FINALMENTE ELA!
CAPÍTULO 32 – Olhos nos Olhos
Amina e Raed conversavam dentro do quarto. A mulher havia narrado ao marido sobre o que aconteceu no período em que esteve com Zinara, omitindo apenas a confissão dela quanto ao fato de ser homossexual.
--E nóis prosiemu sobri as coisa toda, homi! -- gesticulava -- Falemu tudu qui tava ingasgadu na garganta pur essis anu todu! -- olhava para ele -- E quandu eu dissi a nossa fia qui amava ela e ficô claru qui ela mi amava também, pariceu qui meu coração ia expludi! -- emocionou-se -- Fui bunitu pur dimais da conta e eu mi sintí livri! Livri dus fantasma du passadu, num sabi? Di todus elis... -- passou as mãos nos olhos -- Num sei cumé qui vai sê daqui pra frenti, purqui ela tá duenti di uma duença gravi e a pesti du tratamentu também é um trem pesadu qui só, mas... -- olhou para a imagem de Nossa Senhora na mesinha de cabeceira -- cunfiei a minina nas mão da Virgi! Ela há di intercedê pelu bem di Zinara! -- desejou ao se benzer
--É bão qui ocês tinha tidu essas cunversa. -- sentou-se na cama -- É bão... -- repetiu pensativo
--Quandu ela vortá di viagi, eu vorto pra lá também. -- sentou-se ao lado do marido -- Ocê bem qui pudia í mais eu. -- ajeitou-se nas cobertas
--Qui é issu, muié? -- respondeu surpreso -- Quem é qui vai cuidá dus roçadu?
--Nossos fio! -- respondeu de pronto -- E Najla fica di oio nelis!
--AHHa! -- protestou -- Inté pareci qui Zinara vai gostá di me recebê na casa dela!
--E pur que num ia? -- cruzou os braços -- Ocê tem qui í, modi us dois prosiá e resolvê us problema também!
--Cumigu num ia sê iguár foi cocê! -- discordou -- Zinara e eu tem jeitu não...
--Ave Maria, qui homi custosu! -- deitou-se -- Vô ripití o qui já falei: dipois num venha chorá nus meu zovidu! -- virou-se de lado
Raed continuou sentado e depois de uns segundos calado perguntou: -- Amina... -- olhou receoso para ela -- Ocê mi ama?
A mulher estranhou a pergunta e virou-se de frente para ele. -- Pur que isso agora?
--Respondi, muié! -- pediu com humildade
Gastou uns segundos pensando até que respondeu: -- Já tive medu e dipois raiva docê. Já sinti orguio e carinhu. Já tivi vontadi di ti dexá, di ti batê nu meio das fuça e dizê muita coisa... -- desabafou -- Mas aprendi a ti gostá e num imaginu a vida sem ocê. -- confessou
Ele ficou todo prosa e resolveu desabafar também. -- Sei qui num sô homi di palavra bunita ô di carinhu, mas quandu ti isculhi comu muié, num foi pur beleza, mas pelu qui vi nus teus zóio. -- falava com sinceridade -- Eu sabia qui ocê era a muié qui quarqué homi di honra pudia querê e num mi inganei... -- olhava nos olhos -- Ana behebbik, Amina. Inta abu ouyoun garea, ya habibi... (Eu amo você, Amina. Você é aquela dos olhos corajosos, minha querida...) -- segurou uma das mãos dela -- Ya hayati... (Minha vida...)
A esposa ficou surpresa com a primeira declaração de amor que ouviu na vida. -- Ô, Raed, ocê tá duenti? -- perguntou desconfiada ao se sentar -- Num mi diga qui tá cum cânci também? Fala, homi! -- estava preocupada
O homem acabou achando graça. -- Pela primera veiz eu mi declaru e ocê pensa qui eu tô pra morrê?
--Uai! Nóis tava falandu di Zinara e ocê mi vem cum essa, qué qui eu pensi o que? -- cruzou os braços -- Que qui ti deu?
--Foi purquê ocê falou das coisa qui dissi e oviu di Zinara, e falô qui teu coração quasi qui explodiu quandu notô qui ela também ti amava... -- respondeu sem jeito -- Achei qui ocê miricia sintí o coração batê mais forti pur minha causa também...
--Oxi... -- não sabia o que dizer
--Ahmed veio aqui dizê qui Catiúcia tá prenha e eli disimpregadu. Num dexei nem eli falá muitu e dispachei. -- contava -- Nagibe também veio cheiu das cunversa mas eu cortei! -- pausou brevemente -- Eu tenhu matutadu nas coisa qui ocê mais Najla mi fala e... tô tentandu mudá. Inté fiz uma promessa...
--Si ocê qué mudá, intão faz o qui eu ti dissi e procura tua fia modi prosiá! -- respondeu com seriedade -- E dipois nóis tem qui chamá Ahmed aqui e botá eli na linha! -- deitou-se novamente -- Agora vai durmi qui tá tardi! -- virou-se de lado -- Basnoiti!
--Ô muié sem romantismu... -- resmungou consigo mesmo e se deitou também
***
Zinara tinha acabado de fazer o check in no hotel em Paulicéia. Caminhava pelo corredor em direção a seu quarto pensando que estava a minutos de finalmente conhecer Clarice. “Nem acredito!” -- estava ansiosa -- "Mal posso esperar...” -- abriu a porta do quarto e entrou -- Será que se eu ligar pra ela logo agora vai ficar parecendo que sou saliente? -- falava consigo mesma ao fechar a porta -- Ai, mas eu devia tomar um banho antes, né? -- colocou a mala sobre um pequeno móvel -- Tem que saber se apresentar! -- decidiu ao abrir a mala -- Saca uma roupa aí e corre pro chuveiro, bicha besta! -- aconselhava-se
“Gente, será que Zinara já chegou?” -- Clarice pensava enquanto penteava os cabelos -- “Já deveria estar aqui.” -- olhou para o relógio -- "Acho que dava tempo, mesmo contando com os engarrafamentos!” -- deixou o pente sobre a mesinha e foi até o telefone -- Será que se eu ligar pra recepção e perguntar...? Ai, mas eu vou fazer isso! -- discou o número da recepção -- Alô, boa tarde, poderia me dar uma informação por gentileza? Será que a senhora Zinara Raed já se encontra no hotel? -- pausou brevemente -- Chegou há cinco minutos? -- empolgou-se -- E qual o número do quarto dela? -- esperou a resposta -- Mil duzentos e um? Ah, obrigada! -- desligou -- Será que eu ligo? Ou deixo ela me ligar? -- estava em dúvida -- Melhor esperar. -- foi até a janela -- Calma, Clarice, quem esperou até agora espera mais! -- olhou para fora -- Ansiedade!
Cátia chegava na recepção do mesmo hotel para fazer o check in.
--Boa tarde, -- cumprimentou -- meu nome é Cátia Magalhães e eu reservei um quarto double deluxe.
--Boa tarde, senhora. -- a recepcionista digitou o nome da loura -- Encontrei sua reserva. -- sorriu -- Passa seis dias conosco?
--Sim. -- sacou o cartão de crédito para fazer o pagamento -- Eu vou pagar no DoctorCard. -- entregou-o a moça -- Queria também que me fizesse um favor, querida. -- sorriu -- Poderia ver se minha amiga Clarice Verrier já chegou? Preciso saber em que quarto ela está pra poder ficar perto.
--Pois não! -- balançou a cabeça concordando
A astrônoma terminou de se arrumar e correu para telefonar -- Melhor ligar logo pra Clarice! -- pegou o telefone do hotel e discou para o quarto dela -- Já passei até perfume! -- aguardava ansiosa
--Alô? -- Clarice atendeu rapidamente
--Ah... -- engasgou-se -- As-Salamu Alaikum! (Que a paz esteja convosco!) Oi! -- não sabia o que dizer -- Sou eu! -- sorria
--Zinara, que ótimo que você já chegou! -- fingiu não saber que a morena já estava no hotel -- Como foi a viagem? Tudo bem?
--Graças a Deus, sim, e a sua? -- sorria também
--Foi boa também. -- pausou brevemente -- Escuta, por que a gente não vai pro lobby do hotel pra se conhecer? -- mal se agüentava
--Ah, mas eu quero! -- concordou de pronto -- Tanto é que mal cheguei fui logo tomar banho, lavar o cabelo e passar perfume pra te conhecer! -- calou-se repentinamente -- "Ô, bicha besta, ela não tem que saber disso, né?” -- recriminou-se
--Ai, mas eu também me preparei pra você desde que cheguei! -- arrependeu-se do que disse -- Quer dizer, me preparei pra esse momento, porque afinal de contas... Eu... quero dizer... Eu não quero dizer nada! -- não sabia o que falar -- "Clarice, como você paga mico!” -- pensou fechando os olhos
--Eu tô indo pro lobby agora! -- anunciou -- Te espero lá!
--Eu também! -- sentiu o coração disparar -- Beijo!
--Até logo! -- desligou o telefone -- Ô, minha Nossa Senhora, tá me dando até uma câimbra na boca! -- estava nervosa -- Oh, Aba (Meu Pai), não me deixe passar vergonha! -- foi até a porta e a abriu -- E seja lá o que Deus quiser! -- saiu
--Ai, que loucura, eu nem acredito! -- Clarice abriu a porta do quarto e respirou fundo -- Fica calma, que vai dar tudo certo! -- saiu apressadamente
Enquanto isso, Cátia ligava para o quarto da ex namorada. -- Hum, que droga! Não atende! -- pôs o telefone no gancho -- Deve ter saído! -- concluiu -- Mas eu não vou desistir, afinal de contas ela vai ter que voltar pro quarto pra dormir. -- foi para o banheiro -- Vamos cuidar da beleza pra ter condições de chegar rachando, Cátia! -- sorriu -- Hoje, sem dona Leda na parada, ela não me escapa! -- olhou-se no espelho -- Não mesmo!
A paleoceanógrafa chegou primeiro no lobby e foi direto para o banheiro por ter ficado nervosa. -- É melhor fazer um xixi rápido pra garantir! -- entrou em uma cabine -- Já pensou no meio da conversa pedir licença pra vir no banheiro? -- falava sozinha
A morena já vinha olhando para todos os lados. -- Uai, cadê ela? -- parou do lado de uma das mesas -- Ela tá três andares abaixo do meu e deve ter chegado pra esperar o elevador no mesmo instante que eu. -- conjecturava -- Então, considerando que eu tenha perdido o elevador que ela pegou, especulando que a velocidade de descida seja constante e levando em conta que são dois elevadores no hotel, o intervalo de tempo entre a nossa chegada deveria ser da ordem de um minuto e meio! -- coçou a cabeça -- Ô, meu Pai, cadê essa mulher? -- não conseguia se sentar -- Eita pau! AHHa! -- reclamou
--Será que ela vai me achar bonita? -- olhava-se no espelho -- Você nem pra passar um batom, né, Clarice? Como é que esquece isso? -- censurou-se
--Será que ela vai me achar muito feia? -- Zinara andava em círculos -- Mas ela já me viu e o pior foi que eu tava no CTI quase batendo as botas! -- passou a mão nos cabelos -- Ela vai me achar uma jeca! Nem sou mulher de me maquiar...
--Ai, meu Deus! -- respirou fundo -- Vamos lá, Clarice! Ajoelhou tem que rezar! -- saiu do banheiro
--Será que ela desistiu? -- a astrônoma estava indócil -- Ai, que agonia! Meus quatro estômagos tão se comendo aqui! -- falava sozinha
Suaves passadas chamam a atenção de Zinara, que repentinamente buscou com os olhos quem estaria se aproximando. Seu coração acelerou quando vislumbrou aquela mulher morena como índia, dona de cabelos lisos e pretos cortados na altura dos ombros. Sabia que era Clarice e foi incapaz de verbalizar qualquer palavra.
A paleoceanógrafa reconheceu a outra e sentiu-se ainda mais nervosa ao ver-se presa no olhar dela. Parecia que suas pernas não mais lhe obedeciam e caminhavam em câmera lenta.
A astrônoma não conseguia sequer se mover. “Smallah! (interjeição de admiração) Ela é linda!” -- pensava embevecida ao sorrir -- "É delicada, miudinha, parece uma menina...” -- suspirou -- "Ave Maria...”
“Ela é linda! Tem um porte bonito...” -- pensava inebriada -- "Nem acredito que finalmente estamos aqui...” -- sorria também -- Oi! -- foi o que conseguiu dizer quando parou diante da outra
--Ah... Ooi! -- não sabia o que dizer -- Tacharrafna! (Prazer em conhecê-la!) Você é linda por demais da conta! -- falou sem pensar -- "Ô, Zinara, disfarça! Tá quase babando em cima da mulher!” -- recriminou-se
--Obrigada! -- sentiu as bochechas queimarem -- Você que é linda! E te acho o máximo! -- calou-se repentinamente -- "Disfarça, criatura! O que ela vai pensar de você?” -- arrependeu-se
“Será que é sério isso?” -- pensou descrente -- "Ela deve tá falando por educação.” -- concluiu -- Finalmente a gente se conhece, né? -- desviou o olhar rapidamente -- Já tava mais que na hora... -- sorriu encabulada
--É mesmo... -- não sabia onde colocar as mãos
--É... posso te dar um abraço? -- pediu envergonhada -- Afinal de contas ainda te devo agradecer por aquela visita no hospital... -- passou a mão nos cabelos
--Você não me deve nada, mas o abraço eu quero! -- olhou para o chão
Zinara se aproximou relutante e abraçou a outra com carinho, envolvendo-a pela cintura. -- É um prazer te conhecer! -- fechou os olhos e respirou fundo -- "Hum, que perfume gostoso!” -- pensou ao sorrir
--O prazer é todo meu! -- envolveu o pescoço da morena com os braços e fechou os olhos também -- "Ai, mas ela é tão cheirosa!”
