Capítulo 1
“Todo dia ela faz tudo sempre igual. Me sacode às seis horas da manhã. Me sorri um sorriso pontual. E me beija com a boca de hortelã. “
Cotidiano – Chico Buarque
O despertador tocava insistentemente. A negra olha para o aparelho tentando focalizar as horas. 05h15min. Com o corpo ainda sonolento levantava indo diretamente para o banheiro. Depois de dez minutos tentando abrir os olhos, a água gelada do chuveiro se fazia ouvir. Agora sim, Selena poderia dizer que acordou.
Saia enrolada na toalha com estampa da Mulher Maravilha, sua heroína preferida no alto dos seus 26 anos. Selena Silva Cardoso era uma mulher negra, gordinha, de estatura mediana tinha 1,63 cm e olhos amendoados expressivos e marcantes. Tudo que ela precisava transmitir era através do olhar. Havia terminado sua faculdade de Administração, mas por conta do mercado de trabalho não esta favorável acabou sendo contratada como secretaria de uma advogada que tinha o apelido pelos corredores do setor de Cruella Devill. Dispensava explicações.
Após terminar seu desjejum saiu sem fazer barulho para não acordar sua mãe, Vera. Uma senhora de 57 anos que estava adoentada e precisava de repouso. Desceu as escadas do prédio de quatro andares onde morava no bairro do Cabula na capital baiana.
Assim que saiu na avenida viu as sentinelas do chefe da área. Cumprimentou-os como fazia todos os dias e como habitual eles a levaram até o ponto retornando para seu posto. Nos últimos três anos acabaram desenvolvendo certo coleguismo com eles ao ponto de se permitirem brincadeiras sutis. Eles sabiam que ela não se envolveria com pessoas com a ficha deles então não tentavam ultrapassar os limites e a relação entre ambos os lados seguia.
Exatamente às 6 horas o ônibus que a levaria para o Escritório Barcelos E Advogados Associados no sexto andar do Edifício Torres da Lapa na Praça da Piedade parava em seu ponto já lotado de pessoas que assim como ela, também precisavam ganhar o pão de cada dia. O percurso de seu bairro até o ponto onde desceria na Estação da Lapa durava uma hora se houvesse pouco engarrafamento, quase sempre o engarrafamento começava na saída da Avenida Silveira Martins e estendia-se até a região da Estação Rodoviária do Iguatemi fazendo com que a jovem sempre chegasse uns minutos atrasada. Sua sorte era que sua chefa Ana Lara Caldera Barcelos só chegava depois das 9horas.
Passava pelos porteiros e seguranças sempre sorrindo. Gentileza era sua maior qualidade e todos a admiravam por ela conseguir suportar o humor nefasto de Ana Lara. Assim que chegava a sua sala providenciava um café forte para si e o suco de hortelã com abacaxi da sua chefa deixando-o em seu frigobar particular junto com água gaseificada sabor limão, refrigerante e uma barra do chocolate Diamante Negro.
Voltava a sua mesa e iniciava a agenda do dia com uma serie de ligações, recados a serem passados e instruções que Ana deixava anotado em sua mesa. Neste dia em especial, ela, Ana, havia deixado o recado para que sua subordinada comprasse um buque de rosas vermelhas e mandasse entregar em um endereço já conhecido pela jovem. Avenida Professor Pinto de Aguiar onde residia a mais nova distração de sua chefa.
Ana Lara era uma morena alta, tinha 1,78 cm, cabelos negros lisos e atualmente curtos em um penteado moderno, 32 anos bem vividos, um pouco acima do peso, fato este nunca notado devido ao corpo bem distribuído, um olhar castanho expressivo e mau humor constante. Trocava de namorada mais vezes do que escolhia roupas. E era também o motivo dos sonhos mais quentes de Selena.
Aquela mulher a atraia de forma inexplicável e muitas vezes a jovem negra ficou admirando-a quando sua chefa repousava no escritório quando atacada por sua habitual enxaqueca. Selena distraia-se com um jogo no computador quando ouviu as passadas ritmadas e impacientes produzidas por um scarpim preto e o aroma do Lily Essence invadiu a sala. A doutora Ana estava próxima.
A porta abriu-se dando passagem para aquela mulher que habitualmente trajava um look composto de um terno executivo em corte feminino preto e óculos escuros no rosto. Cumprimentou a jovem e pediu que a mesma fosse a sua sala. Deu ordem de não passar ligação alguma e que não estaria no escritório para ninguém.
