Eram nove horas da manhã e eu já estava atrasada, não que o relógio não tivesse despertado, mas é que na hora em que ele fez isso, acordei agarrada em Clara, e sentindo seu corpo ali a disposição do meu preferi fazer amor a me levantar para ir trabalhar, agora estávamos deitadas, ela sobre meu peito, eu enchendo o pulmão de nicotina, enquanto acariciava seus cabelos negros. Era bom demais pra ser verdade, eu quase não conseguia acreditar que isso estava acontecendo, e sorria como boba.

- É tão perfeito ter você aqui em meus braços logo de manhã. Acho que temos de tomar providencias para que isso vire uma rotina diária, não acha?

- Vamos com calma meu amor, tudo tem seu tempo.

- Eu acho que o tempo deve passar bem rápido nesse caso.

- Boba. Analu, eu preciso te falar uma coisa séria. Ia puxar o assunto ontem à noite, mas não deu. O clima estava bom demais pra vir com coisas cotidianas.

- O que foi Clarinha?  Algum problema? – Perguntei preocupada

Ela levantou a cabeça para me olhar, se apoiando com os braços ao meu redor.

- Ontem quando cheguei na emissora, eles vieram trazer a grade das matérias que foram aprovadas para os próximos programas. Os lugares escolhidos são maravilhosos e estou bem empolgada. Eu sei que não é a melhor hora pra isso já que gostaria muito de estar com você todos os dias, mas é meu trabalho. Eu não sei se você vai aceitar que eu continue fazendo o que faço, vou ver se consigo uma vaga na editoração...

- Ei, ei, ei, pode parar mocinha. Que história é essa Clara. Jamais pediria algo assim para você, amor. Sei que deve ter se empenhado muito pra se formar, me lembro bem que ser jornalista sempre foi seu sonho. É claro que adoraria poder ter você a hora que eu quisesse, mas não seria justo e nem correto tirar esse sonho de você.

- Eu amo a minha profissão. É estimulante, empolgante e como gosto do que faço nem parece trabalho. E fazer esse tipo de matéria é tão gostoso, conhecer outros lugares, mostrar os hotéis, passeios, belezas naturais. É bom demais saber que muitas pessoas vão conhecer outros pontos turísticos por que viram seu programa na televisão!

- É dá pra perceber pelo brilho dos teus olhos quando fala disso.  Você fica toda iluminada. E onde será essa matéria?

-  É uma matéria sobre as belezas naturais da Patagônia na cidade de Ushuaia, na Argentina. – Disse mordendo os lábios.

- Patagônia...entendi. Na cidade chamada pelos turistas de “Fim do Mundo”.  Quantos dias vou ficar triste aqui no meu cantinho sem te ver?

- Ai amor, você é tão incrível! – Disse me dando um selinho. – Pensei que ia ficar muito brava, mas ao invés disso você vem mansamente me perguntar quantos dias vai ficar sem mim.

- Já te falei, eu sei que o trabalho é importante pra você. E como você é importante pra mim, quero sempre te ver feliz.  Depois amor, eu também às vezes preciso viajar pelo mesmo motivo que você, trabalho, e sei que você não vai brigar comigo por isso.

- Claro que não Ana, eu tenho o maior orgulho de você. Uma doutora, e das melhores pelo que eu soube.

- Sério? Me conta quem te falou isso sobre mim, que eu preciso pagar.

- Besta. Mas voltando a falar sobre a viagem, ficarei fora cinco dias.

- Uau! Agora me matou do coração! – E fiz uma careta. – Tanto tempo? Poxa vida, isso doeu.  Agora me diga como vou fazer pra sobreviver, sem esse corpo gostoso para matar esse tesão louco que me consome? – Passei a mão em seus seios enquanto falava.

- Meu Deus Analu como você esta safada! Era tão tímida. Só pensa nisso agora é?

- Tem coisa melhor pra pensar? Ou fazer? – Modi a sua boca

- Acho que estou indo pro mau caminho mesmo porque acho que você está certa. – Riu - Mas podemos dar um jeito nisso afinal na Patagônia tem sinal de celular. – Me olhou com uma cara bem sacana.

