Capítulo 2
A aula de matemática nunca fora tão penosa para mim, que as adorava. Laércio, o professor, teve que me chamar à atenção pela primeira vez.
-- Onde você está, pequena Guilhermina?!
Saí do transe e dei um riso conformado. Ele sabia que o resultado da bolsa tinha me deixado um pouco aérea, mas não sabia o significado daquele entorpecimento. E me chamar de pequena era porque tinha uns quinze centímetros a mais que eu.
-- Desculpa, Laércio... Já voltei...
As risadinhas maldosas dos outros alunos não me passaram despercebidas. Qualquer coisa que me rebaixasse diante deles era um banquete.
Minhas costas doíam. Minha cabeça doía. Tudo doía. Laércio encerrou a aula enquanto estabanados se digladiavam para sair porta a fora. Eu fiquei ainda arrumando meus papéis. Bem devagar como se nem ligasse que já poderia ir para casa.
-- Pequena? -- o tom carinhoso na voz me fez pensar no quanto eu tava esquisita. -- Sei que é uma barra dar de cara com algo tão importante, principalmente na sua idade. Foi por isso que insisti que fizesse a inscrição... Teu talento não pode se perder, menina!
Veio até mim fazendo com que eu o encarasse por causa da altura.
-- Vai encarar essa, pequena... É o teu destino...
Foi embora, jogando aquelas palavras para mim como se eu não tivesse mais no que pensar. Por fim, terminei de me arrumar para sair.
Quando passei pela porta, Lílian estava lá, lendo o aviso. Achei que não tinha me visto, e passei sem falar. Não dei mais que alguns passos.
-- Guilhermina!
Que poder tinha aquela voz! Isso não estava no roteiro... Será que, pela primeira vez, eu iria errar o texto?
Não queria, mas me voltei ao chamado. Ela se aproximou com aquele olhar que entontecia.
-- Está com pressa? -- o sorriso lindo acompanhava a pergunta.
-- Não... -- me fiz de estátua diante dela.
-- Não pude deixar de ser curiosa... Estava lendo o aviso. Não entendi sua dúvida... Qualquer um nem piscaria em escolher Harvard...
A estática não me abandonou. Deveria lhe responder com um simples “eu não sou qualquer um” malcriado e sair correndo dali. O fato é que ela mesma percebeu que tinha ultrapassado um grande limite.
-- Me desculpe, acho que fui invasiva demais... -- e vê-la em maus lençóis por causa de minha esquisitice acendeu minha boa educação.
-- Não se desculpe... Na verdade eu não queria a bolsa, mas me inscrevi para deixar os professores satisfeitos.
-- Entendo. Está com medo de ficar só... É muito nova...
-- Gostaria muito de lhe dizer que é exatamente isso... Seria mais fácil enfrentar, mas não é.
Não sei o que ela viu em meus olhos, talvez a tristeza normal ou a dor que, às vezes, escapava deles sem eu perceber. O surpreendente é que ela tocou minha mão e falou cheia de ternura.
-- Se quiser conversar, vai encontrar em mim uma ótima ouvinte...
Olhei para a mão que segurava a minha numa intimidade que, raramente oferecia apenas a minha mãe e os dois doidos que chamo de amigos. Devia recusar o toque e me desvencilhar antes que estivesse irremediavelmente perdida, mas me permiti ficar ali, alguns segundos apenas, pois ela interrompeu o contato, pegando o celular na bolsa.
-- Grave meu número de celular no seu...
Fiquei hirta na hora diante do pedido. Eu abominava celulares. Eu abominava qualquer tipo de dispositivo que me fizesse ter a obrigação de falar com outrem, apesar de ter telefone fixo por conta de minha mãe. Não pensam que sou totalmente avessa às tecnologias, muito pelo contrário. Possuo um notebook até avançado e um kindle onde arquivo meus livros (pelo menos os que têm versão e-book). Possuo e-mail e acesso a internet para minhas pesquisas e estudos, mas nada de redes sociais.
-- Eu não tenho celular... -- um miadinho constrangido. -- Mas tenho telefone fixo em casa... -- emendei.