--Eu andava contando os dias pra vir pra cá te conhecer, Clarice! -- continuavam abraçadas -- Uma mulher tão interessante, inteligente, simpática, delicada...
--E eu não me agüentava de ansiedade pro congresso chegar logo e eu olhar nos seus olhos, Zinara! Queria te ver, te sentir assim... -- abraçou com mais força
--E eu que era doida pra chegar, te ver, te abraçar assim desse jeito...
--Ai, eu também queria te abraçar e fazer...
De repente as duas caíram em si quanto ao que diziam e se afastaram bruscamente.
--E fazer... a estrutura do trabalho que a gente vai apresentar, porque ainda não discutimos tudo, né mesmo? -- ajeitou a roupa -- "Acho que mamãe tem razão: Cátia me deixou tarada!” -- pensou
--Pois é, é coisa por demais da conta pra se resolver que se perde a noção, né? -- respondeu sem graça -- É um monte de trem sem base! -- endireitou o casaco -- "Mas você fala cada besteira, viu, fi?” -- morreu de vergonha -- “E pra completar ela vai te achar a maior das taradas, já chega que nem uma polva cheia de mão!”
--Vamos sentar? -- propôs -- A gente podia beliscar algum petisco e beber alguma coisa... -- sorriu
--Oh, claro! -- puxou uma cadeira -- Por favor! -- sorriu -- Min fadlik, ya habibi? (Por favor, querida?)
--Obrigada! -- sentou-se
A astrônoma puxou uma cadeira para si e sentou-se também. -- O que será que tem de bom aqui? -- pegou dois cardápios sobre a mesa e entregou um deles a outra
--Que tal beliscarmos uns queijinhos? -- ofereceu -- Eu adoro queijo!
--Por mim tá ótimo! -- concordou
--Também gosto muito de um bom vinho. -- olhou para a outra -- Me acompanha? Aqui tem bons rótulos!
--Ah, me perdoe, mas é melhor não. -- recusou delicadamente -- Eu não bebo alcoólicos, sabe? E também tem o tratamento...
--Ah, tem razão. -- ficou um pouco sem graça
--Mas fique tranqüila! Beba seu vinho que eu vou de suco de uva. -- propôs -- "Depois daquele vexame que eu aprontei com Karim quando bebi o tal do Kirsh, tá doido que eu vou ficar bebendo esses trem! De cara limpa já fui cheia de mão pra cima de Clarice...” -- pensou com vergonha da atitude -- "Eu virei uma tarada do pior tipo, Ave Maria...” -- balançou a cabeça pensativa
***
--Então quer dizer que foi assim que vocês vieram pra Terra de Santa Cruz? -- Clarice prestava atenção no relato da outra -- Nossa, sua história de vida é tão comovente, tão linda! -- passou um guardanapo nos olhos umedecidos -- Eu fiquei tão emocionada... -- sorriu ternamente -- Cada vez me admiro mais com você!
--É um relato diferente, né? -- brincou ao secar os olhos -- Terra de Santa Cruz foi o que de melhor poderia nos acontecer. Não sabe o quanto amo esse país! -- pausou brevemente -- Eu e usritii (minha família), melhor dizendo.
--Nota-se que você ama. -- balançou a cabeça concordando -- Mas... imagino que deve ter sido um tremendo choque cultural, não foi? -- bebeu um gole de vinho
--Se foi! -- concordou enfaticamente -- Além do idioma, teve o impacto dos trajes, dos costumes e de mais tantas coisas... -- lembrava -- E meus irmãos e eu ainda tínhamos mais um agravante: nós éramos como se fôssemos filhos de um país que não existia!
--Como assim? -- perguntou sem entender
--Nós nascemos e vivemos em um país em guerra. Não conhecemos a verdadeira cultura de Cedro, seus hábitos e costumes. O que aconteceu foi que convivemos com a subcultura que podia existir no meio daquela desgraceira toda! Por isso digo que éramos filhos de um país que não existia de fato. -- explicou -- Você acredita que nós tivemos dificuldade em nos acostumar com a paz? -- Clarice ficou surpresa -- Não é que a gente gostasse da guerra, mas vivíamos sob tensão. -- rememorava -- Passamos um bom tempo receando que bombas fossem lançadas na fazenda de camma Najla. -- balançou a cabeça negativamente -- Você tinha que ver o aconteceu quando presenciamos nossa primeira festa de mês de junho... -- viajou no tempo
“BUM, BUM, BUM!! -- o som das explosões retumbava no ambiente
--AHAHAH!! -- Raed gritou apavorado e empurrou os filhos no chão -- Deitem-se, todos no chão!! -- ordenou na língua de Cedro -- São eles, al aghdaa’ (os inimigos)! Malditos junuud (soldados) chegando em Terra de Santa Cruz!!
--Oh, Aba! (Oh, Meu Pai) -- Amina lamentou ao se deitar -- Como vieram parar aqui? -- estava nervosa
--Ya aini! (Meus olhos!) -- Youssef gritou -- Khaled!
--Estamos aqui! -- a menina segurou na mão dele
--ANA XAAFA! (ESTOU COM MEDO!)-- Khaled gritava nervosamente -- ANA XAAFA! AHAHAHAH!!!
--Vamos ficar todos juntos! -- Raed ordenou aproximando o grupo
Batidas na porta desesperam a família ainda mais.
--Quem será, meu Deus? -- Amina perguntou temerosa -- Junuud? (Soldados?)
--Allaah yinghal abuuak!! (Meu Deus amaldiçoa seu pai!!) -- Khaled gritou -- Vá embora!
--Abram a porta! -- reconheceram a voz de Najla -- Sou eu!
--Ukhtak?! (Sua irmã?!) -- Amina olhou para o marido sem entender
--AHHa! -- o homem reclamou ao se levantar apavorado e abriu a porta puxando a irmã violentamente para dentro. Ela se desequilibrou e os dois caíram no chão quase abraçados
--AHAH!! -- a fazendeira gritou ao cair -- Axra min kida mafiiš!! (Não há merd* pior do que essa!!) -- xingou de cara feia
--Najla, ya majnum! (Najla, sua louca!) -- Raed ralhou -- O que faz por aqui no meio dessa guerra, mulher? -- perguntou de cara feia -- Não ouve essas malditas bombas explodindo? -- ela se desvencilhava dele -- Deita no chão!
--Guerra? Que guerra? -- levantou-se de cara feia e ajeitando a roupa -- Deitar para que?
--Harb ahliyya, camma Najla! (Guerra civil, tia Najla!) -- Zinara falava com medo -- Harb ahliyya!
--Não tem guerra alguma, seus loucos! -- falava na língua de Cedro -- Levantem desse chão agora mesmo! -- ordenou -- Estamos fazendo uma Hafla (festa) e vim chamar vocês para participar!
--Hafla (Festa)? -- sentou-se desconfiado -- Que é isso, Ya aini?
--Zinara nunca ouviu essa palavra. -- a menina sentou-se também
Amina, Raed e Khaled sentaram-se em câmera lenta.
--Hafla é uma comemoração, uma celebração! -- Najla explicou impaciente -- É uma coisa boa, nada tem a ver com guerra!
--Que gente esquisita essa daqui! -- Khaled comentou receoso -- Comemoram explodindo qunbula (bomba)!”
--Gente! Vocês pensaram que os fogos de artifício eram bombas de inimigos?-- Clarice acabou achando graça -- Desculpe, mas... foi engraçado.
--Pois é, hoje em dia eu também acho. Tinha que ver a cena de camma Najla toda arrumada caindo por cima de baba e os dois rolando pela sala! -- riu brevemente -- Ai, ai... Confesso que até hoje fogos de artifício me dão nos nervos!
--Eu imagino, meu bem. -- respondeu compreensiva -- Também me chamou a atenção que você se referiu a si mesma como se fosse uma outra pessoa. -- comentou
--Desde pequenininha eu achava minha vida tão surreal, que falava sempre em terceira pessoa: “Zinara gosta, Zinara viu, Zinara não sabe...” -- contava -- Eu me sentia uma espécie de expectadora da minha própria realidade, entende? Era tudo tão difícil, tão duro, tão cruel, que na minha cabeça a vida funcionava como uma dimensão paralela que eu queria que acabasse logo, nem sei explicar... -- pegou o guardanapo e ficou mexendo -- Somente aqui, aprendendo o idioma desse país, comecei falar como gente normal. -- sorriu -- Veja que minha loucura vem de longa data! -- brincou
--É uma maluquinha adorável! -- segurou uma das mãos dela e sorriu
Entrelaçaram os dedos e entreolharam-se encabuladas. Sentiam-se como duas adolescentes.
--Sabia que eu usava hijab? -- a astrônoma comentou -- Quando deixei de usar, foi como se as portas de uma prisão tivessem sido abertas!
--Hijab é aquele véu? -- perguntou curiosa
--Sim, o que deixa o rosto descoberto mas esconde cabelos e pescoço. -- respondeu esclarecendo -- Eu detestava aquilo! -- revirou os olhos -- Graças a camma Najla e Aisha, maama e eu largamos aquele hábito. Primeiro eu e depois ela.
--E foi difícil?
--Pra mim nem tanto. Acho que pra maama foi mais. -- pausou brevemente -- Difícil mesmo foi usar roupa de banho! -- riu -- Youssef, Khaled e eu morremos de vergonha! -- visitou o passado mais uma vez
“--Venham, crianças, mas que demora é essa? -- Aisha esperava -- Não acredito que ainda não tenham se vestido!
Youssef e Khaled estavam em um banheiro e Zinara em outro.
--Só maama foi a muié qui viu nóis di peitu nu! -- Youssef respondeu lá de dentro -- E essis trem são piquenu dimais!
--Só maama! -- Khaled concordou -- Nóis tá peladu cum essas rôpa qui cola nu corpu!
Aisha riu brevemente. -- Vocês estão de sunga, não tem ninguém pelado! -- respondeu achando graça -- É assim que os meninos daqui se vestem quando tomam banho de piscina, de rio...
--Tem vergonha! -- Khaled respondeu
--Vergonha! -- Youssef concordou
--E você, Zinara? Até agora não ouvi sua voz. Já vestiu o maiô? -- aproximou-se da porta do banheiro onde ela estava
--Essi trem é coladu e curtu! Num tô acustumada a andá pelada! -- respondeu envergonhada -- Prefiru meu vistidu!
Riu de novo. -- Ai, meu Deus, mas vocês são muito envergonhados, vou te contar! -- pausou brevemente -- Olha aqui, gente, ouçam o que eu digo: se querem agir como as pessoas daqui, vocês vão ter que se habituar com certas coisas e vestir roupa de banho é uma delas. As mulheres nesse país não vão tomar banho de vestido comprido e nem os homens vão de calça comprida e blusa! -- argumentava -- Além do mais, aqui todo mundo é parente. Não tem indecência nenhuma! Não é feio ver um pouco do corpo do outro, isso é normal. A indecência está nos olhos de quem vê! -- pausou brevemente -- Vamos fazer assim: eu conto até três e daí vocês saem do banheiro com os olhos fechados. Depois eu conto até três de novo e todo mundo abre o olho. -- propôs -- Aliás, eu também tô com roupa de banho, mas o nome da minha roupa é biquíni. Um dia você vai usar isso, viu, Zinara?
“Ave Maria! E como será essi trem?” -- a menina pensou
--Ó, vou começar a contar! Um, dois... três!
As crianças fizeram o que Aisha propôs e até Youssef cobriu os olhos. Ela guiou os três para que ficassem próximos entre si.
--E eu qui num vô vê nada mesmu... -- Youssef sentia-se um pouco mais confortável -- Mas ninguém vai rí di eu!
--Eu num vô! -- a morena prometeu com os olhos fechados -- E nem di mim ninguém rí!
--Eu num vô rí di ninhum! -- Khaled prometeu do mesmo jeito
--Vou contar até três de novo. Aí vocês abrem os olhos. -- olhava divertida para as crianças -- Um, dois... três!
No momento em que abriram os olhos, Zinara e Khaled se surpreenderam ao se ver tão descobertos. Mais surpresos ficaram com o minúsculo biquíni da prima.
“E ela qué qui eu vista um trem dessis? Discunjuru!” -- a menina pensou horrorizada”
Clarice riu gostosamente. -- Então quer dizer que você chocou com o biquíni da prima? -- fez um carinho nos dedos da astrônoma -- Aposto que hoje a senhora usa tremendos fios dentais! -- brincou
--Eu uso, mas nos dentes! -- brincou também -- Quem usa esse trem de biquíni miúdo é mulher de cidade grande! Especialmente as de São Sebastião! -- provocou
--Sou tímida demais pra usar biquíni minúsculo! -- piscou para ela -- Só minha irmã Cecília é que gosta disso e mamãe fala muito quando vê! -- achou graça -- Ela diz assim: -- preparou-se para imitar a mãe -- "Se é pra ficar com uma linha enfiada no rabo e a cara da bicha toda de fora, vai logo nua que é mais decente!” -- riu
--Sua mãe deve ser divertida! E uma gracinha também! Gostaria de conhecê-la, embora tenha vergonha... -- bebeu o último gole do suco
--De que? -- sorriu -- Ela também gostaria de te conhecer, tenho certeza.
--É sempre complicado conhecer a mãe da... da... -- não sabia o que dizer -- da colega de trabalho, né? -- ficou sem graça
--Você disse que vai pra São Sebastião, não é? Então! A gente se encontra, sai, você vai lá em casa... -- calou-se repentinamente -- "Quer parar com isso? Eu, hein, ela vai te achar oferecida!” -- pensou se recriminando
--Se você quiser, eu vou te perturbar quando estiver lá. -- brincou ao olhar para a paleoceanógrafa -- Vai ver pegaremos até o mesmo vôo.
