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EM BUSCA DO TAO por Solitudine

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Palavras: 16123
Acessos: 10415   |  Postado em: 02/01/2018

UMA HISTÓRIA DENTRO DA OUTRA

 

 

CAPÍTULO 36 – Conversas

 

Zinara entrava na casa de Salete.

 

--Quem tá chegando, mãe? -- uma garota loura, aparentando uns sete anos, se aproximava

 

“Elas são todas parecidas: mãe, filha e neta!” -- pensou surpreendida -- Oi, amiguinha! -- saudou sorridente

 

--Oi. -- respondeu desconfiada

 

--Essa moça é uma conhecida da mamãe. -- beijou a testa da menina -- Agora vá e não se atrase! Tia Adalgiza não pode ficar te esperando. -- olhou para a filha -- Presta atenção e nada de bagunça! -- recomendou

 

--Tá. -- balançou a cabeça concordando -- Tchau, mãe! Tchau, moça! -- acenou para as duas

 

--Tchau, querida! -- responderam ao mesmo tempo -- Vá orando! -- Salete recomendou

 

--Qual o nome da sua filha? -- perguntou quando a menina saiu

 

--Lis. É a flor consagrada ao Senhor. -- sentou-se -- Por favor. -- indicou o sofá e Zinara se sentou também -- Ela vai pra escolinha das crianças de Deus. -- cruzou as pernas -- Somos cristãs e frequentamos a igreja religiosamente.

 

“Quem diria!” -- pensou impressionada -- Bem, Salete, eu vou direto ao assunto. -- cruzou as pernas também -- Eu tô muito doente e talvez não viva tanto tempo quanto gostaria... -- olhava para a mulher -- Quando a gente se vê nessa situação, pára pra pensar na vida e em um monte de coisas... e nisso me lembrei muito de você. -- Salete a olhava desconfiada -- Sabe que o sonho de sua mãe, o que ela mais queria, além de te ver feliz e com saúde...

 

--Minha mãe me trocou por você! -- interrompeu-a bruscamente -- Ela não tinha sonhos pra mim! -- seu tom era cheio de mágoa -- E se algum dia teve, esqueceu por sua causa!

 

--Não diga isso! -- pediu descruzando as pernas -- Sua mãe te amava demais! Ela nunca te trocou por ninguém! -- apoiou os cotovelos nas pernas e reclinou o tronco -- Hoje você é cristã, então há de reconhecer que naquela época você era uma jovem muito difícil! -- afirmou sem rodeios -- E há de reconhecer que foi você quem quis sair da vida dela!

 

--Porque não queria ser filha de uma aberração! -- justificou-se de cara feia -- Primeiro sofri o trauma da traição do meu pai e depois descubro que minha mãe era uma... -- não conseguiu dizer

 

--Lésbica? Bissexual? -- balançou a cabeça negativamente -- Não busque um rótulo pra ela! Era sua mãe, maravilhosa mãe, e ponto!

 

--Fácil pra você dizer! -- respondeu com desprezo -- Você só chegou na vida dela pra destruir! Você e a amante do meu pai! -- deu um soco no braço da poltrona -- Tá amarrado!

 

A morena deu um suspiro profundo. -- Sua mãe te amava profundamente e se você refletir um pouquinho vai perceber isso. -- falava com calma -- O sonho dela, além de te ver feliz, era que você e seu pai se reconciliassem!

 

Salete riu gostosamente. -- Acha que virou uma santa milagreira porque vai morrer? -- perguntou com deboche -- Arrependa-se dos seus pecados e saia dessa vida de depravação! -- falou como se estivesse pregando

 

--Você já fez o que me recomenda? -- perguntou de pronto -- Não te noto arrependida pelos seus!

 

--A Bíblia diz que... -- levantou o tom de voz

 

--Honrarás a pai e mãe! -- interrompeu-a no mesmo tom -- Perdoarás setenta vezes sete vezes e não julgarás! -- complementou

 

--Não venha querer me dar lições! -- levantou-se contrariada e andou até a janela

 

--Salete, me escuta! -- levantou-se também -- Eu não vim aqui pra brigar com você e nem falar do passado! -- aproximou-se receosa -- O que eu queria era ajudar a concretizar o sonho da sua mãe e dizer que eu... Eu não quero mais qualquer mágoa no meu coração e desejo o seu bem de verdade! -- estava sendo sincera

 

--E eu tô bem, né? -- olhou de cara feia para a professora -- Olha só onde eu moro! -- abriu os braços e mostrou a casa -- Depois que minha tia morreu, meus primos me enxotaram da casa dela e eu tive que me virar como pude!

 

“Exatamente como você fez comigo quando sua mãe morreu...” -- pensou em dizer mas permaneceu calada

 

--Mas Deus proverá! Confio no Onipotente! -- olhou para o céu e ergueu as mãos -- De mais a mais, -- cruzou os braços e olhou novamente para a astrônoma -- nem sei o que se deu de meu pai.

 

--Tenho pessoas queridas que moram em Gyn, -- pensava em Aisha e Janaína -- e pedi pra que me ajudassem a encontrar seu pai. -- pausou brevemente -- Uma delas o encontrou. Foi no final de maio...

 

Surpreendeu-se. -- E você foi lá conversar com ele? -- achou graça -- Que situação!

 

--Minha amiga Janaína foi. -- pausou brevemente -- Ele deu o telefone a ela e eu liguei.

 

--E o que disse? -- perguntou curiosa

 

--Que sua mãe e eu fomos grandes amigas e eu queria ajudá-la a realizar um sonho antigo, agora que tenho condições pra isso.

 

--Amiga?! -- riu e balançou a cabeça negativamente -- Só mentiras... Queima, Senhor! -- olhou para o céu -- Que a língua de fogo do Espírito Santo corte esse mal!

 

--Ele disse que se arrependeu muito por tudo e sonha ardentemente em te reencontrar. -- ignorou o comentário da mulher -- Disse que te procura há alguns anos e que recebeu a informação de que você moraria em São Sebastião; só não sabia onde.

 

--E como você me achou afinal? -- perguntou intrigada

 

--Sua mãe me disse em sonho na semana passada. -- respondeu naturalmente

 

--O que??? -- ficou furiosa -- Além de tudo você ainda vem com mais essa? -- empurrou-a -- Os mortos não vêm em sonho! Eles dormem até o dia do Juízo!! Você repete coisas da doutrina de Satanás!!

 

--Calma! AHHa! -- surpreendeu-se com aquela reação

 

--Some da minha casa, enviada do Inimigo! -- berrava -- Queima, meu Pai! Tá amarrado! Sai, obreira das trevas, some da minha casa!!!!

 

--Minha nossa! -- foi até a porta e a abriu -- Cruz credo, ralã (expressão de desprezo)! -- praguejou e saiu da casa de Salete

 

--Não volte mais aqui, maldita!! -- seguia atrás gritando

 

--Ih, eu hein! -- abriu o portão e saiu

 

--Queima, Senhor! Incendeia!!! -- gritava

 

--Espero que pense no que falei! -- olhou para ela -- Você é do tipo que honra a Deus com os lábios mas mantém longe dEle o coração! -- afirmou enfática -- Só sabe condenar os outros e falar besteira! -- havia perdido a paciência

 

--Vai embora!!! Queima!!! Incendeia, Senhor!! -- gritava como louca -- Da minha boca, meu Pai, só sai palavra santa!!! Da minha boca, só sai palavra santa!

 

Zinara descia a rua ouvindo aqueles berros. Pessoas olhavam desconfiadas para ela.

 

--Da minha boca, só sai palavra santa!!! -- os berros pareciam ecoar por toda parte

 

--A pior coisa do mundo é gente fanática! -- reclamava sozinha -- Louca! Majnum! -- fazia cara feia

 

***

 

Clarice e Magali conversavam na sala da paleoceanógrafa.

 

--Nosso trabalho abalou o evento, só você vendo! -- comentava empolgada -- A sala ficou lotada e foi tanta pergunta ao final que me senti numa defesa de tese! -- riu brevemente -- E o congresso foi perfeito, tudo deu certo do início ao fim! Que orgulho que deu!

 

--Hum, mas isso é ótimo! -- sorriu -- E deu mais visibilidade pra você, né? Seja pelo impacto do trabalho, seja pelo fato de ter conhecido muita gente e ter sido conhecida!

 

--Ah, é! -- passou a mão nos cabelos -- Nós vamos agora tentar publicar na revista Nature Sciences ou na Water Plan. -- olhava para a amiga -- A que aceitar...

 

--Trabalho que desagrada gente grande sofre pra ser publicado, né, amiga?

 

--Pois é! -- fez um bico -- Zinara me advertiu quanto a isso.

 

--E falando nela... -- reclinou-se na mesa da outra -- Como foi lá entre vocês duas? -- perguntou cheia de assanhamento

 

--Pensei que não gostasse dela... -- estranhou a reação da outra

 

--Não acho que ela seja uma boa opção pra você, mas... -- falou mais baixo -- falou em sacanagem, tô querendo saber!

 

--Que é isso?? -- arregalou os olhos -- Eu não conhecia essa sua faceta, não!

 

--E nem vai conhecer porque não deixo minha faceta exposta pras amigas fuçarem. -- brincou e elas riram -- Agora pára de enrolação e me conta o que rolou em Paulicéia!

 

--Ah... -- sorriu mirando um ponto perdido -- A gente se conheceu no lobby do hotel, conversou... Ela é tão interessante, inteligente, culta, bonita... Tem um porte assim, um jeito... -- suspirou -- Ai, ai...

 

--E é boa de cama?

 

--Que é isso, mulher, que fogo! -- olhou indignada para a outra -- A gente não foi pra cama!

 

--Não? -- perguntou decepcionada -- Se eu já não entendia aquele doce que você fez com Cátia, faz idéia agora! Entendo menos ainda!

 

--Eu não faço doce! -- protestou -- Mas fazer amor com alguém é coisa muito séria, muito íntima! Já acho que fui precipitada em ter tido relação com Cátia...

 

--Pôxa! -- retrucou cruzando os braços -- Precipitada? Só se for comparando com as mulheres do século treze!

 

--Ah, Magali, é meu jeito! -- protestou -- E o de Zinara também! -- sorriu embevecida -- Ela é tão meiguinha... parece uma criança grande e levada...

 

--E ficou só nisso? Só na ciência e no papinho?

 

--Foi. -- respondeu simplesmente -- E eu adorei tudo! As conversas, os trabalhos, os carinhos simples e gentis que trocamos, o jantar maravilhoso que ela me deu... Amei!

 

--É... gosto é gosto... -- fez um bico -- Eu era mais pela torcida de Cátia, mas ela é safada pra caramba e aí não rola!

 

--Ah, minha filha, você não sabe! E Cátia não cismou e foi lá pra participar do evento?

 

--Mas como? -- não entendeu -- Ela cismou e foi sem se programar? E o trabalho aqui?

 

--Chutou o balde ou sei lá! Só sei que ela foi e nos infernizou o evento inteiro! Até no vôo de retorno pro Rio, veio chutando as costas do assento de Zinara! -- revirou os olhos

 

--Ei, peraí! -- sorriu empolgada -- Zinara veio pra cá, é? Pra ficar contigo?

 

--Não, ela veio pra resolver uns assuntos... -- ajeitou-se na cadeira -- Mas foi lá em casa almoçar com a gente e saiu comigo duas vezes.

 

--Foi almoçar na tua casa?? -- espantou-se -- E com dona Leda, como foi?

 

--Crivou ela de perguntas, mas no final adorou Zinara!

 

--Gente!! -- pôs a mão no peito -- Jura?

 

--Pois é! -- sorriu -- Mamãe disse que faz gosto na gente. E olha que foi a primeira vez que ouvi isso na vida toda!

 

--Caraca! Tô passada com isso! -- achou graça -- E nessas saídas, aí? Rolou o que? -- assanhou-se de novo

 

--Na primeira vez fomos no Museu de Arte e depois jantamos fora. E na segunda caminhamos até o pico maior da Floresta Urbana.

 

--Humpf! -- fez um bico

 

--E lá no cume a gente ficou e foi o máximo... -- suspirou

 

--Gente, vocês trans*ram no cume?? -- arregalou os olhos -- Teve medo de entrar bicho onde não devia, não? Vai que aparece um formigão, uma aranha, uma cobra...

 

--Mas hoje você tá demais, hein? -- acabou rindo -- A gente namorou um pouco, mas foram apenas beijos e abraços! -- esclareceu -- E nunca eu me senti daquele jeito com ninguém!

 

--Hum... melhor do que nada, né? -- comentou achando uma bobagem -- E cadê ela nesse momento? Já voltou pra casa? -- olhava para a morena -- Como fica a situação de vocês? Cátia já dançou, que eu sei, mas e aí?

 

--Ela ainda tá na cidade resolvendo as tais coisas que tem de resolver. -- explicou -- Zinara tá muito doente, Magali. Ela tem câncer e não acredita que viva por muito tempo...

 

--Ah, é? -- espantou-se -- Nossa!

 

--Acho que ela quer deixar a vida toda resolvida antes de morrer, não sei... -- comentou com pesar -- Mas me pediu pra esperá-la fazer isso. E eu vou esperar!