- Ora, oras e depois a safada aqui sou eu? Deixe-me ver se entendi bem, a senhorita está sugerindo que falemos um monte de coisas obscenas uma para a outra pelo telefone enquanto colocamos os nossos dedinhos pra brincar? – Disse erguendo a sobrancelha e sorrindo torto.

- Ana, isso foi uma coisa muito indecente de se dizer assim desse jeito. – Disse fingindo me repreender. – Mas não posso negar que foi isso que eu quis dizer sim. – E caímos na gargalhada.

- E Quando você parte para essa aventura?

- Essa é a pior parte. Sexta feira.

- Já? Nossa agora me pegou de surpresa de verdade.

- Eu sei amor, também não queria te deixar tão rápido. Mas não tenho escolha. Uma parte do pessoal vai amanhã, os aparelhos de filmagem na quinta, eu ainda ganhei mais três dias. Desculpa Analu, não fica brava comigo.

- Que é isso Clara, não estou brava com você. Fazer o que? Trabalho é trabalho, temos que cumprir cronogramas. Assim é a vida amor. Pra quem esperou vinte anos cinco dias passam depressa.  E o mais importante é que estarei aqui te esperando quando você voltar, louca de vontade de te amar. Mas se prepara por que quando você voltar, eu vou te aprisionar na minha cama sem data certa pra te libertar.

- Analu eu juro que se você não existisse mandaria Deus te criar só pra mim.

- Ele já criou amor.

 – Nossa Ana você está bem atrasada! – Falou olhando o relógio – E eu também.

- Estamos mesmo. Vou tomar banho, vem comigo?

- Tem certeza que quer que eu vá tomar banho com você? Se formos juntas para o chuveiro, provavelmente nos atrasaremos ainda mais.

- Agora que eu tenho certeza mesmo! – Respondi beijando sua boca

Ela estava coberta de razão, cheguei ao escritório já passava de uma da tarde. Estava hiper atrasada, mas meu humor estava ótimo, pelo menos até entrar em minha sala e Fatima vir falar comigo.

-Doutora Ana tenho aqui alguns recados para a senhora e uns documentos para assinar. – Disse com as mãos lotadas de papeis assim que entrou.

- Certo me dê os documentos para eu ir assinando enquanto passa os recados.

-O Doutor Maurílio ligou e pediu para marcar uma reunião. Disse que é urgente.

 -Marque para quinta depois do almoço.

- A senhora Sandra do processo da Cafeteria ligou e pediu para avisar que já esta com os documentos necessários em mãos.

- Peça para o moto boy ir retirar ainda hoje.

- O advogado do senhor João Cesar ligou e pediu para a senhora retornar.

- Se ele ligar de novo mande-o para os quintos do inferno, junto com o canalha do cliente dele. Com esse cara não tem mais conversa e nem acordo. Um safado que ajuda a roubar a casa de uma senhora não merecia ser chamado de advogado e sim de escroto.

- A dona Clarisse ligou e pediu que retornasse pois queria detalhes da sua reunião noturna com a nova cliente. Não sei de que reunião ela estava falando, não havia nada em sua agenda.

- Mas eu sei, fique tranquila que eu a mato depois, quer dizer ligo pra ela depois. Essa Clarice qualquer dia me leva a loucura total.

- A doutora Mariana ligou e pediu para avisar...

- A Mariana ligou para falar comigo? – Levantei os olhos dos papeis que estava assinando e prestei atenção ao que ela ia dizer.

- Bem doutora, ela não chegou a pedir para falar com a senhora, só pediu para avisá-la que deixou os processos com o Doutor Marcelo, para que a senhora conversasse com ele. E que não se esquecesse de pegar o currículo da amiga dela que deixou com Gabriela. Falou que é uma pessoa de confiança e que tem certeza que a ajudará em todos os processos trabalhistas.

- Só isso? Não falou mais nada? Não perguntou nada? Não perguntou por mim?

- Não doutora, só falou isso.

- Deixou o número do telefone de onde está trabalhando pelo menos?

- Não senhora.

- Ok. – Respondi suspirando. – Mais alguma coisa Fátima?

- Não senhora, só esses recados mesmo.

