe, tá tudo bem. -- sentou-se -- É tudo tão apertado em avião, não é? Aí onde tem espaço a gente vai preenchendo. -- respondeu com simpatia
--E essas empresas aéreas de Godwetrust são as piores! -- comentou -- Só comprei bilhete na Trust Air Lines porque foi o que deu.
--O meu caso é parecido. -- olhava para a outra -- É o departamento que compra as passagens, aí vence o menor preço... Sabe como é. -- afivelou o cinto de segurança -- À propósito, -- estendeu a mão -- meu nome é Cátia. -- continuava sorrindo -- Prazer!
--Jamila! -- apertou a mão da outra -- Tacharrafna! (Muito prazer!) -- sorria também
Soltaram as mãos e gastaram uns segundos em silêncio até que perguntaram ao mesmo tempo: -- Eu não te conheço de algum lugar? -- riram
--Não sei, mas fiquei com essa impressão. -- Cátia comentou -- Você é artista ou alguma coisa assim? Juro que te vi na TV! -- reparava na outra -- Eu não me ligo muito em televisão, mas acho que te vi de relance, não sei... -- cruzou as pernas
--Sou advogada, mas andei aparecendo na mídia por conta de umas denúncias... -- passou a mão nos cabelos
--Jamila Queiroz Haddad! -- deduziu -- Você é a advogada do caso Hamatsu-Scowben! -- lembrava -- Cara, sou sua fã! -- afirmou empolgada -- Eu li tudo sobre as denúncias, o dossiê, mas não associei a sua imagem! -- explicava -- Incrível como que nem me toquei de jogar seu nome numa busca pra ver quem seria!
--Ah, mas é que é muita coisa na cabeça da gente... -- ajeitou-se no assento -- E da onde será que te conheço, Cátia? -- olhava para a geofísica com atenção -- "É uma galega bonita...” -- pensou
--Talvez por causa dos meus inúmeros artigos sobre soberania, petróleo, leilão do Campo de Balança... -- arriscou -- Sou muito militante, sabe? Às vezes a Grande Mídia é forçada a me dar uns cinco minutos de fama. -- brincou
--Então você é... -- apontou para a outra -- Isso, Cátia Magalhães, geofísica e professora da Federal de São Sebastião! -- concluiu -- Acho que te vi de relance na TV uma vez! -- relembrava -- Num ato contra o retorno do regime de concessão como marco regulatório do Prima di Sale!
--Ah, deve ter sido! -- fez um gesto -- Eu vivo me rebelando contra essas ideias toscas financiadas por Godwetrust! -- revirou os olhos -- E veja como é a vida! Tô indo justamente pra lá por causa de um pós doc. -- comentou -- Um ano dormindo com o inimigo, já pensou? -- riu brevemente
--Tampouco eu sou fã desse país! -- concordava com a loura -- Seu pós doc certamente tem a ver com petróleo... -- deduziu
--Pois é. -- balançou a cabeça confirmando -- Será um exercício pra minha inteligência ficar um ano estudando e não deixar vazar nada que possa ser interessante pra facilitar a vida deles no Prima di Sale. -- virou-se de lado -- E você? Vai fazer o que lá? -- perguntou interessada
--Não vou estudar e sim atuar junto com uma ONG que é totalmente contra a postura belicista e autoritária do governo de Godwetrust. -- contava -- Vamos fazer muito barulho pra lutar contra a invasão de Suriyyah! -- gesticulou -- E ao mesmo tempo salvo minha pele dos que desejam me ver morta em Terra de Santa Cruz. -- pausou brevemente -- Ah, e por coincidência vou ficar um ano dormindo com o inimigo também. -- brincou
--Ai, que máximo! -- respondeu interessada -- E em que cidade fica essa ONG? Onde você vai morar? -- queria saber
--Em Cambrígia e você?
--Jura?? -- Cátia arregalou os olhos -- Eu também... -- respondeu incrédula -- "Gente, eu não acredito... Depois de tanto sofrimento e decepção, eis que surge uma deusa dessas pra ficar um ano inteiro do meu ladinho em Godwetrust...” -- olhava para a advogada em estado de êxtase -- "E a passarinha cria alma nova...”
“É inacreditável que me aparece uma mulher dessas justo quando tô indo pra longe do país com o coração na mão!” -- pensava abobalhada -- "Eu desejo uma viagem tranqüila e ganho uma loura de brinde!" -- suspirou -- "Como diz Aisha, a Meretíssima é têúdêô: TU-DÔ!!” -- balançava a cabeça pensativa -- Muito massa! -- respondeu sorridente
--E vai morar aonde? -- perguntou cheia de fogo -- À princípio ficarei no alojamento da universidade, mas quem sabe depois, né? Conhecendo melhor a cidade, as pessoas... -- jogou um charme
--A ONG me recomendou um albergue, mas também não pretendo ficar por lá o ano todo. -- também iniciava uma sedução -- Geralmente albergue é coisa meio fuleira...
--E você não é mulher de fuleiragem, com toda certeza! -- respondeu de pronto -- Sabe, não sei como explicar... mas eu tenho a nítida impressão de que essa não é a primeira vez que nos encontramos... -- caprichava no tom da voz -- Será que enlouqueci?
--Eu também tenho essa impressão... -- lançou um olhar sedutor -- Acho que enlouquecemos juntas...
Nesse momento a chefe de cabine anunciou que a decolagem se aproximava e pediu para que os passageiros adotassem os procedimentos de sempre.
--Daqui a pouco a gente conversa mais. -- Cátia piscou para Jamila
--Teremos um ano pra isso. -- a advogada respondeu sedutora -- Macleech! (Não se preocupe!)
“Já pensou essa mulher gem*ndo no meu ouvidinho na língua de Cedro?” -- a geofísica pensou toda assanhada -- "Alguém lá em cima gosta de mim!” -- sorriu -- “Já tô na ansiedade esperando por esses momentos decisivos!”
“Essa loura tem jeito de ser bem safadinha numa cama...” -- a advogada pensou maliciosa -- "Juntando comigo vai pegar fogo!” -- mordeu o lábio inferior -- "Na hora do vamos ver, os momentos quentes serão decisivos!” -- sorriu -- "Se corresponder as minhas expectativas... quem sabe no que pode dar?”
