Capítulo 20 - A Casa do Sol Nascente
Azizah não tinha conseguido dormir bem naquela noite. Depois que Carol adormeceu em seus braços, ainda demorou algumas horas para relaxar. Sentia medo, como se houvesse algo no quarto junto com elas. Não um morto-vivo, mas um morto-morto, que pra ela era ainda mais aterrorizante, pois o primeiro tipo ela podia matar, se bem que... como se mata algo que já está morto? E se pensasse bem, o que o segundo poderia fazer com ela além de assombrá-la?
Ela fez algumas orações que aprendeu ao longo de sua vida e a sensação de medo se dissipou. Tentou se acalmar e conseguiu pegar no sono. Entretanto, teve pesadelos depois disso. Estava perdida sozinha em uma floresta durante a noite, ouvia as passadas lentas e arrastadas dos zumbis ao seu redor, somados àqueles grunhidos que a atormentavam. O pior era que não via nenhum deles. Começou a correr, sentia como se estivessem atrás dela, tropeçou na raiz de uma árvore – tal como todo pesadelo e história de terror em que a protagonista faz algo estúpido – e ao levantar estava cercada por um bando. Ela sentia o cheiro de podridão oriunda deles, vinham em sua direção, passou a sentir aquelas mãos gosmentas e geladas em seu tornozelo, subindo por suas pernas, a agarrando e por último aqueles dentes sujos grudando em sua pele, rasgando sua carne.
Deu um pulo na cama, a respiração forte, as pupilas dilatadas. Correu os olhos pelo quarto. Silêncio absoluto. O sol entrava forte pela janela e Carol igualmente se assustou com sua reação.
- Ei, calma. – A enfermeira tinha a voz pastosa de sono. – Foi só um pesadelo. – Correu as mãos por seus cabelos longos e cacheados de maneira doce. – Vem aqui. - Azizah tornou a se deitar, virada para ela. Seu peito arfava e a angústia do sonho ainda se fazia presente. – Foi só um só pesadelo. – Beijou sua testa, depois seus lábios levemente. Carol olhou para a janela. – Acho que dormimos um pouco mais do que devíamos. – Sorriu preguiçosa. – Pela posição do sol já precisávamos ter partido há algumas horas.
No entanto, não mexeram um só músculo para se levantarem da cama. Azizah continuou virada para ela, fazendo carinho em seu rosto, correndo os dedos por sua pele macia, seu sorriso aberto.
- Você é linda demais, Caroline.
- Você que é linda, Azizah Hazan.
- Como que se lembra? Eu lhe disse o sobrenome do meu pai apenas uma vez.
- Me lembrando, ué.
Beijaram-se.
- E o seu?
- Monteiro.
- Senhorita Monteiro, não é melhor irmos?
- Eu só quero... – E aconchegou-se na namorada, entrelaçando-se. – ...ficar mais cinco minutinhos aqui com você. Assim. Sem pensar em nada.
- Só mais cinco minutos então. - Beijou sua cabeça raspada, envolvendo-a e aquela angústia do pesadelo foi embora com os minutos que se transcorreram. E aqueles cinco minutos se transformaram em meia hora em um piscar de olhos.
- Acho que foi a primeira vez que passei a noite num motel sem trans*r. - Carol brincou, ainda em seus braços, Azizah ia lhe contar sua história com Guilherme, no entanto as palavras que vieram a seguir as surpreenderam. - Mas com você é diferente... sei lá. É diferente de tudo que já vivi, de todas as pessoas que já estive… Só de estar ao seu lado, pra mim já basta. Sabe? Eu amo trans*r com você, quer dizer, não é isso que estou falando e você sabe muito bem – Piscou de maneira sacana – É só que... Tudo com você é bom, sabe? Tudo.
Azizah sorriu, segurou o rosto de Carol com carinho, olhando em seus olhos e as palavras que estavam guardadas em seu peito simplesmente pularam de sua boca.
