Acordei sentindo dor por todo o corpo, como se tivesse malhado pesado o dia inteiro, e instantaneamente me veio à cabeça a lembrança do dia anterior. Tudo parecia um pesadelo, tão difícil de acreditar que por um momento cheguei a duvidar que aquilo houvesse mesmo acontecido. Então a dura e fria realidade estendeu suas mãos sobre mim e tive que encarar a verdade, eu havia sido usada, enganada, iludida e dispensada por Clara quando ainda éramos adolescentes, e com certeza estava sendo ludibriada novamente.

Se eu não tivesse lido aquela carta no papel familiar e com a caligrafia que eu conhecia tão bem, jamais acreditaria em uma palavra sequer, aliás, ninguém que a “conhecesse” acreditaria. Sempre tão meiga, delicada, com um sorriso encantador, fala suave, lindos e puros olhos azuis, um rosto angelical. Um anjo de asas quebradas como ela mesma se intitulara. Balancei a cabeça tentando tirar aquela imagem, de dentro de mim. Uma puta era o que ela era de verdade. Vagabunda traiçoeira, e isso desde garota. Como alguém pode ser tão baixa assim?  E eu, eu tinha sido a idiota rematada. Entreguei um coração perfeito nas mãos de um demônio. E o pior é que era um amor sincero e verdadeiro e por este motivo não adiantava tentar mentir para mim mesma, eu ainda a amava. Meu Deus como podia ser? Porque o sentimento não se esvaiu de dentro de mim conforme o fel das palavras me preenchia? Eu teria que ser forte, mais forte do que fora em toda a minha vida, e seguir adiante. Mas para isso eu precisava me recompor, precisava de um tempo pra me curar das feridas abertas em minha alma. Nunca mais conseguiria confiar em alguém plenamente, nunca mais seria de alguém como havia sido dela, e nunca mais, mas nunca mais mesmo eu me apaixonaria por ninguém.

Durante toda a minha vida eu fui uma pessoa centrada, fria e racional. Depois de me separar de Clara na juventude, não deixei mais a emoção dominar meus passos, caminhava firme e convicta em direção ao que eu queria, e foi apenas ela voltar para que eu me tornasse uma babaca, parecia uma boba, sem saber qual a melhor coisa a fazer. Pois bem, essa mulher havia acabado de morrer de vez. Jamais deixaria ninguém fazer isso comigo novamente.  Boris que estava dormindo ao meu lado levantou e se espreguiçou, depois veio para o meu colo. Acariciei seus pelos macios, e comecei a fazer planos para a minha vida dali em diante. Voltaria a ser Ana Lucia por inteiro. Logicamente que precisaria me recompor, mas tomaria a rédea da situação. Coloquei Boris no chão, levantei-me, fui ao banheiro escovar os dentes e lavar o rosto, depois me encaminhei para a sala, quando cheguei à porta ouvi Clarisse falando com Susana:

- Você pode se preparar para contratar um ótimo advogado criminal, porque eu juro que quando essa filha da puta aparecer na minha frente , eu vou ter o prazer de torturá-la e matá-la lentamente com as minhas próprias mãozinhas. – Dizia com cara de má.

- Clarisse você não devia se meter nisso. A Ana pode não gostar. - Advertiu Susana.

- Não devia o caralh*! Não vou deixar nenhuma piranha machucar minha melhor amiga e ficar quieta como se nada tivesse acontecido. Su a dor que vi nos olhos dela nunca havia visto na minha vida, eu nem sabia que podia caber um sentimento daquele tamanho dentro de alguém. Não, isso não vai ficar assim mesmo! Já esta decidido, eu vou acabar com ela!

Eu estava sorrindo apesar da tristeza que havia em meu peito.

- Eu fico ternamente grata por sua demonstração de afeto, mas Susana esta certa, e advogados criminais bons são muito caros, e acredite que sei do que estou falando. – Disse piscando pra ela

- Ana! Você acordou!

Correu em minha direção me abraçando. Seu carinho me reconfortou e a apertei em meus braços comovida.

-Como você esta? Dormiu bem? Quer comer alguma coisa?

- Eu estou bem, fica tranquila. Não dormi, desmaiei.To sem fome e  oi Susana.- Falei rindo

- Oi. E ai? Tudo bem mesmo? – Susana perguntou

- Responde Aninha, você esta melhor?

- Estou. Pelo menos tão bem quanto poderia estar numa situação como esta. – Disse beijando seu rosto com carinho.

- Eu quase morri de preocupação ontem. Por favor, não faça mais isso comigo. Acho que não aguentaria.

- Eu prometo que nunca mais você me verá assim.

- Jura?

- Juro. Obrigada Sisse, por tudo. Nem que eu vivesse um milhão de anos...

- Para de falar porque eu não quero chorar.

- Tá bom, mas tem uma coisa que eu preciso falar, eu te amo, muito. Você é uma pessoa incrível, meu anjo da guarda.

- Ah Ana, eu também te amo! – E as lágrimas já estavam caindo dos seus olhos.