 

--Sério? -- não acreditou -- Clarice, por favor, pensa! Se ela ainda estiver viva depois de fazer o que planeja, esse relacionamento vai ser dificílimo! -- advertiu -- Cada uma numa cidade, e você já imaginou a barra de ter uma mulher morrendo dia a dia a seu lado?

 

--Já e tô disposta a passar pelo que for! -- respondeu convicta -- E além do mais, quem disse que será assim?

 

Sorriu balançando a cabeça. -- Você não deixa de ser sonhadora, né?

 

--Nunca! -- sorriu pensativa -- E por um amor verdadeiro, eu tô disposta a ir até o fim!

 

--Pôxa... enquanto isso, na minha horta não aparece nada! -- resmungou -- Nem quem queira ir até o meio... faz idéia o fim...

 

***

 

Siriema: E intão? Cabô qui a sinhora num mi dissi.

Siriema: E a muié?

DonaBord: Ih, minha filha, deixa eu te contar! Eu gostei dela!

Siriema: É?

Siriema: Num é pistolêra e nem marvada?

DonaBord: Não! É mansa!

DonaBord: Boazinha e boba que nem minha filha!

Siriema: kkkkk

DonaBord: kkkk

DonaBord: Eu faço gosto!

DonaBord: Mas tem um problema muito sério!

Siriema: Qual?

DonaBord: Ela tá muito doente...

Siriema: Puxa...

DonaBord: Reza por ela? Não queria que a bichinha morresse...

Siriema: Oxi, claru qui rezu!

Siriema: Eu num sei o nomi dela, mas dêxo nas mão da Virgi!

DonaBord: Obrigada, querida!

 

--Mamãe, com quem a senhora tanto conversa na internet? -- Cecília perguntou intrigada -- Não me diga que arrumou namorado? -- brincou com ela

 

--Que namorado, menina? -- olhou para a filha -- É minha amiga Siriema Flor. A gente conversa muito!

 

Achou graça. -- E quem é essa? Qual é o nome dela?

 

--Sei não. -- respondeu enquanto teclava

 

--Onde ela mora?

 

--Sei não. -- continuava teclando

 

--E faz o que da vida? -- continuava curiosa

 

--Ih, menina, que tanta pergunta! -- ralhou -- Eu não fico entrando nesses assuntos, não! -- olhou para a tela procurando algo -- Ei, como que eu faço pra colocar aquelas carinhas bonitinhas?

 

--Aqui, olha! -- foi mostrar -- Mas, mamãe, como pode ser amiga de alguém de quem nada se sabe? E se for uma safada, bandida ou psicopata? Pode até ser um homem! -- estava preocupada

 

--Eu sei que não é o caso, além do mais ela não sabe nada meu também. -- clicou em uma carinha -- Fique despreocupada porque tô atenta! -- olhou para a filha -- Eu sou velha, mas tô antenada, menina! Não cheguei nessa idade comendo mosca!

 

--É mole? -- beijou a cabeça da mãe

 

DonaBord: Minha outra filha achando aqui que sou pomba lesa!

DonaBord: Essas meninas nos menosprezam!

Siriema: É iguár o povu qui pensa qui caipira é tudu trôxa!

Siriema: Nóis rodopeia

Siriema: mais num freia!

 

--Gostei disso aí! -- Leda falou -- Vou adotar esse slogan adaptado!

 

--Que slogan, mamãe? -- Cecília perguntou sem entender

 

--Terceira idade rodopeia, mas não freia! -- balançou a cabeça -- Vou até escrever na minha frase do dia!

 

--A internet na mão dessas velhinhas é um perigo! -- brincou

 

CAPÍTULO 37 – O Dia em Que Eu Saí de Casa

 

Zinara estava no quarto da pousada com seu laptop. Havia decidido que retornaria a escrever sobre sua história, coisa que, ao longo dos anos, fazia esporadicamente.

 

O reencontro com Salete havia despertado memórias de tempos passados e os fatos da época em que conheceu a mulher que foi a primeira de sua vida mostravam-se nítidos em sua mente.

 

Digitando em seu ritmo cadenciado, voltava para o ano de 1994.

 

“Eu terminaria o supletivo naquele ano e andava angustiada quanto ao que fazer depois. Youssef já havia partido e Khaled se distanciava de mim cada vez mais. Não me dava bem com Ahmed que, embora fosse apenas uma criança de 8 anos, era absolutamente intragável. Nagibe e Cid eram bem melhores, gostava deles, mas havia uma barreira, talvez imposta por baba, talvez imposta por mim mesma, nunca soube. E falando em baba, as discussões entre nós tornavam-se frequentes. Enquanto isso, maama não me parecia se importar muito comigo; pena que demorei tantos anos a perceber que estava enganada quanto a ela.

 

A vida na roça tem a sua beleza, mas eu queria mais. Eu queria aprender, estudar, conhecer o mundo, fazer muitas coisas e sabia que se permanecesse ali, nunca realizaria estes sonhos. Precisava partir.

 

Em conversa com ya Tereza, ela me falou que na cidade existiam escolas técnicas nas quais o aluno fazia o segundo grau e saía com uma profissão. Isso me interessou de uma forma tal que não conseguia pensar em outra coisa, mas os obstáculos eram imensos. Como viver em Gyn? Onde e com que dinheiro? Como conseguir a aprovação de usritii (minha família)? Nunca morei em cidade grande, será que eu daria conta? E, para começo de conversa, como passar no exame de seleção de uma escola dessas se eu nem tinha como me inscrever?

 

Pedi a Deus que me orientasse, que me desse uma luz e um dia aconteceu...”

 

--Zinara?

 

--Ya Tereza! -- sorriu para ela -- Qui deseja? -- interrompeu seu serviço. Estava limpando as vidraças

 

--Tome. -- estendeu-lhe um pedaço de papel

 

--Uai. -- secou as mãos e se aproximou da mulher para receber -- O qui é?

 

--Veja. -- sorria

 

A morena ficou boquiaberta e não conseguiu falar uma palavra.

 

--Inscrevi ocê na prova da escola técnica federal de Gyn. -- falava naturalmente -- Depois que li os resumo explicativo de cada curso delis achei que química era mais a sua cara.

 

--Ya Tereza... -- sentiu o coração disparar e se emocionou -- Obrigada! Qui maravilha!!

 

--Ocê mudou a vida de minha filha. Era o mínimo que eu podia fazer.

 

--Nossa, eu... Ave Maria, é uma emoção qui chega dói! -- estava nervosa -- Mas como qui eu vô pra lá modi fazê essa prova?

 

--É só em novembro, menina, inté lá tem tempo. -- tranquilizou-a -- Estude, que na hora certa dá-se um jeito. -- aproximou-se da moça -- Mas fique quéta! Esse é nosso segredo! -- falou mais baixo, piscou para ela e foi embora

 

--Oh, Aba! -- olhou para cima -- Deus é grande! Akbar, akbar! (Grande, grande!)

 

“Estudei como pude, corri atrás de livros e lia qualquer jornal ou pedaço de papel que me aparecia pela frente. Sabia que concorria com jovens muito mais preparados que eu, mas não podia desistir sem tentar de verdade.

 

Ya Tereza andava pensando em voltar para a cidade grande e buscava viabilizar isso. Em novembro, estrategicamente, decidiu fazer uma visita à filha mais velha e pediu a baba autorização para me levar junto. Ele não pôde negar, uma vez que devíamos favor a ela, e foi assim que pude fazer a prova. Viajamos dois dias antes do exame e fiquei fascinada com Gyn. Nunca havia estado em uma cidade como aquela e me vi diante de um mundo novo e assustador.

 

Fomos bem recebidas pela filha mais velha de ya Tereza, que se chamava Ana, e no dia da prova elas me levaram para o local. Não fiquei nervosa e respondi a todas as questões. Ainda havia uma segunda fase e, se passasse naquela primeira, teria de fazer uma prova extra de matemática e uma redação.

 

No dia seguinte voltamos para a roça e meu coração estava cheio de esperança. Baba brigava comigo todos os dias, acreditando que era por causa de um rapaz que eu devia andar tão eufórica.

 

Ya Tereza e a filha especial mudaram-se para Gyn depois do natal e ganhamos a casa delas de presente. Imagina como pode ser isso, Kitaabii (Meu Livro)! Naquele dia prometi que no futuro, quando eu fosse alguém na vida, daria uma casa a alguém.

 

Nossa benfeitora partiu com a promessa de que acompanharia os resultados do concurso e que se eu passasse para a segunda fase, voltaria para me buscar.

 

E eu passei, Kitaabii!! Ya Tereza voltou para me buscar, fiz a segunda prova e novamente passei. Lembro bem que tirei dez na redação!

 

Mas, tudo tem um preço. Por causa dessa conquista, meus problemas aumentaram enormemente.

 

Às vezes ainda me questiono até que ponto fui certa ou errada...”

 

Khaled havia acabado de limpar o chiqueiro e juntava a comida que seria dada aos porcos.

 

--Sempre mi impressionô o teu carinho com os animais. -- Zinara comentou delicadamente

 

--Os bichu é meus amigu. -- respondeu sem olhar para a irmã

 

--Não só eles. -- aproximou-se encostando-se no cercado -- Mas às vezes mi pareci qui ocê num vê isso.

 

Ele nada respondeu.

 

--Sabi qui eu passei no concurso da escola técnica, num sabe? -- ele permaneceu mudo -- As aula começa em março.

 

--Inda é feverêru. -- pegou o balde com a comida e começou a despejá-la para os animais

 

--E eu vô imbora no finar desse mês...

 

--Baba já dexô? -- continuava trabalhando sem olhar para a moça

 

--Ya Tereza pediu a ele, Khaled. -- respondeu prestando atenção nas reações do rapaz -- Num acredito que vá mi proibí.

 

--Ocê si aproveita qui nóis devi favô a ela, modi forçá baba a fazê o qui ocê qué. -- retrucou

 

--Acha isso? -- perguntou com um pouco de mágoa -- Além do mais eu num vô pra bagunça, vô estudá!

 

--Ocê é muié! -- olhou para ela de cara feia -- Num era pra sê assim, querendu saí di casa e ganhá o mundu! -- terminou de despejar a comida -- Si eu tivessi qui dá permissão...

 

--Eu sô maior de idade e mais velha qui ocê! -- interrompeu-o com firmeza -- Se baba num vai mi prendê aqui, num vai sê ocê a fazê isso!

 

--Agora é assim? -- aproximou-se do cercado -- Ocê num respeita mais a famia?

 

Zinara sentiu um pouco de vergonha ao ouvir aquela pergunta. -- Vô estudá pra mudá de vida! Pra construí um futuro melhó!

 

--Ocê vai purque qué! -- argumentou revoltado -- Pra dizê a verdadi, teu coração já foi faz tempu! -- deu as costas e preparou-se para sair

 

--Queria me despedir docê! -- falou com carinho -- Num sei o qui aconteceu entre nós qui de repente ocê foi si afastando de mim... -- ele parou de andar, mas manteve-se de costas para a morena -- Eu ti amo, Khaled! -- afirmou com verdade

 

--Quem ama num abandona... -- afirmou com tristeza

 

--Nunca ti abandonei e nem vô abandoná! -- contornou o cercado e parou diante dele -- Se ocê quisé, dô um jeito pra ti levá comigo! -- olhava-o nos olhos

 

--Meu lugá é aqui, Zinara. -- respondeu secamente -- Nóis num semo mais criança, a guerra cabô e Youssef morreu. Agora cada um cuidi di si. -- afastou-se dela e foi embora

 

Zinara suspirou entristecida e acompanhou a partida dele com o olhar.

 

***

 

A morena chegava na cozinha para se despedir da família. Raed e Amina estavam sentados à mesa junto com Ahmed, Nagibe e Cid. Não comiam coisa alguma, pareciam apenas esperá-la. Khaled não estava lá e Zinara não imaginava onde pudesse encontrá-lo.

 

Mochila nas costas e uma bolsa grande nas mãos, a moça portava consigo seus poucos pertences. Aproximou-se da mesa e com isso Raed levantou-se e foi até a janela, onde parou de costas para todos.

 

--Maama... -- colocou a bolsa no chão, ajoelhou, segurou-lhe uma das mãos e beijou-a respeitosa -- Queria sua bênção. -- pediu com humildade

 

--Rahimaka Allah, bintii! (Deus te abençoe, minha filha!) -- levantou-se e segurou o rosto dela -- Rahimaka Allah!

 

--Intão, qué dizê qui ocê vai? -- o pai perguntou com um tom grave. Continuava olhando para fora

 

--Ya said (o senhor) e maama não mi proibiram. -- respondeu de pronto olhando para ele

 

--Ya Tereza pidiu e eu num pudia proibí. -- retrucou -- Um homi qui tem honra sabi sê gratu. Num possu negá nada a ela. -- virou-se de frente -- Mais eu dissi qui a dicisão tava nas tua mão. -- olhava para a filha com uma expressão fechada

 

--E eu decidi qui vô. -- permanecia firme -- Quero estudá, tê profissão e dar uma vida melhó pra nós tudo. -- olhou para a mãe de novo -- "Fale arguma coisa, maama!” -- desejava em seus pensamentos

 

Raed riu sonoramente enquanto os demais permaneceram calados. Amina soltou o rosto da filha e abaixou a cabeça.