- Eu amo você, Carol… - Fez uma pausa, aqueles castanhos se emocionaram junto com os olhos negros. - E se você me permitir, quero cuidar dessa criança com você… Do seu lado – Correu as mãos por sua barriga, sentindo o bebê se mexer. - Quero criar ela, como se fosse minha, como se fosse nossa…
- Ela é nossa. - A voz de Carol saiu fraca, controlando as emoções, buscou os lábios de Azizah com urgência, agarrando-se ainda mais a ela. - Ela já é nossa, A. Sempre foi. Eu… eu.. estou sem palavras… eu…
- Shh... não precisa dizer nada. Eu só precisava... te dizer isso… Caso algo aconteça comigo, eu só queria que você...– Carol a calou com um beijo.
- Não ouse falar essas coisas, não vai acontecer nada com você. Nada. Eu não vou permitir.
Elas sorriram.
- Você acha que ele vai nascer em quanto tempo? – A tatuada perguntou.
- Talvez dias. - Carol sussurrou, em um misto de emoções. - Eu estou morrendo de medo.
- Eu estou com você.
- Eu sei. – Beijaram-se novamente.
- Deve existir muitos médicos lá na Ilha pra cuidarem de você. Vai dar tempo o suficiente de chegarmos lá...
O sol já não fazia sombra e deviam estar em pleno meio dia quando saíram do motel. Pegaram a rodovia sentido Araçatuba, tinham se afastado muito da nova rota no dia anterior ao fugirem da casa destruída, antes de decidirem arriscar e irem para Ilhabela. O humor da enfermeira estava melhor, mas sua feição ainda estava abatida.
Fizeram viagem ininterrupta em alta velocidade até Botucatu. Carol precisava fazer xixi e pararam no meio da estrada. A tatuada arregaçou as mangas da camisa xadrez, o calor estava insuportável. Abriu outra lata de refrigerante, desejando muito que ele estivesse trincando de gelado. Na verdade, uma cerveja seria melhor ainda.
Tirou a camiseta e rasgou a costura dos braços, transformando-a em uma regata. Vestiu-a, olhando seu reflexo no vidro da caminhonete caindo aos pedaços, mas o importante era que o motor ainda funcionava. Seu rosto ainda estava horrível.
- Vai sentir falta disso à noite quando esfriar. - Carol voltava de trás do carro.
- Vou guardar, aí se sentir frio só calço as mangas. - Azizah encenou como faria e as duas riram.
- Quer que eu dirija um pouco?
- Não. Estou bem. - Fez uma pausa - Acha que meu rosto vai voltar ao normal?
- Sim, acredito que sim. Ele já desinchou um pouco, mas as manchas estão bem escuras ainda.
- Quando chegarmos lá, é melhor você gritar que sou humana, com essa cara posso até levar um tiro na cabeça.
- Como assim?
- Confundida com uma zumbi. Se andar um pouco mais devagar assim – Azizah imitou as passadas lentas, grunhindo. Depois começou a rir. - Ia ser fatal.
- Para com isso. - Carol ficou brava. - Não gosto nem de imaginar. Vamos logo.
- Estou brincando.
- Não sei como consegue brincar com coisas tão sérias.
E então dividiram um pacote de salgadinhos roubados do dia anterior e continuaram seguindo viagem até encontrarem um posto de combustível há alguns quilômetros dali. As duas já estavam com dores no corpo pela viagem.
- Até onde vamos hoje? - Carol perguntou, esticando-se ao sair do carro. Depois segurou o pescoço, como se estivesse com torcicolo.
- Até Itu. Não quero a gente se arriscando à noite na estrada.
- Acha que vamos chegar amanhã?
- É provável, mas vamos ter que sair bem cedo, vamos passar por Jundiaí amanhã, entre Campinas e São Paulo. Não podemos sair da rodovia de jeito nenhum. E ainda precisamos arrumar algum lugar pra dormirmos hoje.
- Outro motel?
- Acredito que sim. Espero que um com energia elétrica dessa vez.
- Não sei. As coisas parecem ficar piores à medida que a gente se aproxima de São Paulo. - Carol olhou em volta. O posto de combustível estava destruído, a loja de conveniência estava quebrada e revirada. Viam de longe que não tinha restado nada para comer, as prateleiras estavam vazias e os vidros quebrados. - Precisamos tomar cuidado, além de mais zumbis, vão ter mais pessoas. Não sabemos do que elas são capazes. Nós temos essas caixas de mantimentos. Podem querer nos assaltar, ou nos matar. Ou pior ainda…
- O que?