--É ponte aérea, a gente pode combinar de ir juntas! -- respondeu empolgada -- Sua passagem foi comprada com flexibilidade?
--Foi. -- balançou a cabeça concordando
--A minha também! Sempre deixo tudo em aberto! -- sorriu e bebeu mais um gole de vinho
--Ei, mas que conversa é essa, hein, Clarice? -- uma outra voz feminina surpreendeu as duas, que soltaram as mãos -- Que papo é esse de que sempre deixa tudo em aberto? -- cruzou os braços de cara feia -- Comigo não era bem assim, não! -- reclamou -- Comigo era tudo muito do fechado!
--Cátia?! -- arregalou os olhos -- O que faz aqui?
“Hum, que praga! Alegria de caipira dura pouco!” -- pensou contrariada
--Eu decidi que iria participar desse evento e vim. -- olhava para as duas -- Pensei em te fazer uma surpresa, mas acabei me surpreendendo com o nível da conversa aqui!
A astrônoma olhava para a loura seriamente.
--Não há mais coisa alguma entre nós, portanto você não tem o direito de fazer uma cena como essa! -- retrucou
--Com certeza, não! -- Zinara concordou
--Cala tua boca, porque você tá sobrando aqui, se ainda não notou! -- respondeu à morena em voz mais alta
--Cátia?! -- levantou-se indignada -- Não fale com ela desse jeito! Quem você pensa que é?
Zinara também se levantou e respondeu olhando nos olhos da geofísica: -- Fala baixo porque não tem gente surda aqui! -- seu tom era calmo, porém enérgico -- Se ela disser que eu tô sobrando me retiro na mesma hora, mas nada do que você venha a dizer é digno de importância pra mim!
--Você não tá sobrando, meu amor! -- acariciou rapidamente o braço da morena -- Ela é que perdeu a noção do ridículo!
“Meu amor?” -- Zinara pensou empolgada
--Meu amor?! -- Cátia repetiu indignada -- Que negócio é esse, hein, Clarice? -- tomava satisfação -- A gente se separou outro dia e você já tá cheia dos ‘meu amor’ pro lado dessa estrangeira com cara de doida?
--Pra quem é metida a fina, você é um bocado grossa, viu? -- a morena provocou
--Isso é ridículo! Essa situação é ridícula! -- a paleoceanógrafa chamou o garçom com um aceno -- Vamos pedir nossa conta e ir embora. -- olhou para a morena -- Tudo bem, querida?
--Tudo, habibi. -- a astrônoma pegou a bolsa para tirar seu dinheiro
--Você e eu temos muito que conversar, Clarice! -- afirmou possessiva -- Muito!
--Temos nada que conversar! -- o garçom se aproximou -- A conta, por favor. -- ele balançou a cabeça positivamente e se retirou para buscar a nota
--Eu reservei meu quarto ao lado do seu! -- Cátia comentou -- Vamos conversar de uma forma ou de outra!
“Mas que mulherzinha desgraçada!” -- Zinara pensou de cara feia -- "Sinto que me dei mal...”
--Humpf! -- Clarice fez um bico e nada respondeu
CAPÍTULO 33 – Inseguranças e Surpresas
Zinara conversava com sua amiga Regina no talk do Êmail nas primeiras horas da madrugada.
Zina: E foi assim, sabe? Quando vi Clarice fiquei até com uma gastura nos meus quatro estômagos e a boca deu câimbra!
Regi: kkkkkkkkk Como é que pode?? E que tanto estômago é esse? kkkkkkkkkk
Zina: E você tem que ver: ela é tão linda, miudinha, inteligente, culta...
Zina: Ave Maria!
Regi: kkkkkkkk
Zina: A gente passou maravilhosas horas conversando no lobby do hotel!
Regi: E vocês conversaram sobre o que?
Zina: Ih, a gente proseou sobre um monte de coisa: o trabalho no congresso, ciência, nossas histórias de vida...
Zina: Ela sabe de tanto assunto! Desde paleoceanografia, passando por psicologia, história, artes... Que mulher, viu?
Regi: kkkkk
Regi: E ficou só nisso? Uma conversa boa no lobby do hotel?
Zina: Eita, mulher! Claro que sim!
Zina: Ela é uma dama e eu não sou do tipo que sai pegando, não!
Zina: Além do mais nem sei se ela quer alguma coisa comigo!
--Sem contar que tô com o pé na cova, né? -- resmungou consigo mesma -- Aí é que dana!
Regi: Ei, mulher, se liga, ow!
Regi: Claro que ela te quer!
Zina: Sei não...
Regi: Quer deixar de ser boba? Além do mais a querida do seu coração finalmente aparece linda e solteira diante de você e tudo que sabe fazer é prosear??
Regi: Francamente... Vocês são devagar quase parando, ô lerdeza!
Zina: Eu, hein!
Zina: É assim, não!
Zina: De mais a mais, você nem sabe o que aconteceu no final da noite!
Regi: O que foi?
Zina: Cátia apareceu e deu de cara com a gente lá!
Regi: Ué??
Zina: Acredita que ela decidiu vir pro evento e ficou hospedada justo aqui? E pegou um quarto do lado do quarto de Clarice?
Regi: Tá, mas e daí? Ela é ex, já era!
Zina: Ela rodou uma baiana básica, com certa discrição, mas foi o suficiente pra deixar Clarice totalmente desconcertada!
Regi: E aconteceu o que?
Zina: Clarice decidiu ir embora pro quarto. Cátia foi atrás dela e não sei no que deu.
Zina: Eu fiquei sem saber o que fazer e vim embora pro meu quarto.
Regi: Mas que situação!
Zina: Sei lá, mas acho que aquela mulher ainda balança o coração de Clarice.
Zina: E a concorrência é cruel, viu? A mulher é toda trabalhada na sensualidade! E chique!
Regi: Eu sou mais você!
Zina: kkkkkkkk É porque você é minha amiga!
Regi: Nem vou discutir! Você é um mulherão e se Clarice não ver isso é porque é cega!
Regi: Mas escute, mostre a ela o que você tem de melhor: sua alma romântica!
Regi: Vamos desde já pensar num plano!
Zina: Plano?
Regi: Leve-a pra jantar no restaurante Terraço Roma.
Zina: ?
Regi: O lugar vai te ajudar a criar um clima. Tem comida boa, vista bonita, classe e uma música de fundo perfeita. Eu adoro!
Zina: Imagino! Você só freqüenta lugar chique!
Regi: Já que minha cidade é perto de Paulicéia, vou mandar Jarbas passar aí e pegar vocês. Ele sabe onde é o restaurante e daí não tem errada.
Zina: Jarbas?
Regi: Meu motorista, mulher! Se liga, ow!
Zina: Ah, tá. kkkkkk
Regi: É só me dizer quando vocês querem ir pra lá e eu mando ele sem pestanejar.
Zina: Nossa! Nem sei o que dizer! Obrigada.
Regi: Cátia pode ser bonitona, mas você é muito melhor que ela!
Regi: E no que depender de mim, te indico o melhor de Paulicéia!
Regi: Pode deixar que te empresto o Jarbas sem problema algum! Se eu precisar de motorista, chamo o Jardel.
--Mas essa aí é rica mesmo, Ave Maria! -- a morena exclamou admirada -- E por que será que nome de motorista de mulher rica sempre começa com J? -- intrigou-se
***
Jamila estava ainda em seu esconderijo e assistia ao jornal da noite.
--Protestos contra o aumento da passagem do transporte público terminaram em tumulto e pancadaria em algumas cidades do país. -- o repórter dizia -- Em Paulicéia, manifestantes fecharam ruas importantes do centro e entraram em confronto com a Tropa de Impacto da polícia estadual, que reagiu usando bombas bestificantes e balas de borracha. -- imagens eram apresentadas -- Os manifestantes não se intimidaram e muitos estabelecimentos comerciais, bancas de jornal e estações de metrô foram depredadas.
--Gente! -- a advogada arregalou os olhos
--Outras três capitais também foram marcadas por protestos violentos! -- o repórter continuava -- Em São Sebastião, os manifestantes tomaram conta de uma das vias mais movimentadas do centro da cidade por cerca de três horas. -- novas imagens eram exibidas -- Houve confronto com a polícia e sete manifestantes foram levados para a delegacia e depois liberados. A confusão causou congestionamento e algumas pessoas ficaram feridas, inclusive soldados da polícia.
--Não acredito no que eu tô vendo! -- Jamila se empolgava
--Em Nativitati os manifestantes queimaram pneus, jogaram lixo nas ruas e bloquearam um trecho da Rodovia do Sol. Estudantes exigiam uma nova redução no preço das passagens de ônibus e gritavam palavras de ordem ostentado faixas. -- a advogada se impressionava com o que via -- Apesar da repressão policial, não houve confronto direto entre as partes.
--Nativitati, gente, eu tô boba! -- levantou-se do sofá
--Em Gyn, -- a reportagem mostrava outras imagens -- estudantes invadiram o centro da cidade, queimaram pneus e entraram em confronto com a polícia, chegando a quebrar os vidros de algumas viaturas. Muitos deles pularam as catracas do terminal rodoviário para não pagar passagem.
--Quem precisa de ônibus nessa cidade tá totalmente insatisfeito com tudo! -- Aisha dava entrevista -- Seja com o preço da passagem, com a qualidade dos ônibus ou com os atrasos diários nos horários em que mais se precisa de condução! -- olhava para as câmeras -- Pagar mais e contar com o mesmo servicinho porco é dose, viu, fi? Tem base, não! -- fez cara feia -- O Governo cortou dois impostos que são cobrados pras empresas de ônibus, então me diz por que esse corte não foi repassado pra gente? -- questionou
(Nota da autora: inspirado em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/06/preco-da-passagem-de-onibus-provoca-manifestacoes-pelo-pais.html)
--A situação segue tensa, -- o repórter encerrava a matéria -- e mais sete capitais de Terra de Santa Cruz dão indícios de que servirão de palco para estes mesmos protestos. Segundo a Polícia da Nação, as redes sociais fervilham em apoio às manifestações, bem como em convocações para novos atos.
--Finalmente! -- sorriu satisfeita -- Será que o gigante acordou?
***
Amina acabava de bater papo com Leda no LivrodasFuça. Ao desligar o laptop, percebeu que Najla chegava na cozinha.
--Proseando na internet? -- a ex fazendeira perguntou sorrindo
--Tava falandu cum Dona Burduada. Pareci qui im São Sebastião as coisa tão pegandu fogu! -- olhava para a cunhada
--Em Gyn também! -- puxou uma cadeira para se sentar -- Aisha deu até entrevista na TV! -- achou graça
--Essa minina é danada! -- achou graça também -- Ói, tô pidindu a Deus e a Virgi modi ela recuperá a fazenda docês, num sabi?
--E eu! -- olhou rapidamente para cima -- Está nas mãos de Deus, vamos ver no que vai dar! -- pausou brevemente -- Assim como deixei nas mãos dEle o caso de Raed e Zinara!
--Tenhu faladu cum eli e insistidu pur dimais da conta. Vamu vê si essi homi custosu vai oví arguém e fazê o qui divia di fazê! -- debruçou-se sobre o laptop -- Pur agora eli tem levadu nossus fio na rédia curta e tô gostandu di vê! -- balançou a cabeça
--Eu também. -- concordou
--Ontem Cid saiu daqui inté zonzu! Veio pidí dinheru pra fazê festa junina e quebrô foi a cara! -- comentava -- Mas eu queru vê é Ahmed tomá jeitu! Essi é qui é o mais difíci!
--Difícil, mas não impossível! Ahmed não é um homem ruim, ele só precisa se conscientizar sobre certas coisas e buscar ser um bom pai pros filhos que tem.
--Eu dexei essis meus mininu tudu nas mãos di Deus e da Virgi. Assim comu minha minina! -- segurou as mãos de Najla -- Ela vai curá, eu sei! Num aceitu qui não! -- falava com fé e emoção -- Deus num vai mi dexá perdê mais um fio! Num vai!
--Se Deus quiser, Amina, tudo vai dar certo! -- balançava a cabeça positivamente -- Se Deus quiser!
**
Durante o coffee break da tarde, Cátia procura Zinara e, para sua satisfação, a encontra sozinha. A morena havia acabado de atender a um telefonema e por isso havia se isolado dos demais.
--Ora, ora, quem encontro aqui? -- cruzou os braços desafiadora -- Zinara Raed: a fura olho!
--Fura olho? -- achou graça -- Você quer o que, hein? Me desafiar pra um duelo? -- olhou seriamente para a loura -- Não acha que sua atitude comigo é ridícula?
--Ridículo é você querer uma mulher que tem dona! -- respondeu entre dentes ao se aproximar -- Ela é minha, será que não percebeu ainda?
--Fala de Clarice como se fosse um animal de estimação! -- balançou a cabeça negativamente -- Ela é dona de si mesma e não é você quem decide com quem fica. -- preparou-se para ir embora -- E nem eu tenho tempo pra perder com esse tipo de conversa. -- fez um gesto de despedida -- Passar bem, doutora Cátia Magalhães. -- afastou-se
--Se ainda não notou que Clarice tá te usando pra me provocar é muita ingenuidade sua! -- Zinara desacelerou o passo mas não olhou para trás -- Ninguém em sã consciência me trocaria por você! -- falou com desprezo
A astrônoma não demonstrou que o comentário mexeu com ela e seguiu para longe de Cátia.
