Capítulo 7
Quando ela saiu, procurei por dona
Margarida e contei-lhe, ocultando o fato de Lílian ser noiva, o que estava rolando entre nós. Ela nada comentou, apenas me pediu para ter cuidado com a velocidade dos acontecimentos. Disse que era normal que fosse assim, porque eu pulei algumas fases quanto ao assunto sentimentos.
Passamos o sábado em um resort afastado da cidade. O lugar era mesmo lindo. Mas o bichinho da desconfiança me atacava vez por outra e eu voava nos pensamentos.
Caminhávamos pela praia de mãos dadas. Quando nos encontramos bem distantes de qualquer outro ser humano, nos beijamos apaixonadas. Mas ao nos fitarmos intensamente, surgiram os fantasmas naquelas íris douradas...
-- Quando estou com você assim, longe de tudo... Sei exatamente o que quero... Mas só de pensar na segunda-feira... -- apertou-me com desespero. -- Não quero te perder, Guilhermina...
Eu também tinha um fantasma enorme e violento de nome “noivo” para enfrentar. O meu silêncio a sua afirmação a fez me encarar novamente.
-- O que está acontecendo, Gui... Desde ontem você está estranha, como se algo tivesse te incomodando... Não quer me contar?
Fiz com que nos sentássemos num tronco abandonado próximo à beira da água.
-- Fale a verdade, Lílian... Nós só estamos aqui porque seu noivo viajou, não é? Você não pretende largá-lo... Nem arriscar seu emprego na escola pra ficar comigo definitivamente...
Baixou os olhos e ia argumentar quando a interrompi triste.
-- Eu sabia... Mas meu coração não me obedece mais... Se for só isso que tem pra me dar, pelo menos por enquanto, eu vou aceitar... Mas não sei até onde posso suportar, Li... Amo você demais e em mim cresce a cada dia uma força que vai me levar para onde quero... Eu tenho pressa de ser feliz... E quero você comigo, entende?
O âmbar tornara-se cristalino. Faíscas de paixão me atingiam em cheio. Nos atraímos num amasso louco.
-- Tenho vontade de te jogar nessa areia, menina... Mas acho melhor voltarmos pro quarto... Preciso de você dentro de mim... Ai... -- reagiu ao toque de meus dedos por sobre sua calcinha. -- Assim não aguento chegar lá... Guilhermina... aiii... Pare ou não respondo por mim... -- ela já respirava com dificuldade, pois meus dedos já driblavam o tecido e se enfiav*m dentro dela com afinco.
-- Não posso esperar... Vem mais pra cá... Isso... -- nos grudamos no vai e vem frenético de nossos dedos.
Desvairadas, arrancamo-nos gemidos e gritos de prazer que o vento poderoso da brisa marinha tratou de abafar.
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Nunca uma segunda-feira tinha sido tão sofrível. Meus primeiros passos dentro da escola foram seguidos por outros que eu conhecia bem. Desacelerei o andar e a coisinha pequena e loura ia passando por mim, quando a impedi segurando sua mão.
-- Tô com saudades de meu abraço de coala...
Estava mesmo... Era tão simples quando éramos amigas. Aquele aconchego logo de manhã, apesar de minha insociabilidade, me fazia seguir em frente. O corpinho pequerrucho se aninhou ao meu, como sempre fizera durante três longos anos.
-- Me perdoa, Gui...
-- Sou eu quem tem que te pedir perdão, Amanda maluquinha... Vou ser sempre sua amiga...
Ficamos no abraço. Andamos mais um pouco, quando notei a presença de Lílian passando por nós.
-- Bom dia meninas...
Não soube dizer, mas acho que estava chateada com alguma coisa, o noivo, quem sabe.
Amanda me puxou para irmos à sala. Conversamos muito. Ela me falou sobre o dia do beijo e disse que, fazia tempo, tinha vontade de fazer isso. Pela primeira vez a estava ouvindo. Não era mais a amiga fictícia que arranjei para poder atuar melhor. Percebi nos olhos azuis uma meiguice, uma pureza que não tinha visto antes. Me senti mais viva, como se não precisasse mais fazer o papel de figurante... Nem protagonista. O mundo, depois de me entregar ao amor de uma mulher, se tornara real, finalmente.
Na saída da escola, ela me abordou um pouco nervosa.
-- Podemos conversar?
-- Pode falar, professora... -- agi naturalmente, afinal ainda estávamos sob os domínios da escola.