- Levar nosso chocolate.
Azizah riu.
- Você pode fazer brincadeirinhas né? Eu não.
- É, só eu posso.
E Carol a enlaçou pelo pescoço, beijando-a lentamente. Encostou-a contra a lataria da caminhonete com firmeza, afastou uma mecha do cabelo cacheado de seu rosto e olharam-se profundamente, aqueles castanhos mergulhados nos negros. O coração de Azizah batia loucamente. Era sempre assim quando a mais velha lhe pegava daquele jeito. E antes que fizessem qualquer coisa, ouviram um zumbi se aproximando delas. Estava com roupas de frentista, mancava de uma perna. Olharam para baixo, seu pé estava quebrado, virado para o lado de maneira agonizante.
- Vamos embora. - Carol beijou rapidamente seus lábios, entrando na caminhonete, mas Azizah pegou a chave de roda em suas mãos. - Ei, cuidado. - E acabou com ele, com facilidade, voltando para o carro em seguida. - Podia tê-lo deixado.
- Não, cada um que matamos é um a menos.
Rodaram durante mais algumas horas e as palavras tornaram-se inexistentes, o cansaço da viagem as abatia, assim como o dia se tornava noite e nenhum sinal de motel pelo caminho. Decidiram entrar em Itu, mas logo se arrependeram, havia muitos mortos, por toda a parte. Rapidamente manobraram e voltaram para a rodovia.
- O que vamos fazer? - Carol perguntou com a voz fatigada.
- Vamos seguir até Cabreúva. É um pouco menor, talvez esteja mais tranquilo pra entrarmos em alguma casa e passarmos a noite.
- Vai demorar muito? Meu corpo inteiro tá doendo.
- Uma meia hora mais ou menos.
- Como você conhece tanto as cidades, as estradas?
Azizah olhou em seus olhos, sorrindo de canto de boca.
- Eu já me perdi muito na vida antes de te encontrar.
Meia hora se passou e chegaram a Cabreúva. Era uma cidade pequena, com muita área verde. Rodaram por alguns minutos observando a localidade, não havia muitos zumbis perambulando, o que era um bom sinal, sendo um local seguro para passarem a noite. Surpreenderam-se com uma luz acesa em uma pequena residência. Não estava escuro ainda, mas já era perceptível a claridade pela janela. Havia barricadas de madeira em sua volta para impedir a entrada de zumbis. No jardim um pé de laranja e margaridas plantadas. Parecia uma casinha bonita e acolhedora.
- Eles têm energia elétrica. Será que as outras também têm? Eu queria muito um banho quente, você não tem ideia. - Azizah suspirou. No mesmo instante viram uma pessoa afastando as cortinas da casa, talvez o barulho do carro tenha chamado sua atenção.
- Não é seguro nos expormos, Azizah – Carol alertou. - Vamos atrás de outra casa.
Segundos depois a porta se abria e um homem de aproximadamente 50 anos saia pelo gramado. Tinha o cabelo grisalho apenas nas laterais da cabeça. Carol apontou a arma em sua direção do banco do passageiro. Ele veio com as mãos levantadas em sinal de paz e estampava um sorriso amigável em seu rosto. Vestia uma calça jeans e uma camisa social branca, que já estava meio amarelada pelo uso.
- Que a paz do Senhor esteja com vocês! Boa tarde, senhoritas. Ou já seria boa noite? - Ele perguntou em um tom de voz alto e cordial. - Vocês precisam de abrigo? Me chamo Sílvio, moro com minha esposa e sobrinha nessa casinha aqui atrás. - Ele permanecia com as mãos levantadas.
Aparentemente não havia nada de errado com ele.
- Agradecemos sua hospitalidade – Carol interveio, ressabiada. - Mas vamos procurar outro local, não queremos incomodar, estamos apenas de passagem.
Azizah a olhou e sussurrou.
- E se aceitarmos?
- Peço que fiquem, por favor, não vão incomodar em nada. Eu e minha família adoraríamos ter convidados para o jantar. Além de que minha casa é a única com energia elétrica da cidade inteira. - Ele caminhou até a janela do veículo.