- Ei, e a mim, ninguém ama não? – Susana brincou.

- Deixa de ser besta.  O nosso amor é de irmã.  E eu te amo como mulher. Isso é totalmente diferente!– Ela respondeu.

- Obrigada Susana, não tenho palavras para agradecer. – Caminhei até ela e a abracei.

- Que é isso, eu sei que faria o mesmo por nós. – Retrucou devolvendo o abraço

- Ana não fica brava comigo, preciso te contar uma coisa, ontem eu liguei para seus pais, me desculpe, mas estava muito preocupada e...

- Fica tranquila Sisse, é bom mesmo que venham. Eu tomei algumas decisões e preciso falar com eles sobre isso.

- Ué como você sabe que eles estão vindo?

- Por que eu conheço meu pai e principalmente minha mãe. – Sorri enternecida – Mas você não contou tudo a eles né?

- Não só disse que você e Clara tinham brigado e que você estava muito triste. Achei melhor você mesma contar. Depois não precisei falar mais nada. Sua mãe queria vir ontem mesmo, mas falei que não precisava.  Eles devem estar para chegar.

- Ok, vou tomar um banho, não quero que me vejam assim toda destrambelhada. Outra coisa, você guardou tudo que estava jogado em cima da cama né?

- Guardei por quê?

- Havia um cartão com um numero de celular, onde colocou?

- Pra que você quer aquilo? O que você esta pensando em fazer.

- Eu preciso falar com Alicia.

- Como você sabe que é dela?

- Porque a carta era pra ela esqueceu?  E depois ela disse que eu a procuraria, e estava certa.

- Eu devia era ter queimado tudo aquilo, isso sim. Aquela ...

- Para Sisse, não se fica assim. Ela não merece nem a nossa raiva, apenas desprezo, e ainda bem que não queimou, pois eu quero tudo aquilo. Acha o cartão para mim tá bom?

Fui tomar banho e me arrumar, não deixaria meus pais me verem daquele jeito, destruída. Logo que sai do chuveiro eles chegaram. Assim que me viu minha mãe se jogou em meus braços:

- Filha, me perdoa. Nunca imaginei que isso aconteceria. Você está bem?  A briga foi muito feia?

- Oi mãe, pai. - Disse beijando seu rosto. -  Foi definitiva.

- Princesa, você esta bem mesmo ? – Perguntou carinhosamente meu pai ao me abraçar.

- Estou sim, mas fico feliz que estejam aqui comigo.  Além disso, preciso falar com todos vocês.

Sentamos-nos na sala, minha mãe segurando minhas mãos.

- Nesses últimos meses, eu deixei muita coisa acontecer em minha vida sem me preocupar se estava certo ou errado. Deixei minhas emoções tomarem o rumo de minha vida, e isso nunca poderia ter acontecido. Todos você sabem o quanto amo Clara, e como foi difícil ficar longe dela todos esses anos. Por isso quando ela retornou só conseguia pensar em como trazê-la de volta para mim. Eu errei. Hoje sei que deveria ter continuado com minha vida, e deixado o passado para trás. Como não fiz isso, agora preciso entrar no eixo da minha vida novamente, então tomei uma decisão e vou precisar da ajuda de cada um. Resolvi que vou viajar e devo ficar fora um bom tempo, pelo menos uns seis meses, para poder colocar as minhas emoções e a minha cabeça no lugar novamente.

- Filha por que isso? Uma briga e você esta tomando uma decisão tão incisiva. Todo casal tem suas desavenças.

- Porque eu preciso mãe, só isso. E creia não foi só uma desavença. Chegou a hora de dizer adeus a esse sentimento. Por favor, respeite isso.  Pai eu não posso deixar o escritório a Deus dará, tenho alguns casos pendentes e muito importantes, algumas audiências agendadas. Sei que ainda esta com a sua carteira da OAB em dia e vou precisar que você assuma isso pra mim. Sei que estou pedindo muito, afinal está aposentado, mas eu só confio em você para tomar conta de tudo.

- Faça o que você precisar minha filha, pode deixar que eu cuido de tudo por aqui. Fique tranquila quanto a isso. Se você precisa ir então vá.

- Obrigada pai, sabia que podia contar com você. Quero que fiquem aqui no meu apartamento e tenho certeza de que o pessoal do escritório vai auxiliá-lo no que precisar.

- Também tenho filha. – Respondeu sorrindo

- Agora eu quero falar sobre Clara.

Todos olharam fixamente para mim.

- Nós terminamos, e não haverá volta. Por isso tenho alguns pedidos pra fazer, primeiro: não quero nenhum comentário sobre o que aconteceu, com ninguém, nada mesmo, entendeu Sisse?

- Humpff! Não posso prometer isso!

- Pode sim. E vai, por mim, por favor.

-Como vou comentar sobre o que aconteceu se eu não sei o que houve. Mas gostaria de conversar com Clara sobre isso, afinal se vocês voltaram a culpa foi minha. – Disse minha mãe.

