Capítulo 4
Cheguei muito mal em casa. Ainda bem que mamãe resolveu sair para visitar uma amiga e não poderia ver em meus olhos minha frustração sobre a imagem equivocada que havia criado de minha própria professora. Ela era igual a todo mundo. Tinha a mente pervertida! Achei um exagero chamá-la de pervertida, mas era uma pessoa com certa malícia. Ela me chamou para uma conversa e não falou absolutamente nada a não ser aquela estupidez de eu me fazer de inocente. Que culpa eu tinha de não ter as mesmas “qualidades” de uma adolescente comum? Mas ela não sabe nada de minha vida. Não sabe que preferi uma espécie de reclusão social, uma que não me taxasse de doente, mas me preservasse de mais dor. De repente notei que tinha a deixado falando sozinha pela segunda vez sem ter lhe dado tempo de falar sobre o que queria me dizer. Devia estar me achando uma louca de carteirinha por agir de forma tão intempestiva. Iria procurá-la amanhã na escola. Pedir desculpas e pagar o suco que tomei na lanchonete. Veio-me então a imagem da garçonete me entregando aquele folheto. Corri até a mochila e encontrei o bendito. Rasguei-o em mil pedacinhos e joguei no lixo do banheiro. Pronto. Uma mulher me querendo e logo na frente de Lílian. Por que estava tão preocupada com o que ela achava ou não?! Que se danasse!
Jantei com minha mãe, ouvindo-a falar da amiga que estava doente, depois ela foi assistir televisão. Subi para ler um pouco, mas não consegui me concentrar. Na minha cabeça só existia um olhar. Um sorriso. Espremi os olhos como se os pensamentos pudessem ser massacrados com o ato. Já ia me trocar para dormir quando ouço o telefone. A extensão em meu quarto toca.
-- É pra você minha filha, disse que é sua professora. -- desligou e ouvi a voz soar meio insegura.
-- Guilhermina? Te acordei? -- a voz estava baixa, meio que sufocada.
-- Não. -- não consegui falar mais.
-- Olha... Não sei o que deu em mim hoje na lanchonete. Minha intenção era falar sobre a peça e saber o motivo de sua recusa em participar...
-- Não se preocupe, professora.
-- Por favor, me chame de Lílian, sim? Aqui fora eu sou apenas alguém que simpatizou com você. Que te acha especial. Que quer te ajudar de alguma maneira. Não leve a mal minha reação de hoje é que é difícil mesmo acreditar que você é tão... Tão...
-- Imatura? - quis por um pouco de sarcasmo na voz.
-- Não... Tão doce... Tão simples e tão... -- ouvi um suspiro. -- Inteligente.
Percebi uma mudança drástica na voz.
-- Pretendia pedir desculpas amanhã. Te deixei falando sozinha e nem paguei o suco. -- um risinho baixo se fez ouvir.
Podia ver os dentes brancos e certinhos como em propaganda de creme dental, só faltavam as estrelinhas do brilho.
-- Está tudo bem. Agora vou ter que desligar. -- ouvi uma voz masculina nitidamente a chamando. -- Até amanhã.
-- Até.
Segundo a regra dos contos de professores e alunas, essa era a hora em que a adolescente se descobre inteiramente atraída pelo professor e este já deixa escapar os indícios de que também está interessado. Meus olhos se encheram d’água ao lembrar o próximo sintoma: sofrimento por não poder ser.
Sete horas da manhã e eu já estava na escola. Cedo demais. Mas eu não era a única. O carro luxuoso estava estacionado a alguns metros do portão. Enquanto eu caminhava, pude ver Lílian e um homem discutindo visivelmente. Dei mais alguns passos me fazendo notar. O homem parou de berrar, passando a mão pelo cabelo em gesto nervoso, disse mais alguma coisa e entrou no carro manobrando para a saída.
Um pouco mais próxima a ela, deu para ver os olhos úmidos e a feição contrariada.
-- Bom dia, professora. -- pela primeira vez dei-lhe meu melhor sorriso. Um que teria de tirar aquele vinco do mal de seu rosto adorado. Precisava lhe fazer sorrir imprescindivelmente.
