Capítulo 1
Abri os olhos para mais um dia. Ou menos um dia? Não importava. Dezessete anos e a vida não me tinha dado qualquer ânimo para levantar e seguir, mas eu o fazia assim mesmo, religiosamente.
Acordava sempre um minuto antes de minha mãe bater suave na porta de meu quarto com medo de que eu perdesse a hora. Um vício dela e um fardo meu, pois ambas sabíamos que isso não acontecia desde o primário, quando tive catapora e não consegui me levantar por causa da febre. Ela batia e saía sem palavra, apenas para avisar. Suspirei e deixei a cama com os mesmos sentimentos desde os nove anos: um vazio infinito por dentro, uma falta inexplicável. Só quando a água quente do chuveiro tocava meu corpo, eu me esquecia de tudo, mas dez minutos depois “tudo” aparecia com força, muitas vezes me fazendo estremecer.
Olhei-me no espelho e me deparei com os mesmos olhos azuis. Olhos que me deixavam triste, me apontando a semelhança dolorosa. Semelhança que também se via na cor dos meus cabelos negros e lisos que cortei ao estilo que minha mãe biológica costumava usar: sem franja, deixando as mechas chegarem apenas até o queixo, muitas vezes escondendo minha fronte em momentos reflexivos. Via a semelhança que quase não suportava. Gostaria de me parecer com ela, mas o que eu via era o outro lado. Um lado que a levou de mim. Um lado que me revelou o amargo da vida com apenas nove anos. A grande altura, a cor branca quase transparente da pele, até o sinal próximo ao olho esquerdo, me lembrando de minha origem perversa.
-- Filha? O café está pronto. Vou ter que sair agora, está tudo bem?
A mulher que nunca, mas nunca mesmo, entrava em meu quarto sem minha permissão, interpelava do lado de fora. Fui até a porta atendê-la.
-- Está tudo bem, Dona Margarida... -- falei abrindo a porta para receber o abraço e o beijo de todo dia.
-- Volto antes do almoço, mas, se me atrasar, você sabe que tem congelado na geladeira, é só pôr no micro-ondas.
Fiquei observando ela se afastar e saboreando o perfume gostoso que deixava sempre que me abraçava. Tinha sido ela quem, generosamente, se habilitou a cuidar da menina sobrevivente de tragédia familiar que ninguém queria. Foi esse cheiro que me devolveu boa parte da vontade em continuar viva. Foi ela quem me deu amor, simplicidade, sensibilidade e força. Eu a amava, embora não soubesse bem ainda o que era amor, mas acho que a necessidade que tinha dela, da existência dela, poderia resumir a palavra.
Óculos escuros, mochila nas costas e estava pronta para encarar o sol de todo dia até chegar à escola que frequentava. Ia a pé mesmo, já que a distância não passava de dois quilômetros. Não poderia dizer que não gostava de lá. O que me aborrecia, e muito, era o fato de não ter a sociabilidade como meu forte, causando certo descontentamento de uns, e muita curiosidade em outros. A sensação que eu tinha era que entrava num estúdio de televisão, onde tinha que atuar com maestria, pois tudo tinha que seguir o roteiro fielmente. Aprendi a fazer disso uma rotina severa, sem espaço para erros. Nada que chamasse a atenção, apenas queria ser a figurante que passa despercebida. Até escolhi os amigos -- dois -- para me ajudarem na fuga. Amanda e Luiz.
-- Guilhermina!!!
O grito ecoou no pátio inteiro e assim começava a encenação do dia.
A garota pequena de cabelos lisos e dourados, no limiar de seus dezesseis anos, me alcançou num abraço, quase nos derrubando.
-- Qualquer dia desses cairemos juntas bem no meio do pátio, Amanda maluquinha!
-- Não acredito! Tu com esse corpão todo deixar isso acontecer?! Nem em sonho! Tu lembrasse do meu pedido? -- se enganchava em minha cintura como um coala, o que me fazia ter ânsias de riso.
Larguei-me dela com a cara sonsa.
-- Que pedido? -- me fiz de desentendida, causando a carinha de tristeza dela.
-- Ah, Gui... Como você é má!
Abri a mochila e, de lá, tirei um maço de folhas entregando para ela.
-- Que seja a última vez dona preguiçosa! A próxima correção de um trabalho seu eu vou cobrar caro!-- fingi seriedade.