Ao tirar os óculos, Selena viu o que pensou jamais presenciar. Os olhos de sua amada estavam inchados de uma noite de choro. Não demonstrou surpresa, pois sabia que sua chefa odiava que sentissem compaixão dela. Saiu para cumprir suas ordens, mas o pensamento estava na sala ao lado e no desejo de saber o motivo de tal infortúnio.
Saiu para o almoço e providenciou o da morena. Escolheu em um restaurante próximo o prato preferido da outra. Embora soubesse que dificilmente seria notada pela mesma, procurava sempre agradá-la fazendo suas vontades, mesmo quando lhe doía por dentro. Recebeu um sorriso fraco de agradecimento ao depositar a sacola em sua mesa.
Passou o resto do expediente inquieta. Desejava saber o motivo da tristeza que se fazia presente no olhar castanho. Perto das 18horas, Ana pediu que ela fosse a sua sala. Quando entrou viu a silhueta de sua chefa olhando o escurecer da cidade. Ana pediu que a jovem sentasse e após alguns minutos de silencio iniciou a falar.
-Sei que não sou a pessoa mais bem quista deste escritório. Conheço todos os meus apelidos. Cruela, Madrasta da Branca de Neve, Elvira, Miranda Priestly, Carmila. Embora ache esse ultimo um tanto quanto exagerado. Não ando sugando o sangue de ninguém. – sorriu verdadeiramente e Selena pensou nunca ter visto algo mais lindo que seu sorriso. – Sei também que muitas vezes abuso de sua boa vontade exigindo coisas absurdas. Veja bem, estou reconhecendo meus defeitos. Quem diria não? – outra faceta da moça, bom humor. Este era muito bem resguardado.
-Vejo que tem bom humor. – arriscou a mulher negra.
-Tenho sim. Embora não demonstre. – encostou-se a seu assento avaliando a jovem a sua frente. – Diga-me Selena. Por que continua trabalhando para mim?
A jovem havia sido pega desprevenida. Nem ela mesma sabia o motivo de continuar ali. Mentira. Sabia sim. Sua paixão platônica pela morena, mas não poderia revelar. Daria a resposta que naquele momento julgou ser menos mentirosa.
-Não sei.
-Como? – Ana Lara não acreditou por um segundo nessa tentativa de evasão.
-Não sabendo. Aceitei o emprego pela situação financeira. Talvez tenha me acostumado. – falava com o olhar distante. Tentando identificar um rosto no quadro que estava pendurado atrás da morena.
-Hum! Certo. Não gosto de compromissos duradouros e me entedio muito fácil das distrações que adquiro. – referia-se a extensa lista de ex-namoradas. – apesar de que com a ultima até que demorei muito. Um mês e um dia. Por mais intransigente que eu aparente ser. E sou. Sei reconhecer um bom funcionário. Bom, tenho certeza quase absoluta que desejas saber o motivo da minha olheira profunda. Lembra que certa vez tive um desmaio aqui? Pois bem. Consultei-me e fiz alguns exames. Ontem saiu o resultado e como eu previa tenho uma doença grave e hereditária. Sai da clinica inconsolável e me dirigi à casa da minha até então namorada. – desviou o olhar para a janela. – qual não foi a minha surpresa ao encontrá-la nua em cima da cama com Roger Victor Campelo.
Selena sabia da rivalidade entre os dois advogados e sabia também que essa disputa se estendia a esfera das conquistas. Não entendia quando começou, sabia apenas que aparentemente seu fim estava longe.
-Não a culpo, pois ele é um homem bonito e sabe seduzir uma mulher. Mas naquele momento me sentia tão angustiada que precisava me sentir segura. – uma lagrima solitária desceu, comprimindo ainda mais o coração da jovem Selena. – Aliado a isso, também tem um sentimento que tentei sufocar de todas as maneiras imagináveis. Não deveria senti-lo, não podia. Quando eu pensava estar enfim vencendo aquele desejo algo invertia as situações. Até que me dei conta de que estava apaixonando-me.
Selena ficou visivelmente surpresa com aquela confissão. Seu coração doía. Havia perdido as remotas chances de ser um dia notada. Deixou que a outra falasse enquanto se perdia em suas divagações.
-Também quem não se apaixonaria por ela. Tão linda. Um sorriso doce, sempre gentil com todos inclusive comigo. Não sei nada de sua vida, exceto o nome. E vê-la diariamente passou a ser um dos momentos mais alegres do meu dia. – o olhar castanho brilhava refletindo ternura ao lembrar-se de sua enamorada.