- Não mãe. É sério. Se você fizer isso vou ficar muito sentida com você.

- Nossa Ana, por que tudo isso? Não dá pra entender. Se vocês não querem ficar mais juntas eu também tenho que me afastar dela? Não podem pelo menos serem amigas?

- Mãe, só faz o que estou pedindo tá bom? No nosso caso o melhor é que não aja mais nenhum tipo de contato.

- Se você quer assim tudo bem. Apesar de não concordar. Você é minha filha e como disse tenho que respeitar suas vontades. Mas e se ela nos procurar?

- Pode até ser que o faça. Nesse caso digam apenas que eu resolvi viajar e não tenho data pra voltar. Ela não deve perguntar para onde fui, mas se fizer isso respondam que não sabem. Tratem-na como se nada houvesse acontecido.

- Ah não ai já esta pedindo demais pra mim. Não vou fazer isso de jeito nenhum. Eu te amo, mas não me peça isso. Hum hum. – Sisse estava com raiva.

-Ei menina brava, se me ama como diz, fará exatamente isso.

- Ana!!! Como pode me pedir isso!

- Meninas afinal o que aconteceu? Clarice porque esta tão brava? Tem alguma coisa errada. Isso não está parecendo só uma briga.

- Não tem nada errado não dona Vânia. A Sisse é que é dramática. Está brava porque brigamos e tomando minhas dores. - Disse olhando séria para Clarice

- E se não quisermos fazer isso? – Falou com cara fechada

- Se vocês não fizerem isso eu não vou avisar onde estou não mando noticias, nem nada. Simples assim!

- Isso é chantagem emocional! – Sisse disse emburrada

- Pode ser, mas é assim que será. E ai o que você prefere Sisse?

Ela só me olhou e bufou.

- Filha, eu não sou de me meter na sua vida e você sabe disso, mas essa história está muito estranha. Não me importo de cuidar do escritório, nem de tratar a Clara como se nada houvesse acontecido afinal ela não me fez nada, mas isso não esta me parecendo só um conflito entre namoradas.

- Pai, não se preocupe ok? Eu estou bem, só preciso de um tempo pra mim. E acho melhor que o que aconteceu fique apenas entre mim e ela. Tá bom?

- E aonde você vai se enfiar madame ? No Timbuktu?  – Sisse ironizando era engraçado

- Até poderia, mas não. Os meus vistos ainda estão na validade, e meu passaporte em dia, então provavelmente eu vá ou para os Estados Unidos ou para algum país na Europa, ainda não sei, mas vocês vão saber daqui a pouco, quando eu comprar a passagem. Eu quero ver se embarco ainda hoje à noite.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo e eu aguardei que se acalmassem para continuar:

- Eu vou hoje á noite se conseguir passagem, é o que eu quero, e é o que eu vou fazer. Não adianta vocês tumultuarem.

- Você esta parecendo uma fugitiva Ana Lúcia, e eu não estou gostando nada disso! – Repreendeu minha mãe.

- Mãe eu não matei, não roubei, não estuprei e não prejudiquei ninguém pode ficar tranquila. Só quero ir viajar, esfriar a cabeça, descansar e não vejo motivo pra esperar. Por favor, tentem entender. Estava mesmo precisando de umas férias. Só serão um pouquinho mais longas.

Houve muito protesto, perguntas, falação, mas eu não arredei o pé. Assim que todos se aquietaram liguei para a companhia aérea e consegui um voo para Madri ás 22h30min. Depois que acertei tudo fui fazer as malas, minha mãe e Sisse apesar das reclamações, me ajudaram.

Depois minha mãe foi fazer um café e eu fiquei sozinha com Clarice.

- Ana porque não conta tudo o que aconteceu para seus pais?

- Por que Sisse seria doloroso demais pra eles. Mais do que você pensa. Imagine como minha mãe se sentiria depois de tudo o que fez para que ficássemos juntas?  Não, já basta eu ter sofrido por conta do jogo sujo de Clara. Não deixarei que ela machuque as pessoas que mais amo no mundo.

- Você está certa. Melhor que não saibam quem é a megera. E depois daqui uns tempos ela some de novo. Deixa pra lá.

- É isso ai.

Ao terminar tudo o que tinha pra fazer, peguei meu celular e liguei para Alicia que atendeu no segundo toque:

- Alicia?

- Oi Ana. Estava esperando sua ligação.

- Como você disse aqui estou te procurando. Podemos conversar?

- Claro que sim. Quer que eu vá até ai agora?

- Não. Eu vou a sua casa. Pode, por favor, me passar o endereço?

- Eu estou em um Apart-hotel, aqui nos Jardins. Esta com papel e caneta em mãos?

Eu anotei o endereço que me passou e me despedi. Avisei Clarisse e meus pais que iria sair e fui direto encontrá-la. Eu tinha que deixar as coisas às claras antes de ir embora do Brasil. Não queria deixar nada pendente e nenhuma dívida para trás.

Fim do capítulo