- Não se aproxime. - Carol permanecia com a arma apontada em sua direção. Olhou em volta a procura de alguma movimentação suspeita. Algum grupo de malfeitores, qualquer atividade.
- Oh meu Deus! O que houve com seu rosto? Foi uma briga feia, suponho... – Sílvio olhava assustado para Azizah. - Eu tenho medicação lá dentro, posso te ajudar se quiser.
Elas se entreolharam e Carol assentiu com a cabeça.
- Ela vai revistá-lo. - A enfermeira disse ao homem. - Você vai ficar parado onde está. - A mais nova desceu do carro e acompanhou o olhar desaprovador do homem em suas tatuagens.
- Podem revistar, eu não tenho nada.
Azizah não encontrou nenhum armamento, nem nada suspeito.
- Ele está limpo.
- Vamos aceitar sua oferta, senhor Sílvio. - Carol desceu do carro, ainda apontando a arma para ele.
- Isso é realmente necessário? - Ele parecia incomodado com a arma. - Sou um homem de Deus, sou Católico, vocês podem confiar em mim.
- Vamos conhecer sua casa. - Azizah parou em sua frente, séria. - Se estiver mentindo pra gente, se for alguma emboscada, a gente mata você sem hesitar. Tá ouvindo?
- Eu juro que estou sendo sincero.
- Então não há nada a temer.
Ele olhou para a barriga da enfermeira.
- Deus seja louvado! Precisamos repopular o mundo, o demônio ceifou muitas vidas da Terra. O futuro do nosso mundo está em seu ventre, minha irmã.
Seria um daqueles fanáticos religiosos? Azizah e Carol se entreolharam, aquele segundo em que você pensa se deve desistir de tudo ou continuar. Aqueles breves segundos que podem mudar o decorrer de toda uma história... ou de uma vida.
- Sou a Caroline e essa é a Azizah. Você vai na frente, vamos caminhar lentamente até sua casa, se estiver falando a verdade, como diz que está, não vamos te machucar.
- Vamos, senhoritas.
Atravessaram a rua, passaram pela barricada bem construída e forte, depois pelo portão, havia uma pequena varanda com uma cadeira de balanço atrás da árvore frutífera. Era uma casa de campo bem bonita, não era grande, mas era cheia de pequenos detalhes, como se fosse extremamente bem cuidada.
Ao chegarem perto da porta, perceberam que soava uma música bem baixa, aquela música do The Animals chamada The House Of Rising Sun. Fazia muito tempo que as duas não ouviam música nenhuma. Contrastantemente com beleza do lugar, Sílvio abriu a porta e um cheiro forte de podridão atingiu as narinas das duas, levaram as mãos ao nariz no mesmo momento.
- Peço desculpas, estamos com problemas no sistema de esgoto. - Ele informou em tom polido.
Contudo, elas sabiam que aquele cheio não era de esgoto.
Era de morte.
E elas teriam fugido dali naquele mesmo instante, se não fossem o que viram em seguida.
- Meu amor, temos visita. - O homem cantarolou.
Esperavam ver a esposa do homem, mas uma menina com o cabelo loiro e cacheado apareceu, devia ter pouco mais de quinze anos. Ela estava.. grávida. Puta merd*! E é tão jovem… Azizah pensou. Ela usava um vestido vermelho e surrado que ia até pouco abaixo dos joelhos, sapatos pretos de boneca, sem saltos e um avental branco e encardido por cima. Ela notou uma feição de tristeza na menina, de uma forma que nunca tinha visto antes em sua vida - exceto nela mesma. A garota de vermelho vinha com uma panela em mãos, com panos de prato nas alças para não se queimar. Ela ficou paralisada no meio da sala olhando para a arma. Carol a abaixou no mesmo segundo.
- Mariana, querida, temos convidadas para jantar conosco essa noite, isso não é fantástico? Deus não está sendo bom com a gente? Depois de tanto tempo vamos conversar com outros humanos como nós. - Ele levantou as mãos aos céus agradecendo de maneira exagerada.
As duas novamente se entreolharam.
Onde diabos tinham se metido?