Se ela a vê diariamente quer dizer que provavelmente ela trabalha no prédio. Será que é a doutora Noêmia? Acho pouco provável. Elas não parecem simpatizar uma com a outra. Mas elas podem estar disfarçando. – a mente de Selena fervilhava de hipóteses.
-Não sei como não a notei antes. Nem sei se ela sente ou sentirá algo um dia por mim, mas gostaria de tentar uma aproximação. Espero que ela não pense que a quero para minha “coleção de mulheres”. O que acha que devo fazer? – perguntou olhando em seus olhos.
-Acho... Acho que deveria tentar. – sua voz oscilava e ela tentava não aparentar o abalo que a noticia lhe causara fugindo daquele olhar que parecia desnudá-la. – Deveria... Dizer como se sente. – não conseguiu reprimir uma lagrima solitária. – Se me der licença, preciso ir.
Selena saiu em disparada passando em sua sala apenas para pegar sua bolsa e deixando uma Ana Lara confusa. Já nos corredores do prédio as lagrimas desciam livres. Entrou no elevador vazio se dirigindo ao térreo. Antes de sair do prédio foi ao banheiro lavar o rosto e retocar a maquiagem. As palavras de Ana circulavam em sua cabeça. Não conseguia entender como nunca percebeu nenhuma mudança no comportamento dela. Estava tão centrada em seu sentimento que não viu quando seu objeto de adoração passou a perceber e ser de outra.
“Teu amor faz cometer loucura. Faz mais, depois faz acordar chorando. Pra fazer e acontecer verdades e mentiras. Faz crer, faz desacreditar de tudo.”
Quando Fevereiro Chegar – Geraldo Azevedo
Assim que chegou ao ponto de ônibus sua condução se aproximava. Foi à viagem toda introspectiva e triste. Seu amor jamais seria correspondido e não poderia continuar trabalhando lá. Seria masoquismo ser obrigada a ver Ana com outra e em seu rosto transbordar felicidade. Como o escritório não abria aos sábados redigiria sua carta de demissão e a apresentaria na segunda feira assim que sua chefa chegasse.
Conversou brevemente com sua mãe alegando dor de cabeça. Tomou um banho morno e enfiou-se debaixo da coberta das Meninas Super Poderosas enquanto começava a rodar o filme Lost and Delirious (Assunto de Meninas) posto em seu aparelho DVD. Seu filme de fossa como dizia as poucas amigas que conseguiu conservar dos tempos de escola e faculdade.
Dormiu antes de completar uma hora de filme com os olhos inchados do choro a dor do amor perdido. O domingo amanheceu igual ao seu humor, nublado. A preguiça habitual estava acompanhada do desanimo. Sua mãe percebendo seu estado fez pizzas de variados sabores e como sobremesa brigadeiro de panela. Sua mãe adivinhava seu estado emocional. Passou o dia assistindo alguns filmes como Boys dont cry (Meninos não choram), Prayers for Bobby (Orações para Bobby) e tantos outros dramas.
“Saudade, palavra triste quando se perde um grande amor. Na estrada longa da vida eu vou chorando a minha dor.”
Meu Primeiro Amor – João Mineiro e Marciano
Segunda recomeçou a sua rotina. Antes das 06h00min estava no ponto. Em sua bolsa sua carta de demissão já redigida e impressa. Chegou à empresa em seu horário e repetiu seu ritual. Parou no meio da sala de sua chefa e admirou o local pela ultima vez. Levaria boas recordações em sua memória. Voltou para sua sala à espera dos passos dos passos do scarpim.
Estranhamente Ana não apareceu durante a manhã. Certamente já deveria ter confessado-se a sua enamorada e estariam desfrutando de momentos de carinho e prazer. Momentos esses que tanto desejou e agora se revelava impossível de concretizar. Noêmia Camargo ligou diversas vezes procurando por Ana. O que causou uma confusão na negra já que supostamente ela seria a paixão de Ana, talvez tivesse equivocado e fosse outra pessoa, mais quem seria sua eterna rival?!
“Como cortar pela raiz se já deu flor? Como inventar um adeus se já é amor?”
Morada – Sandy
Passou o dia a espera de noticias de sua chefa. Quando o relógio marcava 17h30min Ana entrou pedindo que fosse a sua sala. Assim que entrou entregou-lhe o envelope. Ana pegou-o achando estranha a seriedade e formalidade de sua secretária. Abriu com cuidado e se pos a ler. Ao termino desta, entregou o papel negando-lhe a demissão. Não poderia aceitar nem deixar que a moça partisse.