 

--OCÊ QUÉ É UMA VIDA FRÔXA! -- deu um soco na pia -- SEM O CONTROLI DI NINGUÉM, SEM FAMIA! -- falava alto e rispidamente -- OCÊ QUÉ VADIAGI!

 

--ISSO É MENTIRA! -- retrucou ofendida e pausou por uns segundos para se recompor -- Eu já disse qui quero estudá e a verdade é essa!

 

--Vem criança. -- Amina acenou para os meninos -- Zinara e o baba têm pricisão di prosiá um pôco.

 

--Maama... -- a morena se decepcionou com a atitude da mulher mais velha

 

--Eu queru dispidí di Zinara! -- Nagibe falou com tristeza

 

--E eu! -- Cid concordou

 

--Venham aqui, awlaadii (minhas crianças). -- abriu os braços e os meninos correram até ela -- Eu num vô largá ocês di mão, não, viu? -- beijou a cabeça deles -- Vô imbora pra estudá e depois vorto.

 

--Istudá pra sê mahdia (prostituta)! -- Raed devolveu de pronto

 

--Raed! -- Amina exclamou entristecida

 

Zinara não respondeu.

 

--Qui diachu é mahdia? -- Ahmed perguntou intrigado

 

--Fica quétu, fio! -- Amina pediu -- E vem ocês tudo cumigo.

 

Nagibe e Cid lançaram um último olhar para a irmã, abraçaram-na mais uma vez e seguiram com a mãe. Ahmed acenou um tchauzinho e saiu da cozinha também.

 

--Macasalaama (Até logo), meninos... -- despediu-se em voz baixa

 

--Pensi bem nu qui vai fazê, Zinara! -- Raed advertiu -- Pensi bem!

 

--Já pensei e me decidi por estudá! -- olhava para o pai -- Sei qui giddu Raja ficaria do meu lado!

 

Riu novamente. -- Respeiti ao menus os mortu! Baba num tem nada qui vê cum essa patifaria tua! -- aproximou-se furioso -- Ocê num qué istudá, ocê qué é vivê dando essa kossah (análogo de bucet*) pra quem quisé usá! -- acusou

 

--ABSURDO!! -- gritou novamente -- Ya said não sabe o qui diz!

 

--Eu tinha qui tê ti quebradu nu pau procê aprendê a ocupá teu papel di muié! -- dedo em riste na cara da morena

 

--Meu papel não é vivê debaixo da ignorância de ya said! -- olhava nos olhos

 

--Si ocê saí pur aquela porta, num vorta mais! -- ameaçou -- Num queru fia mahdia!

 

--Maama qué qui eu vorte!! -- retrucou com lágrimas nos olhos

 

--Ela num qué e aneim eu! -- bateu no peito -- Ninguém qué fia mahdia! Ninguém qué fia iguar ocê!

 

Não queria ter ouvido aquilo e se entristeceu ainda mais. No entanto, não deixaria seu pai vê-la chorar. -- Assim como ninguém qué um baba ignorante e estúpido como ya said (o senhor)! -- respondeu magoada

 

Repentinamente Zinara sentiu a dor de uma forte bofetada e apoiou-se na mesa para não cair. Amina correu de volta para a cozinha, alarmada com o barulho que ouviu, e deduziu tudo ao ver a filha com a mão no rosto.

 

Seus olhos marejaram. -- Bintii! (Minha filha!) -- levou as mãos ao peito

 

--Pro quartu, muié! -- o marido ordenou com raiva ao se aproximar novamente da janela

 

--Zogii... (Meu marido...) -- seus olhos imploravam

 

--EU MANDEI IR PARA O QUARTO! -- gritou na língua de Cedro -- ALAAN! (AGORA!)

 

A morena olhou para a mãe esperando que ela tomasse uma atitude, mas a mulher obedeceu a ordem e se retirou em silêncio. Naquele momento, Zinara sentiu-se órfão e completamente só.

 

--Num vorto mais. -- olhava firmemente para o pai -- Num mi verá mais, pode acreditá.

 

--Eu num tenhu mais fia!

 

--NUNCA TEVE! -- gritou na língua de Cedro e respirou fundo -- Assim como eu nunca tive um baba. -- pegou a bolsa -- Vai se arrepender muito por tudo isso. Um dia vai!

 

--Rogando praga a teu baba? -- perguntou de cara feia

 

--Não é praga, é a vida! -- olhou nos olhos dele -- Ana bakrahk, ya said Raed! (Eu te odeio, senhor Raed!) -- percebeu o impacto de suas palavras sobre ele -- E vai ser assim até o fim da minha vida! -- saiu rapidamente

 

***

 

A parada de ônibus mais próxima ficava a três horas de caminhada e, por sorte, Zinara conseguiu uma carona com o homem do carro de boi. Sentada na parte de trás, olhava aquela paisagem querida com olhos saudosos e lamentava que as coisas tivessem que ser daquela forma. Abraçou-se com sua mochila e fechou os olhos, pedindo a Deus que a abençoasse e lhe permitisse agir com sabedoria diante da solidão que a acompanharia dali por diante. Queria ter visto Khaled, queria ter feito um monte de coisas, mas já não seria possível.

 

“Oh, Aba, proteja-me, peço por piedade! Mi ajude a sabê mi comportá e vivê na cidade grande, porque é perigoso e eu tenho medo do povo de lá.” -- orava mentalmente -- "E eu lhe rogo, proteja maama, Khaled, Nagibe, Cid e Ahmed! Não deixe qui o marr se abata sobre eles!” -- derramou uma lágrima -- "E proteja ya said Raed também. Qui ele deixe de ser tão marr e tão duro.” -- suspirou

 

--Zinara! -- o homem despertou-a de seus pensamentos -- O ônibu! -- apontou para a condução -- Toma tua via qui o bichu vem lá! Corre, minina! -- aconselhou

 

--Obrigado, ya Tonico. -- pegou suas coisas e saltou do carro de boi -- Muito obrigado! -- acenou para ele e correu para o ônibus

 

--Vai cum Deus, muiézinha! -- acenou para ela -- Vai cum Deus!

 

A morena alcançou o ônibus esbaforida, o qual parou para deixá-la subir. Tirou discretamente o dinheiro do sutiã para pagar a passagem e entrou na condução.

 

--Vai inté aonde, moça? -- o motorista perguntou

 

--Parada finar. -- respondeu ao receber o troco -- Ainda tem lugar?

 

--Lá nus fundu. -- indicou -- Um só!

 

--Graças a Deus! -- caminhou para o fundo do carro, tendo o cuidado de se desviar dos animais a bordo -- "Eu me sinto na arca de Noé!” -- pensou com vontade de rir

 

O lugar vazio era ao lado de uma senhora; último assento antes do mal cheiroso banheiro.

 

--Podi pegá a janela, minina. -- ela disse -- Num gostu di ventu nas minhas fuça e o vidro tá quebradu! -- deu passagem

 

Zinara se sentou e agradeceu. -- Pelo menos nós num vamos sintí a fedentina do hammam. Do banheiro! -- consertou-se

 

--E anêim o budum dessis bichu! -- as duas riram com os comentários de ambas

 

O ônibus partiu e a morena respirou fundo tentando se acomodar com um mínimo de conforto.

 

“Vai dar tudo certo!” -- dizia mentalmente para si mesma enchendo o coração de esperanças -- "Ya Tereza não disse qui elas vão te receber lá em Gyn? Vai dar tudo certo...”

 

--Zinara!!! Zinara!!! -- uma voz conhecida gritava por seu nome

 

--Uai?! -- não acreditou no que ouvia e colocou a cabeça para fora do ônibus

 

Khaled vinha cavalgando atrás da condução. Trazia consigo um pequeno buquê de caliandras rosadas e lutava para se aproximar.

 

--Zinara!!! -- forçava para o animal correr mais

 

--Khaled! -- sorria para o irmão -- Da onde ocê veio? -- estava feliz

 

--Zuhuur (Flores)! Pega! -- estendeu buquê

 

--AHHa! -- esticou o braço para fora tentando pegar as flores -- Eu num consigo! -- quase metade do corpo estava para fora do ônibus

 

--Minina, ocê vai morrê! -- a mulher ao lado da morena advertia preocupada

 

--Pega!! -- Khaled continuava forçando para correr mais

 

“Eu nunca vou esquecer aquela cena, Kitaabii. O ônibus era uma marinete velha, mas conseguia correr mais que o pobre cavalo de meu irmão. Nós sorríamos um para o outro com os olhos marejados e por um momento me pareceu que Khaled, o meu amado irmão Khaled, estava de volta apenas para se despedir de mim. Quando finalmente pude pegar o buquê, várias caliandras se soltaram e perderam-se em pequenos vôos até cair no chão. A emoção que senti, nem sei descrever. Penso que foi a alegria que Allah (Deus) me trouxe para dar alguma poesia a um dos dias mais tristes de minha história nessa Terra de Santa Cruz.!”

 

--Alf sukr! (Milhares de agradecimentos) -- respondeu emocionada para o irmão

 

--Bismillah! (Nesse contexto, quer dizer boa viagem) -- ele gritou, enquanto o cavalo gradativamente acalmava o trote -- Bismillah, ya habibi!

 

--Behebbak ya, Khaled! (Eu te amo, Khaled!) -- gritou também

 

--Behebbik ya, Zinara! -- acenou -- AHAHAH!!!! -- gritou nervosamente

 

--Vorta pra dentru, muiézinha! -- a senhora pediu aflita -- Ocê vai morrê!

 

Zinara obedeceu e ficou apenas com a cabeça para fora. Segurando seu pequeno buquê, mirava o rapaz que se tornava cada vez menor em seu campo de visão, até o ponto em que ele desapareceu por completo de seus olhos, mas nunca de seu coração.

 

“Eu bem queria continuar ali,

Mas o destino quis me contrariar,

E o olhar de meu irmão na estrada,

Eu deixei chorando a me abençoar,

 

E o olhar de meu irmão na estrada,

Eu deixei chorando a me abençoar...”

Adaptação da canção interpretada por Zezé di Camargo e Luciano - No Dia em Que Eu Saí de Casa [a]

 

CAPÍTULO 38 –  Loucuras

 

No dia seguinte após a audiência do caso Hamatsu, Jamila ainda estava em Cidade Restinga. Sabia que deveria ter partido a exemplo de seu cliente, o qual recebeu escolta oficial até o aeroporto, no entanto decidiu ficar por pelo menos duas noites. Perdida no quase desconhecido mundo underground da cidade, dançava em abandono ao som de uma escandalosa banda heavy metal.

 

“Pense em nada, Jamila.” -- aconselhava-se mentalmente -- "Dance, dance até o amanhecer!” -- dançava de olhos fechados -- “E que se dane o mundo!”

 

Enquanto isso, Cátia pensava na vida e bebia um chope gelado na beira da praia das Mamelucas. Também estava em Cidade Restinga, por conta de uma defesa de tese, e não se animou em participar da confraternização promovida pelo recém doutor que ela ajudou a formar.

 

“Não acredito que Clarice preferiu ficar com aquela astrônoma nariguda do que comigo...” -- pensava com despeito -- "Mulher sem graça, cara de maluca!” -- fez cara feia -- “Maníaca terrorista!” -- passou a mão no pescoço lembrando de Zinara -- "Por pouco não me ferrou o pescoço todo!”

 

Um garçom se aproximou para limpar a mesinha ao lado e a loura o abordou.

 

--Amigo, diz aí! -- olhava para o homem -- O que tem de interessante hoje à noite pra se ver nessa cidade?

 

--Hoje é terça, né? E não tá na temporada ainda... -- coçou a cabeça pensando -- Tem uns dois forrozinhos mais pro lado do farol, só que ali é pé sujo... -- fez uma careta -- Uma fuleiragem da porr*!

 

--E além disso? -- não estava a fim de forró

 

--Ó, tem o Távola do Rei, lá pro lado de Pai Juçara. Mas lá é rock pesado, ambiente meio sinistro...

 

--É mesmo? -- achou graça -- Então me ensina o caminho, que hoje eu tô sinistra! -- deu um tapa na mesa e bebeu o chope até o final

 

***

 

Cátia bebia um drink exótico e muito alcoólico ao som do rock mais pesado que já ouvira na vida. Encostada na parede, prestava atenção nas figuras sombrias que dançavam e se esbarravam propositadamente no que seria a pista de dança. O ambiente barulhento e mal acabado, onde todas as paredes negras eram repletas de imagens macabras desenhadas por grafiteiros, proporcionava-lhe uma estranha sensação de desconforto. Mas, apesar disso, ela permanecia ali. O tormento que lhe ia na alma identificava-se com a pesada aura do lugar, embora seu coração ansiasse por um pouco de paz.

 

De repente, a imagem de uma bela mulher chamou sua atenção. Ela não se vestia pesadamente como os outros freqüentadores da casa e dançava em um ritmo mais lento que os demais. Assim como Cátia, parecia uma visitante ocasional que buscava se refugiar em meio ao caos.

 

Dançando totalmente dissociada do mundo, Jamila sentia-se anestesiada e solta.

