ELA ESTÁ DE VOLTA
CAPÍTULO 16 – Voltando ao Normal
--Vem, hayati? -- aproximava-se com andar felino -- Faz amor comigo, -- envolveu o pescoço da morena com os braços -- como só você sabe fazer... -- olhava-a nos olhos -- Behebbik ia, habibit! (Eu te amo, querida!) Quero você! -- mordeu-lhe o lábio inferior -- Eu quero!! -- beijou-a com paixão e jogou-se sobre a professora fazendo com que ambas caíssem deitadas no sofá
Zinara beijava sua ex namorada com ansiedade enquanto deslizava as mãos pelas costas nuas da jovem. Sentia o desejo tomando conta de si e rapidamente inverteu as posições ficando sobre a outra.
--Ai, hayati... -- gem*u puxando o vestido da astrônoma -- tira... essa... roupa! -- pediu entre beijos
--Jamila... -- mordia-lhe o pescoço -- você me enlouquece... -- apertou uma das coxas dela -- Ya gamil... (Linda...)
--Fica comigo, hayati! -- pediu sofregamente enquanto tentava despir a morena -- Dessa vez... -- beijou-a -- é pra sempre! -- prometeu
Algumas lembranças vieram à mente de Zinara.
“--Eu não agüento mais isso, Jamila! -- a professora reclamava com tristeza -- Quantas vezes vai terminar comigo e depois me pedir pra voltar? Isso cansa!
--Dessa vez... -- aproximou-se sorridente -- é pra sempre! -- puxou a morena para um beijo apaixonado”
--Laa (não), Jamila! -- interrompeu o que fazia e levantou-se bruscamente -- Não vai acontecer, chega! -- endireitou a roupa -- Eu... eu não posso! -- passou a mão pelos cabelos e andou pela sala, parando de costas para a jovem
--Por que não, hayati? -- levantou-se e foi até a ex -- Você nunca... -- abraçou-a por trás e mordeu a orelha dela -- nega fogo... -- deslizou uma das mãos pelo tórax da morena -- Quer me provocar, hein? -- beijou-lhe o pescoço
--Eu não tô brincando, Jamila! -- desvencilhou-se ficando de frente para ela -- E isso não é um jogo de sedução! -- falava com seriedade -- Não dá mais! -- seguiu em direção ao quarto
--Oxi, aonde você vai? -- reclamou indignada -- Volte aqui, Zinara! -- seguiu atrás
--A gente tem que conversar. -- abriu o closet e pegou um roupão -- Veste isso! -- entregou a ela -- E se conscientiza de que não vai rolar nada! -- afirmou convicta
Vestiu-se contrariada. -- Até segundos atrás você não tava tão certa disso! -- cruzou os braços
--Lamma Shoufik qalbi byouqaa... (Quando te vejo meu coração se derrete...) -- respondeu olhando nos olhos dela -- Mas meu amor por você não pode permitir que faça de mim o que bem entende como se eu fosse um brinquedo na tua mão!
--Zinara... -- passou a mão pelos cabelos -- olha, eu... -- respirou fundo -- Eu sei que não tenho sido muito legal com você ultimamente, mas... -- segurou o rosto dela -- eu aprendi! O medo de te perder pra sempre me fez ver o que tava diante de mim o tempo todo! -- sorriu -- Behebbik ia, hayati! (Eu te amo, minha vida!)
--Me ama? -- segurou-a delicadamente pelos pulsos -- Por quanto tempo? -- não acreditava nela -- Até o próximo desentendimento entre nós? Ou até o momento em que você descobrir mais uma vez que buscamos coisas diferentes? -- soltou-a -- Será que lembra quantas vezes me jurou amor eterno e depois viu que tava enganada? -- perguntou com mágoa -- Não entendo você, Jamila... Ana la afham... (Eu não entendo...) -- balançou a cabeça -- Às vezes me parece que apenas sirvo pra alimentar sua vaidade...
--Não diz isso... -- pediu chateada -- Min fadlik, laa... (Por favor, não...)
--Olha, Jamila, eu tô cansada... -- afastou-se e foi até a janela -- Tem acontecido muita coisa na minha vida e... -- suspirou -- não dá pra simplesmente fazer amor com você como se tudo tivesse bem resolvido, porque não tá. -- olhou para ela -- Nada tá resolvido! -- afirmou enfaticamente -- E de mais a mais... -- pausou antes de continuar -- eu ando meio confusa com certas coisas... -- pensou em Clarice
--Como assim? -- alarmou-se -- Não me diga que tem saído com outra mulher?! -- perguntou exigindo satisfações -- Quem é a mahdia (prostituta)? -- aproximou-se de cara feia -- Quem?
--Uma mulher jamais deveria se referir a outra nesses termos! -- censurou
--Sem discursos feministas, Zinara, eu quero saber quem é essa! -- falou mais alto -- Com quem anda saindo, hein? Eu tenho o direito de saber! -- gesticulava
--Direito de saber? -- achou graça -- Faça-me o favor, Jamila, me poupe! A partir do momento que você saiu da minha vida porque quis, não pode me cobrar satisfação de nada! -- argumentou
--Com quem anda saindo, me diz? -- insistiu
--Ih, nem te conto! Quando eu tava de coma saí com a espiritualidade quase toda! -- debochou -- Altas festas na zona trevosa! Só sex* transcendental!
--AHHa! -- reclamou -- Pára de gracinha que eu sei muito bem que você andou na farra com a mulherada e querendo tchu! -- deu-lhe um tapinha no braço -- Pensa que eu esqueci? Tá pensando que não sei do teu descaramento?
“Como é que ela sabe que eu cantei esse trem?” -- pensou intrigada -- E você? Pensa que eu esqueci que naquele dia que te liguei você tava na cama com outra? -- rebateu -- Sem contar as outras com quem andou!
--É diferente! -- defendeu-se cruzando os braços -- Não significou nada pra mim... -- baixou o tom de voz -- E eu sei que você não vai pra cama com alguém se essa pessoa não estiver no seu coração... -- afirmou com tristeza
--Foi decisão sua abrir mão dele... -- respondeu com muito sentimento
--Quero de volta... -- pediu como criança à beira do choro -- Wahashtiny (Sinto sua falta...)
Zinara ficou uns segundos calada olhando para sua ex amante. Uma vontade quase insana de tomá-la nos braços invadiu sua alma, porém preferiu se conter. Não conseguia mais confiar nas palavras daquela mulher que a levava para o céu ou para o inferno a depender de suas vontades e indecisões. -- Se quer, vai ter que fazer por merecer! -- olhava-a nos olhos
--Você nunca agiu assim, hayati... -- fez dengo
--Aquele tempo em que você estalava os dedos e eu te dizia sim acabou! -- mantinha-se firme
--Você tá tão diferente... -- gastou uns segundos calada -- Queria saber quem é essa mulher que tá... -- pensou -- Ah, mas eu já sei! -- deu um soco na mão -- Clarice! -- concluiu de cara feia -- Foi aquela sonsa que virou sua cabeça, não foi? Ana a’arfa (eu sei)! Você tá tendo um caso com aquela uma, não é? -- perguntou com olhos acusadores -- Fala, Zinara, confessa!
--Você viaja, sabia? -- balançou a cabeça contrariada -- E eu não vou ficar aqui de peitica contigo, não! Veste sua roupa que eu vou te levar pra casa, vambora! -- decidiu
-- Eu vim de carro, não preciso de carona sua! -- respondeu desaforada -- E vou embora agora! -- foi para a sala
--Vai embora só com meu roupão e salto alto? -- seguiu atrás -- Endoidou, Jamila?
--Você que endoidou por ficar na dúvida entre eu e aquela professoreca sem graça! -- começou a catar suas roupas -- Uma baixota abusada e toda besta só porque é paleonãoseidasquantas! -- resmungava -- Tatuí com doutorado!
--Ah, tá, como se você fosse al-muhuaami (a advogada) muito humilde! -- protestou -- E não se atreva a falar mal dela porque nem a conhece!
--Não conheço, pois sim! -- pegou a bolsa e empurrou as roupas para dentro dela de qualquer maneira -- Esse tipinho que não respeita a mulher das outras e chega cheia dos chamegos eu conheço muito bem, Zinara Raed! -- olhou para ela -- Mas você vai acordar e ver que eu sou muito, mas muito melhor do que ela!
--Humpf! -- fez um bico
Andou até a porta e a abriu. -- E tem outra! -- falou desaforada olhando para a ex -- Fique sabendo que tô indo pra São Sebastião com Leonor na semana que vem! Eu ia te chamar, agora nem vou mais!
--Como se eu fizesse muita questão de viajar com tua irmã! -- respondeu no mesmo tom
--Eu podia até desistir de ir se você merecesse isso, mas agora já era! Vamos passar o carnaval lá e eu não vou me comportar nada bem! -- jogou os cabelos -- Com certeza você vai vir atrás de mim, e não vai ser pra pegar o roupão de volta! Macasalaama, habibi! (Até logo, querida!) -- fechou a porta com força e saiu pisando firme
--Eita, boi! -- reclamou -- Estraga minha porta, mulher! -- fez cara feia
***
--E foi isso, Cláudia... -- Zinara narrava os fatos do dia anterior -- Ela se enfureceu e foi embora mordida! -- passou a mão nos cabelos -- Agora cismou que tenho um caso com Clarice, vê se pode?
Estavam no consultório da médica.
--Deixe que pense! É bom pra ela ver que não tá com essa bola toda e a fila anda. -- aconselhou -- Jamila é muito habituada a ter mulheres babando por ela, principalmente você; -- apontou para a morena -- aí ficou besta demais. -- olhava para a amiga -- Deixe ela sofrer um pouquinho com insegurança, porque tá merecendo!
--A droga é que ela mexe demais comigo... -- cruzou as pernas e ficou mirando um ponto perdido -- Não sabe como me sinto com essa coisa toda... -- balançou a cabeça contrariada -- E ainda me advertiu que vai barbarizar no carnaval!
--Eu reconheço que vocês têm uma história, ela foi companheira em muitos momentos, mexe com você, te excita... -- cruzou os braços -- Mas também vacilou demais e nunca se decide quanto ao que quer pra própria vida. Uma mulher como você deveria se firmar com alguém como... -- pensou -- Clarice, por exemplo. -- opinou -- Pelo que você fala e pelo que vi, aquela professora é muito mais o seu estilo. Sem contar que parece tão bitolada na pesquisa quanto você. -- pausou brevemente -- É meio doida também! -- riu
Zinara não comentou a última observação. -- Pelo que viu? -- não entendeu -- Fala como se a conhecesse!
--E conheço! -- respondeu enfática -- Fomos devidamente apresentadas e ela me pareceu um doce de pessoa!
--Ezzai? (Como pode?) -- espantou-se -- E onde foi isso?
--No Hospital Suriyyah-Cedro, onde mais? -- respondeu como quem diz o óbvio -- Tivemos uma conversa relâmpago mas a impressão que me ficou foi boa. Sabe que dificilmente me engano com isso. -- reclinou-se sobre a mesa -- Aliás, ela e Jamila se esbarraram por lá! Era um entre sai de mulher tão grande pra te ver, que aquele CTI parecia até uma clínica ginecológica! -- comentou exagerando
--Então... -- ficou pensando -- Por isso Jamila ficou achando que... -- concluiu -- E ainda chamou a outra de baixota! -- achou graça -- Agora tá explicado...
--Não me diga que a advogada do diacho não te falou sobre isso? -- perguntou descrente, logo percebendo a resposta -- Hum... -- sorriu -- Sabe o porquê? Medo da concorrência!
--Então Clarice veio me ver... -- sorriu toda prosa -- "Bem que tenho uma lembrança de ter sentido a presença dela...” -- pensou
--Por que não liga pra ela? -- recomendou -- Já tem uma semana que você saiu do CTI e a essa altura a mulher deve achar que você é uma ingrata! Afinal de contas, quem ligou pra dizer que você tava bem foi Rodrigo.
--Eu vou ligar! -- estava toda prosa -- Pode deixar que vai ser a primeira coisa a fazer depois que chegar em casa! -- sorriu -- Eu nem imaginava que ela sabia que estive de coma e muito menos que tinha ido me visitar.
--Mas, falando de assuntos ainda mais sérios, -- apresentou uns papéis -- quero que faça todos esses exames aqui o mais rápido! E trate de tomar essa medicação enquanto isso. -- colocou um receituário diante da astrônoma -- Você demorou muito a dar as caras por aqui! Acho que só veio porque amanhã é carnaval!
--Eita, que ela já tava com tudo preparado. -- achou graça novamente -- Pode deixar que vou correr atrás disso! -- pegou os papéis e guardou -- Sabe, Cláudia, não sei o que fizeram comigo naquele CTI mas voltei dolorida por demais da conta. Tô toda derrengada! Será que você me recomendaria algum fisioterapeuta? -- perguntou curiosa -- Desde que a minha se foi não conheço outra pessoa pra me massagear com raça!
--Ah, mas é claro que conheço! -- abriu a gaveta e pegou um cartãozinho -- Essa aqui é uma oriental que faz cada massagem que só vendo! -- estendeu o cartão e a morena recebeu -- Mas se prepara que a bichinha tem a mão pesada que só! Quando eu vou lá quase morro, mas volto outra!
