Capítulo 28 "As adversidades são como facas que, apesar de sua utilidade, podem nos cortar. Basta que saibamos onde segurá-las, pela lâmina ou pelo cabo!" (Provérbio Chinês)
Capítulo 28
O jantar foi servido em clima de muita descontração e alegria. Conversas, às vezes, cruzadas. Risadas compartilhadas. E olhares, muitos olhares...
A sobremesa foi servida ao gosto de todos que estavam ali: para Louise, que deixou escapar sua adoração por sorvetes, Amélia caprichou uma taça enorme de banana-split; para Márcia e eu: mousse de manga. DIVINA!; para papai, Guto e Marina, um branquíssimo manjar de coco com calda de frutas vermelhas!
Assim que terminamos, fomos para o estúdio de papai - onde ele guardava grande parte de suas adoradas obras de arte - para saborear o cafezinho espetacular de Amélia.
- Marina Cintra! - papai, novamente, adiantou-se chamando a atenção de todos. - Quero dizer que, além do enorme prazer de estar recebendo você e sua "enteada" esta noite em minha casa...
"Enteada?" Papai disse... "enteada?"
Desde quando papai sabia que Marina tinha uma... enteada?
Olhei surpresa para uma Marina completamente à vontade.
- Obrigada, Norberto! - ela agradeceu abertamente erguendo o delicado cálice de licor.
- Sinto-me imensamente agradecido por ser você a melhor negociadora de artes raras do mundo!
O que papai estava querendo dizer com isso? Olhei para Guto que, também, parecia não saber do que ele falava.
- Bom... - o todo-poderoso Norberto voltou a falar e, depois de virar o líquido âmbar do licor de uma só vez, encarou meu irmão. - Doutor Augusto Siqueira Campos Terceiro, preciso que inclua em meu testamento a senhorita Márcia Arantes.
O sorriso de Márcia se fechou e seu rosto ganhou um ar surpreso e assustado. Ela me olhou como se buscasse alguma resposta para aquilo. Fiz um gesto de estar entendo tanto quanto ela sobre a decisão de papai.
Guto, ao contrário de mim, não demonstrou reação alguma. Ele certamente, se não sabia, desconfiava da intenção de papai.
- Deixarei para você, Márcia, minha obra de arte mais rara...
Agora foi a vez de Marina demonstrar surpresa. Mas não havia nenhum sinal de ciúme em seu olhar, quando este encontrou o meu.
Emocionado, o todo-poderoso Norberto Siqueira Campos caminhou até um dos armários, abriu uma gaveta e, pegando um estojo grande, revestido de couro e veludo verde escuro, trouxe para junto de nós. Depositou-o sobre a mesa baixa à nossa frente, abriu-o e nos mostrou seu conteúdo: um colar todo feito em ouro envelhecido. Não sou nada chegada a essas coisas antigas, raras, mas devo confessar que, embora a peça fosse cravejada de pedras de formatos diversos e variados e, muito carregada para o meu gosto, o colar era belíssimo! Realmente belíssimo!
Papai, com toda delicadeza, pegou a joia e a levantou.
- Esta raridade foi um dos primeiros achados preciosos que encomendei à Marina! E, embora pareça uma peça grega, é uma das poucas peças etruscas que ainda existem no mundo.
- Para ser mais exata, esse colar é a única peça que ainda existe no mundo. As joias etruscas eram confeccionadas com o mesmo peso, sempre. Por isso, além de raro, este colar vale uma verdadeira fortuna, visto o peso único em ouro que ele possui. - Marina dissertou experiente e fascinada.
Olhei para Márcia que, boquiaberta, parecia em transe.
- Em troca desse meu gesto, minha querida... - papai voltou a falar, ainda mais emocionado - Peço-lhe apenas que cuide da melhor e maior obra que possuo nesta vida... - ele me olhou com lágrimas nos olhos - Minha filha Valentina!