 

--Vamos ver qual é, Cátia? -- disse para si mesma ao sorrir -- Chega de bancar a menina bem comportada... -- bebeu o drink de um gole só e quebrou o copo no chão -- AH! -- gritou e dois jovens aplaudiram

 

Apesar dos esbarrões aleatórios que levava, Cátia aproximou-se da outra mulher como uma leoa cercando a presa. Posicionou-se por detrás dela e abusadamente sussurrou em seu ouvido: -- Você veio aqui pra esquecer. -- deixava os lábios tocarem a orelha da jovem -- Esquece de tudo comigo! -- propôs com voz insinuante

 

Jamila virou-se de frente e deu de cara com a loura. Achou que a conhecia de algum lugar, mas logo pensou que não.

 

“Eu conheço ela? Já vi esse rosto?” -- a geofísica pensava -- “Mas da onde seria? Não pode ser...” -- duvidava das próprias suspeitas

 

Em meio a um inferno de punks alucinados, a advogada puxou a outra pelas presilhas da calça e deixou seus lábios quase tocarem nos dela.

 

--Eu quero uma noite louca! -- olhava nos olhos -- Quero uma fuga, uma válvula de escape pra tudo que eu vivo! Quero esquecer!

 

--Esquece comigo, porque eu também quero. Eu também preciso! -- segurou-a pelo rosto e beijou-a cheia de desejo

 

Alguns homens gritaram excitados: -- AHAHAHAHAH!!!!!!!!!!!!!! SEXOOO!!!!

 

Jamila interrompeu o beijo preocupada. -- Vamos sair daqui agora! -- ordenou ofegante -- Quero você de qualquer jeito, mas não tô a fim de ser estuprada!

 

--Puta que pariu! -- a geofísica arregalou os olhos quando percebeu que estavam cercadas por homens sinistros -- E agora?? -- apavorou-se

 

A advogada abaixou-se rapidamente e sacou uma pistola 55 que estava presa em sua panturrilha por uma pequena cinta. -- AHAHAHAH!!!!!!!! -- gritou ao atirar repetidas vezes para o alto. Um dos projéteis atingiu a caixa de som central

 

A banda parou de tocar e formou-se um tumulto generalizado. Paralelamente uma briga começava em outro ponto da casa.

 

--Vem! -- segurou a loura pelo braço -- Corre! -- ordenou ao correr

 

--Que merd*! -- seguiu sendo puxada Jamila

 

***

 

Minutos depois, Jamila e Cátia estavam em um pequeno quarto de motel de baixa categoria nas proximidades do local onde se conheceram. Ainda vestidas, cada uma encostada em uma parede, de frente para a outra, olhavam-se em silêncio enquanto bebiam uísque barato.

 

--Isso aqui vai dar dor de cabeça depois. -- a advogada brincou ao se referir à bebida

 

A geofísica deu de ombros. -- Eu só quero saber do hoje e ainda é hoje. -- olhou para o relógio e sorriu -- Como conseguiu entrar ali armada? -- perguntou curiosa -- Eles fazem revista quando a gente entra naquela merd*. -- bebeu um gole

 

--Ninguém nunca desconfia das mulheres. -- sorriu -- Especialmente das jovens e bonitas. -- piscou para a outra e bebeu um gole também

 

--Sempre esconde uma 55 por dentro das calças? -- passou a mão nos cabelos -- Devia ter medo de você?

 

--Não. -- colocou o copo sobre a mesinha -- Corro risco e por isso ando prevenida. -- aproximou-se devagar -- E a gente já perdeu tempo demais. -- sorriu cheia de malícia

 

--Eu não devia ter te beijado lá na frente daqueles animais. -- bebeu tudo de um gole só e abaixou-se rapidamente para largar o copo no chão -- Mas apesar do susto, -- aproximou-se também -- adrenalina dá um tesão louco!

 

--Dá! -- puxou a loura pela nuca e beijou-a furiosamente

 

O gosto amargo da bebida foi o primeiro sabor que sentiram nos lábios uma da outra. Arrancaram as próprias roupas com urgência, sem jamais interromper os beijos ferozes a que se entregavam. Logo já estavam fazendo sex* alucinadamente, buscando prazer perdidas em sensações físicas que não lhes tocavam na alma. Buscavam por coisas que não podiam encontrar naquele momento, daquela forma. E na ânsia de esquecer, nem se lembraram que já era a segunda vez que se refugiavam uma na outra.

 

***

 

Zinara analisava suas contas usando o internet banking. Gastos imprevistos com remédios deixaram-na preocupada.

 

--E eu que nem deveria tá pagando hospedagem... -- resmungou -- Esse dinheiro não dura mais até novembro, não... -- concluiu -- Ô trem difícil de ganhar, mas fácil de sumir! -- suspirou e se levantou

 

Ao mesmo tempo, pensava em uma nova forma de abordar Salete e fazê-la mudar de opinião quanto a se reconciliar com o pai.

 

--Eu não queria falhar com minha Shamash... Ela desejava tanto que tudo ficasse bem... -- fechou os olhos -- Oh, Aba, me ajude! Toque o coração daquela mulher difícil que é Salete! Por favor, eu lhe imploro! -- pedia

 

Em outro canto da cidade, Salete aguardava por clientes na porta da loja onde trabalhava.

 

--Bom dia, minha amada! -- sorriu para a senhora que acabava de entrar -- Fique à vontade, e se precisar de qualquer coisa, meu nome é Salete. -- comentou com delicadeza

 

--Bom dia, querida. -- a mulher lhe respondeu educadamente -- Eu queria dar uma olhadinha naquele vestido estampado que tá lá na vitrine. -- apontou

 

--Estão todos aqui! -- indicou o local -- Fique à vontade pra ver. Se não encontrar seu tamanho na estampa que lhe agrade é só me dizer que eu vou buscar.

 

--Obrigada, filha. -- sorriu e foi ver as roupas

 

Minutos depois, uma jovem visivelmente lésbica também entra na loja, o que desmanchou o sorriso ensaiado das vendedoras.

 

--Não se vexa! Será que não vê que isso aqui é uma loja cristã? -- uma vendedora comentou com Salete

 

--Essa gente desviada quer nos provocar, Mary. -- respondeu à colega -- Por que outra razão uma abominação dessas viria pra cá? -- olhava para a jovem de cara feia

 

--Por favor, -- a jovem se aproximou educadamente -- eu queria ver aquele vestido ali. -- apontou para a roupa -- Mas precisa ser tamanho P, porque além de magra, a pessoa que vai ganhar quase não tem busto. -- sorriu

 

--Não tem. -- Salete respondeu secamente. Ela e a colega encaravam a jovem de cara feia

 

--Não? -- perguntou sem graça -- E aquela saia...?

 

--Não tem roupa aqui pra você! -- Mary interrompeu-a seriamente

 

A senhora virou-se na direção das outras mulheres e ficou prestando atenção.

 

--Ah, então... -- não sabia o que dizer -- Vou pra outra loja onde as vendedoras saibam e gostem de trabalhar. -- fez um gesto de cabeça -- Com licença. -- retirou-se

 

--Agora veja que descarada! -- Salete cruzou os braços revoltada

 

--Vai embora, mulher perdida! -- Mary fez um gesto de desprezo

 

A senhora devolveu as roupas que examinava e preparou-se para sair.

 

--Ei, amada! -- Salete chamou alarmada -- Não vai provar, não gostou de nada? -- sorria constrangida

 

--Vejo que me enganei. -- sorriu formalmente -- Pensei que estava em uma loja cristã.

 

--Mas aqui é uma loja cristã! -- Mary afirmou convicta

 

--O Rabi que eu sigo, sentava a mesa com prostitutas e publicanos, curava leprosos, cegos e estropiados de toda ordem. -- olhava para as duas mulheres -- O Rabi que eu sigo, não condenava e sua palavra era só de amor. -- sorriu novamente -- Já vocês, eu não sei a quem seguem, mas com certeza não é ao Filho do Pai. Com licença! -- retirou-se

 

As duas vendedoras ficaram mudas sem saber o que fazer.

 

Zinara olhou pela janela e viu estudantes animadamente circulando pelas ruas. Lembrou-se de si mesma e mais uma vez a memória a conduziu para o tempo em que sua primeira namorada ainda vivia.

 

--Mas, ya Tereza... -- estava angustiada -- Se ocês vão simbora, cumé qui eu fico? -- andava de um lado a outro -- As aulas começam amanhã!

 

--Nós si vamo daqui há dez dias, minina! Tem tempo docê si virá. -- tentava tranqüiliza-la

 

--Mi virá como?? -- sentia até uma dor no peito -- Eu num tenho trabalho, num tenho dinheiro, vô morá onde?? -- olhava para a outra mulher

 

--Deus vai dá um jeito, cadê tua fé?

 

Suspirou sem nada dizer e passou as duas mãos no cabelo.

 

--É a chance da vida di minha filha! Ela tem qui í! -- argumentou

 

--Eu num quero atrapalhá a vida dela, mas isso acabô comigo! -- voltou a andar pela sala -- Ya Tereza prometeu qui mi daria pouso na cidade inquanto eu estudasse...

 

--Num seja egoísta, Zinara. -- respondeu contrafeita -- Graças a mim ocê fez a prova, teu pai ti dexô vi pra cá e tua família tem casa pra morá! -- protestou revoltada -- Ocê mi fez um bem ensinando Maria Rita a lê, iscrevê e contá, mas eu já paguei minha conta cuntigo faz tempo! -- estalava os dedos

 

“Eu nada respondi, Kitaabii, mas me sentia mais uma vez abandonada. Não podia voltar para casa e nem queria. Meu desejo era estudar e me formar, porém não sabia como fazer isso sem um lugar para morar.”

 

--Ana é uma bailarina maravilhosa! -- Tereza continuava se justificando -- Si ela num fô pra Godwetrust aproveitá a tal da bolsa que ganhô, a sorte num vai batê na porta dela di novo! -- olhava para a moça -- E me perdoe, Zinara, gosto muito docê, mas minha prioridadi são minhas filha!

 

--Eu sei, ya Tereza... Eu sei... -- abaixou a cabeça -- "Desde que ar-rabiic se foi, eu num sou prioridade de ninguém mais...” -- pensou com tristeza -- “Mas deixa estar... Arranjo um canto escundido e vô morá na rua... Pra casa é qui num vorto!” -- decidiu

 

***

 

Cátia e Jamila dormiam pesadamente quando o celular da geofísica começou a tocar.

 

--Puta, que merd*... -- despertou desnorteada e com dor de cabeça -- É meu celular isso aí? -- abriu os olhos com dificuldade

 

E o aparelho tocava...

 

--Droga! -- sentou-se na beirada da cama e passou a mão nos cabelos. Olhando para o lado percebeu que a advogada ainda dormia -- Deixa eu atender essa merd* antes que ela acorde. -- coçou a cabeça -- Mas o celular tá onde, hein? -- ficou de quatro no chão e seguiu tateando as roupas espalhadas -- Ah! -- sentiu um volume no bolso da calça jeans -- Aqui! -- tirou o aparelho do bolso e atendeu: -- Alô, oi!

 

--Bom dia, Cátia, sou eu, Clarice. -- a morena respondeu do outro lado -- Tudo bem? Tá podendo falar?

 

--Claro que eu posso, meu amor! -- sorriu surpreendida -- Bom dia, querida! -- começou a catar suas roupas

 

--Você tá com uma voz de cansaço. -- estranhou -- Te acordei? -- perguntou desconfiada -- "Será que ela ainda dormia até essa hora?” -- pensou desconfiada

 

--Nada, acordou nada! -- mentiu ao se levantar com dificuldade -- Vê lá se eu estaria dormindo às... -- olhou para o relógio -- dez horas, meu Deus! -- arregalou os olhos

 

--Ah, não sei... Mas posso ligar depois.

 

--Não! -- foi para o banheiro -- É que eu tava aqui... -- pensou no que dizer -- lendo a tese de doutorado de uma aluna e perdi a noção do tempo. -- começou a se vestir com pressa -- Mas a que devo a honra? -- perguntou esperançosa

 

--Eu tava arrumando minhas coisas e vi que você esqueceu dois livros e um relógio comigo. -- respondeu com a verdade -- Passei na sua sala pra te devolver mas me disseram que você viajou pra Cidade Restinga. Como tem o relógio, não confiei em deixar tudo no seu escaninho.

 

--Ah, fez bem. -- continuava se vestindo -- E é verdade, tô aqui por conta de uma defesa de tese. -- sorriu -- Sabia que não deixo de pensar em você em um minuto sequer? -- fez uma voz sexy

 

--Cátia, por favor... -- pediu com delicadeza -- Eu não liguei pra isso. Apenas queria te dizer que deixei suas coisas com o porteiro do seu prédio.

 

--A gente podia se encontrar hoje à noite pra conversar um pouco, que acha? -- convidou sensualmente ao arrumar os cabelos

 

--Melhor não. Como disse, deixei suas coisas com seu porteiro e acho que não temos mais o que conversar. -- respondeu educadamente -- E, aliás... que horas é seu vôo? Não deveria estar no aeroporto? -- perguntou curiosa

 

--Ah, meu vôo é pras... -- pensou -- Meio dia, meu Deus! -- quase gritou alarmada ao constatar

 

--Eu não sei onde está, mas corre daí pra não perder!

 

--É, eu... -- ficou nervosa -- Clarice, olha, depois a gente conversa! Tchau! -- despediu-se apavorada e desligou o telefone sem esperar a outra responder -- Puta que pariu, tenho que zunir daqui!