-- Em outro lugar... Eu te espero em frente aquele ponto de ônibus do outro dia... -- foi direto pro automóvel sem aguardar minha resposta.
Quando cheguei ao local, notei seu nervosismo dentro do carro. Assim que me aproximei abriu a porta do carona e arrancou depressa. Dirigia em alta velocidade. Eu não estava entendendo todo aquele desespero. Finalmente parou num lugar pouco movimentado. Encostou a cabeça no volante e eu fiquei atenta, conjeturando toda aquela situação.
-- O que houve? -- perguntei não agüentando seu silêncio.
-- Ele voltou... Ontem à noite... Temos que tomar cuidado, Guilhermina... -- ela me olhou e pude ver lágrimas se desprenderem de seus olhos. --... Está desconfiado... -- voltou a apoiar a cabeça no volante.
Dessa vez, uma mancha roxa logo abaixo de sua orelha não me passou despercebida.
-- Ele te bateu?! -- toquei no ferimento e ela se exasperou com isso.
-- Isso não foi nada perto do que ele pode fazer!
A minha calma diante daquele momento me era tão estranha quanto o fato de ela se subjugar daquele jeito.
-- Já te disse tudo o que tinha que dizer, Lílian... Eu não vou amarrar a minha vida por causa de um canalha que bate em mulheres! Nem por uma mulher que, apesar de ter vinte e oito anos, age como se fosse uma adolescente indefesa! Estou cansada e só tenho dezessete anos! Cansada de uma vida apática, remoendo sofrimentos passados! Já te disse o que quero de você... Basta vir comigo...
-- Não posso... Não é tão simples, Gui...
-- Você já me disse isso... E concordei em aceitar o que você pode me dar, mas não sei até quando... Eu te amo tanto, Lílian... -- segurei o rosto dela com carinho. -- Essa marca no seu pescoço está doendo tanto em mim... Não sabe o que é ter que enfrentar isso de novo... As lembranças ainda estão vivas dentro de mim... Eu... -- não suportei mais e colei meu corpo ao dela, chorando sua dor e a minha juntas.
O bendito celular que ela me deu começou a vibrar. Me afastei para atender sob o curioso olhar da professora.
-- Oi Amanda... Não, não esqueci... Não se preocupe, não vou me atrasar... Tá bom... Um beijo...
Guardei o aparelho e tentei tocar-lhe o rosto, mas fui repudiada.
-- Sua amiguinha está com algum problema? -- ironia pura.
-- Por que pergunta? -- desconheci o tom que ela usou.
-- Hoje pela manhã vi vocês se abraçando e ela parecia chorar...
Se eu não estivesse tão amargurada pela situação, iria rir imediatamente. Ela estava com ciúmes de Amanda.
-- Tivemos um pequeno desentendimento, mas está tudo bem agora. -- se eu contasse os detalhes ela certamente se irritaria. Novamente elevei minha mão para tocar-lhe a face. -- Amo você, Lílian... Ninguém mais me interessa... Quando eu te olho, vejo tudo o que quero e vou conseguir para minha vida... Não me abandone...
Sem controle sobre nós mesmas, fomos levadas pela paixão e nos beijamos ali , absortas dos perigos do mundo que nos rodeava.
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Exatos quarenta e cinco dias, era o prazo para o fim do ano letivo. Naquela manhã, vinha cantarolando uma música que meu pai gostava de ouvir nos finais de semana quando não trabalhava. Pensei no que minha mãe havia dito sobre o sonho dele: Harvard. Mas, agora que tinha me apaixonado por Lílian, a idéia me era absurda. Quem sabe em outra ocasião. Iríamos juntas, depois que eu estivesse com meu futuro garantido. Fazia planos e cantarolava a música antiga até chegar à escola. Em frente ao portão, sem querer, olho pro outro lado da rua e vejo o meu amor estacionando o carro. Logo recordei da noite anterior quando a tive nos braços por breves horas. Um sorriso enorme e uma vontade de tocá-la mais uma vez me empurraram para ela. Ao atravessar a rua, podia sentir seu beijo, seu perfume de rosas, o gosto da pele quente, as palavras de amor e os gritos roucos na hora do orgasmo, mas a vida me pareceu fugir das mãos quando a dor em meu corpo se instalou e me vi jogada ao chão, vítima de um atropelamento.
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-- Não entendo, filha... Sempre te ensinei a olhar para os dois lados da pista... -- ela chorava e segurava minha mão.