--Ah, tá. -- achou graça -- "Cláudia, como sempre, exagerada!” -- pensou
***
--Mamãe, por que tá toda vestida de preto? -- Clarice perguntou intrigada ao chegar em casa -- E com essa cara? -- olhava para ela -- Aconteceu alguma coisa?
--Tô de luto! -- respondeu enquanto costurava uma boneca -- Não me conformo com você namorando aquela tarada! E muito menos que vá passar o carnaval no abatedouro dela!
--Mas, mamãe... -- sentou-se em frente a ela -- Não estamos namorando assim do jeito como a senhora pensa. Temos ido devagar.
--Ido devagar porque a safadeza tá muito no começo. -- argumentou --Agora que o carnaval chegou vai ser só pena que voa!
--A senhora sempre persegue minhas namoradas, né, mãe? -- balançou a cabeça contrariada -- Não tem jeito... -- lamentou
Pegou um punhadinho de lã. -- Você tá procurando sabe o que? Chifre em cabeça de égua! -- olhou para a filha -- Mas vai achar é chifre na sua testa!
--Ai, mamãe, a senhora não me dá um refresco, né? -- levantou-se chateada
--Eu não gosto daquela Cátia, menina! -- afirmou enfaticamente -- E ponto!
Clarice suspirou e olhou desconfiada para a boneca. -- Mas... me diz que diacho de boneca esquisita é essa que a senhora faz aí?
--Essa boneca é um vuduzinho básico que eu tô preparando praquela tarada não se aproveitar de você nesse final de semana! -- esclareceu naturalmente
--Como é??? -- arregalou os olhos
--Ela não há de ter força e nem coragem naquela periquita fogueteira pra te dar um créu!
--Me dar um créu, agora veja só! -- pôs as mãos na cintura -- Isso lá é vocabulário de uma velhinha? -- acabou rindo com vontade -- Ai, mamãe... -- secou os olhos com a mão -- A senhora não existe... -- balançou a cabeça
--Te conheço, Clarice! -- colocava o cabelo de lã na boneca -- Se acontecer qualquer coisa mais íntima entre você e a geofísica tarada vai ser um parto pra esse relacionamento terminar!
--Ai, ai... -- foi indo para o quarto -- Ela ficou de me ligar e agora eu vou tomar um banho. Por favor, se acontecer de a senhora atendê-la não a trate mal! -- pediu
--Humpf! -- fez um bico
Minutos depois o telefone tocou.
--Hum, falando na safadona... -- atendeu de cara feia -- Aqui, minha filha, Clarice tá no banho e depois você fala com ela. -- foi logo dizendo -- Nem sei porque essa ansiedade toda se as duas já viajam pra Costa Azul amanhã!
Zinara levou um susto ao ouvir aquilo. “Ela tá pensando que sou a namorada de Clarice.” -- pensou -- Perdoe, mas... Eu sou a Zinara, uma amiga de sua filha. -- esclareceu -- Na verdade liguei pra saber notícias e agradecer a visita dela quando eu tava internada. -- respondeu timidamente
--Ah, você é a moça que ressuscitou! -- mudou de humor -- Teu médico ligou pra cá e deu a boa notícia pra gente! Já agradeceu a Deus de joelhos? Não é todo mundo que recebe dEle esse tipo de graça! A gente rezou muito, viu?
--Eu já agradeci por demais da conta, ya Leda, pode acreditar. -- sorriu -- E também devo lhe agradecer por ter contado com suas orações.
--Não me agradeça, a gente tem que se ajudar. -- pausou brevemente -- Mas, e então, tem se sentido bem?
--Graças a Deus! E como vão as coisas por aí em São Sebastião?
--Seriam melhores se minha filha tivesse bom gosto pra certas coisas! -- reclamou
“Ela não gosta da namorada da filha!” -- a morena deduziu
--Quem é mamãe? -- Clarice aproximou-se perguntando -- É Cátia?
A astrônoma ouviu isso e ficou decepcionada.
--Que Cátia, o que, mulher? -- estendeu o telefone para a filha -- É a estrangeira!
--Zinara! -- correu para atender -- Oi, querida, tudo bem? -- abriu um belo sorriso
--Oi, Clarice! -- sorriu espontaneamente -- As-Salamu Alaikum! (Que a paz esteja convosco!) Como vai? Tudo bem com você?
--Melhor agora! -- continuava sorrindo -- Mas ainda não sei a resposta correta pra essa saudação.
--Você responde alaikum as-salaam, que quer dizer: e a paz também convosco. -- pausou brevemente -- Eu liguei várias vezes pro seu celular, mas não consegui.
Caminhava pela sala. -- Eu esqueci ele em algum lugar ou alguém me roubou, sei lá. Ainda não comprei um outro... -- parou perto da janela -- Mas, me diz como você tá? E afinal de contas, o que foi aquilo, hein? Por que você ficou tão mal?
Leda voltou a dar atenção a sua boneca.
--Ah, são uns problemas que eu tenho que de vez em quando me dão um trabalho além da conta. -- mentiu -- Mas tô bem, graças a Deus, e pronta pra próxima! Você sabe que caipiras rodopeiam mas num freiam, não sabe? -- brincou
--O que eu sei é que essas caipiras tinham que se cuidar mais, isso é que eu sei! -- ralhou
--Olha, Clarice, eu nem sabia que você ficou a par de minha internação. E muito menos podia imaginar que você me visitou na Capital. -- pausou brevemente -- Eu queria te agradecer por isso e dizer que me senti honrada por tudo.
--Não precisa agradecer... -- mexia na cortina -- Eu fiquei apavorada quando soube que você tava mal e... meu coração me mandou ir pra Capital; e eu fui...
--Oh, el helwa dii... (Oh, meu doce...) -- suspirou -- E... será que você vai atender àquele evento de abril? -- perguntou -- Gostaria de conhecê-la de fato. Aquela vez no CTI não valeu.
--Ah, eu bem queria ir, mas não fui convidada. Sabe que não faço parte desse seu seleto grupo multidisciplinar e internacional. -- respondeu olhando para um ponto no infinito
--AHHa, mas eu recomendei seu nome, como pode não ter sido convidada, uai? -- surpreendeu-se -- Você tem competência de sobra e projetos de pesquisa relevantes, não entendo o que possa ter acontecido de errado! -- fez cara feia -- Pode deixar que amanhã mesmo eu ligo pro John Peterson e cobro dele uma justificativa pra isso. O período de inscrições ainda não terminou e dá tempo de você submeter um trabalho.
--Não se preocupe com isso. -- sorriu -- A prioridade pra você agora deveria ser cuidar da saúde. Será que tá fazendo isso? -- preocupava-se -- Acho que você deve ter gasto mais tempo em correr atrás de trabalho do que de se tratar. Ainda tá de licença?
--Calma que só tem uma semana que ressuscitei. -- brincou -- E sim, ainda tô de licença mas dei uma passada na universidade pra resolver alguns assuntos. Também tô começando a ver algumas coisas do congresso de abril porque pediram um apoio pra mim. -- pausou brevemente -- Eu sabia que só ia dar pra fazer qualquer tratamento depois do carnaval, então decidi aproveitar bem o tempo.
--Ai, Zinara, acho que só gente como nós pra continuar trabalhando até a véspera do carnaval, né? -- achou graça
--Cláudia também trabalhou hoje e já me passou um monte de remédios e exames! -- achou graça -- Também tô pra ir numa fisioterapeuta pra ver se ela põe minha coluna no lugar porque o negócio tá danado... -- riu -- Aliás, Cláudia me disse que gostou de você. Parece que deixou uma boa impressão com a doktuur.
--Eu também a achei simpática. -- andou novamente pela sala -- E eu até conheci a Jamila... -- queria perguntar sobre o relacionamento delas, mas não teve coragem
--É, eu fiquei sabendo... -- pausou brevemente -- Como também sei que você vai viajar amanhã com sua namorada, então não vou mais tomar seu tempo.
--Ah, mas... -- surpreendeu-se -- "Mas será possível que mamãe foi dizer isso pra ela só nesse tantinho de conversa que tiveram?” -- pensou contrafeita
--Adorei falar com você e a gente dá um jeito de se conhecer antes do congresso mundial acontecer. Ou não, né? -- brincou -- Afinal de contas, daqui a pouco é junho!
--É... daqui a pouco... -- respondeu desanimada
--Ala halik, habibi! (Cuide-se, querida!)
--Rahimaka Allah! (Deus te abençoe!) -- respondeu
--Ah, que lindo, ela lembrou!!! -- empolgou-se -- Rahimaka Allah, ya helu! Macasalaama! (Deus te abençoe, sua linda! Até logo!)
--Até logo, Zinara. -- ouviu o telefone sendo desligado -- Mamãe, por que a senhora foi dizer pra Zinara que eu viajo com Cátia amanhã? -- colocou o aparelho no gancho
--Eu não disse! -- protestou enquanto alinhavava a boneca -- É que pensei que ela fosse a tarada e fui falando umas verdades. Então a outra deduziu tudo.
“Ah, mas por que me importo com isso?” -- pensou contrariada -- "Ela voltou pra Jamila mesmo...” -- sentou-se na poltrona perto da mãe e prestou atenção na boneca -- Não acredito que a senhora tá mesmo levando a sério essa história de boneca vudu! -- comentou achando graça
--Ah, minha filha, no desespero a gente apela pra tudo! -- pegou uma tachinha vermelha -- Se Deus quiser, essa mulher não terá força e nem coragem de fazer nada contigo e essa viagem vai ser uma coisa mansa!
--Coisa mansa... -- riu
--Algo há de acontecer! Eu levo fé! -- espetou a tachinha com força entre as pernas da boneca -- Quero ver essa periquita piar depois dessa! -- chacoalhou a boneca diante da filha
--Ui! -- olhou para a tachinha -- Essa doeu até em mim!
***
--Ai, que ótimo! -- Najla exclamou animada -- Olha só, a internet wi fi tá ótima! Que sinal bom! -- sorria -- Agora vamos navegar até dizer chega!
--Oxi! -- Amina olhava para a tela do laptop procurando pelo sinal -- "Qui diacho de sinar é essi qui ela fala?” -- perguntava-se intrigada -- E navegá pra onde, uai? -- não entendia
--Por todo canto que a gente quiser, ué! -- abriu o Internet Explorer -- Podemos pesquisar sobre um monte de coisas e lugares! Incrível que você ganhou um laptop tão bom de sua filha e nem dava confiança pra ele! -- procurou uma determinada página
--Zinara mi deu essi trem e mi insinô a usá eli, mas essi tar de lepitópio é complicadu pur dimais da conta! Só mexu quandu ela tá aqui, modi mi tirá as dúvida. Sempre isqueço dos detalhe. -- explicou-se -- Eu só faço iscrevê umas receita e colocá as fotu dus mininu.
--Ah, mas agora que a gente tem internet tudo vai ser diferente! -- olhou para a cunhada -- No asilo tinha um computador com internet e uma das moças, que se chamava Kelly, me deixava usar ele, então não sou tão crua nesse mundo da informática. -- sorriu -- Ela acreditava que como eu era a mais nova e saudável de todos podia ter interesse em aprender. E até que era um passatempo pra mim. Sempre que ela tava lá, eu usava o micro por algumas horinhas. -- voltou a olhar para o computador
--Micro?! -- estranhava o termo -- "Micro num é um trem danadu di piquenu?” -- pensava
--Vamos começar criando um perfil no LivrodasFuça. -- entrou no site -- Quer ser a primeira?
--E qui diacho di LivrodasFuça é essi, muié? -- continuava não entendendo -- Nomi feiu! -- fez uma careta
Najla riu. -- Ai, Amina, você tem que se atualizar! -- olhou para a outra novamente -- O LivrodasFuça é uma rede social, uma espécie de kitaab eletrônico, onde a gente pode criar um perfil individual, ou seja, a gente pode se registrar e falar sobre nossos gostos, preferências, colocar fotos... -- explicava -- E dá pra encontrar os parentes, os amigos, dá pra fazer novos amigos... É uma coisa interessante! Você vê e é vista na internet!
--Mas essi negóciu de criá perfí, cumé qui é? -- ficou curiosa -- Eu vô tê qui mostrá minhas fuça pru povo todu vê? -- arregalou os olhos -- Issu né pirigoso, não, muié? Vai qui tem bandidu nesse trem? -- alarmou-se
--Não precisa dar os detalhes de sua vida e nem colocar a sua foto propriamente dita. Pode até escolher um nome diferente do seu. -- continuava explicando -- Quando eu tava no asilo, Kelly me ensinou a fazer, mas eu andava deprimida e não tive a menor vontade. Hoje a coisa é diferente! -- concentrou-se na tela do laptop -- Vamos lá, Amina, que nome você quer ter?
--Hum... -- coçou a cabeça -- Põe aí: Siriema! -- decidiu
--Que é isso, Amina? -- achou graça -- Logo nome de bicho!
--Mas eu gostu dessi bicho, uai! -- protestou
--Tudo bem, então assim será! -- digitou -- E o sobrenome?
--Flô! -- respondeu imediatamente -- Siriema Flô é um nomi bão!
--Eu vou ser Qamar Celeste! -- decidiu -- Depois que vi a Cynthia com binóculos, eu me apaixonei mais ainda por ela!