“Será isso mesmo? Será que Clarice quer apenas fazer ciúmes a essa aí?” -- questionava-se -- "Mas isso não parece ser do feitio dela!” -- seguia pensando -- “E de mais a mais eu posso fazer o que? Tô doente, tô morrendo, como posso me propor a tentar conquistá-la?” -- sentiu vontade de chorar -- “O que eu poderia dar a ela? A chance de chorar no meu enterro? Não, ela merece bem mais...” -- respirou fundo -- Aproveita o tempo que você ainda tem pra fazer o que te cabe, mulher! -- aconselhava-se -- Você não tem mais condição de manter vida amorosa com ninguém.
--O que acontecia aqui? -- Clarice abordou Cátia, que olhou surpresa para ela -- Vi que você e Zinara conversavam de cara feia. -- parou diante da ex -- Não me diga que você a procurou só pra destratá-la? -- queria satisfações
--Eu disse a ela a verdade: -- aproximou-se da morena -- que você é minha e ela tá sobrando!
--Nunca fui sua, Cátia! -- respondeu seriamente -- Não sou posse de namorada, nunca me dispus a isso! -- cruzou os braços -- E não gosto da sua atitude comigo e com Zinara desde que nos encontrou aqui em Paulicéia. Só vive perseguindo a gente, eu hein?
--Quero você de volta, Clarice! -- olhava nos olhos -- E tô lutando por isso. Não vou deixar que aquela maluca tire você de mim!
--Pois o seu modo de lutar só me faz ter mais certeza do que não quero! -- argumentou
--Ela não é mulher pra você! -- segurou-a pelos braços -- Eu sou! Eu sou tudo que você precisa!
--Eu, hein, Cátia, me larga! -- desvencilhou-se olhando para todos os lados -- Me agarrando em público, que coisa! -- ralhou
--Se mexe com seu orgulho saber que aquela astrônoma caipira baba por você, saiba que eu te amo; -- falava com sentimento -- e amo como nunca amei ninguém!
“Zinara baba por mim?” -- pensou espantada -- Não consigo acreditar nesse seu amor cachorro! -- retrucou
--Pode ser cachorro, mas amar você de verdade só eu amo, minha linda! -- caprichou nos olhares -- Aquela doida veio pra investir pesado em você, eu sei. Te olha com cara de boba, fica toda nervosa bancando a tola apaixonada, gagueja, fica vermelha, mas não nasci ontem, conheço bem o truque! É tudo bobagem, teatrinho pra te impressionar. -- criticava a rival -- Ela não te ama! EU sim!
“Zinara age assim e eu não noto?” -- continuava pensando intrigada -- Cátia, as palestras já vão recomeçar... -- passou a mão nos cabelos -- Vamos voltar pro evento e...
--Escuta uma coisa, Clarice: -- puxou-a rapidamente de encontro para si e investiu em uma voz sexy -- posso até gostar de alguém, mas é você que eu amo!
--Francamente, Cátia! -- desvencilhou-se de cara feia -- Vir me seduzir com música de pagodeiro é demais! -- afastou-se -- Eu odeio pagode, fique sabendo! -- foi embora chateada
--Hum... -- ficou pensando -- Da próxima vez tenho que investir em outro ritmo... -- suspirou -- Essa besta dessa Zinara não é páreo pra mim, a menos que Clarice seja cega!
***
Jamila fazia uma caminhada ao final da tarde para espairecer um pouco. Era difícil para ela permanecer escondida por tanto tempo e às vezes sentia-se como se estivesse à beira de uma crise de nervos.
A próxima audiência do caso Hamatsu estava nas vésperas e isso a deixava ansiosa; em breve viajaria para defender seu cliente. Ao mesmo tempo, contava nos dedos o passar dos dias esperando julho chegar e, com ele, o momento em que Edgar Scowben faria a denúncia bombástica que poderia lhe dar alguma segurança.
“Não vejo a hora de voltar pra casa!” -- pensava enquanto caminhava -- "Já não agüento mais essa vida de foragida!”
--Moça, me ajuda? -- uma senhora sentada no chão pediu -- Uma esmola pra uma pobre cega velha! -- estendeu a mão
--Não tenho dinheiro aqui comigo. -- respondeu com a verdade -- Mas se é cega, como sabe que sou mulher? -- perguntou desconfiada e parou de andar -- “Será alguma espiã maldita atrás de mim?” -- pensou preocupada e olhou para todos os lados
--Pelo perfume, pelo andar e pelo que senti com sua presença. Sei quando é mulher, homem, criança ou velho. -- respondeu calmamente -- Não tenha medo de mim.
--Hum... -- continuava desconfiada -- Infelizmente não posso lhe ajudar. -- preparou-se para voltar a andar
--Tudo bem, minha jovem. -- balançou a cabeça -- Você não me dará uma esmola mas sei que ajuda as pessoas de outras formas.
“Oxi! Que conversa é essa?” -- novamente parou de andar e olhou para a mulher
--Vai dar tudo certo, você vai ver. -- mirava o infinito com seus olhos inertes -- As coisas se resolverão a seu tempo.
--Do que a senhora tá falando? -- estava confusa
--Seu sofrimento em breve terá um fim. -- falava como se profetizasse -- Outros problemas virão no futuro, mas você estará preparada pras lutas que ainda vai travar. Não está sozinha!
--AHHa! -- reclamou -- Mas o que...?
--E quanto à mulher que olha para o céu... -- interrompeu a fala da outra -- os caminhos não estão mais entrelaçados...
--O que?? -- sentiu o coração acelerar ao perceber que era de Zinara que a idosa falava
--Você a perdeu! -- afirmou solenemente
--Ah... -- não sabia o que dizer e se afastou voltando a caminhar -- "Mas que diabo é isso?” -- questionava-se -- “Essa senhora quis bancar a profeta pra cima de mim?” -- não conseguia entender -- “Como podia saber do que tenho vivido? E como podia saber de Zinara?” -- olhou rapidamente para trás e não a viu -- “Ué?” -- tornou a olhar para frente -- “Que peste é essa que a cega sumiu?” -- começou a correr -- Simbora, Jamila! -- corria o mais rápido que podia
CAPÍTULO 34 – A Palestra
--Ai, Zinara, que nervosismo! -- Clarice dizia para a astrônoma -- Nem serei eu a apresentar, mas tô numa ansiedade que só! -- riu para ela
--Quem disse que não? -- sorriu para a outra -- O trabalho é nosso, será uma apresentação em dupla! Sei que você fala saxão fluentemente. -- piscou
Arregalou os olhos. -- Não é pelo idioma. -- respondeu de pronto -- Zinara, esse é o congresso mundial!
--E? -- continuava sorrindo
--Você é a pesquisadora nível 2 aqui! Eu sou nível 1 ainda!
--Não nasci nível 2, -- falava mansamente -- e você é uma profissional excelente! Afinal de contas não me pego com qualquer marmota! -- brincou
--Não brinca, mulher, isso é coisa séria! -- continuava tensa
--Clarice, relaxa! -- segurou as mãos dela -- Pense que é uma palestra na universidade e apresente o que sabe com a classe que te é peculiar. -- tentava tranqüilizá-la -- Eu estarei lá do seu lado, ajudando a passar as lâminas da apresentação e fazendo uma ou outra intervenção que for necessária. Vai dar tudo certo!
--Gente, que desespero! -- riu nervosamente mais uma vez
--Confie em mim, querida. Tô do seu lado pro que der e vier. -- sorria
--Ai... -- suspirou embevecida
***
Clarice apresentava um resumo de conclusões do trabalho que ela, Zinara e os orientados de ambas vinham pesquisando há um tempo. Falava na língua dos saxões e lutava para não deixar transparecer o nervosismo diante de uma platéia cheia de participantes atentos.
--Os oceanos representam um dos principais constituintes climáticos. Eles afetam o clima de diversas maneiras, especialmente devido a sua habilidade de armazenar e distribuir o calor absorvido da radiação solar. -- explicava -- Mas, primeiramente, vamos entender como as médias globais de temperatura podem ser modificadas. -- olhava para os expectadores -- Isso acontece através de três fatores: -- apontou para o telão -- a variação na concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera, -- uma figura foi exibida -- a variação do albedo planetário -- outra figura apareceu -- e através da variação da irradiação solar, que depende dos ciclos solares, das mudanças na órbita do planeta e na posição e inclinação do seu eixo. -- mais uma figura surgiu -- Estes três fatores não explicam as mudanças climáticas por si só, mas sim os seus efeitos conjugados , os quais, em maior ou menor grau, estão todos interligados. -- pausou brevemente -- Como diz minha amiga Zinara Raed, -- indicou a outra -- quem dá o gatilho que inicia o processo é a astronomia. -- sorriu
(Nota da autora: explicando mais uma vez, o albedo é o índice de reflexão da luz que chega no planeta, ou seja, quanto mais geleira tiver no planeta, menos luz do sol é absorvida)
--Se me permite, Clarice, -- Zinara pediu licença a colega -- do ponto de vista astronômico, o período interglacial no qual vivíamos já terminou, pois o planeta avança na direção de uma órbita mais elíptica e alongada ao redor do sol. -- complementou apresentando uma simulação computacional -- O eixo planetário também está sofrendo uma alteração de inclinação, tornando-se mais vertical, o que representa outro fator responsável por mudanças climáticas, uma vez que a irradiação solar em cada região do globo varia com o ângulo deste eixo em relação à perpendicular do plano do sistema solar. -- continuava rodando a simulação -- Aliás, as estações do ano são uma conseqüência de tal inclinação.
--Humpf! -- Cátia fez um bico -- Mulherzinha besta!
--As modificações astronômicas são sensíveis apenas em uma escala de milhares de anos. -- explicava -- O planeta vai reagindo lentamente a estes efeitos e vários atores entram em cena.-- exibiu uma lâmina da apresentação de Karim -- É interessante mencionar, inclusive, que o campo magnético do planeta enfraqueceu cerca de 10% desde o século XIX, e que o clima também está associado com as variações deste campo. -- repetia as observações da ex namorada -- Algumas reversões polares parecem ter relação com início e fim de idades do gelo, ou seja, -- sorriu -- mais uma evidência de glaciação. -- olhou para Clarice -- Por favor.
--Se estamos entrando em uma glaciação, por que as temperaturas médias globais estão aumentando? -- um homem questionou
--Porque este é o processo natural. -- Clarice respondeu de pronto -- O calor aumenta nos períodos interglaciais devido à maior radiação solar sobre o planeta, aumenta-se a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera em virtude disso e estes gases seguem contribuindo para o aumento global das temperaturas. É um ciclo que prossegue continuamente até que o derretimento das geleiras faz com que as temperaturas diminuam de novo. -- apresentou um gráfico -- Para ficar mais claro, vamos analisar um pouco da história do planeta Água através do estudo do paleoclima. -- apontou para uma região no gráfico -- Em torno de 8 a 6mil anos antes do Rabi, a temperatura do planeta era 5ºC mais alta que hoje, e o nível do mar esteve mais alto também. -- explicava -- Esta é a época das grandes civilizações, como a Mesopotâmica, no período Holocênico máximo.
--Interessante! -- uma mulher comentou com Cátia no idioma nacional -- Eu não tinha idéia de que esse planeta já foi mais quente que hoje!
--Ah, sim, o trabalho de Clarice é muito interessante! -- respondeu orgulhosa -- Ela é minha nam... -- deteve-se no que ia dizer -- minha colega de trabalho. -- consertou-se -- A outra é que é uma metida que só quer aparecer! -- referia-se à astrônoma
--Amostras do gelo da Groelânia revelam vários outros períodos quentes, como este que vai de 1450 a 1300 anos antes do Rabi, -- Clarice continuava apresentando o gráfico -- este outro situado entre 250 anos antes do Rabi até 0, -- mostrava figuras também -- o Período Medieval Quente, entre os anos de 1000 e 1300, cujas temperaturas eram bem próximas ao que temos hoje e, em certas épocas, ainda muito mais altas. -- pausou brevemente -- Aliás, fazendo um parêntesis, graças a esse período quente foi que os vikings se expandiram pelo norte. -- olhou para a platéia -- Vocês sabiam que houve plantações de trigo na Escandinávia, cultivo de aveia e cevada na Ilha do Gelo e que a própria Groelânia possuía uma grande extensão de terras cultiváveis naqueles tempos?
Zinara olhava orgulhosa para Clarice. “Muito bom, querida!” -- pensou
--Seguindo-se a este Período Medieval Quente, tivemos uma fase conhecida como Pequena Idade do Gelo, entre 1550 e 1850, quando ocorreu o declínio das sociedades vikings. -- apresentou mais imagens ligadas ao gráfico que exibia -- E então, mais tarde, temos o Período Quente do Século XX, compreendido entre os anos de 1900 e 2010. -- mostrou outra lâmina -- O século XX foi quase tão quente quanto os séculos do Período Quente Medieval. -- exibiu mais um gráfico -- O recente período quente, entre 1976 e 2000 parece ter chegado ao fim; como Zinara comentou. Os astrofísicos que estudam o comportamento das manchas solares prognosticam que os próximos 25 ou 50 anos poderão compor um período frio semelhante ao ocorrido entre as décadas de 1790 e 1820.
--Importante comentar um pouco sobre as manchas solares. -- a astrônoma interferiu mais uma vez -- Quanto maior o número de manchas solares, mais energia, mais calor, chega no planeta. -- exibiu uma imagem -- O Período Quente Medieval foi uma época de muitas manchas; já na Pequena Idade do Gelo houve total ausência destas manchas solares. -- sorriu para o público -- O ser humano não tem influência nisso! -- mostrou um gráfico -- Os períodos com menos manchas solares foram caracterizados por maior atividade vulcânica no planeta e sabemos que cinzas lançadas na troposfera por vulcões situados em baixas latitudes podem contribuir para uma redução global de temperatura.