***
--Olha o telefone tocando, menina! -- Leda falou em voz mais alta enquanto bordava -- Deve ser a caipira! -- deduziu
--Hum... -- Clarice veio para a sala -- Zinara não tá merecendo que eu atenda, não... -- fez um charme -- Enrola demais! – verificou na bina que se tratava da namorada -- Olha quanto tempo demorou pra me ligar! -- reclamou
--Humpf! -- fez um bico -- Ô, menina, atende logo! -- olhou para a filha -- Se ela não liga, reclama, se liga, reclama também! -- não entendia -- Tá pior que suas irmãs! -- comparou -- Pelo menos quando os macho delas ligam, as duas pulam que nem coelho! -- voltou a bordar -- Eu hein...
Não respondeu, mas acabou atendendo. -- Alô... -- passou a mão nos cabelos e circulou pela sala -- Você demorou a ligar, né? Tinha esquecido o número? -- fez um dengo -- Ficou parecendo... -- parou diante da janela
--Hum... -- a idosa resmungou -- A lambição vive seus momentos de crise...
--Oi, Sahar. -- Zinara respondeu receosa -- Ainda zangada comigo? -- pausou brevemente -- Eu tava dando um tempo pra zanga passar... E te escrevi um e-mail, mas você não me deu nem tchum...
--Não tive tempo... -- mirava um ponto no horizonte -- Você já foi votar? -- mudou bruscamente de assunto
Estranhou a pergunta naquele momento. -- Aywah. (Sim.) -- respondeu simplesmente -- Na verdade, fui anular meu voto porque não vejo quem seja digno dele nesse momento. Seja pra presidente, governador, senador ou deputado. -- pausou brevemente -- E você?
--Também. -- passou a mão nos cabelos -- Agora tô aqui aguardando ansiosamente pelo resultado.
--Mas... e então? -- queria voltar ao assunto original -- Você ainda tá zangada comigo, Sahar?
--Decepcionada é a palavra certa! -- respondeu enfática -- Você saiu vivendo com uma mulher a cada continente e comigo é esse chove não molha!
--Choo?? (O que??) -- perguntou em choque -- Mas que coisa! Não entendo porque de repente começou com isso, Sahar!
“Uma mulher a cada continente?!” -- Leda pensou surpreendida -- "E eu que não dava nada por aquela caipira!”
--Você entendeu muito bem, Zinara Raed! -- circulou pela casa mais uma vez -- Não me venha com isso de Sahar daqui, Sahar dali! -- fazia cara feia -- Você entendeu muito bem!
--Hum... a lambição vive momentos de ‘vamos discutir a relação’... -- Leda continuava resmungando -- Sinto que a caipira se deu mal...
--Pelo amor de Deus, ya habibi, min fadlik (por favor)! -- queria acalmá-la -- Não faça isso com a gente, você sabe que eu te amo! Behebbik ya, Sahar! (Eu te amo, Amanhecer!) -- sentia medo de perdê-la -- Já conversamos sobre a nossa situação e eu acho que te dei provas de amor suficientes ao longo desse tempo que estamos juntas e...
--Você me deu provas suficientes? -- interrompeu-a bruscamente -- Você realmente acha que me deu milhares de provas de amor?? -- riu brevemente -- A prova que você me deu, Zinara Raed, -- parou no meio da sala -- foi ter me abandonado pra morrer no cume de uma montanha de Cedro sem nem sequer ter conversado sobre isso comigo antes! -- emocionou-se -- Eu me dei toda pra você, eu fiz tudo por você, eu vivi em função de você e dos seus problemas e recebi o que em troca? O que?? -- conteve-se para não chorar -- O seu egoísmo e a total falta de sensibilidade pra ver o que tava fazendo comigo!
--Sahar... -- não sabia o que dizer
--Eu tô mentindo, Zinara? -- perguntou com lágrimas nos olhos -- Responde, eu tô mentindo?
--Definitivamente hoje não tem lambição... -- a idosa constatou o óbvio -- Isso é preocupante...
--Ya-illi enti agmal hikaya... (Você é minha história mais bonita...) -- afirmou emocionada -- Não deveria reduzir nosso amor dessa maneira... -- derramou uma lágrima -- Por que me diz essas coisas agora...?
--Porque eu acho que só agora a ficha caiu! -- respirou fundo -- E se alguém diminuiu e diminui o nosso amor, esse alguém não sou eu!
--Acha que eu faço isso? -- estava decepcionada -- Sa'ban ‘alay... (É difícil para mim...) ouvir essas coisas de você... -- derramou outra lágrima sentida -- Não me julgue dessa maneira, Sahar... -- pediu -- Não faz assim...
--Olha, eu não tenho condições de continuar essa conversa. -- fechou os olhos -- Vou desligar.
“Eu não sabia o que responder, Kitaabii. Estava doendo demais...”
--Tchau. -- desligou
--O que foi isso, menina? -- Leda perguntou preocupada -- Não acha que não precisava de tanto?
--Ai, mamãe, eu não sei... -- começou a chorar -- Preciso de um colo... -- cobriu o rosto com as mãos
--Vem aqui, menina. -- chamou com carinho e ela veio -- Você é uma pessoa muito intensa, minha filha. -- ninava a mulher em seus braços -- Se entrega, se dedica, faz tudo que pode pra ver a outra pessoa feliz e acolhida... -- beijou a cabeça dela -- Isso é uma coisa linda em você, mas precisa entender que nem todo mundo tem condições de retribuir à altura... -- acariciava os cabelos da professora -- Zinara não é como aquelas pistoleiras salafrárias que passaram pela sua vida, mas também não é uma pessoa de quem você possa esperar o que se esperaria de uma mulher normal...
--Como assim? -- não entendeu
--Ela teve uma vida de cão, né, menina? -- respondeu como quem diz o óbvio -- Nasceu num país em guerra, comeu o diabo que amassou o pão e ainda carregou um câncer no bucho sei lá por quanto tempo! Já me admiro o suficiente que não seja do tipo que fuça em terra quente ou se abaixa pra cuspir!
--Que?! -- acabou rindo -- Mas a senhora diz cada coisa... -- balançou a cabeça achando graça -- Fuça em terra quente e se abaixa pra cuspir... -- riu de novo -- Eu hein?
--Eu tô falando sério, menina, presta atenção! -- ralhou -- Você foi se pegar com uma pessoa complicada! Tem que entender isso aí também! -- pausou brevemente -- Não é pra passar a mão pela cabeça dela em tudo que faça, mas tem que entender que Zinara... A gente não conhece ninguém nessa vida que tenha passado pelo que ela passou! É a família dela e olhe lá! -- considerou -- Nem eu, com toda minha idade, nunca tinha conhecido ninguém com aquela história de vida!
