Capítulo 29: "Aprender é descobrir o que já se sabe" (Richard Bach)
Capítulo 29
Com tantos acontecimentos, dormir aquela noite foi uma missão quase impossível. Minha cabeça fervilhava numa confusão de pensamentos e sentimentos. Quando a manhã começou a despontar, exaurida pelo cansaço e pela tristeza, adormeci um sono pontilhado de pesadelos.
Quando abri meus olhos, o relógio marcava 10h45. Espreguicei-me longamente, depois fui para o banheiro. Meu banho foi rápido e, enquanto descia as escadas de dois em dois degraus, avistei papai sentado em uma das cadeiras confortáveis à beira da piscina. Encaminhei-me para ele. A mesa ainda estava posta para meu café da manhã.
- Bom dia, papai. - cumprimentei-o com um beijo estalado em seu rosto bem barbeado e magro. - Dormiu bem?
- Como um anjo, filha, como um anjo. - retribuiu meu cumprimento e deixou cair o jornal que lia na cadeira vaga ao seu lado. - E você? Dormiu bem? Pareceu-me bastante cansada ontem à noite...
O olhar de papai não perdia um só movimento meu enquanto eu me servia de um copo de suco.
- É! Tenho trabalhado um bocado ultimamente. - disse-lhe e, sem encará-lo, tentei mudar de assunto. - Lindo dia, não?
- Trabalho é importante, filha... - papai não se deu ao trabalho de responder ao meu comentário sobre o dia. Pelo contrário, parecia decidido a falar sobre outro assunto. - Mas o que vejo em seu olhar não me parece apenas cansaço, - ele também se serviu de suco. - Diga-me, Valentina: essa tristeza em seu olhar tem a ver com minha doença?
Engoli o resto do suco num único gole.
- Acho que sim... - falei.
- Pois eu acho que não devia. Este é o ciclo da vida. - ele me interrompeu depositando seu copo sobre a mesa. - Mas acho que também tem a ver com Marina Cintra...
Gelei. Será que os pais, assim como as mães, também têm sexto sentido?
- Filha, PRECISO tanto que seja feliz e que confie em mim!
Papai disse isso com tanta ênfase e desespero que me senti a pior e maior traidora da face da Terra. Ele não merecia meu comportamento covarde e mesquinho.
- Eu confio, papai, e... - falei com voz presa e desprotegida. - Sim! Amo Marina, e amo muito!
Papai saiu de onde estava e veio sentar-se na cadeira ao lado da minha. Segurou minhas mãos e disse, num tom paternal:
- Minha garotinha!
- Desculpa ter mentindo para você. Márcia não é minha namorada e... - minha voz sumiu.
- E Marina é?
Balancei a cabeça num gesto negativo, incapaz de pronunciar uma única palavra.
Soltando um longo e cansado suspiro, papai virou meu rosto para ele, com toda delicadeza, fazendo meu olhar encontrar o seu, cheio de sabedoria, de carinho e proteção.
- Escute o que vou lhe dizer, Valentina Siqueira Campos. Apesar de se comportar como uma garota mimada e birrenta, a maior parte do tempo você é uma pessoa maravilhosa e tem um coração de ouro. Penso que Márcia seria sua melhor escolha, mas, se quer ganhar o coração de Marina, precisa aprender a arte da paciência e da perseverança. - papai calou-se por breves segundos para me estudar. - Sabe que ela foi e, desconfio, ainda é apaixonada pela mãe de Louise, não?
Balancei a cabeça numa afirmativa. Papai era só mais um a achar aquilo.
- Então, filha, lute com toda sua força e honestidade. Mas nunca se esqueça de você. Não me parece que Marina goste de pessoas sem personalidade. Tem meu apoio e não precisava mentir, nem usar nossa querida Márcia para tentar me fazer feliz...
Senti-me muito envergonhada com o que papai dizia, afinal, mais uma vez tinha usado o amor e a amizade de Márcia em meu próprio benefício. E era papai que me abria os olhos.