- Pode continuar o que estava fazendo, Mariana. - Azizah permitiu e a garota colocou a panela ao lado de mais duas em cima de uma mesa quadrada para quatro pessoas, feita de madeira rústica, sem acabamento, com uma toalha bege com maçãs grandes e vermelhas pintadas. - Desculpe pela má impressão. – Ela tentava se justificar – Temos encontrado pessoas muito ruins ultimamente e acabamos desconfiando de todos.
- Eu entendo. - A menina disse em um tom de voz baixo, sem olhá-la nos olhos.
A casa por dentro era bem arrumada e limpa, havia quadros nas paredes e porta-retratos com várias pessoas diferentes. Tinham dois sofás de cor marrom na sala e uma televisão antiga, daquelas grandes e pesadas.
- E sua esposa?
- Ela está acamada.
- Eu sou enfermeira, se quiser posso dar uma olhada nela.
- Eu sou médico, querida. - Disse num tom superior - Já estou cuidando dela.
- O que ela tem? – Azizah indagou.
- Esclerose múltipla. A cada dia esta pior. – Ele abaixou os olhos. - Falando nisso, depois do jantar vou lhe dar alguns remédios para seu rosto. - E sorriu para Azizah. – Vamos nos sentar agora.
O homem caminhou até a sobrinha e tocou em seu ombro, o casal percebeu a menina retesar o corpo, virando o rosto em outra direção, com aversão.
- Coloque os pratos, querida. - Ordenou à garota, depois olhou para as duas - Podem se sentar, ela vai nos servir. - E ele afundou na cadeira de madeira, se ajeitando. - É Caroline e...?
- Azizah. - Ela respondeu completamente incomodada com a cena que tinha acabado de presenciar. Ela conhecia aquele olhar. Conhecia aquele medo. Tinha algo de muito errado acontecendo naquela casa e ela ia descobrir. Aproximou-se da adolescente. - Vou ajudá-la com os pratos.
O homem não pareceu muito feliz por ser contrariado, mas nada disse. Carol sentou-se na mesa puxando papo com o senhor e deixou a arma em cima de suas coxas caso algo saísse do controle. A tatuada foi com Mariana pegar os pratos num armário pouco afastado da mesa. Era um armário grande de madeira escura, bem trabalhado.
- Você pode confiar em mim. - Azizah sussurrou de maneira que o homem não percebesse. - Se tiver algo que queira me contar, se eu tio estiver te aborrecendo, eu posso te ajudar. De verdade. Eu posso acabar com tudo isso.
- Está tudo bem. - A menina respondeu sem convicção, no mesmo tom silencioso, olhando para o chão.
- Eu sei que não está. Não precisa fingir pra mim. Eu realmente posso te ajudar. Nós podemos, eu e Carol. Podemos te tirar daqui, você pode ir com a gente se você quiser.
Ela olhou de rabo de olho para o tio que as encarava e então sussurrou rapidamente.
- Não comam a carne.
- O que vocês estão cochichando aí? - Sílvio perguntou em um tom duro, mas logo em seguida começou a rir, talvez tentando disfarçar seu nervosismo. - Essas mulheres… sempre fofocando. - E riu de maneira espalhafatosa. Carol o observava, séria. Uma gota de suor escorreu pelo rosto de Sílvio, ele estava tenso.
- Ela só está me contando da gravidez dela. Eu disse que ela é jovem demais e me perguntei como isso aconteceu. – O encarou.
- Do meu noivo que se tornou um homem sem alma. - A adolescente respondeu rapidamente, temerosa. Azizah percebeu o olhar que tio e sobrinha trocaram. Sentiu o ódio corroer suas veias. Filho da puta. Se ele tiver encostado um dedo nela… eu...
- Ela não é muito nova para ter um noivo? - Carol indagou.
Azizah e Mariana voltaram para a mesa com os pratos e talheres.
- Sabe como são as mulheres de hoje em dia não é? - Deu um sorriso nervoso.
- Não, não sei como são as mulheres de hoje em dia, Sílvio. - Carol o encarou, cruzando as mãos em cima da mesa.
- Precisam de um homem para colocá-las no caminho certo. Como o seu homem que lhe plantou uma semente sagrada. O que houve com ele?