--E qual a relação entre astronomia e vulcanismo? -- um homem perguntou descrente
--Existem duas vertentes científicas para explicar essa relação. Uma delas menciona um ciclo de 180 anos na atividade vulcânica, o qual é estreitamente relacionado com a atividade solar, enquanto que outra menciona os efeitos da pressão de maré sobre o planeta Água. -- respondeu de pronto -- Essa pressão é influenciada pelas forças gravitacionais dos planetas que constituem o sistema solar.
--Tem sentido... -- Cátia resmungou para si mesma
--Mas e quanto ao efeito humano no processo de aquecimento global? -- uma pesquisadora questionou -- Pelo que percebo, vocês não o consideram, julgando que tudo que vemos hoje é inevitavelmente natural!
--Os gases de efeito estufa são: -- Clarice respondeu apresentando uma imagem -- vapor d’água, o grande vilão dióxido de carbono, ozônio, dióxido de nitrogênio, metano e os clorofluorcarbonos, ou CFCs, -- olhou para a mulher que a questionou -- sendo que não há evidências científicas de que aqueles compostos de CFCs das geladeiras e aerossóis causassem dano à camada de ozônio, apenas para mencionar outro ponto polêmico. -- mostrou mais uma imagem -- Saliento que o vapor d’água é o mais importante gás de efeito estufa, coisa que a imprensa não diz, e, certamente, a dupla vapor d’água e CO2 são os compostos mais ativos na regulação da temperatura do planeta. -- explicava -- É muito importante que apresentemos alguns números aqui. -- exibiu um conjunto de gráficos -- A contribuição de todas as atividades humanas tem sido acusada de aumentar o calor de absorção solar em cerca de 2W/m2. Sabe-se que a variação normal do efeito estufa é de cerca de 96 a 176W/m2, donde se percebe que o CO2 antropogênico na atmosfera é muito pequeno comparado com as variações naturais, as quais são regidas pelos oceanos, que são os grandes reservatórios deste gás.
--Estatisticamente também sabemos que as concentrações de CO2 sempre sobem nos períodos quentes para depois cair naturalmente. -- Zinara complementou
--Lá vai ela dar pitaco! -- Cátia reclamou consigo mesma
--E como eu disse antes, em épocas de calor as geleiras derretem e com isso diminui-se a salinidade e aumenta-se a densidade da água. -- mostrou um modelo computacional -- A energia solar recebida nos trópicos é transportada pelos oceanos para os pólos. Quando as geleiras derretem, as mudanças na salinidade e densidade da água interrompem este transporte gradualmente. -- explicava -- Essa reorganização na circulação termohalina dos oceanos faz com que as temperaturas no planeta desçam e, com isso, inicia-se uma glaciação.
(Nota da autora: circulação termohalina é a circulação oceânica global movida pelas diferenças de densidade das águas devido a variações de temperatura ou salinidade em alguma região oceânica superficial)
--Meus caros, por favor, -- a morena falou novamente -- o planeta já sofreu, ao longo de sua existência, vários processos de resfriamento e aquecimento extremos. Está comprovado que houve alternância de climas quentes e frios, sendo este um fenômeno corrente na nossa história!
--Os fatores externos estão sendo incorretamente incorporados aos modelos climáticos, -- a paleoceanógrafa disse -- gerando assim resultados superestimados. Mas, concordemos ou não, há um consenso entre todos os cientistas: mesmo que os modelos melhorassem, não alterariam a conclusão de que precisamos cuidar melhor desse planeta que é nosso único lar!
--O clima virou um comércio triste! -- Zinara denunciou -- Essa teoria de aquecimento antropogênico é defendida por muita gente séria, eu sei, mas ela surgiu apenas como um pretexto para que determinados grupos ganhassem dinheiro. E muito dinheiro!
--Se o mundo estivesse tão convencido dessa verdade, do efeito antropogênico sobre o clima, será que Godwetrust estaria hoje investindo tão pesado no xisto? -- Clarice provocou -- Será que Cina e Ganarājya voltariam-se para o carvão como fazem agora? -- sorriu
--Não se pode tentar salvar o planeta Água usando verdades científicas totalmente questionáveis! -- a astrônoma insistiu -- É importante reconhecer as limitações do conhecimento científico atual, não comprar falsas idéias e lutar para reduzir as atividades humanas que poluem nosso ar, águas e solo. -- falava com seriedade -- E eu digo e repito sempre que o maior problema é a água potável! O que vamos fazer quando ela faltar? E faltar para todo mundo, não só para os pobres que ninguém liga!
--Vamos inventar mais uma verdade pseudo científica para favorecer os ricos do momento? -- Clarice provocou
--Muita coisa tem que mudar na política mundial! -- Cátia se levantou falando no idioma dos saxões -- Seja no que diz respeito à preservação ambiental, geopolítica de petróleo, questões energéticas em geral ou direitos humanos. -- olhava para todos -- Tem que acabar esse eterno jogo de poder em que meia dúzia de países ricos -- falou a palavra com desprezo -- constroem essa tal riqueza à custa da miséria de tantas pessoas no mundo!
--Taí. -- Zinara cochichou para Clarice -- Nunca pensei que fosse dar razão a essa mulher em alguma coisa!
A paleoceanógrafa achou graça.
(Nota da autora: baseado nos trabalhos dos professores doutores Felipe Toledo da USP (Paleoceanografia do Atlântico Sul), Luiz Carlos Baldicero Molion da UFAL, http://www.sbhc.org.br/resources/anais/10/1345049187_ARQUIVO_Esteves&Cukierman_SBHC2012.pdf, http://www.ige.unicamp.br/terraedidatica/v5/pdf-v5/TD_V-a4.pdf e A História do Clima, de Maria José Aragão)
***
--Zinara, eu tô tão feliz! Nosso trabalho repercutiu muito bem e deu o que falar no evento! -- Clarice sorria satisfeita -- Agora que já apresentamos me sinto até mais leve!
--Eu gostei muito e fiquei orgulhosa com seu desempenho! -- sorria também -- Agora prepare-se pros ataques, porque eles virão! -- advertiu
--Eu sei... -- respondeu pensativa antes de mudar de assunto -- E, olha, que restaurante chique! -- comentou impressionada -- Ambiente super fino, música boa e mais essa visão de Paulicéia toda iluminada! -- olhou para a cidade -- Fiquei surpresa com o cardápio. A carta da vinhos também é das melhores!
--Bacana, não é? -- concordou -- Dica de minha amiga Regina. E ela disse que a comida é tão boa quanto a propaganda do cardápio!
--Ela deve gostar muito de você, a ponto de ter emprestado até o motorista! -- achou graça
--É uma boa amiga com um coração enorme. Mulher mais rica que eu conheço e ainda assim, super humilde. -- o garçom se aproximou e colocou uma cesta de pães e pastas na mesa -- Obrigado. -- as duas agradeceram -- Ela sabia que eu queria ficar com você em um lugar de bom gosto e me recomendou esse restaurante aqui... -- esfregou as mãos nas pernas nervosamente
“Ela sabia que você queria ficar comigo?” -- pensou surpreendida -- Fala de mim pra ela? -- sorriu animada
A astrônoma abaixou a cabeça. -- É, eu falo... -- gastou uns segundos calada -- Fiquei lisonjeada que você tenha aceitado vir comigo ao invés de sair com seus colegas... -- olhou para a paleoceanógrafa
--Hum, é claro que eu prefiro você! -- pigarreou -- Prefiro... -- não sabia o dizer e pegou um pão -- Essa pastinha é de que, hein? -- pegou um pouco com a faca para disfarçar
--Berinjela. -- serviu-se também -- Minha camma Najla, de quem já lhe falei, também era muito rica. -- passava pasta no pão -- Você tinha que ver a fazenda dela, que coisa maravilhosa! -- pausou brevemente -- Aliás, você gosta de fazenda, de roça, dessas coisas?
--Ah, eu gosto! Não tenho hábito de freqüentar, mas é por pura falta de oportunidade. -- mordeu o pão
--Você gostaria... -- pensava em como convidar -- de ir lá na roça comigo um dia desses? -- perguntou com timidez -- Conhecer usritii (minha família), experimentar uns dias longe da cidade grande... -- olhou para Clarice -- Ya Leda também é mais que bem vinda... -- sorriu envergonhada
--Ai, eu adoraria! -- sentiu o coração acelerar -- Adoraria!
--Adoraria? -- sorriu empolgada
--Tudo sobre você me interessa. -- respondeu sem pensar e abaixou a cabeça
O coração da astrônoma acelerou também. -- A gente marca! -- suspirou e mordeu um pedaço do pão -- "Será que ela gosta de mim?” -- questionava-se
--A gente marca... -- deu outra mordida no pão -- "Ela é tão gentil...” -- pensou -- "Será que gosta de mim?”
--É... -- sorriu envergonhada -- Já esquematizei tudo e vou pra São Sebastião no mesmo vôo que você.
--Ai, que bom! -- ficou feliz -- Aí você vai almoçar lá em casa!
--Mas assim, sem avisar? -- preocupou-se -- Ya Leda vai me achar uma cara das mais de pau, uai!
--Vai não! -- achou graça -- Ela mesma mandou te convidar. E aproveita, que isso é raríssimo de acontecer! -- mordeu outro pedaço de pão
“Será que minha quase futura possível sogra me aprova?” -- pensou empolgada
***
Zinara e Clarice paravam diante da porta do quarto da paleoceanógrafa.
--Chegamos. -- sorriu encabulada -- Agora vai se ver livre de mim até às 9:00h. Aproveita! -- brincou
--Não quero me ver livre de você... -- respondeu envergonhada -- Aliás, queria te dizer que o dia de hoje foi perfeito... -- olhava para a outra -- Desde a força que me deu pra apresentar nosso trabalho até o jantar maravilhoso, num lugar cheio de estilo com direito a motorista e tudo! -- piscou para ela -- Amei!
--Também adorei as horas passadas a seu lado. -- abaixou a cabeça e pôs as mãos nos bolsos do sobretudo -- Sua companhia é sem dúvida maravilhosa.
--A sua também. -- encostou-se na porta
--Você é uma mulher incrível, ya habibi. -- olhou para ela e se aproximou um pouco -- Não tem idéia do quanto eu gostaria de... -- não concluiu a frase e perdeu-se nos olhos dela -- “Vê lá se não vai agarrar a mulher e fazer vexame, bicha besta!” -- pensou
“Ai, Zinara, faz alguma coisa!” -- pensou agoniada -- De...? -- queria ouvir
--Bousa ala shafayefik! (Beijar nos seus lábios!)
--Bousa o que?? -- não entendeu -- "Gente, ela quer a minha bousa? Ui!”-- estava intrigada -- "E o que seria uma bousa, ao certo?
Não teve coragem de traduzir e olhou para o relógio rapidamente. -- É melhor eu ir que já é tarde. -- sentia as bochechas queimarem -- E você deve estar cheia de sono...
Clarice respirou fundo e perguntou à queima roupa: -- Quanto de Jamila ainda resta no seu coração, Zinara?
Não esperava por aquela pergunta. -- Se eu disser que restou nada é mentira, mas posso afirmar sem receio que desisti dela. -- olhava nos olhos -- Acabou em definitivo pra mim!
--Será que já viveu o luto da separação?
--Acho que sim. -- tocou o rosto da outra -- Acho que sim... -- acariciava de leve -- Mas há uma coisa sobre mim que precisa saber. -- pensava em sua doença
--Outra mulher? -- perguntou receosa
--Laa! (Não!) Não há outra mulher além de você! -- respondeu sem pensar -- “Eita, que essa foi forte!” -- pensou encabulada
“Ai, meu Deus...” -- ficou nervosa -- Vai me dizer o que é?
--Vou! -- segurou as mãos de Clarice -- Mas antes me diga o que ainda existe entre você e Cátia!
--Nada mais! -- respondeu convicta -- Eu confundi algumas coisas e me precipitei com outras tantas... -- aproximou-se da morena -- Cátia e eu somos muito diferentes e temos expectativas mais diferentes ainda. -- pausou brevemente -- Não é ela que eu quero!
“Ô, meu Pai, mata a caipira...” -- o coração estava a ponto de saltar do peito -- E quem você quer? -- perguntou totalmente embevecida
--Ainda não sabe? -- engoliu em seco
Espontaneamente Zinara se aproximou ainda mais de Clarice, levou uma de suas mãos ao rosto dela e sentia como se uma força a impulsionasse a beijá-la.
--Mas que sacanagem é essa aqui?! -- a voz de Cátia irrompeu no corredor
As duas mulheres despertaram-se de seu transe e olharam surpresas para a loura que chegava quase cuspindo fagulhas.
--Falou no Bicho Ruim, deu nisso! -- Zinara reclamou -- AHHa!
--Vocês perderam a noção, é? -- a geofísica parou diante das duas com as mãos na cintura -- De sacanagem no meio do corredor do hotel? Esqueceram que tem câmeras? -- apontou para uma delas
“Gente, que vexame! Eu devia ter convidado Zinara pra entrar!” -- pensou -- “Não fiz isso por que, hein? Ai, Clarice, mas você é lesa, faça-me o favor!” -- revirou os olhos
“Eita, que vergonha!” -- a astrônoma constatou com os olhos arregalados -- E você por acaso nos espionava por alguma delas? -- perguntou de cara feia -- Diacho que sempre vem nas horas mais inconvenientes!
--O que faz aqui, hein, Cátia? -- questionou também
--Você não foi no jantar do evento, né? -- ignorou o que havia ouvido -- Fiquei de olho a noite toda e nada!
--Até quando vai perseguir a gente, ya majnum (sua louca)? -- encarou com a loura -- Eu já tô a ponto de perder a paciência com você!
--Ih, meu Deus, segura que ela vai explodir! -- respondeu com deboche -- O povo da tua terra é assim, né? Qualquer coisinha, amarra uma bomba no corpo e explode! -- provocou
Sem pensar, a morena rapidamente segurou a geofísica pelo pescoço e apertou, fazendo-a se ajoelhar. -- Nunca mais diga uma coisa dessas! -- afirmou entre dentes
Cátia agonizava com falta de ar e Clarice ficou apavorada.