Mais uma vez eu tinha feito tudo errado. Não era Márcia que eu amava! A dona do meu coração estava exatamente ali. Mas não era Márcia!
Olhei para Marina... Ela desviou seu olhar, magoada.
Olhei para Márcia que parecia querer acreditar que aquilo tudo não passava de um sonho. Guto olhava para nós com um sorriso tranquilo nos lábios e Louise... Bem, ela era a única que mantinha uma expressão serena no rosto juvenil.
- Papai...
- Senhor Norberto...
Eu e Márcia começamos a falar ao mesmo tempo.
- Por favor, Márcia... - pedi que ela se adiantasse.
- Senhor Norberto, - ela recomeçou depois de respirar fundo. - Nem tenho palavras para agradecer! Na verdade, nem sei o que dizer...
- Ora, minha menina, não precisa me agradecer nem me dizer nada. - Papai deu de ombros. - Esta obra é rara e vale um bom dinheiro... - ele olhou para Marina. - Por isso disse há alguns minutos que é ótimo Marina estar entre nós. Ela, mais do que qualquer outra pessoa saberá transformar esta peça num bom...
- Por favor, senhor Norberto! - Márcia exclamou interrompendo-o. - O senhor não está entendendo. Eu agradeço muito, mas não posso aceitar essa... esse... - Márcia estava totalmente constrangida.
- É claro que você pode! O colar é meu e quero deixá-lo a você!
- Márcia, por favor! - Guto se intrometeu. - Papai já estava decidido a fazê-la um de seus herdeiros. Aceite, Márcia, é de coração.
Márcia me olhou, depois olhou para Guto. Depois para papai. Por fim, olhou para Marina.
- Não sei o que dizer... - ela murmurou olhando para o colar disposto sobre a mesa.
- Não tem que dizer nada, já lhe disse. - papai ralhou dando-lhe um tapinha amoroso nas mãos. - Apenas faça minha menina feliz!
O resto da noite transcorreu de maneira tranquila, visto a tensão após o jantar. Quando Marina e Louise se despediram já passava dá uma da manhã. Papai, visivelmente cansado, também se recolheu. E Márcia, apesar da insistência minha e de Guto, não aceitou passar a noite na mansão. Despediu-se sem me encarar. Depois do ocorrido no estúdio de papai, Márcia pareceu se distanciar de mim e, por mais que eu tentasse, não consegui imaginar o motivo daquela repentina frieza.
Assim, logo que ela saiu, corri para o quarto de papai. Precisava muito esclarecer toda aquela situação. Não podia continuar mentindo para ele a respeito do meu namoro com Márcia e mais, pretendia revelar-lhe que estava apaixonada por outra pessoa. Só não sabia se teria coragem de falar que a pessoa em questão era Marina.
No entanto, os remédios que papai tomava eram fortíssimos e, misturado com a forte emoção e agitação daquela noite, ele já estava dormindo.
Cobri-o, beijei-lhe a testa e saí de seu quarto em silêncio.
Caminhei para o quarto de Guto. Dei duas batidinhas na porta e abri.
- Posso entrar? - perguntei colocando a cabeça para dentro do quarto.
Guto, sentado em sua poltrona, tinha um livro grosso nas mãos. Velho hábito dos homens da família.
- Claro maninha. - respondeu tirando os óculos de leitura.
Entrei, sentei-me no meio de sua cama cruzando as pernas.
- Está sem sono? - Guto quis saber.
- Completamente. - suspirei. - Papai me pareceu ótimo esta noite e... - calei-me.
Um pequeno silêncio se fez enquanto Guto me estudava. Depois, ele puxou-me para os seus braços.
- Valzinha, querida, - ele começou. - Vamos, me diz o que está incomodando esse coraçãozinho...
Guto me conhecia como ninguém.
- Esta história de papai fazer de Márcia sua herdeira...
- Não sabia que você ligava tanto para as obras de papai! Muito menos para o dinheiro dele...