 

Jamila continuava dormindo despreocupada e Cátia tratou de pegar suas coisas apressadamente.

 

--Desculpa, fofinha, mas... Tenho que ir! -- falou olhando para a outra -- Deixa eu colocar um dinheiro aqui pra pagar a conta e não ficar tão feio. -- jogou umas cédulas sobre a mesinha -- Não sei teu nome, mas... -- sorriu maliciosamente -- foi um prazer! -- correu para a porta e foi embora

 

***

 

A jovem Zinara chegava na escola encantada e receosa. Era o primeiro dia de aula e ela contemplava o exterior do edifício em êxtase. Vários jovens chegavam de carro junto com seus pais, ou então em grupos fazendo grande algazarra. Ela era, talvez, a única que vinha sozinha.

 

Usando um vestidinho simples e sandálias trançadas, trazia uma bolsinha com documento, lápis, caneta e borracha, além de um pequeno fichário.

 

“Respira fundo e vai, mulher!” -- aconselhava a si mesma -- “Vai dá tudo certo!” -- criava coragem

 

Transpor as portas da escola pareceu-lhe o mesmo que cruzar o portal de um templo. Seu coração disparou e ela sentia vontade de chorar, dada a emoção que lhe invadia.

 

--Ih, olha lá aquela caloura! -- um rapaz apontou para ela e riu

 

--Que caipira!! -- uma moça riu também

 

A morena olhou para o lado e constatou que vários jovens riam dela.

 

“Hum, acho que vou me danar hoje...” -- pensou ao se afastar

 

***

 

As primeiras aulas haviam sido apenas apresentações dos professores, que explicaram como a escola funcionava, a filosofia do curso de química e as formas de avaliação. Zinara ficou muito empolgada, especialmente ao saber que teriam aulas de laboratório.

 

Os novos alunos foram avisados que haveria uma palestra de abertura do ano letivo, que se iniciaria às 10:30h. No momento certo, seguiram para o auditório acompanhados por uma inspetora polêmica conhecida como Carabina. Sempre portando seu inseparável chicote, Carabina conduzia os alunos com cara de má.

 

Acomodou-se em um lugar e ficou esperando o início da palestra. Após algumas palavras de ordem do vice diretor, uma mulher loura, baixinha, um pouco gorda e muito simpática aproximou-se do microfone e se apresentou: -- Bom dia, meus queridos e queridas. -- sorria -- Meu nome é Olívia e sou professora de química analítica. -- olhava para os jovens -- Preparei uma apresentação rápida e interessante pra que vocês entendam o que significa ser técnico ou técnica nas áreas de conhecimento que essa Escola aborda. -- fez sinal para um jovem projetar uma imagem no telão -- Hoje vocês são jovens recém saídos do primeiro grau e sem formação profissional. Daqui a quatro anos, serão técnicos interessantes ao mercado de trabalho, bem como ao ambiente acadêmico.

 

Zinara olhava embevecida para aquela professora. Ela não era uma mulher linda ou gostosona do tipo que a mídia valoriza, mas era alguém cuja beleza era quase indescritível. Uma pessoa que irradiava pura bondade e que parecia um sol diante de uma multidão de pobres jovens cegos.

 

--Qui professora... -- suspirou embevecida -- Parece até um anjo...

 

--Aí, caloura, -- um rapaz mal encarado sentou ao lado da morena -- depois dessa chatice aqui, você vem com nóis. -- ordenou imperativo sob um sorriso fingido

 

--E nem adianta fugir. -- duas moças sentaram-se atrás dela -- Tá cercada, véia! -- uma delas dizia sorridente

 

--E cercada mesmo! -- um rapaz complementou ao se sentar na frente da morena. Três outros vieram e sentaram ao lado dele

 

“Ave Maria!” -- pensou receosa -- “E logo no primeiro dia?” -- deu um suspiro profundo -- "E o qui diacho será isso de caloura? Nunca fui cantá em programa de rádio!” -- não entendia

 

***

 

--NÃO, NÃO, NÃO, NÃO É POSSÍVEL! -- Cátia gritava esbaforida -- Você não tá entendendo, filha, eu PRECISO pegar esse avião AGORA! -- estava quase deitada no guichê da empresa aérea

 

--Senhora, o check in se encerrou há cinco minutos, eu não posso mais abrir! -- a funcionária explicava

 

--Pois trate de dar um jeito porque eu não posso perder esse vôo! -- falava com ódio -- Meu aluno defende o doutorado HOJE, às três da tarde, e se eu não pegar esse vôo, NUNCA estarei em São Sebastião a tempo!

 

--Sinto muito, senhora, mas eu não tenho como resolver sua situação. -- respondeu simplesmente

 

--Mas que inferno! -- deu um soco no balcão -- Empresa aérea de merd*! -- pegou a bolsa e saiu revoltada para a loja de outra empresa aérea -- Por favor, não me enrola e responde logo: eu preciso ir pra São Sebastião agora!! Me diz pra que horas é o próximo vôo! -- ordenou

 

--Daqui a 40 minutos, senhora. -- a funcionária respondeu assustada

 

--Então me vende a passagem correndo porque eu não posso perder esse vôo! -- pegou a carteira

 

--Tudo bem. -- digitou algumas coisas apressadamente e depois de uns minutos falou: -- São mil e noventa e seis reales e quinze centavos, senhora. Dinheiro, cartão de crédito ou débito?

 

--O que??? -- arregalou os olhos apavorada -- Minha nossa! -- entregou o cartão a mulher -- Faz no crédito, em umas quatro vezes... -- respondeu desanimada -- Puta merd*... -- xingou entre dentes -- Que azar, que droga!

 

***

 

A jovem Zinara estava no centro de uma rodinha composta por alguns jovens. Eles zombavam dela e já haviam sujado seu vestido, pele e cabelos com tinta azul.

 

--Agora, caloura, pro teu batismo vem a prova de fogo! -- um dos rapazes anunciava -- Vai ter que encurtar essa saia aí e dançar na boquinha da garrafa.

 

--Mas vai ter que fazer bonito! -- outro falou cheio de gracinhas -- Vai ter que rebol*r e gem*r que nem se tivesse dando!

 

--E vai fazer cara de goz*da! -- uma das moças complementou -- Senão a Margarida aqui, -- mostrou a tesoura -- vai picotar teu cabelo!

 

--Toma aí! -- a outra garota colocou uma garrafa de cerveja no chão -- Faz a tua parte que a gente canta procê! -- ria como boba

 

--E vai ralando na boquinha na garrafa... -- começaram a cantar e bater palmas

 

Zinara sentia-se humilhada, revoltada e não poderia suportar mais aquilo. Encurtar a saia e dançar como lhe ordenavam era pedir demais frente a sua cultura e valores. Um misto de ódio e vergonha tomavam conta de si.

 

--Vambora, porr*! -- um dos rapazes ordenou de cara feia -- Tá esperando o que, vagaba? -- deu um tapa no braço dela

 

--Vai lá estrangeira, tá esperando o que? -- uma das moças reclamou

 

--Vambora, sua puta! -- outro rapaz segurou-a pelo braço

 

“Naquele momento, Kitaabii, bombas explodiam dentro de mim. Aquelas mesmas bombas que me castigavam na infância em Cedro, as mesmas que me atormentam em várias ocasiões. Meu corpo parecia pegar fogo e minha vontade era de matar a todos eles.”

 

--Eu mesmo vou puxar tua saia e te fazer dançar em cima do meu pau! -- o rapaz que a segurava ameaçou falando grosso

 

“Não pude me conter, Kitaabii. O ódio tomou conta de mim.”

 

--Ya ahbal, inta zayy iz-zift! (Seu idiota, você é como lixo!) -- rapidamente agarrou-o pelo pescoço e apertou com toda força, fazendo-o cair de joelhos -- Allaah yinghal abuuak uommak!! (Meu Deus amaldiçoa seu pai e sua mãe!!) -- continuava apertando

 

--Gente, faz alguma coisa, ela vai matar ele! -- uma das moças gritou assustada

 

--Larga ele, vadia! -- os outros correram para cima da morena

 

Possuída pelo ódio, Zinara soltou o pescoço do rapaz e avançou sobre os outros golpeando com muita força. Chutes, pontapés e socos foram investidos contra eles que não tiveram como reagir.

 

--Vambora daqui que vai dar zica! -- uma das garotas gritou para todos

 

As duas moças e um dos rapazes saíram correndo, enquanto que Zinara continuava batendo furiosamente nos outros que sobraram.

 

--MAS QUE LOUCURA É ESSA AQUI? -- Carabina chegava batendo com seu chicote no chão -- VAMO PARANDO COM ISSO AGORA! -- ordenou aos berros

 

Zinara estava nervosa e não sabia o que fazer. Seu corpo tremia como se convulsionasse.

 

--O que é que tá acontecendo aqui? -- segurou a morena pelo braço afastando-a dos demais -- Você ficou maluca, menina? -- olhava horrorizada para ela -- E vocês aí? -- apontou o chicote para os rapazes caídos no chão -- O que fizeram com ela?

 

--Essa desgraçada é doida! -- um deles falou -- Quebrou meu nariz e acho que perdi uns dentes! -- reclamava com a mão no rosto

 

--Cê tá ferrada, vadia! -- um outro ameaçou

 

--É por isso que eu sempre fui contra essa merd* de trote! -- soltou Zinara e se aproximou dos rapazes -- Levanta que vai todo mundo pra sala do diretor!

 

“Eu não sabia o que fazer ou pensar, Kitaabii... Minha cabeça doía e meu coração parecia a ponto de me saltar da boca.”

 

***

 

Zinara e os quatro rapazes aguardavam de pé na sala do diretor. Estavam calados e cabisbaixos.

 

--Meu pai é advogado! -- um deles sussurrou em direção a morena -- Vai acabar cocê!

 

--Humpf! -- fez um bico

 

Depois de alguns minutos, Carabina se aproximava acompanhada por uma professora.

 

--São esses aqui! -- indicou os jovens -- A moça tá toda suja e cagada de tinta e os garotões aí levaram uma sova daquelas! -- teve vontade de rir -- Só fiz dar gelo pra eles, mas o esporro fica com a senhora.

 

--Pode deixar comigo, querida. -- olhou para a colega -- Eu cuido deles.

 

“Oh, Aba, (Oh, Meu Pai) é aquela professora!” -- Zinara pensou sentindo o rosto arder -- "Que vergonha...” -- abaixou ainda mais a cabeça

 

--Tá bom! Qualquer coisa, grita! -- deu uma chicotada no chão e saiu

 

--Então, guris... -- Olívia puxou uma cadeira e se sentou -- o trote de mau gosto acabou mal, daí? -- cruzou os braços

 

--Não foi isso, professora! -- um dos jovens começou a falar -- Essa maluca bateu na gente e... -- segurava um saco de gelo sobre o nariz

 

--E antes de bater nos pobres indefesos, ela se pintou de azul e se meteu no meio dos veteranos em sacrifício? -- interrompeu-o -- Por favor, tá? Não é a primeira vez que vocês vêm parar aqui! -- olhou para Zinara -- Qual o teu nome, guria? -- perguntou com delicadeza

 

--Zinara, ya sayyida (senhora). -- respondeu de cabeça baixa

 

Olívia estranhou o termo ‘ya sayyida’ mas nada perguntou. -- Quero ouvir tua versão dos fatos e, por favor, olhe pra mim. -- pediu com brandura

 

A morena levantou a cabeça e seus olhos se encontraram com um delicado par de verdes que a fizeram manter-se calada por uns segundos. -- Eu... eu... -- pigarreou -- Esses quatro e mais um rapaz e duas moças mi cercaram no auditório mi chamandu de caloura e, depois qui a cerimônia acabô, eles me levaram pro lugar onde a inspetora nos encontrô.

 

--E o que aconteceu? -- sentia sinceridade nela

 

--Eles mi pintaram de azul, mi fizeram um monte de ridículo e escândalo e mandaram eu dançá em cima dum trem di modu indecente. -- narrou controlando a raiva -- Si eu fizesse aquilo, ia cuspí em cima do nome dos meus ancestrá e isso num podi sê!

 

--E aí você perdeu a cabeça e agrediu a todos eles. -- concluiu

 

--Aywah... (Sim...) -- balançou a cabeça afirmando -- As moças e o outro rapaz fugiram tudu.

 

--Cagoete... -- um dos rapazes sussurrou com raiva

 

--Tu não é deste país, querida? -- perguntou curiosa

 

--Nasci em Cedro e vivo aqui desdi 1986. -- explicou -- Morei no interior de Guaiás desde qui pisei im Terra de Santa Cruz, e tantu lá quanto im Cedro, o qui eles mi mandaram fazê, uma mulher decente nunca qui faz! -- respondeu com firmeza

 

--Entendo. -- balançou a cabeça positivamente e aproximou-se dos rapazes -- Se os colegas de vocês, os que saíram correndo, não vierem me procurar por bem eles terão de vir por mal. Quanto a vocês, serão suspensos por duas semanas! -- os jovens se revoltaram mas ficaram quietos -- Daqui a pouco passo na secretaria e essa suspensão vai ficar registrada na ficha de cada um. Lembrem-se que essas coisas pesam na hora de arrumar um estágio no futuro.

 

--Ah, professora! -- um deles reclamou de cara feia -- E com ela não acontece nada?