--Mas por causa disso, -- desvencilhou-se com cuidado -- por causa de tudo que ela viveu, tenho que me conformar com qualquer coisa que ela esteja disposta a me dar? -- passou a mão sobre os olhos -- Devo fingir que aceito tudo? -- olhou para a mãe -- A senhora não tem ideia de como me senti quando ela me deixou...
--Lembro muito bem, menina, mas isso é passado! -- segurou uma das mãos dela -- Você aceitou ela de volta! Então tem que deixar essas coisas pra trás!
--Eu pensei que pudesse... -- abaixou a cabeça -- mas com essa falta de atitude dela e... com mais algumas outras coisas... -- pensava no que leu sobre Emille -- Não sei, mamãe... não sei se posso...
A idosa ficou calada por uns instantes até que falou: -- Converse com ela sobre o que te incomoda, se tiver que falar umas verdades, fale, mas não fique nessa agonia desnecessariamente! -- aconselhou -- Eu nunca fui uma velha alcoviteira, mas acho que Zinara é a pessoa que você ama! -- Clarice olhou para ela -- Como também acho que você é a pessoa que ela ama! Aquela caipira pode ter todos os defeitos, minha filha, mas é muito transparente. -- balançou a cabeça -- E, de mais a mais, meu detector de sacanagem nunca falha! -- afirmou convicta -- Ela não seria capaz de me enganar por esse tempo todo! -- duvidou -- Sei que é uma boa menina!
--Ainda bem que não falha... -- sorriu com tristeza
--A vida já é complicada por si só, minha filha. -- levantou-se -- Não crie problemas à toa! -- ajeitou o vestido -- Quem procura acha, lembre-se disso! -- advertiu
--Pra onde a senhora vai? -- perguntou curiosa
--No banheiro, por que? -- ficou desconfiada
Achou graça. -- Por nada. -- sorriu novamente -- É que toda vez que a senhora me dá um colo e me aconselha, sempre se levanta do nada e vai fazer alguma coisa deixando um enigma pra eu pensar. -- apesar de estar sofrendo, divertia-se com a mãe
--Dessa vez eu tô com dor de barriga mesmo, não tem enigma! -- foi andando para o banheiro -- Aquele empadão que sua irmã fez não me caiu bem! -- passou a mão na barriga -- Vai ver é por isso que você tá assim! -- considerou -- Comeu empadão e ficou possuída! -- entrou no banheiro
--Fiquei possuída, é mole? -- achou graça -- Ai, eu tô aqui rindo mas a coisa é séria... -- suspirou -- Não gosto de brigar com ninguém, muito menos com minha caipirinha, mas tá doendo... e eu não tô sabendo lidar com isso... -- resmungou consigo mesma -- Ai, Zinara, por que você não toma uma atitude, hein? -- derramou uma lágrima teimosa -- Por que eu fico aqui achando que não sou a mulher da sua vida?
Enquanto isso, Zinara chorava sozinha olhando para o céu. Não sabia o que fazer e não tinha condições de viajar para São Sebastião naquele momento. Além da falta de dinheiro, sentia-se um pouco enjoada por conta do remédio que tomava para recuperar o fígado e o estômago.
--Será que tudo isso foi por causa de Emille? -- não entendia -- Ou será que foi por que ainda não falei em casamento? -- questionava-se -- Será que Emille foi apenas a gota d’água? Mas por que? -- suspirou -- Ana xaafa... (Estou com medo...) Não quero perder minha Sahar...
Após mais alguns minutos de choro e reflexões, a astrônoma resolveu fazer algo para distrair a cabeça e por isso ligou o laptop para ler as notícias do dia.
--Será que já saíram os resultados do primeiro turno? -- olhava para a tela -- Governador... claro! Tinha que ser o filho dele! -- fez um bico -- Senador... Ave Maria, não acredito! De novo? -- balançou a cabeça contrariada -- Vilma e Décio no segundo turno... Era o esperado... -- suspirou -- Deputados... -- franziu o cenho -- Faça-me o favor, viu? -- decidiu ler sobre outros assuntos -- Eu sempre me revolto com resultado de eleições! -- passou para a sessão de artes -- Ih, olha isso...
“Aos cinquenta e cinco anos, Vivian Woods, fenômeno do balé contemporâneo, morre hoje, vítima de uma parada cardíaca, quando dava entrada no Hospital Bellevue, em Neu Yok. A bailarina estava em seu apartamento quando sentiu uma súbita falta de ar, tendo sido conduzida ao hospital por sua companheira Beth Parker.”
--Smallah! -- surpreendeu-se com a notícia -- Bismillah (nesse sentido, seria algo do tipo ‘vai com Deus’), Vivian Woods! -- desejou
“Apesar da escola de Vivian não ser mais uma realidade, afirmou Beth Parker, o legado que ela deixou ficará para sempre na memória de todos aqueles que se dedicam ao balé moderno.”
--E nem se fala de Emille... -- constatou com espanto -- Às vezes me parece que ela jogou tudo fora por absolutamente nada... -- sentiu pena da ex namorada
“Eu já estava há dois meses e meio em GanarÄ�jya, Kitaabii, quando recebi uma carta de Emille. Confesso que levei um susto ao reconhecer a letra dela no meio de minha correspondência no escaninho do Observatório e demorei a abrir o envelope por medo do que iria ler. Durante todo aquele tempo, ela não havia se comunicado comigo de forma alguma...
Fiquei triste por antecipação e já pensava no que dizer ao brofeseer Subramanyan de modo a justificar um retorno à Gália o mais rápido possível. Eu desejava continuar meus estudos conforme o planejado, mas minha vida precisava de uma definição com toda certeza...”
--Você passou esses dois meses sem entrar em contato, sem me escrever um e-mail sequer, -- falava consigo mesma -- e agora me manda uma carta? -- abriu o envelope -- Será que vai ter coragem de me tirar de sua vida desse jeito? -- começou a ler
“Zinara, mon cher (minha querida), preciso lhe dizer... e preciso que me entenda...
Muitas coisas aconteceram em Godwetrust. Eu descobri que o balé contemporâneo é o meu verdadeiro caminho e será por ele que seguirei daqui por diante. Formalmente me desliguei hoje da Companhia de Dança do Palais Garnier, não sem antes dizer a Jean Louis tudo aquilo que estava ansiando por despejar sobre ele há tempos! Estou livre daquele maldito para sempre!”
--Ma hatha?! (O que é isso?!) -- entrou em choque -- Ela se desligou da Companhia...? -- voltou a ler ansiosamente
“Vivian se encanta com meu trabalho e sei que ao lado dela meu futuro será esplendoroso! Em pouco tempo, graças a sua ajuda, conseguirei um cartão verde em Godwetrust e viverei no país sem quaisquer problemas.