(Nota da autora: Qamar significa lua cheia, também designa pessoa de beleza estonteante. Najla não escolheu o nome somente por fatores astronômicos...)
***
--Ya Ritinha, que comida maravilhosa! -- a astrônoma terminava sua refeição com um sorriso nos lábios -- Adorei tudo!
--E eu! -- Zezé respondeu -- Que peixada boa, mulher! E o pirão? Ave Maria!
Zezé e Zinara almoçavam juntas na casa de Ritinha.
--Fico feliz com isso! Eu queria que nosso almoço de quarta-feira de cinzas fosse especial! -- a anfitriã respondeu orgulhosa -- Preparei com muito gosto, não sabe?
--Deu pra notar! E nós sabemos que ya sayyida (a senhora) é uma cozinheira e tanto! -- a morena respondeu ao se levantar -- Agora pode deixar que a louça é comigo! -- começou a recolher os pratos -- Que acham de irmos passear amanhã? Podíamos também marcar de ir no cinema no domingo que vem. -- convidou
--Oba! -- Zezé respondeu animada -- Só você pra querer passear com duas velhas! -- olhava para a morena com carinho
--Por essas e outras que fiz esse almoço com tanto gosto! -- Ritinha respondeu -- Essa menina é sempre muito boa com a gente!
--Ah, mas é tudo calculado, uai! -- pegou todos os pratos -- Já faço pensando nesses almoços! -- brincou -- Fiquem bonitinhas aí que já volto! -- foi para a cozinha
Minutos depois a campanhia tocou e Ritinha se apressou para atender. A professora terminava de secar a louça quando pôde ouvir os cumprimentos.
--Adamastor, que surpresa boa! -- ouviu a mulher falar
“Oh, não!” -- pensou arregalando os olhos -- "Sinto que fui vítima de um golpe de ya Ritinha!”
--Zezé, deixa eu te apresentar meu sobrinho! -- chamou pela outra -- Conheça Adamastor!
--Encantado!
--Nossa, que rapagão! -- comentou animada -- Menino, que coincidência você ter vindo pra cá justo hoje! Tem uma pessoa muito especial aqui pra você conhecer! Tá lá na cozinha!
“Ô, meu Pai, e agora? Como é que eu fujo dessa?” -- buscava uma solução educada -- "Sair depois de comer é atitude sem base nenhuma!” -- olhava para todos os lados -- "E se eu forjar um desmaio?” -- conjecturou
--Finalmente você vai conhecer uma pessoa muito especial! -- encaminhou-se com ele até a cozinha -- Adamastor, essa é Zinara! -- apresentou -- Querida, esse é meu famoso sobrinho!
--Oi, muito prazer! -- segurou a mão dela para beijar -- Eu andava louco pra te conhecer! -- forçava uma voz de loucutor de rádio -- Não sei porque sempre nos desencontrávamos.
--Ah, oi... -- respondeu desanimada -- Pois é, por que será? -- disfarçava
O homem era careca, embora bastante cabeludo, alto e muito magro. Aparentava ter a idade da morena.
Zezé veio atrás para fofocar. -- Ih, mas não é que fazem um casal bonito de se ver? -- olhava para os dois -- Eu faço gosto!
“Mas até tu, ya Zezé?” -- pensou decepcionada -- "Sinto que se trata de um verdadeiro complô da terceira idade!”
--Vejo que além de tudo você é uma moça prendada! -- Adamastor comentou admirado -- Deixou a cozinha de minha tia um brinco!
--Ah, mas eu só fiz lavar e secar a louça. -- não sabia o que fazer -- "E agora, como é que eu me livro desse mal?”
--Não seja tímida, minha filha! Você é prendada e põe prendada nisso! -- Ritinha dava corda -- Ela lava, passa, cozinha, limpa, carrega peso, cata manga e ainda conserta as coisa dentro duma casa! É moça inteligente, educada, reservada e ecológica!
“Ecológica...” -- achou graça
--Ah, mas é uma satisfação conhecer alguém assim! -- o homem exclamou sorridente -- Coisa rara nos dias de hoje! Só se vê rapariga por aí!
--Vão pra sala conversar melhor! -- Ritinha pegou Zinara e o sobrinho pelas mãos e fez com que ficassem de braços dados -- Vocês têm muita coisa pra falar um pro outro!
--Vão sim! -- Zezé segurou Adamastor pelo outro braço -- É conversando que a gente se entende, não é mesmo?
--É isso aí! -- segurou a astrônoma pelo outro braço -- Vão conversando, trocando uma idéia e fazendo amizade que lá pra umas cinco horas eu sirvo um chá com bolo! -- Ritinha alcovitava -- Vai que o amor acontece, hein? -- cochichou no ouvido da morena
“Ô, meu Pai, me defenda...” -- clamava pela ajuda divina
***
Zinara aguardava sua vez na sala de espera da fisioterapeuta indicada por Cláudia.
--Senhora, -- a secretária chamou e a morena olhou em sua direção -- pode ir. Seguindo o corredor, última porta. -- instruía -- Antes de entrar, deixe os sapatos no capacho, por gentileza.
--Aywah! (Sim!) -- balançou a cabeça -- Obrigada. -- levantou-se e foi. Chegando lá, tirou os sapatos, deu uma leve batidinha na porta e entrou. -- Oi, bom dia, ya Akemi! -- sorriu
--Bom! -- a mulher também lhe sorriu -- Deita cá. -- apontou para uma cama que mais parecia um tatame e passou álcool gel nas mãos
A astrônoma reparou na fisioterapeuta e constatou com surpresa que se tratava de uma pequena e franzina mulher regulando uns cinqüenta anos.
“Mas essa tal de Akemi deve ter um metro e meio!” -- pensou ao se deitar de bruços -- "Olha a mãozinha dela, parece até mão de criança! E Cláudia ainda disse que a pobre tem mão pesada!” -- sentiu vontade de rir -- "Ô, mulher exagerada...”
--O que há? -- aproximou-se da morena e perguntou
--Eu tive internada e não sei o que fizeram comigo que voltei toda troncha. -- reclamou -- Dói tudo, especialmente o pescoço e aqui, -- bateu na perna esquerda -- perto dos quadris.
--Hum! -- prestava atenção -- Vê pescoço primeiro. -- apertou o pescoço da outra
--AHAHAHAHAHAHAH!!! -- sentiu uma dor forte e gritou -- Minha nossa!
--Moça fraca, né? -- achou graça e continuou massageando o pescoço dela -- Muita contratura!
--Ave Maria! -- sentia uma dor terrível -- Eita pau!
As mãozinhas de Akemi desmanchavam as contraturas com rapidez sob pressões vigorosas de seus pequenos dedos ágeis e rijos.
--Hum. Vértebra fora de lugar! -- concluiu -- Tem que arrumar!
--Como é??? -- arregalou os olhos
--Deita barriga pra cima! -- ordenou
--Oxi, mas o que vem por aí? -- perguntou receosa
--Deixa de medo e obedeça! -- fez cara séria
Zinara fez o que lhe foi pedido. Akemi se posicionou ajoelhada na cabeceira do leito e segurou sua cabeça.
--Fecha boca e relaxa. -- ordenou
“Relaxa?? Tá de brincadeira!” -- pensou apavorada
Com movimentos bruscos, a fisioterapeuta girou a cabeça da professora para um lado e outro por duas vezes. Após ouvir um estalado forte e sentir uma dor intensa, Zinara pensou que estivesse morta.
--Ah... -- gem*u abestalhada quase sem voz
--Deita bruço de novo! -- ordenou
“Meu Deus do céu, será que eu saio viva daqui?” -- pensava enquanto mudava de posição
--Agora vê perna. -- apertou a coxa da morena com força
--AHAHAHAHAH!!! -- gritou apavorada -- Tiizak Hamra, ya majnum!! (Seu rabo é vermelho, sua louca!) -- não conseguia mais falar o idioma local
--No entende. -- pressionou um ponto no quadril da paciente -- Fêmur rotacionado. Tem que consertar. -- apertou um ponto atrás dos joelhos
--AHAHAHAHAH -- gritou novamente -- Ma hatha? (O que é isso?)
--Grita muito! -- ficou de pé sobre os quadris da outra e puxou a perna esquerda para cima
--AHAHAHAHAHAHAH!!! -- lágrimas saiam de seus olhos -- Enti ghaawiz iD-Darb bi-sittiin gazma!! (Você merece ser chutada por 60 sapatos!!) -- rogava praga -- Gaatak niila, Akemi! (Vá para o inferno, Akemi!) AHAHAHAH!!!!
--No entende. -- saiu de cima da paciente e foi para a beirada da cama segurar-lhe os pés -- Hum, perna desnivelada. -- comparou o comprimento das duas pernas -- Ainda fora de lugar. Vira barriga pra cima! -- ordenou
Sem forças para obedecer, Zinara mexia os lábios sem produzir som.
--Hum! -- segurou um braço e uma perna da morena e virou-a de barriga para cima com extrema facilidade -- Hum! -- examinava com os olhos -- Deve ser aqui! -- apertou fortemente um ponto na virilha da astrônoma
--AHAHAHAHAHAHAH!!!!!!! -- a mulher dobrava e desdobrava sua perna mantendo a pressão no mesmo ponto da virilha -- Bint il-Homaar!! (Filha de um burro!!) -- xingava
--Moça faz muito barulho, né? -- achava graça -- Vê de novo alinhamento! -- tornou a mudar a posição da outra, deixando-a de bruços -- Agora tá certo! -- constatou
--Ai... -- gem*u enfraquecida -- Ya Hayawaan! (Seu animal!) -- xingou de novo
Akemi começou a massagear as costas da professora, desmanchando as contraturas e fazendo-a gritar com suas compressões poderosas.
--Agora vê pé. -- segurou um dos pés da outra e começou a apertar
--AHAHAHAHAHAHAHAH!!!!! -- e tome de grito
--Hum, aqui é pâncreas! -- apertava um ponto extremamente dolorido -- Que tem lá?
--MaraD as-saraTaan... (câncer...) -- respondeu com voz fraca
Fez cara feia. -- No xinga! -- deu tapa na perna dela -- Melhor colocar agulha! -- afastou-se e abriu a porta de um móvel
Zinara respirou aliviada e levantou a cabeça para olhar o que se passava. Ao ver o tamanho das agulhas que Akemi estava prestes a usar, sentiu que seu fim estava próximo.
***
--Ai, que vida besta, né? -- Leonor piscou para a irmã -- De dia praia e de noite a curtição no meio de gente bonita! -- sorriu -- E você faturando a mulherada!
--Eu tava precisada disso, viu? É muito estresse na minha vida! -- Jamila respondeu antes de beber um gole de caipivodka
--Quem mandou ter ido dar uma de enfermeira daquela astrônoma ingrata? -- respondeu de pronto -- Agora deixa de ser boba e curte porque Costa Azul é o máximo! -- olhava para a outra -- E pensar que você tencionou em desistir da viagem!
Jamila e sua irmã estavam curtindo a noite em um barzinho animado.
--Ah, mas eu não quero nem saber! Esquece isso! -- reparava nas pessoas -- Vou continuar a fazer o que tenho feito desde terça: infernizar!
--É isso aí! -- brindaram
--Nossa, quanta gente! -- Clarice comentou ao chegar -- Pensei que hoje estaria mais calmo. -- reparava no ambiente -- Aliás eu achei que o muvucão debandaria logo na quarta. Carnaval pra valer começou na sexta e já passou!
--Que passou nada! Muita gente já foi embora mas ainda tem um bocado de folião querendo curtir! -- Cátia respondeu animada -- Hoje é sábado, meu bem, é só amanhã que a ferveção vai ter fim! -- apontou para uma mesa -- Vamos sentar ali!
--Eu vou no banheiro rapidinho. -- Jamila anunciou ao se levantar
--Vai lá. -- Leonor respondeu despreocupada
Nesse momento, Cátia e Clarice ocuparam uma mesa relativamente próxima à das duas irmãs.
--Graças a Deus que meu período acaba hoje! -- a geofísica desabafou -- Não me conformei com essa menstruação chegando inesperadamente em plena terça!
Clarice lembrou da boneca com a tachinha vermelha entre as pernas e teve vontade de rir. -- Pois é, acontece.
--Boa noite! -- um garçom chega cumprimentando e trazendo cardápios
--Boa noite! -- as duas responderam -- Rapaz, antes de mais nada, me traz um coquetel de frutas, por favor! -- Cátia pediu
--Uma soda, por gentileza. -- Clarice pediu
--Só se for agora! -- o homem retirou-se para buscar as bebidas
--Que tal um gorgonzola a milanesa? -- a geofísica propôs
--Por mim, tudo bem. -- pausou brevemente -- Querida, eu vou no toalete, com licença. -- levantou-se -- Não demoro.
--Tomara que ela não comece com aquela coisa de correr pro banheiro toda hora! -- Cátia resmungou -- Opa, -- reparou em uma mulher -- quem é aquela, gente? -- ficou olhando
Jamila voltava do banheiro e percebeu que a geofísica a acompanhava com o olhar. “Não é de se jogar fora...” -- pensou com malicia
--Interessou na loura? -- Leonor havia percebido o lance -- Cuidado que ela chegou com outra. -- advertiu -- Daqui da onde a gente tá não dá pra ver a mulher, mas eu vi quando as duas pegaram a mesa. Tinha dois carinhas bem gatos querendo a mesma mesa só que elas foram mais rápidas.