Semente sagrada? Mas que merd* é essa?
- Ele faleceu. E as mulheres não precisam de homem nenhum. Elas podem fazer o que quiserem da vida delas e escolher o caminho que bem entenderem, sem ninguém se meter. Muito menos um homem. – Carol finalizou com desdém, deixando Sílvio visivelmente irritado por ser contrariado novamente.
Azizah sentou-se ao seu lado.
- Olhe só sua amiga. - E olhou para as tatuagens dela. - Em Levítico 19:28, o Senhor nos fala “não façam cortes em seus corpos por causa dos mortos, nem tatuagem em si mesmos.”. Se um homem de bem tivesse lhe colocado uma semente desde jovem, como o fizeram com Mariana, ela teria outras preocupações como cuidar dos filhos e da casa.
Carol sentiu o sangue de Azizah em ebulição, tocou-lhe levemente a mão por baixo da mesa, para que se acalmasse, viu a fúria contida em seu olhar.
- O senhor está sendo muito rude. - A garota sussurrou.
- O que disse, Mariana? - Novamente usou aquele tom rígido. Ela abaixou a cabeça. Ele continuou. - E mulheres devem ter cabelo comprido, Caroline. Não sei se alguém já lhe disse isso, mas o cabelo comprido é uma glória para a mulher, é como um véu, em Coríntios 11, versículos 6 e 7, o Senhor fala que “é vergonhoso para a mulher ter o cabelo cortado ou raspado, ela deve cobrir a cabeça. Já o homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem”.
Dessa vez Azizah quem a segurou por baixo da mesa. Olhou nos olhos da namorada, querendo lhe dizer para se acalmar, que não valia a pena discutir com o homem, com pensamentos retrógrados de fundamentalistas religiosos, na frente das duas. Mariana abriu as panelas colocando uma escumadeira no arroz, fazendo barulho, como se quisesse encerrar o assunto. Em uma das panelas havia um pedaço grande e suculento de carne mal passada, com muito sangue.
O que será que tinha de errado?
- Bom, vamos orar, que estou faminto - Sílvio segurou nas mãos da sobrinha e de Carol, Azizah deu as mãos à Mariana e à sua namorada fechando o círculo. O homem fechou os olhos, mas a tatuada permaneceu com eles bem abertos, tal como Carol. - Senhor Deus, nós agradecemos por essa comida em nossa mesa e pela visita das nossas novas amigas...
Mariana também abriu os olhos e encontrou os de Azizah pela primeira vez, sem abaixá-los com medo. A mulher mexeu os lábios, perguntando sem som:
- O que tem a carne?
Sílvio continuava:
- Muito obrigado por toda graça concedida, que os bebês dessa mesa possam ser abençoados, que Deus possa nos abençoar com dois meninos grandes e saudáveis para semearem o mundo.
Vou semear socos na cara dele, isso sim.
Mas o que veio a seguir, Azizah não esperava.
- É carne de gente. - Mariana respondeu.
Puta que o pariu!
Azizah olhou estarrecida para Carol, como que para conferir que a enfermeira também tivesse ouvido aquela loucura. A cara de espanto que recebeu já lhe serviu como resposta.
Onde infernos tinham se metido?
- E que nossa amiga Azizah logo encontre um homem de bem e que possa ser uma boa esposa, arrependendo-se de seus pecados e se tornando temente a Deus.
Que porr* de oração era aquela? Quem era aquele cara? Quem comia carne de outro ser humano?
- Amém. - Sílvio concluiu, mas apenas Mariana respondeu. Elas fecharam os olhos, horrorizadas com tudo que as rodeava. - Amém? - Olhou para o casal.
- Amém. - Elas responderam sem convicção.
Precisavam entrar no jogo e manter a paz - pelo menos por enquanto. Ele se serviu primeiramente, fazendo um prato grande de arroz, feijão e cortou um belo e grande pedaço de carne. Azizah não pôde deixar de pensar, de maneira macabra, de qual parte de um ser humano aquilo poderia ser.
Sentia seu estômago se revirar. Levou a mão à boca, desviando o olhar da mesa.
Ele era tremendamente louco.