Adorado? Eu estava perdida. Perdidamente apaixonada pela professora e nem sabia o que era isso, nem sabia que deixava colisões emocionais ultrapassarem os limites do bom senso. Em apenas alguns dias meu coração fez o que em dezessete anos, eu nem sonhava: deixou alguém entrar e bagunçar.
-- Bom dia, Guilhermina. Vejo que está muito bem. - um esboço de sorriso nascia ali, naquele rosto lindo.
-- Por que não haveria de estar? O céu está azul, o sol maravilhoso, eu estou respirando e não pago impostos. Quer mais felicidade neste mundo?
Ah, eu tiraria aquele restinho de tristeza dos olhos dela com lágrimas de riso.
-- Muito engraçadinha! -- apoiou-se em meu braço por um momento em que ria com vontade. Bingo!!
-- Foi o que a mulher do palhaço disse pra ele! -- eu retruquei lhe tirando mais uma risada gostosa.
-- Quer parar?!
De repente eu calei. Fitei o âmbar daqueles rios que me levavam a lugares mágicos e pronunciei bem devagar.
-- Bem melhor assim, professora. É assim que quero vê-la todos os dias, sorrindo.
-- Guiiii!!!
A maluquinha da Amanda apareceu me dando um daqueles abraços coala de sempre fazendo com que ela se afastasse sem se despedir. Nem deu para perceber a reação dela as minhas palavras tão afoitas. Seguimos caminhos opostos: eu para a sala de aula, ela para o prédio da administração.
Pensar em Lílian me fez esquecer um pouco a dor. Era um milagre eu não lembrar a tragédia que foi minha infância. Um pai alcoólatra, uma mãe adúltera. E no fim... Por que tinha que recordar isso agora? Lílian se instalara em mim, eu poderia morrer pensando nela. Não. Era apenas uma ilusão. A mulher que vi hoje pela manhã discutindo com o namorado, ou o noivo, ou o marido, sei lá, não levaria a sério as emoções sem controle de uma menina que nem celular tinha. Voltei a lembrar dos contos e suas regras, tão somente interessada na última e mais poderosa: o amor sempre vencia. AMOR... O que eu sabia dele a não ser pelos meus pais adotivos? O AMOR que conhecia antes deles era o de um pai violento que me batia quase todos os dias, e uma mãe que se escondia debaixo de uma obediência cega, mas com uma vida dupla cheia de amantes. O que sobrava para mim?
-- O intervalo já começou. Gui?
Assustei-me com o toque de Amanda no meu braço, Luiz estava com ela.
-- Nega, tu estás com problema, filha. Anda no mundo da lua desde que ganhou essa bendita bolsa, nem liga mais pra gente, magoei! -- fez aquele gesto afetado dele e, diferente de outras vezes, desatei a sorrir.
-- Viche! A menina endoidou!! Chamem os homens de brancooo!!
E, a cada pinta que ele dava, eu ria mais e mais, até quase perder o fôlego. Amanda ria mais comigo que com ele e, de repente, os três estávamos enredados em gargalhadas e palhaçadas afins.
O dia transcorreu sem mais emoções do que aquelas.
Mais duas semanas se passaram. Os encontros com Lílian, pelo menos os individuais, rarearam. Nas aulas não me dirigia à palavra se não fosse necessário. Então faltou, pela primeira vez, as duas aulas de quinta-feira. Aquilo me tirou do sério. Não que eu fosse atrevida como as personagens dos contos. Eu não me disporia a ir a casa dela, por exemplo. Essa era uma das regras: a aluna sempre entra na vida do professor no momento certo. Um telefonema, talvez, fosse a coisa certa a fazer. \naquele dia queria ter perfil nas redes sociais, procurar por ela, saber de alguma coisa, mas desisti, não ia mudar minha rotina por causa dela, não ia mesmo. Isso era o que eu pensava.
Já era noite e eu tinha decidido e desistido umas quinhentas vezes de telefonar e de criar um perfil em todas as redes sociais existentes. Peguei o aparelho e disquei o número do fixo. Chamou várias vezes e, achando que não adiantaria, pensei em desligar, quando ouvi uma voz de macho, irritada, atender.
-- Quem está falando?!
Desliguei rapidamente com o coração na mão. Que mal educado! Isso era jeito de atender os outros?! Mas pensei nela novamente e liguei, agora para o celular. Finalmente, ouvi a voz suave atender como se deve.