--Tá acompanhada? -- perguntou sem se importar -- Eu desisti de ser uma boa menina, habibi! -- piscou para a irmã
A advogada estava sentada de costas para a mesa das outras duas, olhando para Cátia apenas de vez em quando. Fazia um charme calculado para provocar o loura, que observava-a fixamente a ponto de nem ter percebido o retorno de Clarice.
--Que demora, né? -- a paleoceanógrafa chegou dizendo -- Nunca vi tanta mulher em tão pouco espaço! -- brincou
--Ah, é, nossa! -- Cátia disfarçou olhando para ela -- Menina, eu já tava a ponto de ir lá te buscar. -- apontou para os petiscos -- Sirva-se, querida, acabaram de chegar! -- sorriu
--A mulher dela voltou. -- Leonor fofocou
--Ah, tá. -- a advogada não se importou -- Vamos ver até que ponto ela tá a fim. -- levantou-se e deu uma olhada de relance para a loura -- Depois eu volto. -- afastou-se
--Ai, ai... -- balançou a cabeça e sorriu -- A fera ataca novamente...
--É... meu bem? -- olhou para Clarice -- Agora acho que sou eu que devo ir visitar o toalete. -- sorriu e se levantou
--Tenha paciência, Cátia, porque não tá fácil.
--Pode deixar. -- soprou um beijo para a outra e se retirou
--Queijo gostoso! -- apreciava o gorgonzola
Jamila aguardava a outra esperando em um corredor estreito onde outros casais, hetero e homossexuais, amassavam-se despreocupadamente.
--Oi. -- Cátia cumprimentou com um olhar sedutor -- Que ímã é esse que você tem que eu não consegui ficar longe, hein? -- parou de frente para a jovem apoiando uma das mãos na parede -- Fiquei excitada de um jeito... -- os rostos estavam próximos
--Ah, é? -- perguntou provocante -- Então vamos ver se você consegue... -- segurou as presilhas do jeans da loura -- me deixar excitada também! -- puxou-a de encontro a si -- Ou tem medo que a namoradinha apareça aqui? -- lambeu os lábios da geofísica
--Você vai ver, gostosa! -- beijou-a com desejo
Bocas famintas devoravam-se em beijos vorazes enquanto que mãos ansiosas percorriam o corpo uma da outra sem qualquer cerimônia.
E tome de Clarice comer queijo...
***
--Nossa, mas como você demorou! -- Clarice reclamou de cara feia -- Eu fiquei até com medo que alguma coisa ruim tivesse te acontecido!
--Que nada! -- respondeu ao se sentar -- Zanga comigo não, que você sabe que o banheiro tá uma loucura total! -- pegou um pedaço de queijo -- Tive até que ir no banheiro do barzinho do lado senão ia acabar passando vergonha na fila! -- mentia -- Por isso que demorei tanto. -- comeu o petisco -- Hum, tá frio. -- reclamou
--Então você foi no barzinho do lado? -- perguntou desconfiada -- Saiu por onde que eu não vi?
--Ah, por ali pelos fundos. -- apontou para um lugar qualquer -- Vamos pedir mais uma bebida? -- sorriu
--Vamos... -- reparou em uma estranha marca no pescoço da loura
--Gente, mas que demora! -- Leonor reclamou com a irmã -- Eu só não paguei a conta e fui embora porque fiquei com medo de voltar pra pousada sozinha!
--Relaxa, maninha. -- sorriu -- Eu tava me entrosando com a loura que chegou acompanhada e a coisa tomou mais tempo do que pensei que fosse levar. -- olhava para todos os lados -- Cadê o garçom, hein? Preciso de um drinque!
--Não me diga que vocês...? -- mordeu o lábio inferior
--O que você acha? -- respondeu jogando os cabelos
--Gente, mas você é muito descarada, viu? -- achou graça -- Ai, mas eu gosto é bem disso! Sinal de que tirou aquela maluca do seu coração de uma vez por todas! -- sorriu
--É... -- acenou para o garçom -- Tirei sim... -- suspirou
***
--E foi assim, Grazi. -- olhava para a amiga -- Aquela criaturinha tem uma força inexplicavelmente medonha! Acredita que ela me virava prum lado e pro outro, de barriga pra cima e barriga pra baixo, como se eu fosse uma bisteca? E as agulhas da infeliz? São verdadeiras espadas samurais, de tão grandes! Sinceramente, pensei que não sairia de lá viva! -- contava sobre a sessão com Akemi -- E eu que achei que Cláudia tivesse exagerado!
--Minha nossa! -- achava graça -- E valeu a pena passar por esse sofrimento todo?
As duas amigas conversavam em um quiosque na beira mar.
--Ah, valeu! Saí de lá me sentindo outra. -- bebeu um gole de suco -- Apesar de ter levado uma verdadeira sova, senti que tudo voltou pro seu devido lugar e minhas dores acabaram. -- mexeu com o pescoço -- Já posso fazer qualquer movimento.
--Mas por que você tava tão calambiada? -- perguntou curiosa -- O que aprontou durante as férias?
Graziela não sabia que a professora havia ficado internada.
--Ah, eu acho que peguei pesado e abusei demais. -- mentiu
--Então vê se toma jeito pra não ficar tendo que passar por isso mais vezes! -- mordeu a tapioca -- Sofrimento! -- riu
--Sofrimento pior foi na casa de ya Ritinha! Fui vítima de um golpe da terceira idade e tive de ficar aturando uma sessão inteira de alcovitice com o sobrinho dela! -- revirou os olhos
--Ah, essa é boa! Suas velhinhas querem casar você com esse cara? -- riu novamente
--E não é? Vê se tem base uma coisa dessa? Tão bonitinhas e tão danadas! -- riu também -- Mas fale de você. -- pegou mais um guardanapo -- Como vai a vida? E as novidades? -- comeu um pedaço de tapioca
--Graças a Deus, tudo bem. -- sorriu -- Mas não tenho nenhuma novidade interessante, ao contrário de você que sempre tem um monte de causos pra me divertir. -- bebeu um gole de suco -- A única coisa que posso chamar de novidade é minha última derrota. -- contava com descontração -- Tia Maura anda fazendo umas vigílias na igreja e eu tenho passado lá pra dar uma carona pra ela. Daí, por causa disso, acabei conhecendo uma mulher interessante que me pareceu super de olho nessa que vos fala. -- apontou para si mesma -- Mas o que ela queria de mim era uma coisa só: me converter! -- riu -- Fui seduzir a beata, viu? Deu no que deu!
Zinara achou graça. -- Mas como foi isso, mulher?
--A gente ficava naquele papo fiado na porta da igreja, olhares de peixe morto, sabe como é. Aí ela me convidou pra passar na casa dela no domingo de carnaval e eu fui. Chegando lá, cheia de amor pra dar, o que é que eu vejo? Um monte de gente fazendo estudo bíblico! -- deu um tapa na perna da outra -- Passei o domingo todo lendo o Apocalipse e aturando a maior gritaria no meu ouvido! -- revirou os olhos
--Não era o que o você esperava, mas ainda assim agradeça a Deus por ela não ter te mandado pro tratamento do Otaviano! -- brincou
--Ah, mas eu acho que ela não percebeu qual era a minha... pra minha sorte!
--Mas você correu um risco, viu? Tem um pessoal de religião que não é mole! -- bebeu o último gole do suco -- Homofobia no mais alto grau!
--E eu não sei? -- limpou os lábios com guardanapo -- Tinha uma lá no estudo que condenou tanto ‘essa gente perdida’, -- fez aspas com os dedos -- que tive de me controlar absurdamente pra não falar nada!
--Mas, me conta, por que sua tia anda fazendo a tal vigília? -- perguntou curiosa
--Ah, parece que a coisa anda complicada lá pras bandas de sua terra natal, viu? Suriyyah tem sido tomada por revoluções, é um bocado de bomba, mortes... Uma coisa triste!
A morena lembrou-se vagamente do que ouviu dos avós enquanto esteve de coma.
--A igreja tem missionários por lá e todos andam tensos por conta disso. -- olhava para a outra -- Temem que eles não consigam chegar a um campo de refugiados que tem ajudado as pessoas por lá.
--Eu não sei, Grazi... Cada caso é um caso, mas às vezes os campos de refugiados são tão ruins ou até piores que a guerra por si mesma. -- argumentou -- Sei que há trabalhos excelentes, como o do Doutores sem Barreiras, mas também há coisas terríveis! Passar um ano vivendo no campo de Al Maghrib foi... -- não sabia como dizer -- uma experiência horrível por demais da conta!
--Ai, amiga... -- segurou uma das mãos dela -- Você não costuma falar do seu passado, então não vou perguntar nada. -- falou com carinho -- Mas acho que posso imaginar como deve ter sido...
--Não... -- discordou com delicadeza -- Há coisas que não dá pra imaginar, só quem viveu pra saber. -- acariciavam-se as mãos -- Mas... sabe daquelas coisas que você nunca desabafa? -- olhava nos olhos da outra -- Às vezes acho que eu precisava falar...
--Então me conta? Tô aqui ouvindo você. -- pediu -- Eu sou forte! Dou o colo que você precisar! -- afirmou com intensidade
Zinara levou fé e decidiu desabafar. -- Deixamos Cedro com o coração em pedaços e pegamos uma embarcação com destino a Al Maghrib. -- mirava um ponto no infinito -- Após uma viagem terrível, que levou alguns dias, atracamos no porto da cidade de Titga. Lembro perfeitamente da surpresa que tomou conta de nós, as crianças, porque era a primeira vez na vida que víamos uma cidade, sabe? Nascemos num mundo em ruínas...
--Ah, tadinhos... -- lamentou
--Éramos aguardados por carroceiros e fomos levados pra um lugar estranho, onde seríamos catalogados e distribuídos pelos diferentes campos de refugiados de Al Maghrib. -- continuava seu relato -- A gente achava que era um único acampamento, mas na verdade haviam vários. Não pudemos descansar, comer ou sequer buscar um lugar pra atender nossas necessidades porque mal desembarcamos, formos encaminhados praquelas carroças e o tratamento era de uma rudeza só. -- lembrava -- A gente foi pra lá acreditando que as coisas seriam melhores, mas não... -- balançou a cabeça negativamente -- Era uma grande ilusão... Era como se nós fôssemos animais à beira do abate.
Graziela ouvia com atenção enquanto Zinara viajava no tempo.
CAPÍTULO 17 – Al Maghrib
--Estas são as regras e elas devem ser seguidas! -- um homem autoritário discursava em gálio diante de uma multidão de maltrapilhos -- Após a divisão de vocês em grupos, cada família será encaminhada para um campo de refugiados e receberá uma barraca para dormir, alimento, roupas, artigos de higiene pessoal e suprimentos médicos. Comportem-se como se deve que tudo ficará bem! -- um jovem religioso traduzia suas palavras para a língua de Cedro
--Ya aini (Meus olhos), -- Youssef cochichava para a irmã -- depois de tanto sofrimento será que as coisas serão melhores aqui do que em Cedro? -- perguntou esperançoso
--Inshallah (Se Deus quiser)! -- não acreditava nisso, mas não queria fazê-lo perder a esperança
--Je ne tolérerai aucune insubordination! (Eu não tolerarei qualquer insubordinação!) -- o homem continuava seu discurso -- Os infratores serão punidos proporcionalmente ao delito que cometerem e se houver reincidência, alerto que com três punições o indivíduo é expulso daqui junto com sua família, e o clã estará por sua própria conta e risco! -- olhava para todos -- Espero que tenhamos uma boa convivência e que todos encontrem a felicidade neste país que os recebe de braços abertos. Obrigado! -- após ter sido traduzido fez um gesto de cabeça e se despediu dos recém chegados
--Baba, gelbe ysall aleghib... (Papai, meu coração está perguntando...) o que acontecerá agora? -- Khaled perguntou receoso -- Esse lugar é muito estranho! -- olhava nervosamente para todos os lados -- Diferente do acampamento de Cedro!
--Acredito que seremos levados para nossa barraca. -- o homem respondeu de pronto -- Estamos em outro país, binii (meu filho), por isso é tão diferente!
Homens abordavam os recém chegados e encaminhavam grupos de pessoas para direções distintas. Parecia não haver muita coerência no modo como a coisa era feita, pois gerava-se tumulto, alguns reclamavam, gritavam e choravam.
--Raed, e se eles quiserem separar Leila e os meninos de nós? -- Amina perguntou preocupada -- Ana xaafa, zogii! (Estou com medo, meu marido!) -- segurou o braço dele -- Esse tumulto está me apavorando!
--Leila, -- olhou para ela -- vou me apresentar como abuuik (seu pai) para que não separem você e os meninos de nós! Não desmanchem minha palavra!
--Aywah, ya Raed, min fadlak! (Sim, senhor Raed, por favor!) -- concordou -- Hassan, Jamal, -- olhou para os filhos -- ya Raed e ya Amina serão seus avós de agora em diante! -- as crianças balançaram a cabeça positivamente
--O mesmo vale para vocês! -- olhou para Zinara, Youssef e Khaled -- Não ousem a desmanchar o que eu venha a dizer! -- advertiu enérgico
Um homem, que trazia consigo uma prancheta e uma caneta, aproximou-se impaciente e falando rápido. Perguntava coisas olhando para Raed mas ele não sabia responder, pois não entendia o idioma gálio.