--Zinara, pelo amor de Deus, larga ela! -- pediu aflita -- Que é isso, criatura??
“Meu Deus, o que eu tô fazendo?” -- pensou envergonhada ao soltar o pescoço da outra, que caiu sentada no chão -- Desculpe, querida. -- pediu de cabeça baixa -- Ela me tirou de sério...
--Ah! Minha nossa! -- a loura passava a mão no pescoço -- Vê isso, Clarice? -- olhou para ex -- Essa mulher é totalmente louca e descompensada!
--A culpa foi sua! -- ajudou-a a se levantar -- Quem procura acha, não é? -- olhou para as duas -- Agora chega disso aqui e vamos cada uma pro seu quarto!
--Eu não vou deixar passar barato! -- olhou ameaçadoramente para Zinara -- Não vou!
--Chega, Cátia! -- Clarice ordenou -- E vai pro seu quarto!
--Humpf! -- a loura fez um bico -- Só se ela também for! -- falou como se fosse criança ao apontar para a morena
--Eu vou, mas não porque você quer! -- fez pirraça também -- Até amanhã, habibi. -- olhou timidamente para Clarice
--Até amanhã, querida. -- respondeu delicadamente
Zinara ainda encarou com Cátia e depois de alguns segundos foi embora para pegar o elevador. A loura se ajeitou toda e entrou no quarto antes de lançar um último olhar para a ex. Clarice balançou a cabeça negativamente, entrou em seu quarto e fechou a porta.
--Mulherzinha desagradável, vou te contar, viu, fi? -- a astrônoma resmungava consigo mesma -- Parece até uma obsessão, todo canto que a gente tá aparece aquela bicha! Abusada! -- entrou no elevador -- AHHa! Gaatak niila, Cátia! (Vá para o inferno, Cátia!) -- cruzou os braços e ficou pensando -- Mas uma coisa é! -- falava sozinha -- Parece que Clarice gosta de mim! -- desceu no andar desejado -- Será? -- sorriu abestalhada
--Terrorista xiita dos infernos! -- a loura cuspia marimbondos dentro do quarto -- Quem ela pensa que é? -- passou a mão no pescoço -- Cruzes, que pegada violenta!
--É cada coisa... -- resmungava sozinha indo para o banheiro -- Mas, pensando bem... -- olhou-se no espelho -- elas brigaram por minha causa! -- sorriu toda prosa -- Será então que Zinara gosta de mim? -- sorriu empolgada -- Tô bem melhor que La Enviadita!
***
O evento mundial caminhava para seu desfecho e, após todas as falas do dia, Zinara foi convidada para proferir o discurso formal de encerramento. Falava na língua dos saxões.
--Reiterando as palavras de todos os que estiveram aqui à frente hoje, concordo que o evento foi um sucesso e que tivemos a bendita oportunidade de aprender muito e interagir bastante com todos os pesquisadores, profissionais liberais e estudantes que estiveram presentes. -- olhava para a platéia -- Projetados no telão, estão os nomes de todas as pessoas a cujos esforços devemos a realização do Congresso Mundial. Se omiti algum nome por lapso de memória, peço perdão e acrescento ainda que os profissionais de apoio administrativo, limpeza, alimentação, hospedagem e segurança também foram essenciais para que nosso encontro pudesse ter sido tão bem sucedido!
--Humpf! -- Cátia fez um bico -- Que demagoga! -- reclamou no idioma de Terra de Santa Cruz
--Você tá aqui ouvindo porque quer! -- Clarice retrucou
--Só sabe defender... -- a loura resmungou
--Foi uma semana inteira de debates intensos sobre ciências da natureza, -- a astrônoma continuava -- em suma, podemos dizer que estivemos aqui discutindo sobre como preservar e cuidar melhor deste planeta maravilhoso que nos serve de lar. Apresentamos modelos sustentáveis, denúncias, propostas de novas rotas de desenvolvimento e apontamos imensos desafios futuros e os problemas que virão se nada for feito para mudar o atual estado de coisas. -- alertou -- Houve debates acalorados, momentos polêmicos, -- lembrou-se do trabalho que apresentaram -- mas o importante é que todas as vozes foram ouvidas. E assim deve ser sempre! -- pausou brevemente -- Pode parecer que em nada se relaciona ao evento o que eu vou dizer agora, mas todos verão que os assuntos estão muito mais interligados do que se imagina. -- mostrou uma foto de um policial borrifando um jato de arnica no rosto de alguns manifestantes. A imagem causou certo burburinho no meio do público
--O que ela pretende? -- Cátia perguntou surpresa
--O de sempre: -- Clarice sorriu -- provocar!
--O planeta Água é um ser vivo extremamente complexo e é dever de cada um de nós trabalhar para que os elementos desta grande teia que nos enlaça, sejam eles animais, vegetais ou minerais, sejam respeitados em sua plenitude, pois, do contrário, a médio ou longo prazo o sistema pára. -- olhava para todos -- Da mesma forma, é direito de cada um de nós que nossas necessidades básicas sejam atendidas. Todo ser humano deste planeta merece água, comida, abrigo, segurança e um mínimo de conforto; quando isso deixa de acontecer é sinal de que há desequilíbrio. É sinal de que em alguma parte uma parcela da população dispõe de muitos recursos às custas da carência de uma outra parcela ainda mais numerosa! Também faz parte do instinto ecológico de respeito e preservação pela vida, a luta por condições mais dignas de sobrevivência nas sociedades humanas! -- falava com paixão -- Isso que os senhores vêem, -- apontou para a foto -- e que marcou o período em que estivemos aqui, não é simplesmente baderna e vandalismo! Isso é um grito que precisava ser dado há muito tempo!
--Muito bem, Zinara! -- Clarice admirava-se com a coragem dela
--Ao longo dos dias ouvi colegas participantes do evento criticando as manifestações e afirmando que muito barulho se fez por conta de 25 centavos! -- sorriu -- Sinto muito dizer, mas não são apenas 25 centavos! São séculos de uma governança corrupta e hipócrita, que apenas muda de lado ao sabor das circunstâncias, mas cuja ideologia dominante permanece presa ao prazer de lesar à pátria em troca de muito dinheiro ou mesmo de alguns benefícios! -- algumas pessoas aplaudiram -- Não são apenas 25 centavos, mas a indignação de viver em cidades que têm tudo para serem magníficas, mas que não passam de metrópoles superlotadas governadas por bandidos! -- mais aplausos -- Não custa apenas 25 centavos a dor de acordar cedo, depender de transporte público para trabalhar e não receber sequer um tratamento digno como cliente, enquanto empresas corruptas e incompetentes lucram uma fortuna e ainda remuneram mal a seus funcionários! -- sentia o coração acelerado -- Perdoem-me, amigos, mas não são apenas 25 centavos, mas a revolta de uma classe docente que estudou por anos a fio para exercer a sagrada ação de ensinar e em troca receber um salário indecente e condições desrespeitosas de trabalho! Não, não são 25 centavos, mas uma polícia mal treinada e mal remunerada que muitas vezes fecha acordos com traficantes, e no entanto reprime as manifestações de rua com violência desmedida! -- mais aplausos -- São anos e anos de colonização, onde nós vendemos a matéria-prima quase de graça e compramos os produtos manufaturados por uma pequena fortuna, assistindo passivamente à ação de grupos estrangeiros que chegam em nossas terras em processos de exploração parasita e totalmente degradante! -- muitos se incomodaram e outros tantos aplaudiram -- Não são 25 centavos, mas uma mídia tendenciosa, desonesta e forjadora de verdades, que impede que os verdadeiros profissionais de comunicação trabalhem como gostariam, e chama bandidos de pessoas de bem, e pessoas de bem de vândalos! -- mais e mais aplausos -- Talvez 25 centavos tenham sido a gota d’água, a conta certa que faltava para transbordar o caldeirão de insatisfações e aquele grito de revolta preso na garganta do povo desse país! Talvez o gigante tenha despertado e aquelas vozes que foram sufocadas por tanto tempo se façam ouvir de uma forma que não seja possível desprezar. -- respirou fundo -- Só sei que como diria um admirável líder negro: eu tenho um sonho! E quem sabe, o sonho não esteja na hora de se concretizar? -- balançou a cabeça pensativamente -- Obrigado, retornem com paz e segurança para suas casas e tudo de bom! Declaro oficialmente o encerramento do Congresso Mundial sediado em Paulicéia! -- fez uma reverência e desceu do púlpito sob os aplausos empolgados da maioria dos participantes
--Aplaudindo, Cátia? -- Clarice perguntou provocando
--Ela é metida, antipática, desagradável e sem graça, mas pelo menos sabe falar umas verdades de vez em quando. -- aplaudia -- Nunca pensei que fosse concordar com essa maluca em alguma coisa, mas... É o que ela falou!
A paleoceanógrafa acompanhava a astrônoma com o olhar e aplaudia embevecida.
CAPÍTULO 35 – São Sebastião
Zinara e Clarice chegavam no aeroporto juntas.
--Meu Deus, tá lotado isso aqui! -- a paleoceanógrafa arregalou os olhos
--Não se desespere. -- piscou para a outra -- Vem comigo! -- seguiu adiante empurrando o carrinho com as bagagens
--Essa não é a fila de cartões ouro e diamante? -- perguntou ao se dirigirem para uma fila onde havia apenas duas pessoas esperando
--Sim. -- parou esperando a vez -- Alguma coisa boa essas empresas aéreas têm que fazer por quem viaja muito, né? -- piscou para Clarice
--Você vive me surpreendendo! -- sorriu
--Falando em te surpreender... -- respirou fundo -- Queria te pedir desculpas pelo vexame de anteontem... -- coçou a cabeça -- Eu não devia ter perdido a paciência como perdi... Cátia me provocou e eu caí na provocação dela. -- estava envergonhada -- Queria que soubesse que me desculpei ontem... Embora ela não tenha reagido nada educadamente...
--Tudo bem, meu amor. -- fez um carinho rápido no braço da morena -- Confesso que fiquei assustada, mas entendi. Ela tocou na sua ferida e já vinha te provocando ao longo dos dias.
“Adoro quando ela me chama de meu amor!” -- pensou toda prosa -- Não quero que pense que sou uma mulher violenta!
--Não penso isso! -- sorriu compreensiva -- E você ainda não me viu com raiva! -- brincou
--Eita! Sempre ouvi dizer que toda baixinha é invocada! -- brincou também
--Baixinha, é, dona Zinara? -- beliscou levemente o braço dela -- Cutuca a onça com vara curta pra você ver! -- continuava brincando
--Eu não! Respeito é muito! -- beijou a testa dela espontaneamente e se envergonhou -- “Mas, o que é isso, hein?” -- condenou-se -- “Cheia das beijações pra cima dela!”
“Adorei esse beijinho!” -- Clarice pensou toda prosa
--Com licença! -- uma voz conhecida se fez ouvir
--Cátia?! -- a paleoceanógrafa perguntou em choque -- Mas será possível?!
--AHHa, mas que praga! -- Zinara reclamou -- Karaahiyya! (Que ódio!)
--Também moro em São Sebastião, esqueceu, querida? -- perguntou chateada -- E sou cartão diamante no programa milhagens dessa companhia aérea! -- exibiu-se para a astrônoma
--Jura? -- perguntou com deboche
--Cátia, você já tá passando dos limites! -- Clarice reclamou -- Nos perseguiu o evento inteiro e até na hora do vôo é isso!
--Posso saber o que essa mulher tá indo fazer na nossa cidade? -- perguntou sem olhar para a rival -- Só me falta dizer que vai dormir na tua casa!
--Ah, mas só me faltava essa! -- achou graça do absurdo -- Eu não tenho satisfações pra te dar, não, ya habla (sua idiota)!
--Ela vai dormir na tua casa? -- insistiu
--O próximo! -- a atendente da companhia aérea chamou
--Com licença, Cátia! -- Clarice respondeu dando o braço a Zinara -- Temos que fazer o check in.
A astrônoma sorriu vitoriosa e seguiu com a outra para o guichê.
--Pouca vergonha! -- a loura resmungou revoltada
***
--Nem acredito que nos livramos daquele encosto! -- Zinara desabafou ao entrar no táxi com Clarice -- Aturar aquela doida sentada atrás de mim foi demais! -- olhou para a outra -- Acredita que ela chutou meu assento a viagem toda?
--Ainda bem que ponte aérea é uma viagem rápida! -- segurou a mão da morena -- Agora esqueça isso que o pior já passou e um gostoso almoço nos aguarda! -- sorriu
--Agora é o segundo round: agradar ya Leda... -- resmungou consigo mesma
--O que? -- não entendeu
--Ah, eu disse... é verdade! -- disfarçou -- Agora é só alegria!
Enquanto isso, Leda conversava no LivrodasFuça com Amina.
DonaBord: Já preparei o almoço e espero minha filha chegar com uma amiga. Vou ficar de olho pra ver qual é!
DonaBord: Sei que minha filha arrasta um bonde por aquela uma e não posso confiar assim, né?
DonaBord: Ela é adulta mas é minha menina!
--Dona Burduada num si aperta em cunhecê as muié qui a fia dela gosta. -- Amina conjecturava consigo mesma -- Eu tenhu qui aprendê a sê assim... -- coçou a cabeça -- Mas é um trem isquisito qui só...
Siriema: Tá cum a razão, uai!
Siriema: Tem qui oiá nus óio dela pra vê si presta!
Siriema: Mas num sei comu qui eu ia fazê nu lugá da sinhora...
DonaBord: Você me disse que sua filha se revelou há pouco tempo, não foi? Talvez um dia ela queira lhe apresentar alguém.