-- Não tem celular? Na sua idade? -- o riso gostoso me contagiou absurdamente.
Ficamos rindo um pouco.
-- Acho altamente inconveniente. Também abomino relógios. O único que realmente uso é o biológico.
-- Você é uma pessoa interessante, Guilhermina Soares, mesmo tendo tão pouca idade...
A constatação voltou a me fazer pensar na vida que levei até agora. Lembranças vivas me corroendo a cada segundo. O toque voltou a minha mão.
-- Preciso ir. Minha mãe fica preocupada quando atraso. -- dessa vez fugi.
-- Vai sem anotar meu número? -- o sorriso divertido me deixava completamente à vontade, como não sentia com ninguém mais. E me vinha aquelas eternas dúvidas sobre meus sentimentos e emoções dos quais nada emtendia.
Apanhei uma caderneta dentro da mochila e anotei o número. Despedimos-nos.
A casa vazia me deixava mais apreensiva. Precisava falar logo com minha mãe. Não me era concebível imaginar que a deixaria sozinha depois da morte de meu pai. Já fazia dois anos, mas sabia que, para ela, o tempo não aplacaria aquela dor. Nem para mim. A falta que a presença amigável e cúmplice fazia era insubstituível. Conversávamos muito sobre tudo. Ele me incentivou a ler jornais... A assistir noticiários... Explicava-me com paciência inimaginável a como ler os índices econômicos -- era seu trabalho. Saudades de seu olhar amoroso de suas tiradas inteligentes e de sua sagacidade para resolver problemas. Das conversas longas sobre o mundo, das partidas de xadrez, do abraço antes de ir dormir. Suspirei e subi para o quarto me jogando na cama depois de fazer o mesmo com a mochila no chão.
Ouvi a porta se abrindo lá embaixo. Nem precisava saber para ver a minha querida ir direto para a cozinha esquentar nosso almoço e eu só descia quando o cheiro saboroso entrava por minhas narinas avisando da fome. Tirei a roupa do dia e tomei um banho gostoso. Nas escadas podia ouvir a voz baixinha cantando uma antiga música. Música que ela e meu pai cantarolavam juntos antes das refeições em um momento só deles onde nada e ninguém era capaz de quebrar a harmonia e eu admirava demais isso. Foi só me ver para que o sorriso mais adorado do mundo me encontrasse.
-- Oi, amor de minha vida... -- e o segundo abraço e beijo carinhoso do dia eram recebidos por mim como a dádiva mais divina. E agradecia ao Deus que ela me ensinou a conhecer por ter esse carinho em minha vida.
-- Oi, mãe! Qual a novidade de hoje? A Maria tem perturbado como sempre?
Ela colocou um sorriso jocoso no rosto antes de comentar divertida.
-- Acho que ela não vai dar mais problemas, minha filha. Despediu-se hoje dizendo que ia se casar e morar no Tocantins. -- vi uma luz de felicidade naqueles olhos. -- E você Guilhermina Soares, que tem de novo pra me contar?
Punha uma colher de arroz por sobre o feijão em meu prato. E esperou a resposta sentada, enchendo meu copo de suco de mangaba, meu preferido. Fiquei lhe mirando por um longo tempo enquanto ela se servia me perguntando de onde ela tirava tanta força para viver assim nessa felicidade inesgotável que dividia comigo.
Ainda me servi de um bife grande de carne bovina... Uma porção de batatas douradas na margarina, para depois lhe soltar a resposta.
-- Ganhei a bolsa para os Estados Unidos. -- dei uma boa garfada na comida, esperando o retorno.
Vi lágrimas naqueles olhos se transformando numa alegria incomensurável. Ela levantou-se e correu para me abraçar com uma vontade ferrenha.
-- Era o sonho de seu pai, minha filha! Como ele deve estar feliz com esta notícia! Ele sabia o tempo todo que você era especial! - Sim, ela nunca se referia a ele no passado.
Eu não sabia daquilo. Não sabia que meu pai tinha expectativas sobre mim. Tinha a impressão de que gostava que eu me interessasse pelos estudos. Que pai não as teria? Mas imaginar que ele queria que eu fosse para os Estados Unidos...