Foi essa voz tão conhecida que me fez despertar num quarto de hospital com o braço esquerdo engessado e dores por todo o corpo.
-- Mãe... Não chora... -- falei fraquinho com muita dificuldade.
Ela sobressaltou-se ao me ouvir e chorou mais ainda dando graças a Deus várias vezes, beijando minha testa.
-- Como você está se sentindo, minha filha?
Poderia dizer para minha mãe que me sentia como se tivesse sido atropelada por um carro, mas a preocupação dela, a dor que via em seus olhos, me impediu de brincar no momento.
-- Dores pelo corpo todo, mãe... e meu braço... Tá doendo um bocado...
Ela pegou o aparelho de interfone e pediu à enfermeira que avisasse a doutora e trouxesse analgésico.
-- Mãe... Há quanto tempo estou aqui?
-- Dois dias, querida...
-- Lílian... Ela veio... Me ver?
Minha mãe me olhou de maneira esquisita antes de responder.
-- Não, minha filha... Mas foi ela quem te socorreu... E sua amiga da escola... Amanda... Ela passou todo o tempo de seu lado enquanto eu resolvia as coisas... Ela me parece uma menina muito boa... Muito bonita também...
Quando ia questionar a afirmação uma enfermeira e a médica entram no quarto.
-- Então, moça? Cansou de ficar dormindo? -- dizia enquanto verificava minha pulsação e utilizava o estetoscópio em meu tórax. -- Sente náusea... Tontura... Dor de cabeça? -- a todas as perguntas, respondi negativamente. -- Siga meu dedo com o olhar... -- passeou o dedo diante de meus olhos. -- Sente alguma coisa? -- respondi da mesma forma que antes. -- Bom... Sei que sua cabeça é dura como o resto do corpo... Teve muita sorte, garota... Um braço quebrado, nesse caso, é nascer de novo... Se não houver nenhuma alteração de seu quadro até a tarde, eu te libero. Dona Margarida, se ocorrer qualquer complicação, o que não acredito, pode avisar na portaria... Eles têm meu telefone... Até nunca mais, menina...
Após tomar a medicação e nos encontrarmos sós novamente, indaguei a minha mãe sobre o acidente.
-- O que aconteceu? Como fui atropelada, mãe?
Ela sentou-se na cadeira perto de mim.
-- Algumas testemunhas disseram que um carro avançou em alta velocidade na contramão.
Fiquei analisando antes de falar.
-- Mas... Naquela rua... É a rua de trás da escola mãe... Se fosse na frente, onde o trânsito é mais complicado eu entenderia... Aquela rua vive às moscas... e tenho certeza que olhei os dois lados... É mecânico... Desde os nove anos faço isso...
-- Eu não sei, minha filha... Não sei mesmo... Só sei que é um milagre você estar viva...
A porta se abriu outra vez e meu coração foi a pique, imaginando ser Lílian.
-- Guiii!! Você acordou... -- entrou efusiva.
Amanda apareceu com um ramalhete de flores e uma cesta de frutas. Tinha no rosto pequeno e redondo, marcas de cansaço e noite mal dormida. Me beijou na testa.
-- Obrigada por tudo, Amanda maluquinha... -- fiquei segurando a mão da garota.
Minha mãe raspou a garganta e aproveitou que a menina estava presente para comer alguma coisa e resolver outras sobre minha estadia no hospital.
-- Matando aula, coala? -- zombei do fato dela estar ali àquela hora.
-- Não ia conseguir me concentrar... Que susto, viu? Quase morro de preocupação... Só não fiquei pior que a professora Lílian... Tiveram que sedar ela depois que te trouxe pro hospital... Foi ela quem te socorreu... Acho que ficou traumatizada por ter visto o acidente.
Se ela soubesse da missa um terço... Meus olhos se fecharam imaginando o que meu amor tinha passado naquela hora.
-- Tá sentindo alguma coisa, Gui? Quer que eu chame a enfermeira?
Olhei para aquele pedacinho de gente tão amável e tão linda. Um pensamento egoísta foi se formando sem que eu notasse. Por que não me apaixonei por ela? Seria tão mais fácil... Sei que ela me seguiria aonde eu fosse, sem pestanejar... Era livre para escolher.
-- Você é uma pessoa maravilhosa, Amanda... Tenho muita sorte de te ter como amiga... -- acariciei-lhe a face rubra por minhas palavras.
-- Fica boa logo, viu? Temos que terminar aquele bendito trabalho de geografia... -- deu um sorriso triste.