Siriema: Podi sê... Mas num sei o qui vô fazê quandu essi momentu chegá.
DonaBord: Você não disse que sua sobrinha também é lésbica? E que você foi na casa dela e conheceu até a companheira da moça?
DonaBord: Vai tirar de letra quando for a hora de conhecer uma pretendente de sua menina!
Siriema: É diferenti pur dimais da conta. Subrinha num é fia!
Siriema: Cum os fio os trem são ôtro!
--Nossa, que às vezes esse caipirês dela me dá um nó na cabeça! -- Leda falou consigo mesma
DonaBord: Fique tranqüila! Eu vou te dando umas dicas e você fica craque!
DonaBord: O importante é marcar em cima porque tem muita pistoleira e malvada por aí!
Siriema: Cumé issu?
DonaBord: Pistoleira são aquelas que só querem se dar bem procurando bom partido.
DonaBord: E malvada são as taradas!
DonaBord: Não sei qual o pior tipo!
Siriema: E tua fia já ti apariceu cum muié assim?
DonaBord: Ah, Siriema! Aquela menina só me aparece com tarada!
DonaBord: É um inferno!!!!
Siriema: Ave Maria!
DonaBord: Tem que ver se a de hoje é assim também ou se é mansa!
DonaBord: Tô de olho!
Achou graça. -- Ô, Njala! -- chamou pela cunhada -- Comu qui nóis iscrevi pra mostrá qui riu?
--Escreve um monte de letra ‘ka’ uma do lado da outra. -- respondeu da sala -- É o jeito mais fácil!
--Hum. -- estranhou -- Essis trem di internétia é tudo isquisitu! A risada pareci inté as galinha daqui quandu tá pra ponhá ovu!
Siriema: kkkkkkk
--Que negócio é esse?! -- não entendeu -- É risada? -- não lembrava -- Mas Clarice falou de um ‘erre’ com ‘esse’... Ou não? -- estava na dúvida
DonaBord: Tu riu, mulher?
Siriema: Ri, uai! Num é kkk?
DonaBord: Eu nunca sei! Essa fala de internet é coisa de doido!
DonaBord: kkkkkk
Siriema: kkkkkk
--Será que ela vai gostar da colônia que eu comprei? -- Zinara perguntou preocupada -- Que droga que não tinha flor pra vender em nenhum dos dois aeroportos!
--Claro que vai! -- tentava tranqüilizá-la -- Nem precisava ter comprado nada! Só deixei fazer isso porque insistiu muito.
--Ficava muito feio ir pra sua casa almoçar e chegar de mãos vazias! -- retrucou -- Se eu fizesse isso todos os meus antepassados se revoltariam no túmulo! -- passou a mão nos cabelos -- E maama e baba me diriam muito desaforo se soubessem! -- pausou brevemente -- Em Cedro, não se vai almoçar na casa de alguém sem levar um presente como forma de respeito e agradecimento. Pelo menos, no meu tempo não!
--Relaxe, meu bem! Tudo vai dar certo. -- sorriu -- Mamãe não repara nisso de presente, mas em outras coisas.
“É dessas outras coisas que eu tenho medo!” -- pensou agoniada
DonaBord: E sua filha, como vai? Desde que você disse que anda mal de saúde tenho rezado por ela todas as noites!
Siriema: Ela vai levando...
Siriema: Viajô, num sabi? Mas quandu vortá, nóis vai na casa dela. Eu mais meu maridu.
DonaBord: Essas nossas filhas viajam demais!
DonaBord: Tinham que parar mais o rabo dentro de casa!
Siriema: kkkkkk
DonaBord: kkkkkk
--Risada feia, essa da internet! -- Leda parou para pensar -- Parece até duas galinhas! -- riu sozinha
--Chegamos! -- Clarice e Zinara se aproximaram do portão -- Preparada? -- sorriu
--Abadan! (Nunca!) -- respondeu tremendo as pernas
--Pode traduzir, moça? -- beliscou de leve o braço dela
--Melhor não! -- brincou -- Mas já que estamos aqui... -- respirou fundo -- Yaalah! (Vamos lá!)
Achou graça. -- Vamos, dona Zinara! -- abriu o portão e entraram puxando as malas -- Ô, de casa! -- chamou brincando com a mãe -- Ô, de casa!
DonaBord: Ih!
DonaBord: Tenho que ir. Elas chegaram!
Siriema: Vai lá!
Siriema: E óia nus óio da muié!
DonaBord: Ah, mas eu vou olhar é tudo!
DonaBord: Beijos!
Siriema: Bêju!
Siriema: Inté!
--Dona Leda! -- Clarice chamou ao entrar em casa -- Chegamos!
--Calma, menina! -- respondeu do quarto -- Deixa eu desligar o computador!
--Ya Leda usa internet? -- achou graça
--Usa, menina! -- parou no meio da sala -- Sucesso absoluto no LivrodasFuça! -- riu
--Mas até ela? -- riu também -- Maama e camma Najla também são adeptas desse trem.
--Cheguei! -- Leda apareceu na sala -- Então você que é a famosa Zinara? -- estudava a astrônoma
“Que velhinha fofinha!” -- pensou divertida -- “Fofinha, porém perigosa! Lembre-se disso!” -- ajeitou-se toda -- Olá, ya Leda, é um prazer! -- aproximou-se, segurou a mão dela e beijou-a -- Sua bênção! -- pediu com respeito
A idosa se surpreendeu. -- Nossa, fazia anos que ninguém me pedia a bênção! -- admirou-se -- Deus te abençoe, minha filha!
--Eu trouxe pra ya sayyida (senhora)! -- entregou-lhe um embrulho -- Espero que goste!
--O que é isso? -- olhou desconfiada
--De acordo com os costumes dela, não se deve chegar na casa de alguém pra fazer uma refeição sem levar um presente pros donos da casa. -- explicou -- Eu disse que não era necessário mas Zinara insistiu.
--Hum... -- abriu o embrulho e viu a colônia -- Sabe que eu gostei desse costume? -- abriu o frasco para sentir o aroma -- Muito bom! -- sorriu -- Obrigada!
--Que bom que gostou! -- sorriu empolgada
--Mas não pense que me compra com presente cheiroso! -- esclareceu de pronto -- Ainda não sei qual é a tua e tem que saber!
--Mamãe! -- Clarice ralhou envergonhada
“Oh Aba! Ya sheen theek izziwaya?” (Oh, meu Pai. O que será de mim?) -- pensou com medo
***
Clarice e Leda estavam na sala enquanto Zinara terminava de secar a louça.
--Eu tô gostando é bem dos costumes desse povo de Cedro! -- a idosa comentou -- Primeiro me deu presente e depois cuidou da louça! -- olhava para a filha -- Da próxima vez peço pra ela dar uma geral na casa! -- piscou
--Mamãe! -- ralhou arregalando os olhos -- Isso é coisa que se faça?
--Brincadeira, menina! -- respondeu divertida -- Eu, hein! Você pega pilha fácil!
--Pega pilha?!-- achou graça -- Que vocabulário moderninho é esse, hein, dona Leda? -- riu brevemente -- “Eu nunca vi mamãe tão simpática pro lado de uma pretendente minha. Acho que ela gostou de Zinara!” -- pensou animada
--Pronto! -- a astrônoma chegava na sala -- Tudo arrumadinho, ya Leda! -- sorriu
--Obrigada! -- respondeu olhando para a outra -- Senta, menina! Fica em pé aí não!
A morena obedeceu e sentou-se ao lado de Clarice.
--Muito bem! -- Leda cruzou as pernas e semi cerrou os olhinhos -- Eu ainda tenho umas coisinhas a te perguntar!
--E o que seria? -- tentava parecer natural -- “Eita pau! Sinto que vem chumbo grosso por aí!”
A paleoceanógrafa estava igualmente preocupada.
--Me diz qual é a tua com a sebosa! -- exigiu sem rodeios -- E não mente que eu descubro, viu? É pior! -- advertiu
--Mamãe!! -- Clarice morreu de vergonha
--Sebosa?! -- não entendeu
--É, mulher, a advogada que vivia contigo! -- esclareceu -- E não tente ganhar tempo pra responder!
--Meu Deus! -- Clarice cobriu o rosto. Sentia as bochechas arderem
--Ah! -- achou graça -- “Então Clarice falava de mim pra mãe com esse nível de detalhe?” -- pensou surpreendida -- Terminou no ano passado e acabou mesmo! -- respondeu sinceramente -- Nunca teve um retorno depois disso.
--E hoje em dia você anda pegando quem?
--Mas, mamãe!! -- morria ainda mais de vergonha
Zinara não resistiu e riu gostosamente. -- Desculpe, mas essa me surpreendeu! -- passou a mãos nos olhos -- Tô sozinha, ya Leda.
--Por que pergunta essas coisas a ela, mamãe? -- queria acabar com aquilo -- Que coisa mais feia! O que Zinara vai pensar? -- não conseguia olhar para a outra a seu lado
--Vai pensar que quero saber o tipo de mulher que freqüenta minha casa! -- afirmou sem titubear -- Essa agora é pesada: -- voltou as atenções novamente para a morena -- você é do tipo tarada ou a coisa contigo é mais mansa?
“Gente, que velhinha é essa?” -- achou graça de novo -- Eu não sou tarada, não. -- coçou a cabeça -- Acho que sou até muito trouxa...
--Você parece ser do tipo de minha filha! -- analisava
--Ela é, mamãe! -- deu força -- Agora vamos parar com isso?
--Tenho ainda uma última pergunta. E essa também é bombástica!
--Ô, meu Pai, me defenda... -- resmungou baixinho
“Zinara vai achar que a caipira aqui sou eu!” -- pensou contrariada -- "E do tipo caipirérrima!”
--Afinal de contas o que é que você tem? Que doença é essa que só vive te deixando toda danada? -- queria saber
--Isso é jeito de falar, mamãe? -- ralhou -- Cruzes! -- olhou para Zinara -- Isso não é o padrão de acontecer nessa cidade, tá? É só na minha casa que acontecem essas coisas! -- esclareceu envergonhada
--Baseeta, habibi! (Não tem problema, querida!) -- respondeu delicadamente ao olhar para a outra -- Eu não me importo em responder. -- olhou novamente para Leda -- Pouquíssimas pessoas sabem da verdade, ya Leda, mas eu vou dividi-la com vocês. -- pausou brevemente -- Eu tenho câncer no pâncreas.
--Ah, meu Deus... -- respondeu penalizada
--O que?? -- Clarice ficou em choque
--E... é grave? -- Leda perguntou com jeito
--É. -- balançou a cabeça
--Ah, Zinara... -- olhou comovida para ela -- Então foi por isso que você tirou a licença... -- deduziu tudo -- E por isso sua mãe foi cuidar de você...
--Eu rezo por você desde que minha filha me pediu isso pela primeira vez. -- afirmou olhando nos olhos da astrônoma -- E tenho muita fé! Minhas rezas sempre dão certo!
Sorriu. -- Agradeço, ya Leda!
--Você vai ficar bem! -- segurou a mão dela -- Tá se tratando direitinho?
--Comecei uma quimioterapia light, Clarice, mas interrompi por conta do evento e dessa viagem. -- levantou a manga do casaco -- E é uma droga!
--Meu Deus! -- surpreendeu-se com o braço da outra -- Tá todo machucado! -- acariciou de leve
--Por essas e outras que eu não quis entrar no tratamento pra valer. -- recolheu o braço -- Acaba com a gente, você vira um farrapo humano e nem sempre cura! No meu caso, não acredito que resolva.
--Mas você não pode se entregar, menina! -- a idosa ralhou -- Não pode!
--Não me entreguei, ya Leda, do contrário. Tenho resolvido meus problemas, limpado meu coração e vivido um dia de cada vez. -- pausou brevemente -- Seja lá o que me acontecer, minha alma está entregue nas mãos de Deus! -- afirmou com fé
--O que veio fazer aqui, Zinara? -- Clarice queria entender -- Por que vai passar esses dias em São Sebastião?
--Coisas pra resolver, habibi. -- olhou para ela -- Depois volto pra casa e retomo esse tratamento infeliz que tô fazendo. -- revirou os olhos
--Seja lá o que você vai fazer, -- Leda se levantou -- quero que se cuide. -- falava com carinho -- Gostei muito de você!
--Sério? -- levantou-se empolgada
--Verdade, mamãe?? -- levantou-se também
--Eu tô velha demais pra viver mentindo por aí! -- aproximou-se das duas e parou diante da morena -- É a primeira vez que Clarice me apresenta a uma mulher decente! Já tava chata de tanta tarada na minha vida! -- pôs as mãos na cintura -- Você tá proibida de morrer, viu? -- determinou -- Não quero saber de minha filha viúva!
--Mamãe! -- cobriu o rosto novamente
“Viúva?? Então ela me aprova!!” -- pensou satisfeita -- Já me deram essa ordem, ya Leda. -- respondeu sorrindo -- Eu quero obedecer! -- pausou brevemente -- Será que... eu poderia lhe dar um abraço? -- pediu como se fosse criança
--Você não é do tipo que gosta de tarar idosas, não, né? -- perguntou desconfiada
--Mamãe, não me mata de vergonha! -- falou ainda cobrindo o rosto
--Sou não, uai! -- espantou-se -- Pedi no maior respeito...
--É que eu quase fui vítima de um estupro, sabe? Aí a gente fica marcada... -- justificou-se
--Como é?? -- ficou escandalizada
--Não foi bem isso, Zinara! -- tentava explicar -- Depois eu conto o que houve!
--Humpf! -- cruzou os braços revoltada -- Mas aquela tarada teve o que merecia! Acabei com ela e com a peste de pelúcia que ela trouxe! -- lembrava de cara feia -- Safada!