--Ana la afham! (Eu não entendo!) -- respondia preocupado -- Ya said (o senhor) não fala minha língua? -- olhou para os lados -- Onde está aquele imã (religioso) que traduzia?
--Zinara, o que ele diz? -- Amina olhava para a filha -- O que ele diz? Ajude abuuik (seu pai)!
--Ele fala muito rápido! -- estava agoniada -- S'il vous plaît, mon seigneur, parlez plus lentement! (Por favor, meu senhor, fale mais devagar!)
Olhou para a menina de cara feia. -- Quel est son nom? (Qual o nome dele?) -- apontou para seu pai -- Combien d'entre vous est là? (Quantos vocês são?)
--Son nom est Raed Raja. (O nome dele é Raed Raja.) -- a menina respondeu -- Nous sommes ses enfants. (Somos filhos deles.) -- apontou para si e os demais
--La famille est très grande! -- olhou para o grupo horrorizado -- Les tentes sont petites. J'ai à vous séparer! -- anotou algo
Sentiu o coração acelerar e olhou para Raed. -- Zinara disse que ya said (o senhor) é abuuina (nosso pai), mas ele reclama que a família é grande demais e as barracas são pequenas! Quer separar a gente! -- segurou a mão dele -- Não permita, baba!
--Oh, Allah! -- Leila abraçou os filhos desesperada
--Maama! -- Youssef e Khaled se abraçaram com Amina
--Mas não quer dizer que vamos para lugares diferentes, serão apenas barracas diferentes, não é isso? -- Raed queria entender o que se passava -- Não é isso, Zinara? -- olhava alternadamente para ela e para o homem
--La afham... ( Não entende...) -- a morena respondeu nervosa
O homem fez sinal para que mais alguns de seus colegas se aproximassem.
--Min fadlak, ya said! (Por favor, senhor!) -- Raed pediu segurando o homem pelos ombros -- Não me separe de usritii (minha família)!
--Sortir de moi! (Fique longe de mim!) -- desvencilhou-se com raiva
--Min fadlak, min fadlak, ya said!! -- os meninos pediam em coro
--S'il vous plaît, mon seigneur, ne se séparent pas notre famille! (Por favor, meu senhor, não separe nossa família!) -- a menina estava disposta a implorar -- S'il vous plaît, s'il vous plaît! (Por favor, por favor!)
--S'il vous plaît, s'il vous plaît! -- Amina repetiu sem nem saber o que estava dizendo
Mantendo-se impassível, o homem conversou brevemente com os outros que vieram ao seu encontro e se retirou dizendo: -- J'ai à vous séparer!
--S'il vous plaî, ne se séparent pas notre famille! (Por favor, não separe nossa família!) -- Zinara repetiu sua súplica
Sem responder qualquer coisa, dois brutamontes seguraram Leila e os filhos pelos braços e foram conduzindo-os para uma direção diferente daquela que o pequeno clã de Zinara era arrastado por mais quatro homens.
--Laa!!!!!!!! Laa!!!! (Não!!!!! Não!!!!) -- Raed gritava em desespero -- Eu quero todos eles comigo!!! Laa!!!!!! -- dois homens lutavam para mantê-lo sob controle
--Laa!!! -- Hassan e Jamal gritavam aos prantos -- Ya Raed!!! Ya Amina!!!
--Aba, ala dalouna!!! (Meu Pai, nos ajude!!!) -- Leila gritava olhando para o céu -- Aba!! Aba!! Ala dalouna, Aba!!!
--Yixrib beitak!! (Meu Deus vai destruir sua casa!) -- Khaled amaldiçoava o homem que o segurava -- Wa-beit illi xallafuuk!! (E a casa daqueles que deixaram você nascer!!) AHAHAHAH!!!!! -- gritava
Enquanto era arrastada por um homem estúpido, Amina se contorcia agoniada tentando se libertar e correr atrás de Leila e seus filhos. Youssef parecia perdido e chorava sem saber o que fazer. Ele e Khaled eram levados pela mesma pessoa.
Zinara lembrou-se das palavras que Amin lhe dissera há tempos atrás.
“--Chute forte entre as pernas do ghaduuww (inimigo), fure os olhos dele com os dedos, -- fingia que agredia a si mesmo -- e se não adiantar, pegue-o pelo pescoço assim! -- rapidamente segurou a menina pelo pescoço -- Tem que apertar do jeito como estou fazendo agora! O segredo não é a força, mas o local onde se aperta, entendeu?”
Sem que o homem que a segurava esperasse, a menina chutou entre as pernas dele como se desse um coice. Virou-se de frente rapidamente e apertou-lhe o pescoço da mesma forma como o tio havia lhe ensinado.
--AHAHAH!! -- caiu de joelhos sentindo dor
Zinara então correu na direção de Leila e dos meninos tentando libertá-los. Pulou nas costas do homem que segurava a moça e apertou o pescoço dele. O outro homem soltou os meninos e veio ajudar o colega.
--Corram, awlaadii (meus filhos)!! -- Leila ordenou -- Corram!!
Jamal e Hassan correram para o mesmo lado que o resto da família era levada e se misturaram no meio da confusão.
--Ya Leila!! -- a menina segurou a mão dela -- Tacaalii! (Vem!) -- gritou
Os homens separaram as duas e Zinara sentia a dor dos golpes que recebia. De repente parecia-lhe que o mundo progredia em câmera lenta e não conseguia ouvir mais nada. Percebia o desespero de Leila e sabia que ela gritava, sem no entanto entender qualquer palavra.
As lágrimas em seus olhos embaçavam-lhe a visão e a imagem da outra mulher desaparecia pouco a pouco, desbotando-se em uma forma cada vez mais irreconhecível. Em seu coração algo lhe dizia que aquele triste momento era um adeus e ela sofria desesperadamente a dor de mais uma violenta separação causada pela ignorância humana.
--Ai, amiga, que coisa triste!! -- Graziela chorava abraçada com a professora -- Que coisa triste, meu Deus, que horror!! -- lamentava em voz alta -- Até quando vai ser assim, meu Pai, até quando? Ahahahah!!! -- gritou
--Ô, Grazi... -- olhava para a amiga -- eu também tô chorando, mas alivia aí porque você tá quase quebrando minhas costelas!
--Ah, perdão! -- ficou sem graça e soltou a outra -- É que essa história me emocionou demais! -- secou os olhos e o rosto com um guardanapo -- Deixa eu me recompor. -- respirou fundo
--Eu também me emociono muito. -- secou o rosto da mesma forma -- Também preciso me recompor.
Após alguns segundos caladas, Graziela perguntou: -- Então? Leila não seguiu junto com vocês?
--Não. -- respondeu com tristeza -- Hassan e Jamal vieram conosco, mas ela não... E a gente vivia à caça de notícias...
--Meu Deus! -- exclamou horrorizada -- Mas por que? Eu não entendo isso, por que?
--Não estávamos ali por outra razão, senão pra servir de mão de obra semi escrava pra alguns ‘senhores’ -- fez aspas com os dedos -- distintos de Urubba, que montaram em Al Maghrib empresas cujos moldes não poderiam ser tolerados em seu continente. -- explicava -- Separar famílias grandes tornava a coisa mais fácil pra eles! E olha que nosso clã nem era tão grande assim.
--Absurdo! -- falou enojada -- Como podem se aproveitar dessa forma?
--Pois é... -- passou a mão nos cabelos -- Nós ficamos arrasados depois disso, Hassan e Jamal sofreram como loucos e baba ficou ainda mais esquisito. -- pausou brevemente -- Ya Leila foi casada com o filho mais velho de camm Chede e giddu Raja a considerava como neta... Eu gostava dela...
--E vocês... o que aconteceu depois disso?
A dona do quiosque prestava atenção na conversa.
--Fomos trabalhar em um curtume horrível que se localizava relativamente perto do acampamento. -- olhava sem ver o que estava a frente de si -- Era um lugar estranho e fedorento onde escavaram em um solo pedregoso um monte de pequenos poços, como se fosse uma colméia gigante. -- tentava descrever -- Naqueles poços eles colocavam os produtos químicos pra tratar das peles, ou então as tintas pra tingir, e os homens passavam horas e horas dentro dos buracos se contaminando com aqueles venenos! Acho que foi por isso que baba veio a ter sérios problemas renais mais tarde, tendo até que precisar de transplante.
--Eu lembro que você doou um rim pra ele. -- suspirou -- Minha heroína...
A astrônoma parecia não ter ouvido o comentário. -- Baba trabalhava na parte mais bruta, onde o tratamento das peles era feito com fezes de pombo e amônia.
--E ele entrava em contato com isso?? -- arregalou os olhos
--Pernas e braços por horas a fio... -- olhou para a amiga -- Maama trabalhava na parte de remoção dos pêlos e secagem; com certeza se hoje ela sofre tanto com problemas respiratórios é por causa disso.
--Mas minha nossa! E vocês, as crianças, também trabalhavam?
Zinara riu. -- Acha que faziam distinção? Os filhos de ya Leila e Khaled eram da pintura manual, Youssef trabalhava no arremate, tateando os defeitos superficiais, e eu era do transporte. Carregava sacos cheios de couro pra lá e pra cá o dia todo. -- pausou brevemente -- Não haviam mais bombas explodindo, tiros ou coisas do gênero, mas aqueles dias também foram terríveis... E muito violentos...
--Imagino que você tenha recebido punição pelo que fez... -- comentou condoída
--Se recebi! -- revirou os olhos -- E não foi a única vez...
--Ah! -- uma jovem cai no chão totalmente exausta. Seu saco de peles arrebentou e despejou o conteúdo aleatoriamente -- Oh, Aba, leva-me Contigo! -- clamava com voz fraca -- Leva-me!
Zinara arriou o saco que carregava e correu para junto da outra. -- Choo? (O que?) O que foi? O que você sente? -- virou-a de frente para si -- Está ferida... -- viu que saía sangue do queixo dela, provavelmente por causa da queda
--Ei, você, deixe-a! -- outra menina aconselhou -- Se ya said Jean ver as duas aí, vai puní-las. -- seguia em frente com sua carga
--Consegue levantar? -- a morena perguntou
--Laa... (Não...) -- respondeu com os olhos marejados -- Estou fraca e me sentindo mal. -- pausou brevemente -- Acho que...é porque estou grávida...
--Oh! -- surpreendeu-se
--Não sou mahdia (prostituta)! -- defendeu-se de pronto
--Zinara não pensou isso. -- foi sincera -- Vamos tentar levantar. -- fez força para ajudar a outra -- Tacaalii? (Vem?)
Com dificuldade a jovem conseguiu ficar de pé. -- Chukran! (Obrigada!) -- agradeceu
--Vamos andando. Depois Zinara volta para buscar as peles.
--Tem certeza? Seremos punidas por isso. -- olhava para a outra -- Eu não me importo com mais nada, mas você... Não quero prejudicá-la!
-- Yaalah! (Vamos lá!) -- começaram a andar
--Ana ismii Adilah Iabá (Meu nome é Adilah Iabá) e fui separada de usritii (minha família) quando cheguei aqui. -- apresentou-se -- Estou sozinha e vivo na mesma barraca que duas viúvas.
--Zinara vive com al usrit (a família), mas uma de nós foi levada para outro lugar.
--Tomara que não tenha acontecido com ela o que acontece comigo. -- falava com mágoa -- Há meses sou violada por alguns supervisores e eu odeio isso! Nem imagino qual deles é o pai do filho que carrego.
A menina ouvia aquilo em choque.
--Espero que quando meu ventre crescer eles me deixem em paz. -- desejou -- Ou que Aba me leve daqui!
--Ei, vocês!! -- um recebedor de peles vinha gritando -- O que pensam que estão fazendo? Onde está al jild (o couro)?
--Ela passou mal e Zinara ajuda. Depois volta e vai buscar al jild!
--Ya habla! (Sua idiota!) -- separou as duas com violência e esbofeteou o rosto da mais jovem, que caiu no chão -- Você será punida por isso! -- olhou para Adilah -- E você, ya mahdia, venha comigo! -- seguiu arrastando-a pelo braço -- Volte para buscar al-jild! -- ordenou para Zinara aos berros
Sem forças para se levantar, a morena acompanhava os dois com o olhar e se perguntava qual seria o destino daquela jovem. Meses depois, veio a saber que ela morreu no parto.
***
--AHHa!!! -- Raed reclamava -- Cuidado, Amina! Isso arde!!
--Para curar al-juruuH (as feridas) o remédio é esse e ele arde. -- aplicava um líquido amarelo nas feridas abertas nos braços do marido -- É preciso força! -- fungou
Era noite e todos estavam na pequena barraca da família.
--Maama, eidii (minhas mãos) também estão cheias de al-juruuH! -- Khaled reclamou mostrando as mãos
--Eu também, gidda (vovó). -- Hassan reclamou -- Onzori! (Veja!) -- mostrou
--E eu! -- Jamal abriu as mãos para mostrar
Os meninos continuavam agindo como se Raed e Amina fossem seus avós.
--Eu vou cuidar de vocês, tenham calma. -- a mulher respondeu -- Zinara, pegue um lenço e seque anfii (meu nariz). -- estava escorrendo
A menina fez o que lhe foi pedido.