 

--Eu vou conversar mais com ela, só que em particular. -- respondeu seriamente -- E se eu souber que alguém tocou num fio de cabelo dela, vou entender que é culpa de vocês e a coisa não vai ficar boa! -- pausou brevemente -- Agora saiam daqui! E não se atrevam a aparecer antes do término da suspensão.

 

Os rapazes saíram resmungando e de cara feia.

 

--Pronto, guria, agora somos nós duas. -- aproximou-se da jovem

 

“Ave Maria...” -- pensou engolindo em seco

 

--Entendo teus motivos, mas tua reação foi muito exagerada. -- olhava para ela -- Terei de te aplicar uma punição também. -- cruzou os braços

 

Zinara abaixou a cabeça envergonhada.

 

--O diretor tá viajando e o vice diretor viajou hoje após minha palestra. Há muita coisa pra fazer aqui e essa situação de vocês me fez parar de trabalhar pra vir resolver esse caso.

 

Continuava muda.

 

--Eu não vou suspendê-la, porque considero injusto, mas vai ter que me ajudar por duas semanas. Depois das tuas aulas, vai ficar trabalhando comigo até às cinco da tarde.

 

--Ah, mas eu quero!! -- levantou a cabeça empolgada e se envergonhou logo em seguida -- Quer dizer... eu... eu... -- gaguejava -- Eu ajudo, uai!

 

--Então tudo bem, tá decidido assim. -- afastou-se de Zinara e caminhou até a mesa -- Agora vá pra tua casa, tome um banho e esteja aqui amanhã pra mais um dia de aulas.

 

A morena ficou paralisada olhando para a professora.

 

--Pode ir, guria. -- dispensou-a sorrindo

 

--Eu vô. -- fez uma reverência -- Com sua licença, ya sayyida! -- correu para a porta e saiu -- "Eu vou passá duas semanas com essa professora!!” -- pensou empolgada -- "Melhor castigo num há!” -- sorria sozinha

 

De volta ao presente, Zinara ajoelhou-se na beirada da cama e fechou os olhos para orar.

 

“Senhor, Aba, por favor, eu Lhe suplico, permita que Salete reflita melhor e aceite conversar comigo.” -- pedia mentalmente -- “Toca o coração dela, para que esqueça os rancores do passado e aceite procurar o pai. Eu ficaria muito triste em falhar com Shamash...” -- respirou fundo -- "Da mesma forma, Lhe imploro, me ajude a perdoá-la e a esquecer todo mal que ela fez a mãe e a mim!”

 

CAPÍTULO 39 –  Momentos de Paz

 

Clarice e Zinara passeavam de mãos dadas no calçadão da praia.

 

--Quando faz frio assim só ficam os surfistas, né? -- a astrônoma perguntou sorridente

 

--E hoje choveu pela manhã, aí as pessoas não se animam. -- olhava para a morena -- Eu não sei se deveria perguntar isso, mas... -- pausou brevemente -- resolveu seus problemas?

 

--Ainda não e nem sei se vou conseguir... -- olhou para o horizonte -- Também tô achando que vou voltar pra casa mais cedo do que eu pensava, embora precisasse até de mais tempo do que planejei.

 

--Por que? -- não entendia -- Se quiser responder, é claro.

 

--Eu tive uns gastos imprevistos e tenho que poupar dinheiro. Tô de licença, então sabe como é. -- explicou -- Hospedagem em São Sebastião é sempre cara, mesmo que você fique numa pensãozinha michuruca.

 

--Por que não fica lá em casa? -- ofereceu -- Mamãe não iria se opor e eu adoraria...

 

--Ah, não, Clarice, não fica bem! -- parou de andar e olhou para ela -- Eu nem ainda assumi um compromisso com você, não posso dormir na sua casa! Agradeço mas não dá.

 

--Que é isso, Zinara? -- achou graça e soltou a mão dela -- Então não poderia ficar na minha casa como minha amiga? -- cruzou os braços e sorriu

 

--Ah, mas eu não sou só sua amiga, uai! -- respondeu de pronto -- A gente até...

 

--Até...? -- continuava sorrindo

 

--Até se beijou! -- olhou para a paleoceanógrafa -- Eu não beijo minhas amigas, não, uai!

 

--Acho bom! -- segurou a mão dela de novo e voltaram a andar -- Quando quiser se abrir comigo pra me contar o que deve fazer aqui e não consegue, estou à disposição. E sabe que minha casa também.

 

--Eu sei, habibi. -- beijou o rosto da outra -- Chukran! (Obrigada!)

 

--Mas, eu gostaria de te convidar pra ir no meu centro comigo amanhã. -- beijou o rosto da morena também -- Tenho certeza de que vai gostar!

 

--Vou sim, tá marcado! -- decidiu -- E... Clarice? -- parou de andar novamente

 

--O que, meu bem? -- olhou nos olhos da morena

 

--Você... será que você vai ter paciência pra me esperar e... -- pausou brevemente -- Eu ainda tenho um tanto de trem pra resolver e nem sei como vou estar quando tudo terminar... se terminar...

 

--Já disse que espero. -- segurou a outra mão da astrônoma -- Você é muito preciosa pra que eu desista assim tão fácil! -- piscou

 

--Behebbik ya, Sahar! -- falou com muita sinceridade

 

--Você me chamou de que? -- sorriu -- Sahar?

 

--Sahar significa amanhecer e é isso que você me representa: o amanhecer, a alvorada, a esperança...

 

Clarice suspirou apaixonada. -- Ai, Zinara, você é tão romântica... Se eu pudesse te beijava agora!

 

--Então vamos pra um canto bom e lá a gente se beija à vontade! -- propôs -- Se você quiser, é claro!

 

--E onde seria esse canto bom? -- perguntou achando graça

 

--Sei não, mas a gente acha um, uai! -- respondeu de pronto

 

--Então vamos procurar, uai! -- brincou com a outra

 

CAPÍTULO 40 –  Marcas do Passado

 

Salete seguia para casa de mãos dadas com a filha. Pensava na conversa breve que tivera com a astrônoma e nem ouvia os relatos da menina sobre o dia na escola dominical.

 

--Mãe, e aquela moça? -- a menina perguntou subitamente -- Até hoje você não me disse o que ela queria.

 

--Ah... -- não sabia o que dizer -- Nada, querida. -- evitou o assunto -- Era só pra me dizer um ‘oi’ depois de tanto tempo sem se ver. -- sorriu para a garota

 

--É bom ter amiga, né? -- olhava para Salete -- E melhor ainda ter mãe! Uma bênção!

 

--É sim, meu amor... é sim... -- pensou na própria mãe e sentiu tristeza -- É uma bênção... Glória Deus!

 

--Também queria ter pai... -- olhou para frente

 

--Você tem! -- olhou rapidamente para a filha e franziu o cenho -- Não vive com ele, mas tem! Todo mundo tem pai!

 

--Você tem pai? -- perguntou curiosa

 

Salete lembrou-se do pai e mais triste ficou.

 

--Todo mundo tem! -- respondeu enfática -- Você já estudou tudo que o pastor Luis mandou? -- queria mudar de assunto -- Sabe que ele quer que você faça a leitura no próximo culto!

 

--Eu estudei, mas vou ler de novo porque é difícil! Quase nem entendi nada!

 

--Então estude mais! E aleluia! -- levantou uma das mãos sem nem saber porque. Sentia-se perdida

 

Aproximando-se de sua casa, percebeu que Zinara a aguardava encostada no portão.

 

--Ih, mãe, sua amiga! -- Lis apontou para a professora

 

--Boa tarde! -- a morena cumprimentou as duas -- Será que poderíamos conversar mais uma vez, Salete? -- perguntou com delicadeza -- E, por favor, sem excessos. Eu vim em paz, assim como da outra vez.

 

--Conversar sobre o que? -- parou diante da outra e fechou o semblante

 

--Ué, mãe, você não falou que vocês eram amigas? -- Lis não entendeu a reação de Salete

 

A mulher ficou constrangida e por medo de passar por mentirosa diante da filha, aceitou. -- Tudo bem, Zinara. Vamos conversar. -- pegou a chave e abriu o portão -- Querida, -- olhou para a filha -- será que poderia passar na tia Adalgiza e pedir um pouco de café emprestado pra mamãe?

 

--Tá. -- tirou a mochila das costas e entregou a mãe -- Tô indo! -- olhou para a morena -- Até logo, amiga da mamãe! -- deu tchauzinho

 

--Até logo, meu bem! -- retribuiu o aceno e acompanhou a menina com os olhos -- Sua filha tem aquela mesma beleza radiante de sua mãe. Ambas parecem que irradiam bondade. -- comentou

 

--Que foi? -- olhou para a astrônoma -- De olho na minha filha, também? Sai de mim, Satã! Queima, enviada, repreende, Pai amado! -- ergueu as mãos

 

--Por favor, Salete, vou fingir que nem ouvi isso! -- respondeu furiosa, mas se conteve em seguida -- Será possível que não podemos ter mais que poucos segundos de conversa civilizada?

 

--Entra! -- convidou ao abrir o portão, no que foi seguida pela morena -- Eu não tenho o que te oferecer. -- afirmou ao abrir a porta -- Mas também não vamos demorar nesse papo, né?

 

--Não. -- respondeu diretamente -- O que eu tenho a te pedir é uma coisa só: por favor, reconsidere a possibilidade de conversar com seu pai e, quem sabe, reconciliar. Vai ser bom pros dois e ele pode te ajudar! -- argumentava pacientemente -- Pode dar a você e a sua filha uma vida melhor!

 

--Por que isso te interessa tanto, hein? -- perguntou desconfiada -- Ainda não entendi qual é a tua!

 

--Já te disse que acho que não viverei muito. Gostaria de realizar um monte de desejos e um deles, muito importante, aliás, é o de sua mãe: fazer com que você e seu pai se reconciliem! -- afirmou com sinceridade

 

Salete gastou uns segundos calada e andou pela sala sem nada dizer. Depois de alguns segundos, encostou-se na janela e mirou um ponto no infinito.

 

--Quando eu peguei meu pai agarrado com aquela piranha dentro do carro, pensei que fosse morrer. -- relembrou amargamente -- Lá estava eu com meu namorado e, quando olho pro lado, vejo meu pai com outra... -- riu sarcasticamente -- Que ridículo!

 

--Isso é passado, Salete.

 

--Pra mim não! -- olhou para Zinara -- Nunca vou me esquecer do que senti!

 

--Não vai esquecer porque não é esclerosada, mas pode aprender a perdoar. -- rebateu -- Eu mesma já perdoei muita coisa, muita gente, e me senti bem melhor com isso!

 

--Acho que não tenho a sua grandeza! -- respondeu com deboche -- Nunca vou esquecer do dia que mamãe me disse que... -- fez cara de nojo -- que te amava! -- seus olhos marejaram

 

--E ela sempre disse que te amava ainda mais! -- aproximou-se -- Não precisava ter feito o que fez!

 

--Eu não fiz nada! -- encarou a professora -- Ela quem fez!

 

--Você a abandonou e não o contrário! Da mesma forma como fez com seu pai! -- argumentou -- Parece que nunca entendeu, ou não quis entender, que a vida amorosa de seus pais não interferiria no relacionamento deles com você!

 

--EU NÃO ABANDONEI NINGUÉM! -- gritou

 

--Abandonou sim! -- retrucou -- Seu pai traiu sua mãe, mas nunca deixou de ser pai pra você! E sua mãe... -- emocionou-se -- Nunca na vida conheci mulher igual àquela!

 

--ELA ME ABANDONOU POR VOCÊ! -- derramou uma lágrima -- MALDITA DESVIADA DO MAL!

 

--VOCÊ A ABANDONOU! VOCÊ!! -- gritou também -- Você sequer apareceu quando ela ficou doente!

 

--Eu não quero ouvir! -- afastou-se e cobriu os ouvidos

 

--Você abandonou sua mãe, -- continuava acusando -- nunca foi visitar, nunca se ofereceu pra ajudar em nada e nem no dia do enterro se dignou a dar as caras!

 

--CALA A BOCA! -- gritou chorando -- CALA A BOCA, SATANÁS!

 

--CALA A BOCA, VOCÊ! -- gritou também e derramou uma lágrima -- O que você soube fazer, a única coisa que soube fazer, foi correr atrás do apartamento dela e me tirar de lá como se eu fosse um trapo! -- acusou com mágoa -- E depois vem e reclama do que teus primos fizeram contigo! -- relembrou a primeira conversa com Salete -- Aqui se faz, aqui se paga, viu, fi?

 

A loura chorava sem nada dizer. Zinara respirou fundo e caminhou até a porta.

 

--Sabe qual é o nosso problema? -- a astrônoma perguntou -- A gente tem mágoas demais no coração. -- olhava para a outra -- Eu quero de verdade te perdoar por tudo e tenho orado a Deus pedindo que Ele me ajude a isso... -- abriu a porta -- Se você fosse uma verdadeira cristã, saberia que o Pai disse que honrarás pai e mãe, e o Filho ensinou que se deve reconciliar com o outro enquanto se tem possibilidade. -- respirou fundo -- Fica com Deus, Salete. -- foi embora

 

A mulher fechou os olhos e chorou profundamente.