- Não faça mais isso, Valentina! Não use os sentimentos das pessoas. Márcia te ama verdadeiramente e é, sem sombra de dúvida, um ser humano fantástico.
Naquele momento papai deixava bem claro sua escolha em minha vida. Mas, como diplomático que era, não me diria isso claramente.
Terminamos de tomar nosso café conversando amenidades e, quando foi para o escritório fazer algumas ligações, voltei para meu quarto e tentei ligar para Márcia.
Seu celular estava na caixa postal e o telefone de sua casa ninguém atendia. Mesmo assim decidi ir até seu apartamento. Chamei um táxi e avisei Amélia que não almoçaria na mansão.
Conhecida de todos os porteiros do prédio de Márcia, não tive dificuldade em subir sem ser anunciada. Toquei a campainha e esperei...
Márcia abriu a porta e afastou-se para que eu entrasse, sem me cumprimentar. Aliás, sem olhar para mim.
- Bom-dia pra você também, senhorita mal-humorada! - brinquei sem muita vontade, mas precisava quebrar o gelo.
Ela me olhou com a maior cara de sono e, sem dizer nada, foi para a cozinha. Fui atrás.
- Já tomou café? - perguntou de costas para mim.
- Já. Com meu pai.
- Ah... - foi tudo o que disse enquanto abria a torneira da pia.
Dei a volta na mesa e fui para perto dela.
- Deixa que eu preparo seu café. - peguei a chaleira de sua mão.
Márcia, ainda muda, afastou-se e foi sentar-se na banqueta alta, do outro lado do balcão.
- Estranho encontrar você ainda na cama... - comentei de costas para ela. - Foi dormir muito tarde?
- Sim. - foi a resposta curta e seca.
Voltei-me para encará-la. Márcia folheava o jornal.
- Desculpa ter te acordado, então.
Nada. Apenas o silêncio...
- Foi pra balada? - era mais uma tentativa de fazê-la falar.
Depois de um silêncio quebrado pelo som de uma folha de jornal sendo virada, escutei:
- Esperava que eu voltasse para casa chorar?
Coloquei a água na cafeteira. Liguei-a. Dosei as medidas do pó e então fui para a banqueta à sua frente. Com delicadeza, abaixei o jornal que nos separava.
- Você pode me dizer o que mudou de ontem para cá?
Márcia fechou a cara de vez, e também o jornal, depositando-o sobre o balcão.
- Desculpe-me. - foi tudo o que disse.
- Entendo que você deva estar ainda com sono, mas...
- Não é isso! - ela escondeu o rosto entre as mãos. Depois me olhou. Em seu olhar vi um cansaço enorme e uma tristeza comovente. - O que você quer de mim realmente, Valentina?
É, a coisa era mais séria do que eu podia imaginar. Dava para contar nos dedos de uma mão quantas vezes Márcia havia me chamado de Valentina assim, tão séria.
- Sabe... - ela voltou a falar. - Às vezes me pergunto como posso te amar tanto. Você é uma pessoa mimada e infantil. Tem o hábito horrível de usar as pessoas e o que elas sentem por você. Nem nossa amizade você respeita, Val...
Tentei abrir a boca, mas ela me impediu.
- Ontem à noite me senti tão usada por você! Por que me chamou para o jantar sabendo que Marina estaria lá? E, pior: vocês passaram a noite inteira se devorando com o olhar.
Márcia tinha uma expressão tão dolorida que cheguei a me odiar por provocar tamanha dor.
- Como você acha que me senti presenciando tudo aquilo? Como você acha que me senti sendo usada pela mulher que eu AMO?
- Má... - tentei interrompê-la.
- Não! Deixe-me falar tudo que está aqui... - e ela tocou sua garganta. - Entalado! - e, tomando fôlego, continuou: - Sim, eu sei que você não sente o mesmo por mim! Estou careca de saber disso, mas nem por isso você tem o direito de me usar tanto, de me humilhar tanto. Chega, Valentina! Chega! Cansei de ser uma válvula de escape para o seu tesão! Cansei de me rastejar aos seus pés! Cansei! Não quero seu dinheiro, não quero sua amizade, não quero a herança de seu pai, não quero...