Cheguei de viagem na semana passada e ontem finalmente empacotei todas as minhas coisas para levar comigo. Tratei as suas com o mesmo cuidado e deixei as caixas com seu professor Cozette, no Observatório.”
--Não acredito! -- passou a mão nos cabelos
“Não se zangue comigo, meu bem. Viver com você foi uma experiência única, mas preciso perseguir meus sonhos... do contrário, serei infeliz pelo resto da vida.
Com amor,
Emille Delacroix”
--Amor?! -- perguntou revoltada -- Como se você soubesse o que é amor!! -- rasgou a carta em pedaços -- Como pode terminar comigo desse jeito, ya behiima (sua estúpida)? -- sentia vontade de chorar -- Você só queria nik nik (fazer sex*) e passar o tempo enquanto não encontrava coisa melhor! -- jogou os papéis no lixo -- Enti ghaawiz iD-Darb bi-sittiin gazma!! (Você merece ser chutada por 60 sapatos!!) -- praguejou
--Tic, o que aconteceu? -- Rupali se aproximava receoso -- Aquela carta te trouxe a desdita? -- perguntou preocupado ao olhar para a lixeira -- Anúncio de desgraça?
--Mudanças, apenas isso... -- tentava se recompor -- Rupali, me responda por favor. -- passou a mão sobre os olhos -- Brofeseer Subramanyan já voltou de viagem?
--Just arrived! (Acabou de chegar!) -- respondeu desconfiado -- Any problem? (Algum problema?)
--Problema algum. -- olhava o homem nos olhos -- Apenas decidi nesse momento que desejo passar um ano estudando em Ganar�jya! -- afirmou convicta
“Eu sabia que iria acontecer, Kitaabii, nem sei porque senti tanta tristeza e raiva. Mas o fato é que aquela carta superficial e quase desprovida de sentimentos despedaçou meu coração e eu não queria mais pensar em coisa alguma. Não sabia se seria possível viver um ano naquele país como estudante de doutorado, no entanto, estava disposta a tentar. Era um momento decisivo! Ao menos, uma excelente tese resultaria como fruto de meus esforços. Seria o intelecto completamente voltado ao trabalho, sufocando os soluços de minhas desilusões.
Zinara Raed não era mulher para conquistar ninguém, mas era muito mulher para surpreender a comunidade astronômica com um trabalho que não havia sido feito até então.
Sucesso... Emille teria o dela do lado de lá e eu o meu. E vida que segue...”
--Nunca mais ouvi falar de Emille desde que recebi aquela carta... -- a morena dizia para si mesma -- Acho que as coisas não devem ter acontecido conforme esperava. -- especulou -- Ya wail... (Que pena...) Tomara que esteja bem. -- pensou na outra com carinho fraterno
E bem longe de Cidade Restinga, uma desconhecida ex bailarina ruiva comprava mantimentos em uma pequena venda na periferia de Neu Yok. -- Vivian morreu?! -- olhou surpresa para o jornal estendido no balcão -- E quem é essa tal de Beth Parker?? -- não sabia -- Humpf! Certamente outra vagabunda! -- fez um bico e olhou para a foto da falecida -- Quando eu quebrei a perna, você me jogou fora como um traste qualquer... -- mirava a imagem com raiva -- e se pegou com aquela puta que levou a escola à falência... -- voltou a ensacar suas compras -- Aqui se faz, aqui se paga, mon cher! -- sorriu vingativa -- Merde! (Merda!) Vá para o inferno, Vivian Woods! -- pegou suas bolsas e foi embora apressada
***
Lúcia chorava copiosamente nos braços de Magali.
--Calma, querida, fique calma... -- falava com brandura -- Sua vovozinha não gostaria de ver você assim... -- acariciava a cabeça da esposa
--Eu vou sentir tanto a falta dela... -- respondeu entre lágrimas -- Vovó...
As duas estavam no velório da avó da bombeira junto com os outros parentes de Lúcia.
--Tua filha tem um pegadio esquisito com aquela outra ali... -- uma tia comentou maldosamente -- Sei não...
--Eu sempre tive um pé atrás com essa menina... -- um tio cochichou com o irmão -- E aquela amiga dela não me desce...
--Será que Lúcia tem caso com aquela mulher, hein? -- uma prima perguntou ao marido
--Sei lá! Nunca vi tua prima com homem... -- respondeu acusador
--Ai, amor, e eu nem pude dizer adeus, não tava com ela quando aconteceu... -- a bombeira continuava chorando
--Não se lamente por isso, meu bem, a gente nunca sabe quando vai acontecer. -- falava com carinho -- Além do mais, nós saímos com ela, conversamos a beça, nos divertimos... -- derramou uma lágrima -- Sua vovó morreu em paz, deitada na caminha dela, protegida, sem ter passado por aquela agonia de hospital... -- ponderava os fatos -- É uma honra poder partir assim e Deus deu essa honra pra ela. -- pausou brevemente -- Agora ela está livre do peso da idade e das dificuldades de um corpo cansado.
Lúcia pensava no que ouvia. -- Eu sei que você tem razão... -- fungou -- Mas eu queria ter dormido lá com ela... -- lamentou
--Teria sido pior, querida. E talvez ela nem quisesse que fosse assim. -- considerou -- Além do mais você sempre passou na casa dela todas as manhãs antes de ir trabalhar, então ela sabia que você viria... -- continuava tentando consolá-la -- Então duvido que algum dia tenha se sentido só, embora gostasse de morar sozinha.
--É um agarramento aquilo ali... -- outra parenta criticou reparando nas duas
--Sua filha se mudou pra morar com aquela outra? -- um tio perguntou -- Coisa esquisita... -- fez cara feia
--Ela tá livre, meu amor. -- Magali segurou o rosto da amante com as duas mãos -- Não precisa mais de remédios e nem de ninguém pra empurrar a cadeira dela. -- sorriu com os olhos marejados
--Livre... -- repetiu a palavra como se buscasse sentir o significado
--Senhora? -- um dos funcionários de cemitério abordou a bombeira -- Tá na hora de seguir o enterro. -- anunciou solene
Desvencilhou-se da professora delicadamente e olhou para o homem. -- Vamo lá. -- autorizou
Enquanto os homens movimentaram o caixão para seguir o cortejo, Lúcia fechou os olhos, respirou fundo e segurou a mão de sua amada. -- Vem, querida. -- olhou para ela -- Não acho que vovó ficaria zangada ou preocupada se eu decidisse ser livre também. -- afirmou decidida
Entendeu o que ela queria dizer. -- Ela sempre teve do seu lado. -- concordou
As duas mulheres caminhavam juntas, seguindo os passos dos homens que conduziam o corpo da idosa. Á princípio andaram de mãos dadas e depois abraçadas como um casal, sem se importar com os comentários maldosos e cochichos da família de Lúcia.