 

***

 

Zinara chegou na pensão se sentindo mal. Tomou um banho, comeu um sanduíche, trabalhou um pouco no computador e decidiu parar por volta das dez da noite. Após suas orações, totalmente insone, pegou novamente o laptop e voltou a escrever sobre sua história.

 

“Lembro perfeitamente do melhor castigo que já recebi na vida, Kitaabii: trabalhar por duas semanas ao lado da mulher mais maravilhosa que meus olhos viam naqueles tempos...”

 

--Ufa, até que enfim! -- Olívia respirou aliviada -- Terminamos tudo mais rápido do que eu imaginava! -- sorriu para a morena

 

--Pois é, ya sayyida professora Olivia! -- sorriu também -- Os trem tão tudo rotulado, as vidraria foram tudo arrumadinha e agora o laboratório tá uma organização só!

 

--E acabamos no momento certo. Hoje termina a tua punição e tu te livras de mim.

 

“Ah, qui pena...” -- lamentou mentalmente

 

--Os veteranos têm te perturbado?

 

--Nunca mais levei aquele tar de trote, ya sayyida professora Olivia. -- respondeu balançando a cabeça -- O povo parece qui tem medo de mim. -- coçou a cabeça -- E tem uns qui me chama de xiita, só qui nem sô muçulmana...

 

--Zinara, por que me chama de ya sayyida? -- perguntou divertida

 

--Ah, -- abaixou a cabeça encabulada -- quer dizer senhora. -- mexia em uma folha de papel -- É qui se eu chamá de senhora me parece qui num tô usando de respeito, sabe? -- sorriu envergonhada

 

--É um modo formal de tratamento na tua língua natal?

 

--Aywah... (Sim...) -- balançou a cabeça positivamente -- Um modo informá, mas ainda respeitoso, seria simplesmente ya.

 

--Pode me chamar de Olívia e ainda assim ser respeitosa.

 

--Anêim, num pode! -- olhou para a loura espantada -- É abuso por demais da conta, uai!

 

Olívia achou graça. -- Então me chame, pelo menos, de professora Olívia. Sem ya sayyida ou simplesmente ya. -- pediu

 

--Tá certo, professora Olívia. -- concordou

 

--Agora, vá pra casa, querida, que já tá tarde. -- olhou para o relógio -- Onde tu moras? Quem sabe eu possa te dar uma carona? -- ofereceu

 

Tereza já havia ido embora com as filhas e a morena morava escondida na própria escola fazia poucos dias. Dormia no vestiário feminino e acordava cedíssimo para não ser surpreendida pelas moças da faxina.

 

--Ah, eu moro perto. -- mentiu e se levantou -- E ya say... professora Olívia tem razão! É hora di í!

 

--Cuidado, viu, guria? -- recomendou -- Tu és do interior e as pessoas aqui em Gyn não são como aquelas com quem convivias na tua cidade.

 

--Eu sei. -- caminhou até a porta do laboratório -- Tchau, professora Olívia! Bão finar de semana!

 

--Pra você também, querida! -- soprou um beijinho para a jovem

 

Zinara saiu do laboratório sentindo-se nas nuvens. “Ela soprô um beijinho pra mim!” -- sorria -- Ai, ai... -- suspirou

 

***

 

A morena acordava cedo em mais uma segunda-feira e se preparou correndo para estar pronta antes das faxineiras aparecerem. Ao sair do vestiário, lembrou-se que seu pouco dinheiro havia acabado.

 

“E agora, onde eu tomo um café de graça?” -- pensava preocupada -- "Meu dinheiro danô-si e o dinheiro qui ya Tereza me deu também já era...”

 

Escondeu sua bolsa debaixo da escada do estacionamento e seguiu com sua mochila sem saber para onde ir.

 

“Oh, Aba, mi ajude, por piedade...” -- pediu humildemente

 

Após circular sem rumo pela escola, sentou-se em um dos bancos do bloco C. Era o local onde os estudantes mais costumavam a freqüentar em seus tempos vagos.

 

--Oi. -- um rapaz cumprimentou -- Pensei que só eu madrugasse aqui!

 

--Oi. -- olhou para ele desconfiada -- Acordo com as galinha, como si diz na roça.

 

--Meu nome é Frederico. -- sentou-se ao lado dela -- Mas pode me chamar de Fred. -- apresentou-se sorridente -- É um prazer!

 

--Eu sô Zinara. -- fez um gesto de cabeça -- Encantada!

 

--Encantada?! -- achou graça -- Ui, que coisa antiga! -- fez um gesto afetado -- Mas eu sei quem você é! A famosa Zinara Raed, a xiita que moeu no pau os valentões do colégio! -- sorriu -- Você virou minha ídola, viu, fi? Minha e de um monte de gente aqui!

 

“Que rapaz de modus estranhos!” -- pensou desconfiada -- Num sei si isso é bão ou ruim, mas... si quisé sê meu amigo eu vô achá melhó. -- sorriu -- Afinar di conta, eu num tenho amigo aqui...

 

--É porque esse pessoalzinho tem medo docê, coisa que eu não tenho. -- cruzou as pernas -- E dizem que você é amiguinha da professora Olívia, ela representa autoridade e aí já viu! -- revirou os olhos -- Também dizem que você é a maior CDF. Sempre sabe as respostas de todas as perguntas que os professores fazem!

 

--Ave Maria, qui é a maió fofocada nesse colégio, aHHa! -- praguejou -- E num sei qui diacho é CDF!

 

O rapaz riu. -- CDF é uma pessoa estudiosa e irritantemente inteligente. -- explicou -- Quanto a saber tanto, sou repetente do primeiro ano, aí a gente sabe das fofocas sobre os calouros.

 

--Hum... -- respondeu antes da barriga roncar -- Eita! -- ficou com vergonha

 

--Tomou café não, fi? -- perguntou surpreso -- Tem um leão aí dentro! -- apontou para a barriga da colega

 

--Tomei não... -- abaixou a cabeça

 

Frederico reparou na moça e deduziu que ela era uma pessoa pobre. -- Em duas semanas reparei que você tem pouquíssimos modelitos! Tua vida deve ser punk!

 

--Pouquíssimos o que? -- não entendeu

 

--Deixa pra lá. -- levantou-se -- Vem comigo, xiita! -- chamou -- Lá fora tem uma véia gente boa que vende um pão com queijo e café com leite com gostinho de comida da vovó!

 

--Mas eu... -- envergonhou-se -- Num tenho dinheiro, não, uai.

 

--Eu não tô convidando, fi? Eu pago! -- pôs as mãos na cintura -- Vem, Zi, enrola não que daqui a pouco as aulas começam!

 

Zinara achou graça e ficou pensando. Aprendeu que não era correto aceitar presentes de homens desconhecidos, mas a fome a convenceu a arriscar. -- Chukran! (Obrigado!) -- levantou-se -- Nem sei como agradecer. -- sorriu constrangida

 

--Comece me ensinando sobre diagrama de Pauling! -- respondeu bem humorado -- E aproveite pra me explicar sobre número atômico, número de massa, isótopos, isóbaros e essa porr* toda que acaba comigo! -- revirou os olhos

 

--Fechado! -- achou graça

 

E desde aquele dia, Frederico passou a pagar o café da manhã de Zinara em troca de explicações sobre tudo e mais um pouco.

 

***

 

--Professora Olívia? -- a morena bateu na porta da sala respeitosamente -- Sô eu, Zinara.

 

--Entre, querida. -- autorizou sorridente

 

--Tudo bem com ya sayyida? -- parou diante da mesa da loura

 

--Pensei que tivéssemos combinado que não haveria mais yas ou ya sayyidas. -- brincou e sorriu

 

“Ave Maria, qui sorriso iluminado...” -- pensou embevecida

 

--Sente-se, por favor. -- pediu e a jovem obedeceu -- O que te traz aqui, meu bem? -- olhava para a moça

 

“Em primeiro lugar eu queria lhe ver porque tava morrendo di saudade!” -- pensou -- Já faz uma semana qui meu trabalho com a professora terminô, então eu vim perguntá si tem um ôtro qui eu pudia fazê. -- não sabia como dizer -- Eu tenho precisão de ganhá dinheiro, e si tivesse arguma coisa pra mim... -- envergonhou-se de pedir -- Ó, eu aceito pagamento em marmita! -- balançou a cabeça

 

Olívia ficou desconfiada. -- Zinara, onde e com quem tu moras, daí? -- estudava o rosto da moça

 

--Com uma amiga de usritii. -- abaixou a cabeça -- Digo, amiga de minha família. -- mentiu

 

--E ela não te dá comida? Noto que emagreceu desde a primeira vez que te vi. E olha que tu já eras magra!

 

“Nossa, ela presta atenção em mim!” -- pensou surpreendida -- Ela dá, mas é qui... Eu num janto... -- não conseguia olhar para a professora -- "E só armoço di vez em quando...” -- pensou

 

--Tu poderias trabalhar na monitoria, que é remunerada, mas... pra isso é preciso não estar mais no primeiro ano. -- pensava em voz alta -- Se trabalhasses como voluntária no laboratório não serias remunerada... -- buscava uma solução -- Eu tô aqui pensando mas não consigo encontrar uma opção pra ti...

 

--Tudo bem, professora! -- levantou-se de um pulo -- Eu dô meu jeito.

 

Ficou olhando para a jovem e nada respondeu.

 

--Agradecida pela atenção. -- saudou com reverência

 

--Não seria uma solução politicamente correta, mas... -- começou a falar -- se fosse voluntária pra trabalhar no meu laboratório... eu poderia pagar teus almoços... -- propôs -- Talvez até teus jantares...

 

--Smallah! (interjeição de admiração) -- arregalou os olhos e sorriu -- Puxa, professora! -- aproximou-se da loura, ajoelhou-se rapidamente e beijou uma das mãos dela -- Obrigada, obrigada mesmo!

 

--Não precisa agradecer, meu bem! -- tocou o rosto da jovem -- Tu és um amorzinho de pessoa! -- sorriu

 

O coração da morena disparou e ela se levantou atrapalhadamente.

 

--Eu... eu...

 

--Calma, guria. -- achava graça da timidez dela

 

--Min nazrah ghayyarti haali... (Com um olhar, você mudou minha vida...) -- falou sem pensar -- Ya Samsii... (Meu Sol...)

 

--O que? -- não entendeu

 

--Eu vou indo. -- correu para a porta -- Macasalaama! (Até logo!) -- foi embora -- Professora Olívia e comida... -- falava sozinha -- O que mais eu poderia querer? -- sorria abobalhada

 

--Ei, Zi! -- ouviu Frederico chamar -- Vem cá, sua xiita, quero te apresentar uma pessoa!

 

Olhou na direção do rapaz e viu que havia uma jovem negra toda bem arrumada ao lado dele. Já havia visto aquela moça na escola.

 

--Oi. Boa tarde. -- chegou cumprimentando

 

--Hi, honey, como vai? -- a moça perguntou sorridente -- Tudo well?

 

“Hein?” -- não entendeu

 

--Deixa eu te falar, Zi, essa aqui é Sandrinha, uma amigona! -- Fred apresentou -- Sandrinha, conheça a famosa Zinara que sabe tudo de tudo e quebrou os valentão no pau!

 

“Ele sempre diz isso quando mi apresenta pro povo!” -- revirou os olhos

 

--My pleasure, honey! -- deu beijinhos de comadre na outra

 

--Encantada. -- respondeu desconfiada

 

--Nós tamo indo pra uma festa na casa da prima dela. -- o rapaz falou -- Vambora, sujeita?

 

--Pode vir que eu tô convidando, honey. -- Sandra falou -- Don't worry! Só se preocupa em be happy! -- sorria

 

--Ah, mas... -- coçou a cabeça -- Como é qui eu vô em festa? Num tenho roupa pra isso e nem nada... -- respondeu sem graça -- "E nunca qui fui em festa na cidade...” -- pensava

 

--Eu te empresto, honey, relax! -- olhou para a morena de cima a baixo -- A gente é tudo slim standard e o que é meu vai to fit on you! -- ofereceu

 

“Essa aí fala pió qui eu!” -- pensou

 

--Pode dormir lá em casa, baby! -- o rapaz ofereceu -- Moro com vó e sou inofensivo! -- riu alto

 

--Ou então na minha house. -- Sandra falou -- Livo numa república com uma little girl e ela é relax as well.

 

--E aí? -- Fred insistiu -- Vambora?

 

Zinara estava na dúvida.

 

--Demorou a speak, então a resposta é yes! -- segurou a morena pela mão -- Go, my friend! Girls just wanna have fun! -- foram andando

 

“Será que vai ser uma boa idéia?” -- pensava intrigada

 

--Garota, solta essa franga louca que reside no âmago do teu ser! -- Frederico falava gesticulando afetadamente -- Isso que a gente vive hoje, meu bem, um dia vai ficar no passado! Passado deixa marcas! -- filosofava -- E que as marcas sejam boas!

 

--Verdadeiras tatuagens do destino! -- Sandra complementou -- Cool, my friend!

 

--Eu hein! -- Zinara achava graça

 

CAPÍTULO 41 –  Mudando de Vida (Ou Não)

 

Ahmed chegava na casa dos pais com seus três filhos. Encontraram a porta da cozinha aberta e foram entrando.

 

--Ô, di casa! -- chamou em tom brincalhão -- Vem chegandu um bataião de Ahmed! Põe água nu fejão!