Então Márcia parou de falar e desatou a chorar.
Minha primeira reação foi tocá-la, mas... travei.
Eu era o motivo de tanta dor, de tanta decepção, de tanto cansaço.
Lágrimas vieram aos meus olhos também, porém, segurei-me. Não era hora de fugir da responsabilidade de ter provocado toda aquela dor derramada naquele choro quase convulsivo. Levantei-me, dei a volta no balcão e abracei minha amiga. A princípio ela tentou me afastar, mas... com todo carinho de minha alma e muita insistência, consegui que ela aceitasse meu abraço.
Assim ficamos até que seus soluços começassem a rarear.
Alguns minutos depois, Márcia ajeitou-se na banqueta e, limpando os olhos, foi se acalmando. Dei a volta no balcão novamente, peguei toalha de papel e entreguei a ela. Peguei duas canecas, a jarra com o café fumegante, o açucareiro e servi os cafés.
- Obrigada. - disse ainda rouca pelo choro. - Me desculpe...
- Psiu! - disse-lhe triste. - Eu é que lhe devo um pedido de desculpa. Como sempre, aliás...
Um silêncio breve se fez.
- Bom... - depositei minha caneca no balcão. - Na verdade, vim para lhe fazer um convite.
- Qual? - Márcia me perguntou depois de tomar todo o café de sua caneca.
- Aceita almoçar comigo?
- Por quê? - quis saber.
- Por quê? - indaguei. - Preciso de um motivo para convidá-la a almoçar comigo?
- Precisa. - ela me olhava, ainda com os olhos úmidos, mas sua voz voltava a ter o mesmo tom seco de antes. - Esqueceu que sua queridinha está na cidade? Ou ela também vai estar presente?
Balancei negativamente a cabeça quase desistindo de falar.
- Márcia, pensei que pudéssemos conversar numa boa, mas vejo que você está bastante sentida comigo. Com razão...
- Não estou sentida com você, Val! - ela me interrompeu com raiva. - Estou com ciúmes! Estou morrendo de ciúmes de você! Será que não percebe nem isso? - sua voz voltou a ficar embargada. Mas, em vez de chorar, saltou da baqueta e afastou-se de mim.
- Não quero almoçar com vocês.
Não ia adiantar continuar insistindo. Conhecia aquela mulher muito mais do que a mim mesma, assim como ela me conhecia. O melhor seria deixar passar o momento, como sempre foi.
- Está bem. - levantei-me derrotada. - Acho melhor eu ir então. Mas, só pra você saber, - disse-lhe apontando o dedo. - Não seria "com vocês", seria "só" eu e você.
Márcia não teve nenhuma reação, senão a de continuar me encarando séria.
- Não quer arriscar nem assim? - tentei pela última vez.
Então vi o olhar de Márcia ganhar um brilho estranho. Ela deu dois passos em minha direção. Senti um calafrio percorrer meu corpo, seu olhar desceu para minha boca e, mais dois passos e, mais calafrio.
Márcia parou tão próxima a mim que eu podia sentir o calor que emanava de seu corpo moreno e sensual, coberto por aquele pijama de short e camiseta, curtíssimo.
Não era só minha pele que reagia a essa aproximação... Meu sex* também.
- Não quero arriscar mais nada com você. - ela respondeu de forma ríspida, sem tirar seus olhos cheios de desejo de minha boca.
Lentamente seus olhos subiam em direção ao meu olhar. Márcia não me tocava, mas a sensação que eu tinha era de que todo o meu corpo estava sendo enlaçado por aquela sedução perigosa e morena. Aquela mulher sabia que mexia comigo. E sabia que mexia muito.
Prisioneira do desejo de me unir àquela boca, num beijo profundo, fui me aproximando de seus lábios... mais e mais, até sentir seus dedos como obstáculos a me conter.
- Também não quero mais que me beije, Valentina. - sua voz não era mais que um sussurro. Um sussurro cortante e frio.
Fim do capítulo
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