- É o que sempre digo à minha filha, um homem precisa de muita proteína. Gosto da minha carne assim, gritando. - E ele riu sozinho. E a tatuada imaginou uma pessoa gritar. - Podem se servir agora, vocês vão gostar. Mariana cozinha muito bem.
- É uma pena, mas nós somos vegetarianas. - Azizah recusou rapidamente.
- Isso virou moda entre os jovens? Minha filha veio com essa também. – Sílvio suspirou.
- Levítico 7:26. “E nenhum sangue comereis em qualquer das vossas habitações, toda a pessoa que comer algum sangue será extirpada do seu povo.” – Mariana sussurrou.
- Você disse alguma coisa? – O homem levantou o tom de voz, mastigando de maneira voraz.
Observaram a menina fazer seu prato de apenas arroz e feijão e fizeram o delas igual, percebendo que não haveria risco se a própria menina o comeria.
- Sua esposa não vai jantar, Sílvio? - Caroline indagou, desviando o olhar do homem que mastigava a carne. Azizah levou a mão à boca, controlando a ânsia de vômito. - Falando nisso, nós ainda não a conhecemos.
- Mariana sempre lhe leva um prato. – Ele proferiu olhando para a menina que o encarava - Não é?
- Sim. – Ela concordou.
- Posso usar seu banheiro? - Carol perguntou.
- Não costumamos nos levantar até termos terminado todo o nosso prato. - Sílvio respondeu olhando para a comida intocada.
- Minha bexiga parece que não segura mais nada desde que fiquei grávida. – Ela forçou um sorriso. - Com você também é assim? – Olhou para Mariana, que lhe lançou um sorriso de canto de boca e respondeu:
- Pode ir, no final do corredor, à esquerda. – Seu olhar se encontrou com o do tio novamente.
- Com licença. – Carol escondeu a arma e se levantou, saindo da mesa. Azizah deu algumas garfadas na comida, apenas para disfarçar, mas tinha perdido totalmente o apetite. O cheiro de podridão no ar ainda lhe incomodava, viu o homem dar mais uma garfada, sentindo o líquido biliar subir até a garganta.
- E seus pais?
- Eles faleceram em um acidente de carro há alguns anos. Eu vim morar com meus tios.
- Eu sinto muito.
Ficaram em silêncio. O homem continuava a comer, com vontade.
- Para onde estão indo? – A adolescente indagou.
- Para o litoral. Ouvimos falar de um campo de refugiados em Ilhabela.
Os olhos de Mariana brilharam.
- Então existem mais sobreviventes?
- Sim, eu presumo que sim.
- Não coloque ideias na cabeça da menina. – Resmungou - Essa cidade é segura. Nada vai nos acontecer se permanecermos aqui. Pegue a 51 pra mim, meu amor.
- Eu não quero ficar aqui pra sempre. - A menina sussurrou.
- Não é você quem decide as coisas, Mariana. Pegue minha bebida.
- Não.
- O que?
- Eu não vou pegar nada. Se quiser você mesmo que se levante e pegue. Eu estou cansada de ser feita de escrava por você! – Gritou.
O homem levantou da mesa, furioso e antes que esbofeteasse a sobrinha na face, ouviram o barulho de uma arma sendo destravada.
- Encoste um dedo nela e você vai fazer companhia a sua esposa, que, aliás, está em decomposição na cama dela. O que tem a me dizer sobre isso, Sílvio?
Fim do capítulo
Leitoras queridas, peço desculpas pelo sumiço, essas últimas semanas foram difíceis por aqui. Postei um capítulo maiorzinho pra tentar recompensar. Agradeço novamente todas vocês, vocês são demais, seus comentários me deixam super emocionada <3
Comentar este capítulo:
lucy
Em: 29/10/2016
ô Silvio Piranhoo, kkkkk pois é bem que este deu todo indício de ser doente total....sorte de Mariana, se tudo correr bem ela vai seguir com as duas, que homem nojento comedor de carne de gente ? affz eeeca kkkk realmente Azizah está certinha o estômago chega embrulhar imaginar um troço deste, esse véio pedófilo duma figa ....mete bala na cara dele.....e ainda deixa a esposa nessa situação , nem pra enterrar eita véio babaca ...mas acabou pra ele,,, fico com receio pois ele está louco e pode dar aí trabalha pra Carol e Azizah....Olha Carol é uma mulher com M maiúsculo, essa é boa pra se ter ao lado.....rs ...mas acredito que com o tempo Azizah vai ficar mais forte pra enfrentar essas situções....moã nota mil vou dormir, mas confesso queria continuar a ler mais kkkk....tenho que dormir, bjs nota mil perfect.....será autora, que vou conseguir dormir sem saber o que o Sílvio faz depois disto ? acredito que vai dar trabáio.....fogo neeeeeele.....