Como previsto pela médica, tive alta à tarde. Fora o braço quebrado e alguns arranhões eu estava inteira. Confesso que o corpo ainda parecia ter sido colocado num moedor de carne, mas nada que me impedisse de me movimentar normalmente. Tudo o que eu queria era ver Lílian.
-- Acho que amanhã já posso ir pra escola, mãe...
-- Nem pensar, mocinha!! Só volta pra escola semana que vem!
-- Mas, mãe! É final de ano letivo! Quer que eu leve pau, é?!
Ela parou o que estava fazendo na cozinha e veio me olhar na sala onde eu descansava deitada no sofá e assistindo TV.
-- Sei muito bem o que você quer fazer na escola, Guilhermina! -- sentou-se perto de mim e continuou. -- Minha filha... Você sabe mais do que ninguém que eu não gosto de me meter na sua vida, mas...
-- Mãe... Eu amo Lílian...
-- Não sou eu quem vai te dizer o que fazer quanto a isso! Mas essa mulher tem a vida complicada... Um noivo anormal... É sua professora... Tenho medo que... Que sobre pra você, minha filha... Que sofra mais do que já está sofrendo... -- ficou me fazendo dengo, deixando que eu recostasse em seu colo.
Acho que cochilei, pois quando abri os olhos, encontrei um azul profundo me encarando. Os cachos loiros estavam mais loiros do que costumava ser.
-- Amanda maluquinha... Que tá fazendo aqui?
Ela ficou retirando fios de cabelo perdidos em meu rosto e me olhando com adoração. Ficou assim durante muito tempo até que o brilho no olhar foi invadido por lágrimas serenas.
-- Não sei o que seria de mim se você... Se você... -- não conseguiu terminar a frase.
Devagar e com cuidado para não me machucar, deitou o corpinho sobre o meu. Como seria fácil amá-la. Mas meu coração só batia por uma pessoa. Teimoso, apaixonado, obstinado e destemido... Assim era meu coração. Em meio a esses pensamentos, Amanda se ergueu e ficou me olhando observadora.
-- A professora Lílian pediu licença de uma semana... Acho que ficou muito mal mesmo com seu acidente...
A menina ficou estudando meu semblante atentamente após me dar essa notícia.
-- Logo no final do ano? -- tentei disfarçar com uma reclamação.
-- É... Também pensei nisso... Disseram que o noivo dela foi lá para falar com Goretão...
Levantei-me exasperada, andando de um lado para outro. Amanda se assustou com o rompante.
-- O que foi, Gui? Tá sentindo alguma coisa... Vou chamar sua mãe...
Segurei-a pelo braço, antes que ela fosse procurar mamãe.
-- Não é nada, Coala... -- tentei me acalmar para que ela não percebesse meu nervosismo diante da notícia. -- Vamos terminar o trabalho de geografia?
Subimos para meu quarto e eu fingi o tempo todo estar ligada nos estudos.
Amanda se despediu no fim da tarde e, apesar de minhas voadas de vez em quando, conseguimos terminar a tarefa. Agora todos os meus sentidos estavam voltados para a mulher de olhos dourados que me ensinara o amor de maneira tão suave e tão intensa que nem tive tempo para pensar em como as coisas chegaram a este ponto. Eu ali, arrebentada, e ela longe com aquele canalha na cola. Peguei o celular, decidida, mas logo após, lembrei-me de nosso pacto. Tínhamo-nos prometido que eu evitaria as ligações... Quando ela pudesse ligaria.
Eu estava com as mãos atadas, uma pressão dolorida no peito. Podia sentir que estava sofrendo... Que queria, mas não podia me ver, ou falar. Meus olhos cheios d’água me fariam romper num choro desesperado a qualquer momento quando o celular vibra em sinal de mensagem. Minhas mãos trêmulas quase não conseguem abrir o texto.
“Estou viajando. Não me ligue, nem me procure.”
Esfreguei a vista pra saber se estava enganada com o que lia.
-- Não... Não faz isso comigo, Li... Não faz isso…
Fui me deixando cair no chão com uma dor imensa, e essa dor eu só senti uma vez... Há oito anos.
Fim do capítulo
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patty-321
Em: 02/08/2017
Tadinhas. Complicado demais. E o q mais acontece, mulheres agredidas entram nessa roda viva e não conseguem denunciar o .agressor, vivem amedrontadas e isso alimenta ainda mais a agressividade do desgraçado. E a justiça não ajuda, oh difículdade
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