- Não é isso, Guto. É só que... que...
- Incomoda você o fato de papai deixar algo para Márcia, só por achar que ela é sua namorada, não é?
- Ela é! Ou melhor, era... - travei. Não podia mais continuar mentindo.
- A quem você quer enganar, Valentina?! Guto afagava meus cabelos. - A mim? Papai? Você? Ou, Marina?
Meu corpo ficou tenso no mesmo instante.
- Marina? Marina? - repeti como uma boba.
- Marina Cintra, sim senhora! - ele exclamou. - E digo mais, se papai desconfiava desse seu namoro com Márcia, esta noite ele teve certeza de que ele não existe.
- Como assim? - perguntei sem entender, já entendendo.
- Ora, Val, você e Marina quase se devoraram na nossa frente essa noite.
- Guto! - exclamei assustada.
- É isso mesmo! E, sabe: tive pena de Márcia essa noite e a certeza absoluta de que ela te ama de verdade. Por muito menos eu teria deixado essa casa assim que Marina chegou.
Não tinha mais como negar. Guto já sabia e, pelo que entendi, papai também. Suspirei cansada e, ao mesmo tempo, aliviada, pois não precisava mais me esconder.
- Não sabia que você sabia que Marina... - fui interrompida.
- Sabia o quê? Que ela é gay? - ele perguntou e respondi com um afirmativo gesto de cabeça. - Ela nos contou quando percebeu a intenção de papai em "patrocinar" nosso namoro!
Menos assustada, afastei-me de Guto e, apoiada na mão direita, estudei-o por alguns segundos.
- Ela contou sobre nós?
Guto também me estudou por alguns segundos antes de responder.
- Não. Mas essa noite papai e eu ficamos bastante desconfiados...
Ele se calou e um breve silêncio pairou ali.
- E vocês já sabiam de Louise? - perguntei.
- Não. Mas, ela nos contou de seu casamento com Cibele D'Algarve.
Deus! Por que Marina não tinha me dito nada a respeito? Por que me escondeu coisas importantes assim? Será que ela não confiava nem um pouquinho em mim?
- Você não gostou de saber que ela já tinha nos contado? - Guto sempre foi muito perspicaz.
- Não! Quero dizer... sim!
Meu irmão sorriu enternecido.
- Não ou sim, Val?
Balancei a cabeça ainda bastante perturbada.
- Não, não! Penso até que foi melhor assim. É só que...
- Você queria que ela tivesse lhe dito, não é?
- É.
Guto tocou minha face.
- Valzinha, olha só: conheço Marina há um bom tempo. Sei que é uma excelente pessoa, uma respeitada profissional e tem um coração de ouro. - ele pareceu tomar fôlego: - Mas não acho que ela seja mulher para você, minha irmã!
Olhei para Guto um tanto assustada.
- Por quê? Ela tem outra? Você sabe de alguma coisa que eu não sei?
- Calma, Val! - ele tratou de me acalmar. - Apesar de haver uma amizade verdadeira entre nós, não sei tanto sobre a vida dessa mulher. Mas...
- Mas? - quis saber curiosa.
- Ela não me parece ser como você era...
- Como eu era? - não entendi.
- Sim, como você era: uma "pegadora"!
Ah, é! Eu era! Até me apaixonar pela primeira vez...
- Então, por que acha que ela não é mulher para mim?
- Marina Cintra é uma pessoa apaixonada pelo trabalho, pelas viagens, pelas amizades e...Por Cibele, minha irmã.
Lógico que tomei um choque quando Guto falou o que eu já desconfiava. Mas não podia aceitar aquilo!
- Cibele está morta, Guto! - disse-lhe incomodada.
- O coração de Marina Cintra também! - Guto disse essa última frase com tanto pesar que, no mesmo instante, lágrimas subiram aos meus olhos. - Sinto muito, Val.
Fim do capítulo
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