Resposta do autor:
A Carol é muito FODA, como vc disse, o tipo de mulher pra se ter ao lado hahah beeijo, querida
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Penelope
Em: 16/06/2016
Que velho nojento, asqueroso!
Coitada da mariana, espero que elas consigam dar um fim nesse escroto e salvar essa menina e levar ela junto para ilhabela, é cada coisa que elas encontram que vou te contar.
Capitulo bom demais, mega bem escrito e como eu disse no comentario anterior, você escereve de uma forma tão mara que parece que estamos assistindo, parabéns e posta logo o proximo que estou muito curiosa.
Resposta do autor:
Pode deixar que a Azizah já cavou a cova do desgraçado. E a Mariana, tadinha, ainda bem que encontrou com nossas duas heroínas, né? MUITO obrigada pelo elogio, linda <3 beeijo
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KellyK
Em: 12/06/2016
Meu, muito foda esse capítulo!!! ahaha bem macabro. Esse Sílvio é doente, e ainda se utiliza da bíblia para julgar. Espero que tenha um belo castigo guardado para ele. Ansiosa para o próximo capítulo.
Essa estória está cada vez melhor!! Parabéns Thays.
Resposta do autor:
Oi Kelly! Muito obrigada! O Sílvio é muito doente, pqp, e o pior é que existem muitos homens por ai que pensam como ele. Espero que goste do fim dele, a Azizah adorou hahah beeijo
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Luzia S de Assis
Em: 11/06/2016
Sinistro esse Sílvio. Ele é louco. Isso é pra pensarmos como uma situação extrema pode revelar o pior do ser humano. Coisas inimagináveis poderiam acontecer num apocalípse zumbi.
Olha, numa situação dessas, acho que o mais inteligente seria tentar se refugiar numa ilha mesmo. Mas o problema é que mais alguém pensaria assim rsrs
Amei os capítulos! Poxa, coitado do Rafael, que pena. Muito triste a cena delas vendo a casa destruída.
bjs
Resposta do autor:
Oi Luh! Imaginei exatamente isso, os extremos de pessoas que encontraríamos pela frente em uma situação como essa, de caos total, onde não existisse mais nada que refreasse esses instintos doentios e perversos. O Rafael não aguentou, né? Muita dor no coração pelo fim dele e também pela casa delas. Mas o melhor ainda está por vir, até pq já chega de tanto sofrimento né? hahah Beeijo
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line7
Em: 11/06/2016
Caralhooooo meu eu fiquei eletrizante com esse capítulo, nossa vc tem uma criatividade, eu acredito assim como desenhista que imaginar cada coisa louca pra desenhar, adoro ser criatiativa e criar desenhos surrealistas,assim também os escritos, é incrível o seu talento e criatividade😊 sempre bem envolvente. Então vou lhe elogiar( exageradamente ) vc é espetacular, talentosa, sensível com cada detalhe descrito, não sou nenhuma professora de literatura mas a sua tem uma estrutura Ótima 😉 exagerei né? Mas é isso que estou sentindo a adorando ler. Até mais linda😙
Resposta do autor:
Line, você como sempre com seus comentários extraordinários e como sempre me deixando emocionada <3 Nem sei como agradecer tantos elogios, me faltam palavras. MUITO obrigada, de verdade, eu nunca publiquei nada do que já escrevi até então e ter essa repercusão e o retorno que estou tendo, como seus comentários, me fazem não querer parar mais de escrever hahah um beijo enorme, menina! tudo de bom ^^
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thays_ Em: 13/04/2023 Autora da história
Muitíssimo pior!!!