--Rahimaka Allah! (Deus te abençoe!) -- a mãe agradeceu
--Quando maama voltar, -- Jamal dizia esperançoso -- gidda Amina não vai mais precisar cuidar de nós. -- sorriu -- Maama cuida!
Um silêncio triste tomou conta do ambiente.
Já fazia três meses que eles viviam no campo de refugiados conhecido como al-jild (o couro) e até então ninguém soubera de qualquer notícia à respeito de Leila, por mais que buscassem. Zinara não acreditava mais que pudessem encontrá-la.
--Aywah, habibi (Sim, querido), -- Amina respondeu com vontade de chorar -- ela cuida...
--Ya aini (Meus olhos), -- segurou a mão da irmã -- você sente algum mal? -- perguntou curioso -- Eu não sinto, só fico cansado.
--Zahrii (minhas costas) estão como podres. -- confessou -- E el raqaba (o pescoço) dói muito.
--É o peso que carrega... -- Youssef respondeu pensativo -- Veja como todo mal traz um lado bom. Eu sou cego e por isso meu trabalho é o mais leve!
--Ser cego não é bom! -- Hassan retrucou
--Às vezes é. -- Youssef discordou
Zinara ficou pensando em como seu irmão poderia ser do jeito como era, tendo em vista tudo que sofreu. Parecia-lhe, por muitas vezes, que Khaled sofria muito mais com a cegueira dele do que o próprio Youssef.
***
O sol era abrasador e Zinara seguia com um enorme saco de peles na cabeça. Realizando a quarta viagem de ‘leva e trás’, estava bastante cansada e suando muito. Outras meninas, igualmente arrasadas, vinham a seu lado. Por um momento pensou em Adilah e seu coração doeu.
Sentindo as gotas de suor queimarem seus olhos, lembrou-se repentinamente das últimas palavras de Raja.
“-- Eu tinha esquecido de uma coisa. -- caminhou até seus poucos pertences -- Então foi bom que você tivesse fugido hoje para me ver, pois talvez não houvesse mais tempo. -- pegou uma carta e voltou para perto da menina -- Esta carta me foi mandada por bintii (minha filha) Najla -- estendeu para a neta que a recebeu -- e chegou em minhas mãos antes da guerra começar. -- pausou brevemente -- O endereço dela, o lugar em ela mora, está escrito no mesmo alfabeit que a Gália usa. -- olhava para a morena -- Se em Al Maghrib houver serviço de correio, como creio que haja, escreva para ela.”
“Zinara tem que procurar por esse correio!” -- pensava -- "E escrever para camma Najla!”
--Enfin! (Finalmente!) -- o recebedor das peles aproximou-se das garotas -- Je me demande si ils ne pouvaient pas être plus lents? (Gostaria de saber se não poderiam ser mais lentas?) -- perguntou com deboche sem atentar que apenas Zinara o compreendia
Elas deixaram os sacos no chão e sentaram para descansar.
--Monsieur, -- aproximou-se do homem -- il ya le... maktab il-bariid (correio) dans le camp? (Senhor, existe… maktab il-bariid no acampamento?) -- não sabia falar a palavra correio em gálio
--Je ne comprends pas! (Não entendo!) -- respondeu de má vontade enquanto recolhia as peles -- Volte ao trabalho pois vocês precisam fazer mais duas viagens ainda hoje!
“Como fazer para descobrir isso?” -- pensava agoniada -- "Como fazer?”
***
--Ana la afham! Ezzai? (Eu não entendo! Como pode?) -- Raed questionava seu supervisor -- Onde está Hassan? Quero saber de Hafiidii (meu neto)! -- estava muito preocupado -- Por que não está na pintura como os outros? Os meninos também não sabem dele!
--Ya said Gerard disse que o menino agora trabalha com ele. Será el saaghi al-bariidak (mensageiro dele).
--E por que? -- não entendia
--O menino é nabiih (inteligente), deve ser por isso. -- respondeu como quem dá a conversa por encerrada -- Agora chega de perguntas e vá trabalhar! -- ordenou ao se retirar
Zinara chegava com um saco de peles e por isso pôde ouvir a conversa.
***
--Zinara, Zinara! -- Khaled abordava a irmã nervosamente -- Você não sabe o que eu vi!
--O que faz aqui? -- perguntou preocupada -- Sabe que não pode sair da tangir (tinturaria) e eles vão punir você!
--Ouça, ukhtii (minha irmã), é importante! -- insistiu -- Importante! -- estava trêmulo
--Fale! E fique calmo! -- segurou as mãos dele
--Eu tive que buscar mais tinta no galpão e vi ya said Gerard e Hassan escondidos lá. Eles estavam longe, mas vi muito bem! -- tremia da cabeça aos pés -- O homem estava em pé, parado atrás de Hassan, e fazia alguma coisa muito ruim com ele, porque seus gemidos eram desesperados! Parecia chorar de dor!
A menina sequer imaginava o que poderia ser. -- Deve ser alguma punição por coisa que Hassan fez e ele não gostou!
--A punição acabou antes que eu saísse de lá. Não sei para onde foram! -- seus olhos marejaram -- Ana xaafa! (Estou com medo!)
--Ai, meu Deus, que mundo cão, que mundo cão!! -- Graziela chorava e se lamentava fazendo escândalo -- É tanta coisa ruim que acontece! Ai, meu Deus, que tristeza!!!
--Mas o que aconteceu com o menino? -- a dona do quiosque perguntou chorosa -- Diga, mulher!
--E o cabra que abusava dele? Como terminou essa fuleiragem? -- um homem perguntou revoltado e emocionado
--E a Leila, o que aconteceu com ela? -- outra mulher queria saber
--Como é que vocês saíram daquela desgraça de lugar? -- um idoso se interessava
A astrônoma ficou surpresa ao perceber que haviam mais três pessoas na mesa delas, além da dona do quiosque de tapioca.
--Bem... -- secou os olhos -- Hassan negou que sofreu castigo quando Khaled foi conversar com ele naquela noite. Mais tarde nós entendemos que ele aceitava ser explorado porque Gerard prometeu a ele que traria ya Leila de volta, mas nunca trouxe. -- pausou brevemente -- Quase oito meses depois de nossa chegada, Youssef sonhou que ya Leila estava morta; dias depois essa notícia foi confirmada.
--Ai, que coisa triste, amiga!! -- Graziela se abraçou com a professora chorando copiosamente -- Que coisa triste!!! AHAHAH!!!!! -- gritou
--Eita, aadaanii (meus ouvidos)... -- a professora reclamou
Os outros choravam também.
--Conta o resto, conta! -- a dona do quiosque insistia
--Um casal de doktuur da Gália foi visitar os acampamentos e, mesmo correndo o risco de receber minha terceira e última punição, denunciei a eles o que acontecia lá. -- continuava a narrativa -- Foi uma coisa louca, sabe? -- olhava para os demais -- Eu tive acesso a eles por um acaso e, graças a Deus, os dois me deram atenção. Inclusive entreguei nas mãos da mulher uma carta pra minha camma Najla.
--E o que aconteceu depois da denúncia? -- o idoso estava agoniado -- Diga, mulher, meu coração tá num aperreio só!
--O caso gerou uma tremenda repercussão internacional e o Presidente da Gália enviou uma espécie de força tarefa pra colocar ordem nos acampamentos. Acabou-se a escravidão, um monte de gente foi presa e as famílias puderam reencontrar seus entes perdidos.
--Que pena que isso não aconteceu antes da Leila morrer! -- a dona do quiosque lamentou chorando -- Vocês podiam ter se reencontrado...
--Ai, que pena, que pena!! -- Graziela continuava berrando agarrada com a morena -- Ia ser tão bonito, tão bonito!! AHAHAHAH!!!! -- mais um grito
--Foi ya Leila quem nos libertou, moça. -- Zinara respondeu emocionada -- Ela morreu de uma doença estranha e rara, de fundo fortemente emocional, e isso chamou atenção das pessoas. Não sei como a notícia se espalhou, mas foi por isso que o casal visitou os acampamentos. Eles queriam entender o que aconteceu e, um mês e meio depois da morte de ya Leila, os dois estavam lá.
--Ai, que benção, que benção!!! -- Graziela se danava
--E como vocês conseguiram chegar aqui? -- a outra mulher insistia
--As famílias tiveram o direito de escolher seu próprio destino. Umas prefiriram voltar pra Cedro, outras se assentaram em Al Maghrib, algumas poucas receberam asilo na Gália e nós recebemos uma carta de camma Najla e viemos pra cá. -- sorriu -- O dia em que aquela carta chegou nas minhas mãos foi tão especial, tão feliz pra mim, que voltei a acreditar em Deus depois de meses de absoluta revolta. -- lembrava -- Eu havia pedido a Ele uma prova...
Foi decretado luto no acampamento e naquele dia ninguém trabalhou. Zinara chegava ao topo de uma pequena colina com o coração em pedaços e o rosto banhado em lágrimas. Olhou para o alto e gritou com ódio: -- Por que, Aba?? Por que?? -- sua alma era um misto de dor e revolta -- Por que brinca conosco dessa forma? Onde pretende chegar? Pra que tudo isso? Pra que?? -- respirava com sofreguidão -- Por que deixa que o mal vença sempre? Por que deixa as pessoas inocentes morrerem?? -- chorava -- Maama diz que Zinara tem que acreditar, diz que não se pode perder a fé, mas responda, pra que? O que adianta?? -- caiu de joelhos no chão -- Se Ya Said existe de verdade, dê uma prova! Faça que alguma coisa boa aconteça, porque desde que Zinara nasceu, nunca teve uma boa surpresa! -- olhou para baixo -- Tudo é sempre violência, dor, morte e desilusão... -- apoiou as mãos no chão -- Mihtagalak, Aba... (Eu preciso de Ti, meu Pai...) -- confessou humildemente -- Ayrni an ansa al-dunya, Ayrni an ansa al-ard... (Faça-me esquecer o mundo, Faça-me esquecer da terra...)
--Ai, que testemunho bonito, que testemunho bonito!! -- e tome de Graziela chorar -- Ahahahah!
--É bonito mesmo! -- o outro homem concordou emocionado -- Aleluia!
--Aleluia!! -- os outros repetiram
--Aleluia, aleluia... -- Graziela esfregava a cabeça no braço de Zinara -- Ai, meu Deus, ai, ai, ai... -- chorava -- Ai, ai, ai... AHAHAHAHAHAH!!!!!! -- gritou com raça
--É melhor eu ver um copo d’água com açúcar pra essa criatura! -- a dona do quiosque levantou-se preocupada -- Tá a ponto de ter um troço!
“E eu que acreditei que ela ia me consolar...” -- a professora pensou enquanto era esmagada em um abraço de urso
CAPÍTULO 18 – Verdades e Mentiras
Clarice e Magali conversavam na sala da paleoceanógrafa.
--Eu não acredito que pela segunda vez você vai pra Costa Azul com Cátia e fica no zero a zero! -- exclamou indignada -- E em pleno carnaval, olha só!
--Magali, eu acho que você não prestou atenção à uma palavra que eu disse! -- retrucou
--Claro que ouvi! -- cruzou as pernas -- Primeiro foi o fato dela estar naqueles dias e depois a sua desconfiança com a mulher só porque demorou a voltar do banheiro.
--E quando apareceu, veio com um ch*pãozinho básico no pescoço. -- salientou o fato
--Amiga, -- apoiou-se na mesa dela -- pensa comigo: você acha que uma geofísica renomada, com um baita doutorado no currículo e professora universitária da federal ia ficar de sacanagem com outra em canto escuro de barzinho? -- olhava para Clarice -- Me poupe, tá?
--Acho que você pensa que o currículo torna uma pessoa mais elegante e nobre! Claro que não, Magali! -- argumentava -- Seu currículo mostra apenas os atributos do intelecto, seu comportamento é que indica os atributos da alma, os quais independem do que a academia possa te ensinar!
--Humpf! -- fez um bico e endireitou-se na cadeira novamente -- E vocês discutiram por causa da sua desconfiança e terminaram a viagem sem se falar direito?
--Pois é. Eu esperei a gente chegar na casa dela pra tocar no assunto, mas ela notou que dei-lhe um gelo desde que voltou do banheiro, ou sabe-se lá da onde, e ficou toda desconfiada. -- contava -- No entanto, quando a conversa começou ela tava muito mansinha mas acabou sendo bem rude comigo. -- lembrava -- Claro que no retorno pra São Sebastião eu não ia ficar de conversinha com ela!
--Sabe o que eu acho? Você fica se abrindo demais com sua mãe, que tem ciúmes de você e viaja na maionese, aí depois fica assim: cheia de cismas e neuroses! Haja vista aquela sucessão de micos que pagou na primeira ida pra Costa Azul. -- passou a mão nos cabelos -- Dona Leda é hetero, é de outra geração, ela não vai entender o nosso lado nunca!
--Aí que você se engana, minha querida, mamãe nunca me discriminou por ser lésbica! -- discordou -- Além do mais ela é minha amiguinha de fé, confio nela e sei que só quer o meu bem.
--E implica com toda mulher que venha a se aproximar de você!