-- Guilhermina... -- estava chorando? -- Guilhermina, me desculpe, mas não posso falar agora. Falamos amanhã na escola, boa noite.
Desligou na minha cara. Tentei refazer a ligação sem sucesso. Talvez tenha desligado o celular. Senti uma angústia me invadir. Angústia que só senti quando. Meu Deus! Não podia ser! Eu já havia sentido aquilo antes, e não gostaria de passar por isso de novo. O passado veio com força para me lembrar de quem eu era e do que mais me machucava na vida. Demorei uma eternidade para dormir e, quando o fiz, visitei todos os fantasmas possíveis.
Acordei mais cedo que o normal e esperei dar a hora. Me aprontei para a escola. Não tomei café sob protestos infindáveis de minha mãe que enfiav* o lanche na minha mochila para que eu não esquecesse e eu fatalmente o esqueceria. A única coisa que queria era vê-la. O aperto no peito não passava desde que ela desligou o telefone na noite passada. Fui voando pelo caminho e o que vi foi um tormento. Fora do colégio, o marmanjo sacudia “minha Lílian” pelos ombros, vociferando como um cachorro louco e, da mesma maneira louca, avancei para ele.
-- Larga ela, seu animal!! -- empurrei-o com toda minha força pra longe dela.
-- Guilhermina, não!! -- ela tentou me deter, mas minha raiva do cretino era maior.
-- Essa menina tá maluca?!! -- ele gritou enquanto se aproximava mais uma vez.
-- Guilhermina, para!! -- ela conseguiu me virar para ela. -- Isso é entre eu e ele, você não tem que se meter!!
Aquelas palavras buzinaram no meu ouvido como sirenes enlouquecidas e meu semblante se endureceu na hora.
-- Claro... Claro... -- eu balançava a cabeça negativamente não acreditando naquilo. -- É como diz o maldito ditado: “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. -- sorri débil. -- Foi por isso que meu pai enfiou uma maldita faca dez vezes no peito de minha mãe!!! Porque ninguém quis meter a maldita colher!!!
Desvencilhei-me dela e corri pra casa. Nada de aula hoje. Eu só queria morrer!
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
cmcousa
Em: 12/07/2017
Endless,
Obrigada por postar esse romance. Eu o amo e já li várias e várias vezes.
Há tanta dor e amor que chega a rasgar a alma.
Uma lembrança aos humanos que mesmo com todas as vitórias e reconhecimento, sem amor é impossível viver ou ser verdadeiramente feliz.
Uma carta ao coração com destino à alma, apenas pra lembrar: NÃO DESISTA pois sim, o AMOR EXISTE.
Resposta do autor:
Isso é o que se pode passar para quem escrevo, cmcousa: amor acima de tudo. Apesar de todas as circunstâncias contrárias, é muito bom encontrar abrigo neste sentimento nobre, muitas vezes esquecido em nome de pequenas coisas. Mas fico feliz que tenha gostado. Confesso que foi uma atitude de coragem minha em nome de uma tentativa de sair do bloqueio literário, refazendo algumas situações.
Um abraço e boa sorte!
[Faça o login para poder comentar]
patty-321
Em: 12/07/2017
Violência contra a mulher, infelizmente no.mundo real isso é muito comum. Só assistir o cidade alerta. Triste. A Gui e produto desse meio. Tadinha. E agora parece q a professora está passando por isso tb. Carma?
Resposta do autor:
É isso, cara Patty, apesar de muitos falarem em mimimi feminino, é o que vemos todos os dias acontecer e nem precisa assistir TV. Mas nossa mocinha sabe lidar com isso da maneira dela. Obrigada por continuar lendo.
Um abraço e boa sorte.
[Faça o login para poder comentar]
NovaAqui
Em: 12/07/2017
Meu Deus! Que dor dessa menina! Imagino o sofrimento vendo isso!
É Gui, você está perdida, perdidamente apaixonada pela professora.
E parecem-me que a professora também está apaixonada.
Vamos ver como elas vão se livrar do namorado/noivo/marido
Abraços fraternos procê!
Resposta do autor:
Recebendo os abraços com alegria por estar proporcionando uma boa leitura. Guilhermina, apesar do sofrimento, tem uma maneira bem peculiar de lidar com ele.
Um abraço e boa sorte.
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]