“Quem será essa?” -- pensou intrigada
--Vou te dar um voto de confiança! -- abriu os braços -- Venha cá, menina! -- chamou
Zinara abraçou-se com Leda e fechou os olhos.
--Vê se te cuida e fica logo boa, menina! Com você eu faço gosto de Clarice ficar!
--Minha nossa! -- queria se enterrar no chão -- "É hoje que mamãe quer me matar de vergonha!!” -- pensou constrangida
--Obrigada, ya Leda! -- continuavam abraçadas -- É uma honra ouvir isso! -- sorriu --“Acho que conquistei minha quase possível futura sogra!” -- ficou orgulhosa -- “Ana mabsoutah! (Estou feliz!) De vez em quando a caipira dá uma dentro!”
***
Zinara e Clarice contemplavam um belo visual de São Sebastião, sentadas no cume da montanha mais alta da Floresta Urbana.
--Fazia anos que eu não vinha aqui. -- a paleoceanógrafa disse -- Olha como o céu tá lindo, apesar do frio! -- sorriu olhando para o horizonte -- Quando a gente começou a caminhada parecia que ia chover o dia todo e no entanto...
--Também fazia muito tempo que eu não vinha aqui. -- contemplava a paisagem -- Fiquei feliz que você tenha vindo comigo! -- esbarrou suavemente no ombro da outra -- Gostei de ver a disposição na caminhada! -- brincou
--Mas eu gosto dos mesmos esportes que você! -- esbarrou em Zinara também -- Só não os pratico por falta de companhia.
“Inteligente, simpática, delicada, culta, linda e além de tudo gosta de aventuras!” -- suspirou -- “Ô, meu Pai, que mulher é essa?” -- pensou embevecida
--O bom do dia ter amanhecido ruim é que agora temos o cume só pra nós! -- sorria olhando para a astrônoma
--E isso é maravilhoso, Clarice... -- respondeu presa no olhar dela
Gastaram uns segundos de encantamento uma com a outra e depois desviaram o olhar.
--Eu... -- abraçou-se às próprias pernas -- acho que devo te pedir desculpas por mamãe. -- ficou sem graça -- Não sei o que te ficou parecendo mas ela gosta de aprontar das suas e me matar de vergonha! -- sorriu encabulada
--Eu entendi o que ela queria. -- esfregava as mãos uma na outra -- É o jeito dela de te proteger...
--Ah, mas isso é meio ridículo! Eu já sou bem grandinha, né? -- balançou a cabeça negativamente
--Não estranho essas coisas. São super normais em Cedro. -- pausou brevemente -- Quer dizer, com os casais hetero. -- esclareceu
--Você... -- olhou para Zinara novamente -- não vai me dizer o que veio fazer aqui, não é?
--Ainda não. -- olhou para Clarice também -- Mas talvez um dia eu diga...
Juntou coragem para perguntar o que lhe vinha à mente: -- Por que tudo com a gente parece nunca sair do talvez? -- manteve o olhar na morena
--Não sei, habibi... -- tocou o rosto dela -- Só sei que eu queria ter te conhecido antes... -- acariciava de leve
--Pare de agir como se seu tempo tivesse acabado! -- pediu -- Você tá viva, Zinara!
--E o que eu posso te oferecer agora? -- perguntou com tristeza -- Alguns dias a meu lado e depois um motivo pra sofrer no meu enterro? -- continuava acariciando o rosto dela
--Acha que nós seríamos apenas isso? -- retrucou
--E eu ainda tenho coisas pra resolver! Coisas que eu preciso resolver! -- explicava sem dar detalhes -- Tenho pouco tempo, eu sei... -- deu um suspiro profundo -- Há verdades que a gente simplesmente sabe...
--O que eu sei, -- tocou o rosto da morena também -- é que cada dia deve ser vivido com intensidade e isso não é sinônimo de cometer loucuras à revelia! Não seríamos irresponsáveis se nos permitíssemos... -- não teve coragem de concluir
--Amar? -- perguntou timidamente
--Amar! -- balançou a cabeça concordando
--Será que eu pediria muito se... -- aproximou-se um pouco mais -- se pedisse pra você me esperar? Esperar eu resolver o que preciso e então...
--Espero o tempo que for! -- respondeu de pronto
--Ya habibi... -- guiou os lábios em direção aos dela
--Me beija, Zinara! -- pediu cerrando os olhos
Os lábios encontraram-se, à princípio, titubeantes. Lentamente buscavam-se em suaves mordidas e beijos delicados, que progrediam em um processo delicioso de conhecer uma a outra. Ao mesmo tempo, nada lhes parecia novo. Era como se estivessem mais uma vez experimentando um sabor muito apreciado e ansiosamente aguardado. Reviviam sensações que haviam ficado carinhosamente guardadas na memória, embora não se lembrassem de coisa alguma.
Zinara puxou Clarice pela cintura e as duas deixaram os beijos tornarem-se mais intensos e envolventes. O tempo parecia brincar entre passado, presente e futuro. O espaço havia perdido o sentido corrente e dava lugar a uma profusão de imagens mentais que as faziam viajar sem se mover.
As mulheres sentiam-se pertencendo uma a outra, mas não no sentido de ser uma posse. Pertencer no sentido de fazer parte de algo, de alguém.
A paleoceanógrafa sentou-se no colo da astrônoma e continuaram se beijando e acariciando sem medo ou receio de coisa alguma.
--Nossa... -- colou testa com testa quando sentiu que precisava de ar -- nunca um beijo me fez sentir desse jeito...
--Nunca meu coração bateu tão forte, ya habibi... -- sorriu -- Por onde você andava por todos esses anos?
--Sei que é cedo pra dizer isso, mas... -- segurou o rosto da morena com as duas mãos -- eu te amo, Zinara! -- seu coração sabia que era verdade, mas a mente perguntava como poderia ser
--Também te amo, Clarice! -- beijou-a -- Behebbik ya! (Eu te amo!) -- sentia o mesmo que paleoceanógrafa
--Acho que fiquei louca! -- queria se entender -- Como posso dizer que te amo em tão pouco tempo?
--Talvez não seja pouco tempo! Talvez a gente simplesmente não se lembre quando tudo começou... -- pausou brevemente -- Tá mesmo disposta a me esperar?
--Se já te esperei pela vida toda, o que mais alguns dias representarão? -- sorriu e beijaram-se mais uma vez
***
Zinara aproximava-se da casa humilde e maltratada ao pé de uma favela de São Sebastião. Sabia que estava no lugar certo, mas questionava se deveria continuar ou não.
“Se já cheguei até aqui,” -- pensava -- “se vim aqui pra isso, então vamos até o final!” -- decidiu
Respirou profundamente e chegou até a porta da casa para chamar pela dona. -- Salete! Salete!
Segundos depois uma mulher baixinha, cheia de corpo e loura aparece na janela. -- Quem é? -- perguntou desconfiada
“Meu Deus! Como está parecida com a mãe!” -- sentiu o coração acelerar -- Não sei se ainda lembra de mim...
--Zinara?! -- perguntou descrente -- Que tu quer aqui? -- franziu o cenho
--Precisamos conversar!
--Sobre? -- cruzou os braços
--Sobre o único assunto que tivemos em comum: sua mãe!
Salete gastou uns segundos calada e respondeu: -- Esse assunto nem vive mais!
--Sabe que viverá pra sempre! Pelo menos dentro de mim! -- pausou brevemente -- Assim como em você também.
Abaixou a cabeça e em seguida olhou novamente para a morena. -- Não sei como pôde me encontrar aqui, mas... -- suspirou -- Tá, eu deixo você entrar!
Enquanto esperava Salete sair para abrir o portão, Zinara voltou no tempo e reviveu alguns momentos de sua história...
Fim do capítulo
Música do Capítulo:
Cátia tenta seduzir Clarice com :
Depois do Prazer. Intérprete: Só Pra Contrariar. Compositores: Sérgio Caetano / Chico Roque
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PaudaFome
Em: 28/05/2024
Tudo que eu gosto taí! Amei ver Clarice e Zinara e até dona Leda dando força
Solitudine
Em: 14/06/2024
Autora da história
E até que enfim, não? rs
Beijou,
Sol
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PaudaFome
Em: 28/05/2024
AMEI ESSE CAPÍTULO!!!
Solitudine
Em: 14/06/2024
Autora da história
Fico muito feliz em saber!
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Femines666
Em: 16/03/2023
Esse é o tal casal! Finalmente elas que delícia!!!
Já te disse que suas histórias viciam? risos
Resposta do autor:
Esse veio repetido.
Beijos em triplo!
Sol
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Femines666
Em: 16/03/2023
Esse é o tal casal! Finalmente elas que delícia!!!
Já te disse que suas histórias viciam? risos
Resposta do autor:
Esse veio repetido.
Beijos em dobro!
Sol
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Femines666
Em: 16/03/2023
Esse é o tal casal! Finalmente elas que delícia!!!
Já te disse que suas histórias viciam? risos
Resposta do autor:
kkkk
Vício que não faz mal, certo?
Beijos,
Sol
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Alexape
Em: 29/12/2022
Apesar de você Cátia foi tudo como eu queria! FINALMENTE ELA!!!! Zinara tem sua via crucis pela frente mas com Clarice tudo será melhor. Como você nos disse em sob o encanto de maya, amor torna o fardo mais leve!
Resposta do autor:
Eu não disse para confiar na caipira?
Sim, o amor torna o fardo mais leve!
Continue conosco!
Beijos,
Sol
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Seyyed
Em: 17/09/2022
Vou ter que ir trampar. Amanhã tô off-line então dá tempo de tu me responder tudo até segunda haha
Zi tá numa busca né? Ela que acertar as contas com o passado e a expectativa da morte fez ela seguir nesse caminho. Muito foda amei. Phoda pra ser erudita hehe
Resposta do autor:
Olá querida!
Espero que seu domingo offline tenha sido bom.
Eu respondi tudo lá em Maya, porém não consigo responder tudo aqui no Tao. Semana que vem, ao final dela, eu volto e prometo que responderei tudo.
Você interpretou perfeitamente bem o caso da Zinara. Adorei!
Beijos,
Sol
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Seyyed
Em: 17/09/2022
O momento mais aguardado finalmente Zinara e Clarice frente a frente! Tudo fofo, tudo lindo, nice total aí a empata da Cátia vem pra atrapalhar. Mas não adianta que as duas vão ficar juntas ela goste ou não! Certeza! Até a sogra aprovou, agora já era! E eu me divirto!!! Tu conhece alguém tipo aquela Regina??? Apresenta? Hehe
Adoro essa mescla ficção realidade. Tu faz isso muito bem . EBT é também livro didático (inclusive da sacanagem porque tu manja do riscado. Notei desde SEM) HEHE
Resposta do autor:
Agora sim, o encontro foi um encontro de fato! Totalmente a cara delas! Mas nada é perfeito, não é verdade? rs
Se eu conheço uma Regina? Sim, e que frequenta esse site aqui (até escreve conto! rs). Deixa quieto...
kkkkkkkkkkkkkkkkk Morro de rir quando você me vem com essa de que eu manjo dos trem!
Beijos,
Sol
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Gabi2020
Em: 13/05/2020
Olá Solzinha! As-Salamu Alaikum!
Achei tão bonita essa conversa de Amina com Raed, é de uma simplicidade tocante. Mas aí o Raed faz uma declaração de amor tão fofa e a reação dela é perguntar se ele está doente... Kkkkkk...
Lembro que fiquei ansiosas igual Zinara e Clarice para o encontro delas. Mas insisto, ô criaturinhas lesas e medrosas!! KKkkk...
"- Ah, mas eu quero! -- concordou de pronto -- Tanto é que mal cheguei fui logo tomar banho, lavar o cabelo e passar perfume pra te conhecer! -- calou-se repentinamente -- "Ô, bicha besta, ela não tem que saber disso, né?"Kkkkkkk... Bichinha a Zinara quando fica ansiosa falta meter os pés pelas mãos e Clarice vai pelo memsmo caminho.
Cátia é uma empada f. do c.
Duas fofas conversando, não sei quem é mais tímida ali, mas é fofo demais! A conversa entre elas flui tão naturalmente né? Chamou até Zinara de meu amor... Ai ai ... Coraçõezinhos ao redor delas...
E não é que a talm Regina deu uma boa ideia? Kkkkkk... Gente que mulher rica, fico é besta com tanta riqueza! Kkkkkk...
"-- Será que o gigante acordou?" Foi a pergunta que Jamila fez e depois acabou virando uma afirmação e depois, bem depois o gigante voltou a adormecer e contiua assim até hoje.
E as apaixonadas que deixam tudo no ar? Kkkkkkk... Duas tartarugas de lerdezas!
Só eu tive vontade de matar a Cátia? Quando finalmente as duas resolvem se declarar e finalmente sair o tão esperado beijo, a maluca aparece... Pqp!
Esse interrogatório da dona Leda é dar medo, mas Zinara se saiu muito bem.
Zinara e Clarice... Pertencimento.
Beijos
Resposta do autor:
Gabinha, olha você está arrebentando na língua de Cedro! Alaikum as-Salaam!
Amina nunca foi acostumada a ver Raed com romantismo, então quando viu teve medo! kkkk
Zinara e Clarice são tímidas, Gabinha. E Cátia estava no auge de seu orgulho ferido e querendo atrapalhar!
Fica besta com a riqueza de Regina? Ai, ai, sem comentários... kkkk
O gigante está hibernado de um jeito que nem sei!!!
Dona Leda pesca tudo longe. Zinara não tinha o que esconder, então se saiu bem. Aco que passar pelo crivo de Ana Guedes foi bem pior! kkkk
Beijos,
Sol
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Solitudine Em: 14/06/2024 Autora da história
Olá querida!
Novamente, isso muito me alegra!
Beijos,
Sol