- Certo. Pode levar os documentos com você, já estão todos assinados. Obrigada.

Ela pegou os documentos e saiu da sala. Liguei em seguida para Sisse, senão ela iria me atormentar e eu não conseguiria trabalhar em paz.

- Oi Sisse, - Disse assim que atendeu. – Eu não sei como ainda não te matei.

- Nossa achei que estaria de melhor humor, afinal chegando essa hora pra trabalhar, só pode significar que a noite foi ótima.

- E por acaso você acha que minha auxiliar precisa saber que fiz sex* esta noite?

- Deixa de ser boba Ana, sua auxiliar não é idiota. Você acha que ela pensa que você estava fazendo o que que não foi para o escritório de manhã? O que ela deve estar se perguntado é com quem já que Mariana foi embora.

- As pessoas não são como você não Clarice. Sabia que não é todo mundo que fica querendo cuidar da minha vida?

- Nossa o que é que você tem?

- Por que?

- Você está com a voz estranha e me tratando com grosseria também.

- Impressão sua.

-Ana eu te conheço, fala logo.

- Não é nada Clarice. – Falei, depois respondi. - Tá bom eu estou chateada.

- O que foi?

- Mari ligou e nem perguntou por mim.

-Ana, não fica assim, tente entender.

- Entender o que? Poxa, será que nunca mais vamos poder ser amigas pelo menos?

- Claro que sim, mas no momento ela não está pronta pra isso. Ela te ama, não pode ser sua amiga de uma hora pra outra. Dá um tempo pra ela.

- Da um tempo! Minha vida anda querendo tempo pra muita coisa.

- Para com esse lenga lenga , vamos mudar de assunto. Me conta o que aconteceu ontem à noite.

- O que você quer que te conte? Espero que não esteja esperando por uma descrição da trans* né, porque é só o que me faltava. Já até imagino você querendo saber quantas vezes, em que lugares, as posições...

- Olha aqui Ana, eu jamais faria isso e você sabe. Apesar que às vezes fico curiosa.

- Eu não acredito. Jesus!

- O que eu quero saber é sobre as fotos. E aí? São suas mesmo?

- Não sei Sisse, a Clara não encontrou as fotos.

- Como assim não encontrou?

- Disse que devem estar em alguma caixa da mudança que ela ainda não abriu.

- Estranho, se fosse eu seria a primeira coisa que tentaria solucionar. Teria vasculhado tudo.

- É, mas a Clara tinha um monte de coisas pra fazer, e depois ela falou que acreditou em tudo o que contei e disse que as fotos não têm mais importância pra ela.

- E você vai deixar isso de lado?

- Não, pedi pra ela procurar por elas e assim que der me trazer.

- Ah, tá. Era só isso. Bom então a gente se fala depois. Beijo

- Tá. Beijo

Assim que terminei de falar com ela virei minha cadeira de frente para a janela enorme que havia em minha sala, me recostei e fiquei pensando nos acontecimentos dos últimos meses, minha vida particular tinha mudado drasticamente. E tudo tinha sido rápido demais, intenso demais. Perdas e ganhos, brigas e entendimentos, risos e lágrimas. Eu estava feliz como há muito não ficava, mas ao mesmo tempo estava muito triste e sentida, coisa que também não acontecia há tempos. Estava com uma sensação esquisita dentro do peito, uma angustia, como se alguma coisa de muito ruim fosse acontecer, eu tinha um defeito na vida não acreditava em tanta felicidade sem um fundo obscuro junto.

Isso estava me incomodando tanto, que às vezes o medo invadia os meus pensamentos. Precisava parar de pensar naquelas coisas, já tivera minha cota de tristeza, agora talvez fosse a hora de ser feliz e pronto. Tinha feito as minhas escolhas e agora era seguir em frente, só isso nada mais. Estava tão entretida pensando em minha vida que não vi o tempo mudar, quando dei por mim o sol tinha sumido e o céu estava escuro num prenuncio de tempestade, um trovão ribombou no exato instante em que um raio cortou o céu, um arrepio atravessou meu corpo de cima a baixo como um mau presságio, me benzi e voltei a trabalhar enquanto a chuva começava a cair.

Fim do capítulo