--Eu fiquei pensando, sabe? -- cruzou os braços -- Eu mesma digo isso a ela, mas constatei que até hoje mamãe nunca se enganou quanto ao que me disse sobre minhas ex namoradas ou pretendentes. -- pausou brevemente -- Acho que mais uma vez ela tá certa quando diz que Cátia é safada e traidora.
--Ai, Clarice, eu desisto! -- levantou-se contrariada -- Se quer abrir mão de Cátia, isso é problema seu, mas acho que você tá cometendo um erro. -- balançou a cabeça negativamente -- Você cismou mesmo com Zinara e vai passar a vida esperando por ela! E dona Leda ainda simpatiza com a maluca, né? Fato inédito!
--Eu não disse que tô esperando por ela! -- ficou envergonhada -- Além do mais Zinara voltou pra outra lá.
--Se liga, criatura! -- caminhou até a porta -- Como dizia minha vó: -- olhou para a outra -- "toma jeito de gente pra casar com cachorro!” -- deu tchauzinho -- Até! -- foi embora
--Eu hein? -- balançou a cabeça negativamente -- Jeito de gente pra casar com cachorro? Entendi nada!
***
Raed chegava no quarto de cara feia. -- Mas já tá pindurada nessi tar de lepitópio? -- reclamou com a esposa -- Qui diacho! AHHa!
--Oxi, qui tanto recrama! -- Amina protestou -- Tô cunversandu com Aisha no LivrodasFuça!
--Humpf! -- fez um bico e deitou na cama do lado da mulher -- Num sei o qui foi pió: Zinara tê ti dado essi trem ô Najla tê inventadu essa idéia de net... é net, sei lá!
Ignorou o comentário. -- Aisha tá convidando nóis tudo modi armoçá na casa dela pra meadu di marçu. -- comentou -- Dá tempo di si prepará purque marçu inda num chegô!
--E ocê tá pensandu im aceitá essi cunviti? -- perguntou surpreso
--E pur que não, homi? Tem basi isso? -- olhou para ele -- Eu gostu da minina e nóis devi muito favô a ela, qui ocê sabi bem!
--Eu sei, eu também gostu dela, mais Aisha vivi cum ôtra muié!
--Humpf! -- fez um bico -- Isso é pobrema dela! Qui é qui nóis tem cum isso? -- voltou a olhar para o computador -- Nóis vai e ocê num vai dá um pio siqué sobri essi assuntu!
--Ocê anda muito da moderninha pru meu gostu, viu, muié? -- cruzou os braços indignado -- Num dô conta, não!
--Raed, -- olhou para ele -- eu já vivi muita coisa nessa vida pra sabê qui as pessoa são o qui são e cabô-si! Aisha é minha subrinha, gostu dela, devu favô e vô nu armoço sim!
--Issu é poca vergonha! Armoçá im casa di duas muié qui vivi feito fêmia e machu!
--Nóis vai e num si fala mais nissu! -- fez cara feia -- E ocê vai ficá di bico fechado, seja aqui cum Najla ô seja im Gyn cum Aisha! -- voltou a teclar -- E tenho dito!
--Ave Maria... -- suspirou -- O mundo tá pirdidu...
***
Cátia deu três batinhas na porta semi aberta da sala de Clarice. -- Ô de casa, -- brincou -- será que posso entrar? -- sorriu
A paleoceanógrafa interrompeu o trabalho e olhou para a outra. -- Entre, querida. -- respondeu com mansidão
--Eu deixei os dias passarem pra você e eu ficarmos de cabeça fria e... -- sentou-se -- termos tempo pra refletir um pouco. -- falava com humildade
--E eu refleti. -- debruçou-se sobre a mesa -- Ainda não consigo acreditar em você, Cátia. -- foi sincera
--Clarice, por favor! -- empurrou a cadeira para ficar mais próxima -- Acredite em mim, eu não te traí! -- olhava nos olhos da outra -- Juro pra você que não rolou nada demais naquela noite, eu fui pro banheiro e só!
“Será que ela seria capaz de mentir pra mim dessa maneira?” -- estava na dúvida -- Aquilo tudo foi muito estranho, Cátia... E sua reação foi... explosiva demais!
--Claro, eu me senti acuada! -- defendia-se -- Ponha-se no meu lugar! Eu vivo esperando pra ficar com você há tempos e quando finalmente você decide me dar uma chance e a gente tem tudo pra deixar acontecer, uma desconfiança boba surge pra estragar tudo!
--Não foi uma desconfiança boba! -- argumentou -- Mas, enfim, essa discussão não vai dar em nada. -- levantou-se e andou um pouco pela sala -- Eu sou uma mulher que precisa se sentir segura pra se envolver de verdade, Cátia. -- olhava para a loura -- Perdi a confiança em você e não vou recuperá-la em um estalar de dedos!
--É por causa de Zinara, não é? -- levantou-se também -- Você tem interesse nela, não sou idiota e já percebi isso. -- a morena permaneceu calada -- Esqueça essa mulher que vive tão longe de você! -- foi até ela e a segurou pelos ombros -- Eu sou real, eu tô aqui, solteira, apaixonada, toda pra você! -- falava com firmeza -- Por que prefere procurar em outros lugares o que tá aqui do seu lado?
--Não é bem assim... -- afastou-se constrangida -- Eu fiquei desconfiada com você, aquele sumiço, a marca no pescoço, suas reações... Zinara não tem nada a ver com isso! -- olhava pela janela -- Você foi grosseira comigo e isso também me magoou...
--Me perdoe? -- pediu como se fosse criança
--Já perdoei, mas a questão principal aqui não é perdão; -- olhou novamente para Cátia -- mas confiança!
A loura suspirou profundamente e passou a mão nos cabelos. -- Tudo bem, não vou ficar insistindo e te dou mais tempo pra pensar. -- cruzou os braços -- Eu não queria ter terminado o que mal começou... Viajo a serviço daqui a dois dias e só retorno em primeiro de março. No dia 5 eu vou dar uma palestra no auditório nobre da Escola pra falar sobre o leilão do Campo de Balança, que foi marcado pra outubro. Se você aparecer por lá, vou entender que está disposta a me dar uma nova chance.
--Que leilão é esse? -- perguntou interessada -- Campo de Balança, o que você tá falando?
A geofísica achou graça da brusca mudança no foco da conversa mas decidiu responder: -- O Campo de Balança é o maior campo do Prima di Sale de Terra de Santa Cruz, a maior descoberta de nossa indústria petrolífera nacional em 60 anos e uma das maiores reservas do mundo!
--Gente! -- arregalou os olhos
--As estimativas são de 15 bilhões de barris em reservas ou mais! -- falava com propriedade -- Sabe o que isso quer dizer? É como se esse famigerado leilão entregasse uma vida inteira de trabalho da nossa indústria, é como se entregasse Terra de Santa Cruz pros estrangeiros, porque nossas reservas provadas totalizam 15 bilhões de barris! -- pausou brevemente -- E quando digo reservas provadas não estou incluindo tudo que há na camada Prima di Sale!
--Mas como pode isso? -- perguntou revoltada -- Como pode nosso Governo querer fazer uma loucura dessas?
--Tem muita gente que se encanta com o discurso neoliberal, sem se atentar que país algum do mundo tá fazendo isso. Vê se Godwetrust leiloa petróleo? É ruim! As reservas deles tão muito bem guardadas! -- gesticulava
--E enquanto isso eles vão fomentar guerra em outros países pra espetar o canudinho lá e sugar todo petróleo que tenham!
--Só que aqui eles não precisam fomentar guerra! Aqui se faz leilão na cara de pau, entregando o que é nosso por bagatela e sem se disparar um tiro!
--Acredito que nem financeiramente isso valha a pena! -- sentou-se na beirada da mesa
--Não mesmo! O Governo pretende entregar por quinze bilhões de reales uma riqueza estimada em três TRILHÕES de reales. -- balançou a cabeça indignada -- Diga se isso não é absurdo!
--Claro que é! -- concordou prontamente -- Eu vou nessa palestra, sim, com toda certeza! -- garantiu -- Isso independe do que venha a ser de nós.
--Espero você lá, então. -- caminhou até a porta -- E também espero que a gente possa recomeçar... Você é especial pra mim, Clarice. -- sorriu -- Tchau. -- foi embora
--Ah, meu Deus! -- fechou os olhos e respirou fundo -- Cátia, Zinara... É muita confusão na minha cabeça! -- abriu e os olhos e decidiu voltar ao trabalho -- Acho que eu devia partir pro celibato, viu?
(Nota da autora: baseado em http://www.apn.org.br/w3/index.php/reservas-estrategicas/5862-editorial-surgente-dilma-alerta-privatizar-o-pre-sal-e-crime, http://oposicaonf.blogsite.org/ e http://cspconlutas.org.br/2013/09/entidades-nacionais-unificam-calendario-para-barrar-leilao-de-libra/)
***
Março estava em seu primeiro dia, era sexta-feira e Jamila trabalhava no escritório. Havia retornado da viagem de férias na noite anterior. Debruçada sobre um de seus processos teve sua concentração interrompida pelo toque do celular.
“Será Zinara?” -- pensou esperançosa ao olhar para o visor do aparelho -- Ah, número privado... -- desanimou-se -- Alô.
--Doutora Jamila Queiroz Haddad? -- um homem perguntou falando com um forte sotaque estrangeiro
--A própria, quem deseja? -- ficou desconfiada
--A senhora no me conhece mas eu liguei pra dizer que estou impressionada com sua competência no caso Eduardo Hamatsu. -- seu tom era debochado -- Conseguiu proteçon judicial pra ele, entrevista na BNN... Como diz aqui em Terra de Santa Cruz, a senhora jogou no ventilador; só que com classe!
--E presumo que o senhor esteja me ligando pra me ameaçar em virtude dessa minha minha competência que tanto o deixa admirado. -- foi direto ao ponto
Riu brevemente. -- Gosta de gente esperta, inteligenthe! -- silenciou por uns segundos -- Essa burburinha vai passar porque é assim que funciona. A mídia logo vai esquecer dessa história e quando isso acontecer é bom que a senhora tenha pensado melhor.
--Pois do contrário vocês vão matar a ele e a mim. -- concluiu com raiva
--No sei... Talvez ele seja mais interessanthe que a senhora! -- desligou
--Xara! (Merda!) Desgraçado! -- deu um soco na mesa -- Já conseguiram até o número do meu celular... -- sentiu medo -- Acho que vou ter que buscar proteção judicial pra mim também!
***
Aisha e Zinara conversavam pelo telefone.
--Mas é claro que eu reservei a data, macleech (não se preocupe), mulher! -- a morena dizia sorridente -- Dia 15 de março: almoço na casa de Aisha; tá sacramentado, uai!
--Mamii e seus pais já confirmaram. Só falta seus irmãos darem a última palavra se vão ou não.
--Ah, mas aqueles ali são muito complicados... -- deitou-se na cama -- Só que, sei lá... Se bobear eles vão. Pelo menos Ahmed.
--Nagibe e Cid não têm LivrodasFuça e o celular deles só vive sem sinal. Também tão sem telefone em casa, aí já viu.
--Eles tão sem telefone em casa? -- estranhou
--Problema de grana, acho que foi isso.
“Pra variar!” -- pensou
--E aí eu entro em contato com eles via mamii ou tia Amina. Aliás, todo dia a gente conversa. Quer dizer, toda noite!
--Ah, então quer dizer que vocês têm batido altos papos por telefone, né? -- fingia-se enciumada -- E pra mim raramente ligam! Muito bonito! -- brincou
--Que telefone nada, a gente conversa pelo LivrodasFuça!
-- Choo?? (O que??) Como é que é??? -- sentou-se rapidamente
--Tia Amina e mamii criaram perfil, a gente ficou amiga e bate altos papos! -- respondeu animada -- Vou te contar que essa amizade entre as duas tá sendo têúdêô: TU-DÔ!
--Eita, que eu tô besta de ouvir isso! -- estava boquiaberta -- Eu dei um laptop pra maama e ensinei a usar, mas ela só mexe nele mesmo quando eu tô lá.
--Isso no passado, né, honey? Mamii arrumou de colocar internet na roça e agora ninguém segura as duas. -- achava graça -- No LivrodasFuça adotaram os nicks de Siriema Flor e Qamar Celeste. Adivinha quem é quem?
Zinara riu gostosamente e voltou a se deitar. -- Ai, ai, num dou conta, não!
--Agora só falta você deixar de ser caipira e criar um perfil também!
--Ah, não, Aisha, não começa! -- protestou -- Eu não tenho paciência pra esse trem e não tô a fim de deixar minhas fuças expostas pro povo todo ver!
--Então faça como a dupla dinâmica: crie um perfil de mentirinha, boba!
--Perfil de mentirinha... -- achou graça
--É sério, fi! Ou você pensa que eu também tô lá bela e formosa? -- argumentava -- Meu nick é Beryta, em homenagem a Berytus: cidade onde mamii nasceu e meus pais se conheceram. Afinal de contas, eu comecei a preparar as bagagens pra reencarnar depois de um certo concurso de Miss Cedro 68, né, mon cher? -- brincou
--Hum... -- olhou para o telhado -- Talvez um dia pense nisso melhor...
***
Clarice chegava em casa desanimada. Após tomar seu banho e jantar, foi lavar a louça. Enquanto isso, Leda ficou prestando atenção nela.