-- Mãe? - a fitei com sobrancelhas juntas em interrogação.
-- Ele sonhou um dia com essa vaga, Guilhermina...-- declarou enquanto me olhava e acariciava o rosto, ajeitando meus cabelos por trás das orelhas, - Sempre foi estudioso, mas não tinha condições para bancar as despesas, nem conseguiu sequer se inscrever para tanto. Tinha esperanças em você, minha filha...
-- Mas, mãe... - aquela notícia estava me abalando deveras, era responsabilidade demais assumir essa vontade de meu pai a quem tanto devia.
-- Guilhermina, antes de seu pai morrer, ele transferiu setenta por cento de suas economias de uma vida toda para seu nome para quando você precisasse usar. Lembra quando comprei seu computador e aquele outro “negócio” lá e disse que fiz suaves prestações? Pois comprei à vista com parte desse dinheiro. Eu sabia que ele sonhava com uma bolsa no exterior. Falou muito da Business School em Harvard.
Meu coração transformou-se numa uva passa. Havia meu pai me preparado para tanto? Escondia-me como uma preciosidade a ser desabrochada no tempo certo? Vivia no encalço de eu me afeiçoar ao seu trabalho querendo que eu o seguisse sem pressões ou amarras? Meu pai me amou assim, sem que eu o percebesse?
Tive ainda mais raiva de meus olhos azuis, dos cabelos escuros, de minha altura excessiva e da brancura de minha pele. Eu teria que ter a cor negra que tornava ainda mais bonito aquele homem que me criou. E me veio a lembrança de quando ele me viu pela primeira vez. Daqueles olhos generosos e da lágrima que lhe afetou sem controle. Das palavras dirigidas a mim como um cobertor numa noite de frio: “Encontramos nossa princesa...”.
-- Não sei se vou, mãe... -- a alegria foi substituída pela expressão de interrogação.
-- O quê? - me soltou e fez aquela posição de sempre com uma mão na cintura pronta para o desafio.
-- Não vou, mãe, não posso te deixar sozinha!
A mulata cheia de vida levantou-se indignada. Sabia de sua reação. Era de natureza tranquila, mas quando algo lhe desagradava, sai de baixo. Colocou o dedo em riste se aproximando perigosamente.
-- Guilhermina Soares e Silva!! Você é minha filha!! Nós te amamos desde o princípio, meu amor! Você conquistou seu pai de uma maneira única. Aquele homem não podia me dar um filho, mas não foi isso que fez com que te adotássemos! Ele viu em você um futuro! Ele te amou pelo seu brilho! Uma menina enfrentando o pior do mundo e olhando pra ele com olhos puros! Pela primeira vez na vida eu vi nos olhos dele um amor incondicional! Não faça com que isso não tenha valido nada, minha filha! - agora ela já tinha desmontado a guarda - Se você me disser que não quer ir porque está com medo, qualquer outra coisa, vou entender, mas não me diga que é por minha causa. Vivi o bastante para querer te ver feliz e bem sucedida. E é isso que diz o seu destino... Como o seu destino está traçado para ser.
Sem dizer mais nada encerrou o assunto retirando seu prato da mesa saindo sem me dirigir o olhar.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Lea
Em: 08/07/2022
A mãe biológicoa de Guilhermina faleceu em um acidente de carro,estava falando ao celular enquanto dirigia, é por isso a aversão dela por tecnologia??
Ela encontrou uma família que a amou incondicionalmente,e o amor pelo o pai era surreal.
A mãe dela foi firme nas palavras. Quer o melhor para a filha,mesmo que a saudade vá "bater forte".
NovaAqui
Em: 04/07/2017
Que dor essa menina passou, mas encontrou duas pessoas maravilhosas
Gostando muito
Lilian super fofa e causando sensações diferentes em Gui
Abraços fraternos procê!
Resposta do autor:
Olá NovaAqui,
Gui só está começando essa jornada que são os sentimentos por alguém e suas consequências. Fique à vontade para continuar a ler e dar sua opinião.
Um abraço e boa sorte.
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