-- Certo, amiguinha fofa... Sabia que eu te amo? -- e me deu um beijo estalado no rosto.
-- Também não precisa me babar! -- limpei com a mão onde ela beijou.
Mal acabei o gesto e outro encontrão pelas minhas costas.
-- Meninas lindas!! Que manhã maravilhosa!!
-- Que foi, Lula? Viu periquito lilás? -- Amanda caçoou tentando se livrar do abraço pegajoso.
-- Eu diria que o que eu vi foi uma pomba-rola mesmo! -- e soltou a risada espalhafatosa.
Calei-me diante daquela euforia. A simples menção da sexualidade dele me deixava confusa e cheia de dúvidas quanto a minha própria. Ainda não entendia bem o que fazia ele, um homem até muito bonito, que atraia meninas de todas as turmas, se interessar pelo mesmo sex*. Fiquei observando-o enquanto ele ajeitava o cabelo castanho cacheado nas pontas que chegavam próximo ao pescoço esguio demais, o que lhe dava um charme maior.
Continuamos a andar até a sala quando um aviso próximo à porta de entrada nos chamou a atenção.
-- Jesus... -- Amanda pôs a mão na boca aparvalhada.
-- Nossa! -- Luiz fez cara de bafão.
Li sem acreditar muito no conteúdo. Tinha ganhado a bolsa para estudar nos Estados unidos. Harvard. Fizera a inscrição mais por insistência dos professores que por minha vontade. Não esperava ganhar e a situação de novidade mexeu com meu mais íntimo.
-- Gui de Deus... Você tá lendo isso? -- Amanda me balançava pelo braço.
Livrei-me do contato e entrei na sala sem dizer nada. Estados Unidos... Não queria ganhar a bendita bolsa. Fechei a cara e, quando acontecia, os dois sabiam que tinham que me deixar quieta.
O professor de química entrou e logo me procurou com o olhar.
-- Parabéns, Guilhermina, sabia que ia conseguir.
Apenas fiz um aceno de cabeça e um sorriso forçado. Ele percebeu o desânimo, mas não comentou nada iniciando a aula.
No intervalo, fui chamada para falar com a diretora, que me recebeu com um sorriso de canto a canto da boca, me abraçando apertado, o que me deixou deveras contrariada, pois, que eu saiba, ela sempre foi carrancuda e, porque não dizer, chata mesmo.
-- Oh, minha querida! Meus parabéns!! Você é o orgulho de nossa escola!! Recebi os papéis ontem à tarde. -- pegou uma pasta de cima de sua mesa e me entregou. -- Aí estão as informações que você precisa para fazer a matrícula. As aulas começam em junho do próximo ano, mas é bom adiantar algumas providências para evitar imprevistos.
-- É só isso, senhora?
Nenhuma emoção. A mulher de meia idade me encarava curiosa pela minha falta de entusiasmo, mas me liberou prontamente.
Sentia-me cheia de um sentimento de pânico. Como ia contar pra mamãe? Éramos apenas eu e ela durante estes anos todos. Como ia abandoná-la de uma hora para outra? Faltavam apenas três meses para que eu me formasse e depois... Estados Unidos?
Minhas ideias eram tantas e vinham com tanta força que por um momento senti tontura, me segurando pelas paredes do corredor para não ir direto ao chão. Neste momento, mãos delicadas me apoiaram e um perfume inédito me atacou como uma rajada de vento.
-- Você está bem? -- a voz feminina e preocupada soou terna, muito doce.
E então fiz a besteira de fitar-lhe diretamente nos olhos. Vieram a minha mente todas as maravilhas do mundo, seguidas dos acontecimentos mais preciosos pelos quais minha pobre vida emocional tenha sido agraciada e nada, nada teve o mesmo impacto avassalador do que ali se desvendava.
-- S-Sim, obrigada... -- me desfiz do contato constrangida por estar quase a agarrando.
Ao me erguer, pude notar como era miúda, claro que para os meus “metro e oitenta”, não era raro ter essa ideia de outras pessoas, mas é que os detalhes daquele corpo acompanhavam a pouca estatura, e isso fazia com que ela realmente aparentasse pouca altura. Fiquei ainda presa naquele deslumbramento âmbar que vinha daqueles olhos cobertos por óculos de grau. Num movimento brusco, me afastei pedindo desculpas, enquanto ela apanhava a pasta que abandonei no chão, ajeitando o cabelo castanho claro e meio ondulado por trás da orelha. Sorriu e mais uma vez minha surpresa: meu coração batendo acelerado. No entanto, boa atriz que era, tornei a usar o controle para não parecer uma idiota.