--O que houve que você chegou em casa assim, hein, menina? -- perguntou desconfiada
--Nada de mais, mamãe. -- respondeu sem se virar
--Coisas que não têm nada de mais não te desanimam. -- argumentou
A professora fechou a torneira e começou a enxugar os pratos. -- Cátia voltou de viagem hoje e me ligou. -- olhava para a louça em suas mãos -- E a gente acabou discutindo.
--Humpf, só podia ser! -- fez cara feia -- E falando nela, cadê minha boneca vudú, hein? -- perguntou intrigada -- Procurei por ela e não achei!
Clarice acabou rindo. -- Ai, mamãe, a senhora não tem jeito mesmo, hein? -- olhou para a idosa -- Eu joguei aquele troço no lixo!
--O que?? -- levantou-se da cadeira -- Como pôde? Aquela boneca era meu maior trunfo contra aquela safada tarada da praia!
Riu mais uma vez enquanto guardava a louça. -- Não quero saber da senhora desejando mal pros outros e se metendo a fazer magia! -- estendeu o pano de prato -- Somos kardecistas e a senhora sabe muito bem no que dá isso!
--Eu não queria fazer mal a ela, queria era proteger você! -- cruzou os braços -- Não sabe como sofro quando essas mulheres malvadas machucam o seu coração!
--Ah, que fofinha! -- foi até a mãe e a beijou na cabeça -- Eu amo muito a senhora, sabia? -- segurou o rosto dela com delicadeza
--Deixe de chamego e venha conversar comigo de mulher pra mulher! -- segurou-a pelo pulso -- Vamos pra sala e você deita no meu colo pra desabafar! -- foram andando
--De mulher pra mulher... -- repetiu achando graça
Chegando na sala, Leda se sentou e colocou uma almofada sobre o colo para que a filha se deitasse. -- Vem aqui. -- ela obedeceu -- Agora pense comigo e vamos avaliar os fatos. -- falava com seriedade -- Era carnaval, pouca vergonha rolando solta e vocês foram badalar num inferninho de beira de praia.
--Que é isso, mamãe? -- perguntou surpresa -- Era um barzinho normal! -- discordou
--Normal, com um monte de gente se pegando e acasalando pelos cantos, com toda certeza! Você que é uma cabeça de vento é que não deve ter reparado!
--Se bobear... -- reconsiderou
--Aí, aquela safada se levanta da mesa com conversa de banheiro e desaparece. -- analisava a situação -- Quando finalmente volta, me surge com aquela cara clássica de rata que roubou queijo!
--É... -- concordou
--Então você olha pra cara de pau dela e vê um ch*polho no pescoço da bicha!
--Ch*polho? -- achou graça
--Mas não questiona pra não brigar em público. -- pausou brevemente -- Vai ser educada assim no inferno, Ave Maria! Puxou ao pai em tudo! Se fosse eu, ah... -- riu brevemente -- a orelha dela ia torcer sem sair sangue!
Riu também. -- Eu hein!
--Chegando no abatedouro da tarada, você joga o assunto e ela começa negando toda mansa, até que fica vendida e se descontrola. Ah, minha filha, tinha que ter metido a mão na cara dela!
--Eu não faço isso, mamãe. -- retrucou
--Te criei muito mal, viu? Educada demais... -- balançava a cabeça pensativa -- Você tem que começar a assistir as lutas do BFP comigo...
--Tô fora! -- riu -- Ai, mamãe... -- suspirou -- Cátia nega que tenha aprontado naquela noite e jura de pé junto que eu vi coisa onde não tinha! Ela falou isso olhando nos meus olhos e cheguei a ficar me sentindo mal com minhas desconfianças...
--Não seja ingênua, menina! Conheci gente que tinha coragem de jurar em nome de defunto, de chorar e de fazer um verdadeiro teatro pra convencer os outros de que suas mentiras eram verdadeiras.
--Eu sei que existe gente assim, mas... Será que Cátia é desse tipo?
--Eu acho que é! Acho não, tenho certeza! -- afirmou convicta
--É porque a senhora não gosta dela... sua opinião não é neutra!
--Você deu muito mole, menina! Tinha que ter pego as mãos dela pra cheirar! E tinha que ter dado uma cafungada discreta na cara da safada também. -- semi cerrou os olhinhos -- Ia desmascarar aquela tarada mentirosa sem chance de vem cá minha nêga!
A professora se sentou e riu gostosamente. -- Ai, mamãe, mas a senhora anda cada vez mais espertinha, viu? -- secou os olhos com as mãos -- Isso não é coisa pra uma velhinha de família sair dizendo por aí! -- brincou
--Eu sou antenada, menina, coisa que você não é! Entende muito de oceano, mas de vida que é bom, nada! -- levantou-se -- Não pode querer fugir do que sente pela estrangeira indo se refugiar nos braços da primeira tarada que aparece, senão vai acontecer sabe o que? -- olhava para a outra -- Vai sofrer pra danar! -- foi andando para o quarto -- Você vai encontrar chifre em cabeça de égua com essa tal de Cátia; na sua já encontrou!
“Acho que ela tem razão...” -- pensou -- Mas, aqui, pra onde a senhora vai? Acabou-se o papo de mulher pra mulher? -- perguntou achando graça
--Agora eu vou ver é minha novela! -- respondeu sem olhar para trás -- Eu sou tipo mestra, lanço o enigma pra você pensar! -- sumiu da visão da outra
--Lança o enigma... -- riu -- E depois Magali me aconselha a não desabafar com ela! -- falava consigo mesma -- Quem mais me divertiria desse jeito? Já até passou a tristeza! -- suspirou -- Mas que ela tem razão, isso ela tem. Não posso fugir de um amor da forma como tentei fazer...
***
Zinara caminhava pela praia. Havia levado mais uma bronca de Cláudia, pois os resultados de seus exames não eram nada animadores. Estava tomando os remédios indicados por ela e sentia-se muito mal em determinadas ocasiões. Mantinha-se firme na recusa em operar ou em fazer o tratamento conjugado com a quimioterapia.
Cláudia, Jamila e Najla eram as únicas pessoas que sabiam a verdade sobre sua saúde, mas a morena se questionava se também deveria contar aos pais que talvez não chegasse viva em 2014. Debatia-se em dúvidas atrozes sem saber o que fazer quanto a isso. A verdade, no entanto, é que ela não sabia o que fazer quanto a quase nada.
Enquanto isso, Najla, Amina e Raed trabalhavam no roçado. O homem capinava um pouco mais distante das mulheres.
--Amina! -- Najla puxava conversa -- Você sabe que Zinara vai no almoço de Aisha, né? -- capinava -- Não acha que vai ser uma excelente oportunidade pra ter uma conversa franca com sua filha? -- propôs -- Afinal de contas ela vem pra cá pra passar dois dias nessa casa...
--Mas e o qui é qui eu vô dizê a ela, uai? -- não entendia onde a cunhada queria chegar
--Diga a ela como se sente! -- parou de trabalhar e olhou para Amina -- Mostre a ela o quanto que você teve de ser mulher pra encarar a barra de criá-la mesmo sem o apoio de Raed! Deixe ela entender porque você permitia que a menina ficasse mais tempo aos cuidados de Zahirah e Farida do que aos seus!
Emocionou-se ao ouvir aquilo e parou de trabalhar também. --Najla... -- olhou para a ex fazendeira -- nada qui eu dissé vai mudá as coisa qui hovi!
--Muda sim e muda muito! -- aproximou-se -- Você precisa dizer a ela que a ama! Precisa fazer com que ela tenha certeza disso, mulher!
--Num sei, não... -- balançou a cabeça sentindo-se confusa -- Num sô boa di proseado e vô acabá metendo os pé pelas mão!
--Tente, pelo menos! -- insistia -- Amina, a gente nunca sabe por quanto tempo as pessoas que amamos ficarão do nosso lado! A gente não sabe é de nada nessa vida! -- falava com emoção -- A gente sempre tem que deixar claro pros nossos amados que eles são amados! A gente não pode deixar que mágoas fiquem se remoendo no coração, que palavras de amor e carinho fiquem presas na garganta e que a vida seja uma coisa morna, se pode ter calor! -- segurou-a pelos ombros -- O tempo não volta atrás e a pior coisa do mundo é desejar ter só mais um pouquinho dele, sabendo que não terá!
--Eu num sei, muié... num sei... -- continuava receosa
--Omr Il-insaan yama maktoub a’a ijbee-know... (A vida de um ser humano está escrita na sua testa...) -- recitava uma conhecida canção -- Mosh bil-iyaam ibyin-aas wala ibtool isnee-know... (Ela não pode ser medida pelos dias e nem mesmo pelos anos passados...) -- olhava fixamente para a outra -- A vida de uma pessoa é tão mais intensa, quanto mais se tenha amado. E quanto mais se tenha deixado esse amor acontecer e ser revelado.
Amina sabia que a cunhada estava certa e ficou pensando em como conseguir coragem para iniciar uma conversa que já deveria ter acontecido há tantos e tantos anos.
Seria capaz?
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Samirao
Em: 07/10/2023
Ela está de volta... onde mesmo hein? Huahuahua
Solitudine
Em: 11/11/2023
Autora da história
Correndo por lá e cá. Equilibrando vários pratinhos de uma vez.
Confia na caipira equilibrista (e palhaça de circo!) rs
Beijos,
Sol
[Faça o login para poder comentar]
Samirao
Em: 23/03/2023
E falta pouco! Huahuahua
Solitudine
Em: 26/03/2023
Autora da história
Graças a Deus!!! kkk
[Faça o login para poder comentar]
Femines666
Em: 15/03/2023
Todas as suas histórias são viciantes? A gente nem lê a gente devora!!!
Resposta do autor:
kkkk Que bom!
Obrigada!
Beijos,
Sol
[Faça o login para poder comentar]
Seyyed
Em: 17/09/2022
Coroas sacaninhas coitada da Zi hehe Não disse que Cátia era cafa? Conheço... que porra de fisioterapeuta! Haha Cararra, esse Magrib acabou comigo muito triste. Entendo a danação da Grazi porque é foda. Coitado desse povo agora vejo até com outros olhos. E a cafa só aprontando... Sacanagem essa perseguição com a Jamila, isso ela não merece. Najla manda sempre muito bem. Torcendo pra ela fazer essa família se entender
Resposta do autor:
As "coroas" estão todas antenadas! kkk
Cátia é danada! Aguarde!
A fisioterapeuta é apenas não convencional, mas resolve! rs
A história no campo de refugiados é mesmo triste e muito difícil. Além de uma grande decepção para quem espera ao menos paz.
Essa família ainda vai te dar muito orgulho! rs
Beijos,
Sol
[Faça o login para poder comentar]
Seyyed
Em: 17/09/2022
Sabe que apesar de gostosa essa Jamila nem me dá tesão ? Não gosto de mulher igual ela. Rindo muito com Leda e o vuduzinho e Najla colocando Wi-Fi na roça hahaha
Resposta do autor:
É porque você pegou birra com a advogada. É normal.
Leda usa de todos os trunfos que possa ter à mão! kkk
E Najla está revolucionando aquela roça; sob todos os aspectos!
Beijos,
Sol
[Faça o login para poder comentar]
Gabi2020
Em: 10/05/2020
Olá Solzinha tudo bem? Feliz dia das mães!! Afinal você é mãe das velhinhas.
Olha a Jamile foi rasteira, fez de tudo , mas felizmente Zinara heróicamente resistiu aos encantos da advogata... Ai ai ... Até quando dura essa resistência hein?
Lembro da massagista... Kkkkkkk... Quase quebrou a Zinara. Claudia foi sensata ao falar de Jamila, muito mimada... Criança birrenta! Hunf...
Sei que já te perguntei isso, mas o que é peitica mesmo?
Dona Leda... Kkkkkkkkkk.... Impossível se irritar com ela.
Agora Clarice e Zinara... Deixam tudo subtendido... Nas entrelinhas... Ai ai ...
"Complô da terceira idade." Kkkkkkk... Bem isso... Zinara só se mete em enrascada, tá louco!
E não é que o vudu de dona Leda deu certo? Kkkkkkk...
Lembro que a Jamila melhora, mas por enquanto... Nojenta e juntou com Cátia piorou!
Caramba Zinara sofreu demais e muito me admira não ter ficado uma pessoa amarga, o que seria justificável por tudo o que ela passou.
Beijos
Resposta do autor:
Gabinha!!!
Acredita que recebi este feliz dia das mães da parte delas? Achei lindinho!! Obrigada pela lembrança e te desejo o mesmo. Você também é mãe dos seus jovens amados!
Não é fácil resistir a uma Jamila, mas a caipira tem tutano! kkkk
Aquela massagista é um mal necessário.
Peitica é briguinha, implicância, aquela birra, sabe?
"Dona Leda... Kkkkkkkkkk.... Impossível se irritar com ela." Não é? kkk
"Lembro que a Jamila melhora, mas por enquanto... Nojenta e juntou com Cátia piorou!" kkkkkk
O sofrimente amargura umas pessoas, mas tudo é uma escolha. Zinara escolheu seguir por outro caminho.
Beijos,
Sol
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
Solitudine Em: 14/06/2024 Autora da história
kkkkkk Calma, querida! Jamila e Cátia também terão seu caminho.
Obrigada por todo seu carinho e atenção!
Beijos,
Sol