 

--Óia só quem taí! -- Raed exclamou sorridente -- Us mininu!

 

--Oi, vô! -- Ahmed João se aproximou e beijou a mão do avô -- A bênça!

 

--A bença! -- os dois irmãos pediram ao mesmo tempo

 

--Deus abençoe ocês! -- colocou a mão sobre a cabeça de cada menino e depois os beijou

 

--A bença, baba! -- Ahmed pediu se curvando

 

--Deus ti abençoe, fio! -- pôs a mão na cabeça dele e o beijou -- Eu tô muito filiz cum essa visita!

 

--Di agora im dianti eu vô tê mais contanto cum elis e o sinhô também. O sinhô e maama e tia Najla. -- prometeu

 

--É bão! -- sorria para todos -- A vó docês tá lá nu roçadu cum Najla, bem pertu du riu. Pur que num vão lá fazê uma surpresa?

 

--E podi tomá banho, pai? -- Ahmed Lucas perguntou empolgado

 

--Podi. -- balançou a cabeça

 

--O úrtimo a chegá é muiezinha! -- Ahmed Marcos desafiou antes de sair correndo na frente dos demais

 

--Trapacêru! -- Ahmed João reclamou antes de seguir atrás do menino, seguido pelo outro irmão

 

--Podemu prosiá um pôco, baba? -- Ahmed pediu -- É prosa di homi!

 

--Senta. -- ofereceu e se sentou também -- Du qui si trata?

 

--Quiria dizê qui arrumei impregu. -- contou a novidade -- Vô sê ajudante di obra. Tão fazendu uma rodoviária piquena im Cavalganti e eu vô trabaiá lá.

 

--Muito bão! -- respondeu satisfeito -- Agora vê si num vai fazê titica módi num sê demitidu! E também num vai pidi demissão sem mais sem menus!

 

--Vô não, baba. -- garantiu -- E dispois qui essa obra acabá procuro ôtro trem pra fazê.

 

--Tô gostandu di vê! -- estava animado

 

--E vô casá cum Catiúcia. -- comunicou decidido -- Quiria a bênça du sinhô!

 

--Tem minha bênça! -- segurou a mão do filho -- Um homi di verdadi monta famia e num dexa fartá nada!

 

--Eu quiria qui o sinhô fossi mais eu pidí a mão dela pru pai dela.

 

--Podi dexá! Diz o dia e nóis vai! -- deu um soco na mesa

 

--Quiria fazê o casório im ôtubru! É um mês bão e o minino inda num vai tá nascidu.

 

--É bão. -- concordou -- Ocê tá mesmo mudadu! É um orguio pru teu pai!

 

Ficou todo prosa. -- E quiria uma festança boa, sabi? Matá um boi, pra tê muita carni e comprá muita bibida... -- olhou para o pai -- Bibida sem árcu, mas vai tê qui tê ao menus umas pinga! -- explicou -- E uns doci qui maama faz, bolu...

 

--Cum qui dinheru, hein, mininu? -- perguntou desconfiado

 

--Ah... -- sorriu e abaixou os olhos -- Meu futuru sogru vai querê ajudá, qui eu sei... -- mexia na toalha da mesa -- Mas nossa famia também tem qui contribuí, né?

 

--Nossa famia? -- queria ver o que o filho diria

 

--É, né, baba...? -- olhou para o pai -- O sinhô, maama, tia Najla...

 

--AHHa! -- reclamou -- Certas coisa num muda é nunca! -- fez cara feia

 

***

 

Salete assistia a um culto em sua igreja. Era noite.

 

--"Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?" -- pastor Luis lia uma passagem do livro de Mateus -- "E o mestre respondeu: "Eu digo a você: Não até sete, mas até setenta vezes sete.”” -- olhou para os fiéis -- E então eu lhes pergunto e pergunto a mim mesmo! -- fechou a Bíblia -- Será que temos feito isso? Será temos sabido perdoar o próximo? E antes disso, será que temos praticado o exercício de não julgar?

 

Salete ouvia pensativa.

 

--Meus irmãos, -- caminhava pela igreja -- nós precisamos aprender a deixar de ser aquele tipo de cristão que conhece a Deus de ouvir falar! Precisamos ser cristãos renascidos da água do verdadeiro batismo! Cristãos sinceros, limpos de coração, mansos como as pombas e sábios como as serpentes! -- aconselhava -- Vejo companheiros de fé acusando demais, recriminando demais! Fala-se mais do diabo do que de Deus! Condena-se mais do que se estende a mão ao próximo! Acusa-se demais! -- gesticulava -- Será que é esse o papel do cristão? Pois eu digo: não é!

 

--Tá certo! -- Lis concordou

 

--“Por que vês tu, pois, o argueiro no olho do teu irmão, e não vês a trave no teu olho?”, assim diz a Palavra! -- citou novamente Mateus -- A nossa grande batalha, nossa grande luta, não é contra os erros e defeitos dos nossos irmãos! A nossa luta deve ser no esforço de nós mesmos nos superarmos e buscarmos ser pessoas melhores! -- aconselhava -- E assim como é preciso aprender a perdoar o outro, é preciso aprender a se perdoar também! Jogar fora todas as mágoas do passado e renascer! -- parou perto de Salete -- Como diz em 2 Coríntios 5:17, “pelo que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo.” -- gesticulava -- Vamos ser cristãos de verdade, vamos esquecer o que houve de ruim, trabalhar na própria melhoria, tirar a trave de nossos olhos e então pedir ao Pai sabedoria pra ajudar o irmão a fazer o mesmo! Mas sem condenar, sem colocar o dedo na cara! -- voltou a caminhar -- Aprendamos com o grande médico das almas, o divino Rabi, alegria dos Homens e das Mulheres! -- sorria -- Vamos trazer luz a essa terra, meus irmãos! Chega de treva! Chega de dor!

 

Lembrou-se das palavras que ouviu de Zinara.

 

“--Sabe qual é o nosso problema? -- a astrônoma perguntou -- A gente tem mágoas demais no coração. -- olhava para a outra -- Eu quero de verdade te perdoar por tudo e tenho orado a Deus pedindo que Ele me ajude a isso... -- abriu a porta -- Se você fosse uma seguidora verdadeira do Rabi, saberia que o Pai disse que honrarás pai e mãe, e o Filho ensinou que se deve reconciliar com o outro enquanto se tem possibilidade.”

 

Lembrou-se da mãe.

 

“--Não faça coisas das quais vai se arrepender depois, minha filha! -- Olívia pedia emocionada -- No dia em que caíres em si, não poderás voltar no tempo!

 

--Eu nunca vou desejar isso! -- respondeu mal criada”

 

Lembrou-se do pai.

 

“--Filha, eu não peço pra você me perdoar ou pra gostar da mulher que escolhi pra mim, mas não me tire de sua vida! Sou seu pai! -- pediu emocionado -- Eu te amo!

 

--Você não ama ninguém! -- falava com revolta -- Não passa de um tarado safado!”

 

--“Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele; para que não aconteça que o adversário te entregue ao guarda, e sejas lançado na prisão. Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil.” -- o pastor citou novamente Mateus -- A Palavra diz tudo, está tudo aqui! -- levantou o Bíblia -- O que estamos esperando?

 

--Eu não sei, pastor... -- murmurou para si mesma -- Eu não sei...

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Música do Capítulo:

 

[a] No Dia em Que Eu Saí de Casa. Intérpretes: Zezé di Camargo & Luciano. Compositor: Joel Marques. In: Zezé di Camargo & Luciano. Intérpretes: Zezé di Camargo & Luciano. Columbia & Sony Music, 1995. 1 CD, faixa 8 (3min15)

 

Alusão à música Na Boquinha da Garrafa no trote aplicado em Zinara. Intérpretes: Companhia do Pagode. Compositores: Diumbanda / Eleonora / Willen 


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Comentários para 14 - UMA HISTÓRIA DENTRO DA OUTRA:
Sem cadastro
Sem cadastro

Em: 29/05/2024

E que capítulo foda tô adorando rememorar com Zinara seu passado. E que passado! 100 anos em 5


Solitudine

Solitudine Em: 14/06/2024 Autora da história
Olá querida!

É verdade! Zinara viveu experiências muito variadas e sempre com muita paixão. Fico feliz que você também tenha se apaixonado!

Beijos,
Sol


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PaudaFome
PaudaFome

Em: 29/05/2024

Parei tudo só pra dizer despedida Zinara Khaled que lindo!!!!!


Solitudine

Solitudine Em: 14/06/2024 Autora da história
Olá querida!

Sou suspeita. Essa despedida também me emociona.rs

Beijos,
Sol


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Samirao
Samirao

Em: 07/10/2023

Saudades do tempo de escola técnica z?


Solitudine

Solitudine Em: 11/11/2023 Autora da história
Sabe que eu tenho?


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Samirao
Samirao

Em: 03/05/2023

Falta ppuco


Solitudine

Solitudine Em: 15/05/2023 Autora da história
Ai, meu Pai! rs


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Femines666
Femines666

Em: 16/03/2023

Estou encantada com essa busca de si mesma da Zinara. Desse Tao que ela é todos nós precisam encontrar e seguir pra se equilibrar. É verdade que suas histórias fazem a gente refletir e até amadurecer. Nota mil pra ti!


Resposta do autor:

Olá querida!

Obrigada!

Quando leio isso, tenho aquela sensação de "missão cumprida".

Beijos,

Sol

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Alexape
Alexape

Em: 29/12/2022

Essa retrospectiva da vida da Zinara é o máximo. É como se fosse olhar pelo retrovisor e ir tomando os caminhos em marcha ré pra ajustar na melhor rota e depois seguir em frente de novo. Foda cara! Adorei III São várias histórias dentro da outra, muitas vidas numa só! @^@


Resposta do autor:

Captou exatamente o sentido!

Quantas pessoas têm a chance de fazer isso? Talvez a gente tenha, mas não perceba.

Beijos e obrigada pela presença empolgada!

Sol

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Samirao
Samirao

Em: 19/09/2022

Muito bom ela veio. Huahuahua  Volta viu amore? Eu consertar umas coisinhas aqui . Xero


Resposta do autor:

Olá Samirão!kkk

O tempo passa e eu não deixo de rir com esse seu pseudônimo atual! rs

Menina, mas que tanto trem é esse que tem para consertar? É erro de português? Eu fico intrigada.

Beijos,

Sol

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Seyyed
Seyyed

Em: 19/09/2022

A história de vida da Zi é dura mas linda! E me parece que ela só pegou mulher boa heh3


Resposta do autor:

kkkkkkkkkkkk Você fala cada coisa! rs

Mas eu concordo que a história de vida de Zinara é exatamente o que você diz: dura porém linda!

Zinara sempre se envolveu muito com as mulheres da vida dela. E o amor faz do outro sagrado.

Beijos,

Sol

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Seyyed
Seyyed

Em: 19/09/2022

Ipi ipi uhaaa!!! Ela respondeu!! Até que tu é simpática e cheia das salama! hehe

Tá eu vou confiar que s caipira vai responder tudo ic  Indo pra história tô cada vez mais envolvida. Amando essas visitas ao passado, Shamash Najla fazendo o povo da roça acordar Leda e suas tiradas... simplesmente amando EBT!!!


Resposta do autor:

kkkkkkkkkkkkkkkk Você me diverte!

Pode confiar na caipira!

Novamente, só posso dizer que fico muito feliz em ler o que você escreve para mim.

Beijos,

Sol

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Gabi2020
Gabi2020

Em: 13/05/2020

Olá Sol!
O fanatismo é ruim demais, mas o fanatismo religioso pra mim é o pior, Salete não prega o que aprende, muito pelo contrário.

Magali... Ah Magali... Kkkkkkkk...

Zinara e sua triste despedida de casa, palavras duras de ambos os lados... Duro de ouvir, difícil de assimilar... Raed foi cruel com a filha , mas não dá pra julgar, ele foi criado daquela maneira (não que isso justifique), é preciso dar um desconto.
"Eu nunca vou esquecer aquela cena, Kitaabii. O ônibus era uma marinete velha, mas conseguia correr mais que o pobre cavalo de meu irmão. Nós sorríamos um para o outro com os olhos marejados e por um momento me pareceu que Khaled, o meu amado irmão Khaled, estava de volta apenas para se despedir de mim. Quando finalmente pude pegar o buquê, várias caliandras se soltaram e perderam-se em pequenos vôos até cair no chão. A emoção que senti, nem sei descrever. Penso que foi a alegria que Allah (Deus) me trouxe para dar alguma poesia a um dos dias mais tristes de minha história nessa Terra de Santa Cruz.!” Dizer o que? Nada só ler e reler essa bela passagem. Sempre achei trote uma coisa besta, felizmente não passei por isso, onde estudei era proibido. A doce Olívia com seu sotoque sulista que tanto gosto daí.

Beijos
Resposta do autor:

Olá Gabinha!

E este fanatismo religioso está quase virando lei. Preocupante... É a era da Terra plana.

Despedida bonitinha, não? A parte das caliandras. Já a tensão dentro de casa não tem beleza. São as vicissitudes da vida que tanta gente passa, com suas devidas particularidades.

Eu sei porque você tanto gosta deste sotaque. Apoiada.

Beijos,

Sol

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