-- Obrigada, senhorita...
-- Lílian. -- ofereceu-me a mão para o cumprimento que eu apertei rapidamente.
-- Guilhermina. Mais uma vez obrigada pela ajuda.
-- Melhor procurar a enfermaria para se certificar que está tudo bem. Você continua muito pálida.
Sim, eu estava pálida pelo horror que aquela figura me impunha com sua presença sensacional. Saí quase correndo do prédio administrativo.
Não bastava a bendita bolsa! Agora tinha aqueles olhos que me aterrorizavam ao mostrar o novo em minhas emoções. Eu que pensei que ia passar batida neste assunto.
Perdida em divagações num banco escondido do pátio ouvi a sirene indicando o término do intervalo.
Na sala...
-- Gui!! Onde ‘cê tava, criatura?! -- Luiz me encarou preocupado.
Os dois me olhavam aflitos. Não queria dar respostas. Não as tinha nem para mim. Calada estava, calada fiquei. Sentei-me cansada de tanta emoção e deixei escapar um suspiro longo. Sentia os olhares em minhas costas, respeitando meu momento. Sabiam que falaria quando estivesse pronta. Poderia ser hoje ou amanhã. Ficariam na deles para meu grande alívio.
Mal estou me recuperando e eis que ela entra na sala sorridente e coloca seu material sobre o birô, recostando-se nele para nos falar.
-- Bom dia, pessoal. Meu nome é Lílian Travassos, eu leciono Língua Portuguesa e Literatura. Devem estar estranhando minha presença aqui já que a aula seria dada pela professora Janaína. Infelizmente ela teve que se ausentar com urgência por período indeterminado e eu fui contratada para substituí-la. Não se preocupem, ela está bem, pelo menos fisicamente. Bom, sei que já passaram por isso no começo do ano e que é muito chato, digo por experiência própria, mas é necessário que eu conheça um pouco de vocês para que possamos trabalhar juntos, então eu gostaria que cada um se apresentasse dizendo o primeiro nome e o que espera fazer depois que se formarem. Começando pela primeira fila.
Nossos olhos se encontraram então, porque eu era exatamente a primeira desta fila.
-- Guilhermina, tudo bem? Que coincidência. -- aquele sorriso. -- Já que sei o seu primeiro nome, que tal me dizer o que pretende fazer depois da formatura?
Pergunta miserável! Mas tinha que lhe dar uma resposta, fazia parte do roteiro, mesmo eu sendo figurante.
-- Administração de empresas aqui ou nos Estados Unidos. Ainda tenho dúvidas. Acabei de ganhar a bolsa, mas não sei se quero... Sair do país.
O olhar dela passou de curioso para admirado.
-- Parabéns então. São bolsas muito concorridas, alunos do país inteiro se inscrevem na esperança de obtê-las.
Depois disso, outros alunos foram se apresentando.
Fim do capítulo
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rhina
Em: 31/03/2019
Oie
Então. ...." eu amot não existe" seria a mesma cousa que " eu não acredito no.amor"..????? .....acho que que......aliás tenho certeza que não.
Gostei do primeiro capítulo. .....
Hey Autora tem muitas meninas que gostam.da sua escrita!
Mas vc merece.....sua escrita é maravilhosa......
So fico azeda quando fico sem ponto de apoio.....sem chão. ....kkkkkkkk
Rhina
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Van Rodrigues
Em: 02/12/2018
Lendo de novo, porque amo essa história.
É muito boa!
Parabéns!
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patty-321
Em: 01/07/2017
Oba. Estórias de Endles são sempre maravilhosas, inéditas ou nao,, vou ler. Bjs
Resposta do autor:
Bom saber disso, Patty.
Ando repensando e trabalhando em uma reconstrução desta autora que vos escreve. Sua participação é mais que bem vinda, é um grande empurrão para que eu retorne de vez pra casa.
Um abraço e boa sorte.
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Iza
Em: 30/06/2017
Gostei muito desse primeiro capítulo, Parabéns!
Abraços e até o próximo. ;)
Resposta do autor:
Muito obrigada, Iza. Esta estória já foi postada, mas eu resolvi postá-la novamente fazendo uma revisão e, talvez, fazendo uma up grade.
Um abraço e boa sorte.
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