--E não é que é sapatão mesmo? -- um tio cochichou com a esposa
--Nunca me enganou... -- respondeu fazendo um bico
A bombeira não se incomodava com a reação dos familiares. Estava ali para se despedir de sua amada avó e não se sentia em dívida com nenhum dos presentes. Que dissessem o que desejassem dizer; seu momento decisivo havia chegado. Não havia mais porque se esconder. Dali por diante, seria tudo diferente.
***
--Ai, Raquel, que emoção!!!!!! -- Cecília abordava a irmã de supetão -- Preciso contar a novidade pra alguém agora senão vou explodir, AHAHAHAHAH!!!!!!!!!!! -- gritou extasiada
--Que é isso, criatura?? -- segurou-a pelo braço e seguiu para fora do estabelecimento -- Quer me matar de vergonha, é? -- olhava para todos os lados -- Aqui é meu lugar de trabalho, sua doida! -- ralhou
Não se importou com o que ouviu. -- Você não sabe o que aconteceu! -- bateu uma palma -- Saiu a transferência e já em novembro serei a senhora Adamastor Lyra! -- anunciou empolgada -- AHAH!! -- deu um gritinho -- Felicidade! -- pulou
--Nossa, foi rápido! -- surpreendeu-se -- Mas que bom pra você! -- abraçaram-se -- Espero que dê tudo certo em Cidade Restinga! -- desejou
--Já deu! -- respondeu confiante -- Passei aqui pra te contar a novidade e de noite vou na casa da mamãe pra anunciar a boa nova! -- sorria
--Agora é providenciar a mudança, né? -- sorriu também -- Já pensou no dia que vai ser?
--Em 26 outubro meu bonde já segue pra Cidade Restinga! -- gesticulou empolgada -- Corro pros braços do meu Mastô e ainda me livro de votar no segundo turno! -- deu um tapinha no braço da outra
--Eu hein! -- achou graça
--Agora você fica esperta, meu bem! -- advertiu -- Dá uma prensa no teu cigano e faz ele tomar uma decisão pra não ficar eternamente nessa vida de mucama!
--Vida de mucama... -- repetiu de cara feia
--Menina, deixa eu ir que tá hora! -- olhou para o relógio -- Tenho mil coisas pra fazer ainda hoje! -- deu tchauzinho -- Bye! -- foi embora
--Tchau... -- respondeu pensativa -- Bem que eu podia dar uma passadinha no trabalho dele depois do expediente... -- considerou a hipótese de procurar por Fagundes -- Talvez Cecília tenha razão... -- falava consigo mesma
***
Raquel reconheceu o carro de Fagundes e sorriu por antecipação. Antes que se aproximasse, viu quando o homem apareceu e notou que ele também vinha sorrindo.
“Já me encontrou!” -- pensou animada -- "Não dá pra fazer surpresa, meu cigano é 24 horas ligado!” -- mordeu o lábio inferior
Nisso, uma jovem negra chama sua atenção fazendo com que parasse no meio do caminho. “Quem é aquela?” -- pensou com o coração acelerado
Fagundes abraçou a moça e somente aí Raquel percebeu que era para ela que o policial sorria.
--Não... -- seus olhos marejaram
--Tu demorou, hein, gostosa? -- perguntou com voz de cafajeste
--A espera vai valer a pena, meu gato! -- respondeu sensualmente
--Sempre vale! -- puxou-a para um beijo
--Não... -- começou a chorar
--Ui! -- interrompeu o beijo com falta de ar -- Me leva daqui? -- pediu fazendo um charme
--Só se for agora! -- correu até o carro e abriu a porta -- Vem, gostosa! -- chamou
Raquel não queria acreditar no que seus olhos viam.
Fagundes fechou a porta do carro quando a jovem se acomodou e só então percebeu quem estava ali. -- Puta que pariu! -- resmungou entre dentes
Sem dizer uma palavra, Raquel deu meia volta e se apressou para sair dali. Não conseguia pensar e mal discernia as imagens diante de si. Queria sumir.
Ouviu um ronco de motor e não sabia se seria do carro do homem por quem se apaixonou. Tinha certeza de que ele não viria atrás dela, mas começou a correr como se estivesse fugindo. Lágrimas embaçavam seus olhos e a dor da traição maltratava seu coração iludido.
CAPÍTULO 143 – Estratégias
--Só se eu fizer desse jeito... -- Zinara planejava -- Aí a gente pode considerar essa possibilidade também... -- coçou a cabeça -- Ou então se Sahar achar que vale mais a pena fazer assim... -- analisava outra solução -- Mas olha que desse jeito também dá, viu? -- falava consigo mesma -- Jayed jedan! (Muito bom!)
E de repente uma mensagem pipoca no Êmail da morena.
--Ih, é Regina! -- sorriu -- Há quanto tempo! -- preparou-se para teclar
Zina: Oi, amiguitha! Há quanto tempo! Saudades!!!
Zina: ;)
Zina: Tudo bem?
Regi: Eu vou bem, mas vamos combinar...
Regi: Você adora desaparecer, né?
Regi: Se eu não te procurar... :(
Zina: Ei, não diz isso! Quando eu voltei de viagem te procurei!
Regi: É verdade...
Regi: Drama básico! Kkkk
Regi: E então? Como vai a vida? E o seu amor?
Regi: Eu e minha amada estamos no maior love!
Regi: Bodas de brownie!
Zina: Eita!
Zina: Essas bodas devem ser daquelas! Kkkk
Regi: Mas fala, Zinarinha! Como vai sua pesquisadora preferida?
Zina: Zangada comigo...
Zina: :(
Regi: E o que você aprontou dessa vez??
Zina: Uai! E por que tem que ser eu a ter aprontado??
Regi: Porque você só faz besteira!!!!
--É mole? -- achou graça -- Ainda tenho que ler isso!
Zina: Eu não fiz besteira!
Zina: Ou fiz, sei lá...
Zina: Ela quer que eu arrume a vida pra casar e quer isso pra ontem!
Zina: Estou aqui bolando uma estratégia pra ver como sair desse impasse!
Regi: Estratégia?!
Regi: Não me diga que tá fazendo um modelo matemático pra decidir o que fazer?
--Como é que ela sabe? -- ficou surpresa
Zina: Clarice e eu vivemos em cidades distintas, temos nosso trabalho, ela tem a maama dela pra cuidar...
Zina: Tem que decidir com critério, né?
Regi: Eu hein!
Regi: Se fosse eu comprava logo uma cobertura básica em São Sebastião e resolvia o problema.
Regi: Passava a semana trabalhando e no weekend viajava pra lá pra descontrair com a amada
Regi: Ou então mandava Luigi trazê-la pra me ver em Cidade Restinga
Zina: Luigi?!
Regi: O piloto do meu jatinho
Zina: Ah, tá... kkkkk
Zina: Mulher, agora sou eu quem digo: Se liga, ow!
Zina: Sou professora, viu, fi? Dá pra fazer essas extravagâncias, não!
Regi: Posso mandar Luigi te levar pra São Sebastião na sexta, você quer?
Regi: Aí passava o final de semana com Clarice e mostrava tua equação pra ela
Regi: E otras cositas más! Kkkk
--Smallah! Como é que pode ser tão rica? -- estava pasma -- Ave Maria!
Zina: Não posso aceitar, mas te agradeço de coração!
Regi: Não pode por que? Luigi levou Dalvinha pra Cidade Restinga, então o jatinho tá aí mesmo.
Regi: É que a família da coitada mora aí e mãe dela tá tendo uns probleminhas, sabe?
Regi: Você sabe como sou coração mole... E Dalvinha é uma governanta tão boa...
Zina: kkkkk Eu entendo, mas não sou exploradora de amigas milionárias!
Regi: Ow, se liga, mulher! Eu não vou esquecer a força que me deu no momento mais difícil da minha vida!
Regi: E graças a você conheci minha alma gêmea!!!
Regi: Te dou uma ajuda sem pestanejar!
Zina: Você não me deve nada. E falando assim me deixa muito sem graça...
Regi: Humpf!
Regi: Tá decidido! Sexta-feira Luigi te pega no aeroporto da Cidade
Regi: Vê se vai trabalhar levando mala e pelo amor de Deus saia cedo daquela faculdade
Regi: Voar de noite é coisa séria!
Não sabia o que dizer.
Zina: Eu nem sei o que escrever agora...
Regi: Você é muito inteligente, muito viva, mas tem horas que a leseira toma conta!
Regi: Vai pra São Sebastião sem avisar, chega de noite e pega Clarice de jeito!
Regi: Não há mau humor que uma boa noite de love intenso não cure!
Zina: kkkk
Regi: É sim meu bem! Vai por mim que eu sei dessas coisas!
A astrônoma sentia-se como criança à espera do Bom Velhinho.
Regi: Você volta pra casa no domingo à noite
Regi: Te dou milhas!
Regi: Tenho 15000 milhas a expirar, então tem que gastar!
Zina: Eita, que eu tô me sentindo pinto no lixo!!!
Zina: Vou falar com a doktuur pra me passar remédio contra enjôo!
Zina: Meu tratamento tem gerado um certo desconforto
Regi: Toma remédio e vai!
Regi: O importante é ser feliz e deixar a curnicha piar com raça!
Regi: kkkkkkkkkkkkkk
Riu com vontade. -- Ai, ai... Essa amizade tem feito mal a essa mulher! -- sorria -- Ela já tá falando besteira igual a mim!
***
--Tô tão preocupada com Raquel, mamãe... -- Clarice comentava com a idosa -- Queria que ela tivesse dormido aqui... -- cruzou as pernas -- Desde que soube da traição daquele homem, só vive chorando...
--Sua irmã procurou chifre em cabeça de burro e achou! -- balançou a cabeça -- Eu sabia que isso ia acontecer, era só uma questão de tempo! -- fez um bico -- Uma praga de um cigano que nunca nem veio aqui pra conhecer a gente não podia tá com intenção boa!
--Que bom que ela tem Deodoro pra se distrair... -- mexia na almofada
--Já entreguei ela a Deus e tenho fé. -- olhou para cima -- Essa tristeza vai passar e ela vai esquecer daquele cigano pornô!
--Cigano pornô! -- achou graça -- Ai, mamãe, suas filhas nasceram pra sofrer por amor... -- suspirou -- Pelo menos Cecília tá bem...
--E tomara que assim continue! -- desejou -- Doida! Vai pra Cidade Restinga de mala e cuia atrás daquele macho! -- resmungou -- Eu só tive filha maluca, não sei a quem puxaram! -- comentava intrigada
Riu brevemente. -- Ah, é... A quem será? -- brincou
--Sabe qual é meu medo? -- Leda ajeitou-se no sofá -- Que Cecília se decepcione com o cabra do nordeste e que Raquel caia na lábia do cigano pornô quando procurar por ela com conversinha mole! -- postou as mãos para cima -- Que Deus ouça essa velha sem vergonha e proteja minhas meninas de mais sofrimento por causa de macho!
--Se Deus quiser! -- desejou também -- Minhas irmãs são muito ingênuas...
Achou graça. -- Ah, essa é boa! E você não é, menina? -- cruzou os braços -- Lembro bem na época da estupradora da terceira idade como você era espertinha! -- comentou ironicamente
--Aquele tempo já passou, mamãe! -- cruzou as pernas e fez um bico -- Vê Zinara, por exemplo! Levo ela na rédea curta!
--Sei... -- respondeu descrente -- Aposto que se ela aparecesse por aqui em dois tempos você esquecia dessa birra que armou com ela!
--Que nada! -- afirmou convicta -- Se Zinara aparecesse eu dava uma dura nela pra deixar de ser a caipira safada que é!
--Eu sei bem o que você dava... -- resmungou desacreditando
--Ô, de casa!! -- alguém chamou batendo palmas -- Ô, de casa! Tem pão duro?
--Meu Deus!! -- Clarice arregalou os olhos -- Será?? -- levantou-se de um pulo e correu para a janela
--Acho que é pra você... -- Leda comentou divertida
--Ai, eu não acredito!! -- deu dois pulinhos e correu para abrir a porta
--É hoje... -- a idosa se levantou também
--Masaa Il-kheer, Sahar! (Boa tarde, Amanhecer!) -- cumprimentou sorridente ao ver a amada -- Desculpe a hora, mas eu precisava te ver... -- falava com humildade
Tentava disfarçar a alegria contendo suas reações para não deixar a namorada perceber. -- Eu não esperava por isso! -- caminhou em direção ao portão -- Algum congresso na cidade? -- abriu o portão e olhou para a morena
Leda foi para a janela e ficou espiando discretamente. “Quero só ver Clarice dando uma de durona!” -- pensou com vontade de rir
--Eu sei que te decepciono e sei que faço isso há muito tempo... -- aproximou-se um pouco mais -- Mas não duvide de meu amor por você! -- pediu com voz gutural -- Nunca duvide, mesmo que eu não corresponda as suas expectativas imediatas. -- olhava nos olhos -- Posso ser uma caipira medrosa, enrolada, atrapalhada e doida, mas sou toda sua, de corpo e alma! -- tirou a mochila das costas e jogou-a no chão do quintal
--Ai... -- suspirou melosa, mas se recompôs rapidamente -- Não vamos ficar conversando aqui no quintal! -- passou a mão nos cabelos e fechou o portão -- Tira essa mochila do chão e vem. -- preparou-se para entrar
--Clarice fazendo tipo de durona não convence ninguém! -- fez um bico -- Eu não sei a quem essas meninas puxaram!
Correu até a namorada e segurou-a delicadamente pelo braço. -- Behebbik ya, Sahar! (Eu te amo, Amanhecer!) -- afirmou com verdade -- Não pode sequer pensar em duvidar disso! -- falava com voz gutural
--Zinara... -- olhou para a astrônoma sem saber o que fazer
--Ana aktar wahed! (Eu sou aquela que mais te ama!) -- tocou o rosto dela com uma das mãos -- Yali maleat aayamee hana, ya habibi! (Você enche meus dias de felicidade, minha querida!) -- queria mais uma vez convencê-la de seu amor -- Mihtagalik, ya gamil! (Preciso de você, minha linda!) -- olhava nos olhos
-Ai, amor... -- respondeu embevecida
--Hum... -- Leda só prestava atenção -- Já empinou a rabichola... -- reparava -- E Zinara tá com aquela cara de quem tá pronta pra dar o bote!
--Beashwaee mistaneek! (Quero você com paixão!) -- não desviava o olhar
--A caipira tá pegando pesado! -- a idosa fofocava com gosto -- O que tá dizendo eu não sei, mas Clarice tá no papo!
A paleoceanógrafa balançou a cabeça como se quisesse despertar de um transe e se afastou um pouco. -- Você gosta de me seduzir com romantismo e essas palavras melosas, mas na hora do vamos ver fica de enrolação! -- reclamou -- Por quantos anos vai deixar que nossa situação continue como está? -- cobrou uma atitude -- Eu quero compromisso, Zinara, não quero um eterno casinho! -- cruzou os braços -- Eu quero casar!
--Quero só ver a caipira... -- Leda aguardava a reação
--Nunca poderemos ter apenas um caso, porque eu me casei com você desde o dia em que te vi, Sahar! -- respondeu de pronto -- Faço parte de você e você de mim! -- aproximou-se mais uma vez -- Falta apenas juntar a matéria, porque as almas já estão juntas! -- olhava nos olhos -- Tool omri... (Por toda vida...) -- sussurrou
Sem poder mais se conter, Clarice atirou-se nos braços da amada e aproveitou a escuridão do quintal mal iluminado para beijá-la com paixão.
--Eita! -- a idosa levou um susto e saiu da janela -- Cuidado aí, minha gente! -- advertiu em voz mais alta -- E nada de acasalamento no meu quintal! -- preveniu -- Ai, ai, ai!
As namoradas interromperam o beijo e riram do que acabaram de ouvir.
--Vamos conversar, Sahar, tentar chegar num denominador comum. -- propôs -- Eu não aguento ter você zangada ou decepcionada comigo!
--Pega essa mochila e entra, por favor. -- convidou -- Temos muito que conversar...
"Oh, Aba, ajude, por piedade!" -- pediu mentalmente -- "Que Sahar continue tendo paciência comigo..." -- desejou
Fim do capítulo
Música do Capítulo:
[a] Paroles, Paroles. Intérpretes: Dalida ft Alain Delon. Compositores: Gianni Ferrio / Michaële. In: Paroles, Paroles. Intérpretes: Dalida ft Alain Delon. International Shows, 1973. 1 disco vinil, lado A, faixa 1 (4min05)
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Samirao
Em: 12/10/2023
Eu adoro os passeios no tempo e espaço vc tem essa mania né ? Huahuahua
Solitudine
Em: 11/11/2023
Autora da história
Pois é! Tem que ter atenção! rs
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Femines666
Em: 18/03/2023
Esses mergulhos no passado da Zinara são incríveis. Agora vamos para o outro lado do mundo Sabe que Cátia e Jamila são muito tudo a ver kkk
Solitudine
Em: 19/03/2023
Autora da história
Olá querida!
Sim, sigamos nesta viagem junto com Zinara!
Cátia e Jamila tudo a ver Também acho! rs
Beijos,
Sol
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Seyyed
Em: 25/09/2022
Cararra ser professora é muito foda! Admiração total pela Zi! E vem aí um ano inteiro de Cátia e Jamila nos states... e uma não conhece a outra puta que pariu hehe Marco tá apaixonado puta merda E o ogro se ferrou mas Raquel também Ô dedo podre! Não quero Leda em asilo!!
Porra Clarice! Ela dá umas crises de criancice que puta merda! E a ruiva hein? Essa era outra criançona uma Isa sem noção. Deu pena da Zi sofrendo pelo fim e metendo a cara nos estudos pra não se sentir abandonada. A história com a bailarina foi bonita pena que Emille jogou tudo fora só por ambição. Mas tô curiosa pra saber dos detalhes em Ganaraja e como foi isso de um doutorado em 3 continentes. Zi é super master foda! Phoda! Hahaha
Resposta do autor:
Então você admira a profissão? A categoria agradece! rs
Cátia e Jamila se conhecem mais do que imaginam! kkk
Calma, menina, tudo vai se resolvendo. Confia na caipira.
Essa história que se desenrola no doutorado de Zinara é realmente ímpar e marcante. Adoro! rs
Zinara te agradece!
Beijos,
Sol
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Zaha
Em: 22/01/2018
Falta pouco pra chegar no último capítulo que vc atualizou no ano sei lá quanto kkkk.
Eu tentei, sadikii, tentei de verdade, mas depende de algo externo, fiz o que podia, mas não rolou..meu plano falhou...eu tava tão esperançosa que ia dar certo, mas o que tiver q vim virá....( Ta perguntando o q é! Vai ficar sem saber kkkkkk
Mas vou mandar toda a boa vibe pra vc transformar esses momentos em uma grande inspiração, deixando seu coração como sempre faz...uma parte de vc!! Mas, umas coisa que sei por experiência, é que a motivação não vem, se busca...mas esperarei o tempo que for pq essa estória é uma das mais lindas que vi, a que mais chorei e a que mais ri!!! Cada palavra q vc escreve, é MT engraçado!!!
É isso, fica bem , por favor, se cuida e se alimente bem..na comilança!! Rs
Beijoss, Sadikii!!!
PS: cê adora uma bailarina ruiva.. kkkk
Resposta do autor:
Olá querida,
Eu não entendi o que não deu certo, talvez o plano de leitura e análise que vinha fazendo, mas não vou me arriscar a descobrir, pois decerto falharei. Seja como for, saber que a história foi a que mais mexeu com você, mexe comigo!
Com certeza, não tenho problema com comida! kkk
Quanto à bailarina ruiva, nada é sem razão. E sim, eu adoro!
Beijos!
Sol
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Solitudine Autora da história
Em: 01/03/2021
Gabinha, o corretor aleijou minha resposta. Espero que entenda as mensagens caipirescas e caipirices ainda assim.
Beijos!
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Gabi2020
Em: 27/05/2020
Olá Solzinha tudo bem?
Eleições de 2014 foi fichinha perto do que foi a última, só de lembrar deu arrepio. Lembro de parentes que até hoje não se falam por conta disso. Mas apesar de tudo, aquela eleição pra mim não teve o baixo nível da última, não tinha essa fábrica de fake News pra começar!
Sarrá? Foi uma bela oportunidade de Zinara recomeçar a vida dela falando sobre Clarice, mas cada um tem o seu tempo e o tempo dela ainda não chegou.
“É isso, Kitaabii. Gosto de semear e professores nada mais são que semeadores de sonhos.
Mesmo que a semeadura seja pesada demais e quase nunca devidamente reconhecida...”
Lindo isso! Já falei e repito queria ter uma professora como Zinara, gosto da didática dela, do jeito que explica...
Professores pra mim são grandes inspirações, me sinto lisonjeada em trabalhar rodeadas deles.
“Ele é o sujeito e o verbo de uma grande obra na busca do saber. Na matemática de vida, nos ensina a somar com os outros, multiplicar o conhecimento e mostrar que às vezes dividir também é uma ótima solução. Que é preciso misturar as fórmulas e combinar tudo.
Ser professor não é só dar aulas, mas ensinar a procurar respostas. É pelas mãos desse profissional que se formam bons cidadãos, desenvolve uma cidade, um estado e um país.”
Voltando ao capítulo...
Precisou o Deodoro falar umas verdades pro ogro cair na realidade.
Isso que é amor do Marco com a Najla.
Dona Leda pesquisando asilos... Ô tadinha!
Enquanto isso Clarice dá uma surtada básica por causa do passado de Zinara e lá vamos nós de volta à sexta série.
Gente a bailarina suja fazia chantagem emocional, que feio!!
E Cláudia tem razão, Zinara sempre foi uma bicha doida! Kkkkkk....
Cátia e Jamila, acho que não precisam mais de acentos extras para os egos mais.
Ai Clarice tá muito sexta série! Chaaaataaaaaa..
“--Hum... a lambição vive momentos de ‘vamos discutir a relação’... -- Leda continuava resmungando – “ Kkkkkkkk....
É o cigano mostrou quem ele é de verdade, difícil pra Raquel sai um ogro e vem um cigano mentiroso.
Regina coberta de razão sempre! Kkkkkk.... Essas caipiras somem e nem ligam pras amigas e sem contar que vivem se metendo em confusão! Ai Regina te venero... Kkkkkk....
“Regi: Você é muito inteligente, muito viva, mas tem horas que a leseira toma conta!” Kkkkkkkk.....
A riqueza de Regina me impressiona!! Cobertura, jatinho, empregados! Gente essa mulher trabalha com que?
Vai Sahar tenha paciência!!!
Beijos querida!
Resposta do autor:
Gabinha, aqui as eleições de 2014 (embora menos baixaria que as de 2018) foram uma tristeza!! Nesta vizinhança minha pensei que fosse ter até assassinatos. Povo radical!
Zinara e Clarice ainda tentam esconder o que existe entre elas e se perdem nestas horas. Ao mesmo tempo Clarice quer casar e não pensa muito no como fazer. E nessa hora a caipira andou de! kkk
O trabalho de professor (a) é muito bonito e romântico mas cada vez mais difícil de ser exercido. Em todos os níveis. E os professores se aposentar, ou morrem, sem que seu conhecimento seja transmitido para a sucessão porque não tem sucessão. Vira e mexe recebo um email de condolências de alguém que morreu na Universidade. E a COVID já fez suas vítimas...
Regina se baseia numa amiga minha. Desconfia de quem seja não? kkk
Beijos,
Sol
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Sem cadastro
Em: 22/01/2018
Falta pouco pra chegar no último capítulo que vc atualizou no ano sei lá quanto kkkk.
Eu tentei, sadikii, tentei de verdade, mas depende de algo externo, fiz o que podia, mas não rolou..meu plano falhou...eu tava tão esperançosa que ia dar certo, mas o que tiver q vim virá....( Ta perguntando o q é! Vai ficar sem saber kkkkkk
Mas vou mandar toda a boa vibe pra vc transformar esses momentos em uma grande inspiração, deixando seu coração como sempre faz...uma parte de vc!! Mas, umas coisa que sei por experiência, é que a motivação não vem, se busca...mas esperarei o tempo que for pq essa estória é uma das mais lindas que vi, a que mais chorei e a que mais ri!!! Cada palavra q vc escreve, é MT engraçado!!!
É isso, fica bem , por favor, se cuida e se alimente bem..na comilança!! Rs
Beijoss, Sadikii!!!
PS: cê adora uma bailarina ruiva.. kkkk
Resposta do autor:
Olá querida,
Eu não entendi o que não deu certo, talvez o plano de leitura e análise que vinha fazendo, mas não vou me arriscar a descobrir, pois decerto falharei. Seja como for, saber que a história foi a que mais mexeu com você, mexe comigo!
Com certeza, não tenho problema com comida! kkk
Quanto à bailarina ruiva, nada é sem razão. E sim, eu adoro!
Beijos!
Sol
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Solitudine Em: 11/11/2023 Autora da história
E você tirou de implicar, Ave Maria! rs