-Sabe que posso e vou levar ao RH. A partir de amanhã Sueli ficará em meu lugar. Antes de sair a instruirei sobre a organização de sua agenda. – dizia de forma seca.
-Por quê? – a outra lhe perguntou perturbada com a noticia e a forma com a qual estava sendo tratada.
-Não posso mais trabalhar aqui. – não quero vê-la feliz com outra.
-O que eu fiz? Por favor, diga-me. – levantou-se encurtando a distancia entre elas.
-Já tomei minha decisão. Se não irá aceitá-la levarei ao Adamastor. – preparava-se para sair quando sentiu uma mão segurando seu braço.
-Não posso deixar que se vá sem me explicar o que eu fiz que a magoou tanto. – a determinação nos olhos castanhos.
-Não há nada para explicar. Estou demitindo-me apenas. – puxou seu braço sentindo o calor daquelas mãos esvaírem-se.
-Não. – fechou a porta encostando-se a ela. – Daqui você não sai se for para demitir-se. – Ana sentia o desespero querer apoderar-se.
-Vou gritar.
-Pode fazer um escândalo. Daqui você não irá sair.
-Por quê?
-Não quero.
-É só um capricho seu. Logo encontrará outra melhor que eu para a função.
-Não quero que vá. Não entende isso. Não haverá outra igual a você.
Por mais que ensaiasse mentalmente dizer, as palavras travavam na garganta da advogada. Seu olhar começava a ficar marejado e pensava no que fazer para que Selena não a abandonasse. Selena deixava as lágrimas verterem de seus olhos o que causou dor no coração de Ana. Saiu da porta dirigindo-se a jovem com olhar preocupado.
-Por favor, não chore. Diga-me o porquê deseja deixar-me. O que lhe fiz.
-Não posso ficar aqui. Não quero ver o que acontecerá.
-Não entendo. O que irá acontecer que não estou sabendo? – afagou seu braço.
-Não desejo ver você e sua amada ostentarem a felicidade do casal por aqui. – afastou-se rispidamente.
Chorava sentada em um sofá ao canto da sala. Ana entendeu o que a jovem tentava dizer e sorriu. Agora percebia que seu sentimento era correspondido. Sorriu de felicidade em saber que lutou durante meses por algo que também era desejado. Selena tomou aquele sorriso como ofensa e deboche. Levantou-se apressada aproveitando à deixa para sair. Antes que conseguisse destrancar a porta ouviu a declaração da outra.
-Não posso deixar que se vá, porque és tu a quem desejo. Estou apaixonada por ti, Selena. – Ana falou parada a poucos centímetros de onde Selena se encontrava.
-Co... Como? – a jovem pensara ter ouvido algo errado.
-É de ti que gosto. Falava de ti quando falei do sorriso doce e gentil. Não sei como e quando aconteceu, mas aconteceu. Eu te vi e me encantei. – falava enquanto a enlaçava para um beijo.
Selena chorava agora de alegria e suas lagrimas misturaram-se a da morena. O beijo intensificou-se e decidiram sair dali. Foram para a casa da morena consumar o desejo que as consumia e entre lençóis de seda e juras de amor sob o céu estrelado, o casal enamorado se descobria.
Horas mais tarde, conversavam enquanto lanchavam. Selena descobriu o dote culinário impressionante da morena. Mais uma faceta. Selena contou-lhe quando se percebeu apaixonada pela sua chefa e o motivo da saída intempestiva da sala na semana antecessora. Ana sorriu e disse próxima ao ouvido da negra em seu tom normalmente grave e rouco pelo desejo que se avizinhava.
-Agora que te encontrei e me descobri em você, não te deixo fácil minha menina. – beijaram-se dando inicio a outras caricias.
“Você vai me seguir. Sou sua heroína e vilã. Viva comigo essa noite e esqueça o amanhã.”
Heroína e Vilã – Ana Carolina e Andre Villeroy
Fim do capítulo
Hola hermosas!
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Salt
Em: 20/04/2016
Olá Dama, que bonissíma surpresa, encontrar mais um belo escrito seu.
Quão felizes são os amantes, ao descobrir que o sentimento é recíproco, assim como aconteceu a Selena ao ouvir de sua amada, que também a ama
E como já dizia Renato Russo, "... quem um dia irá dizer, que existe razão nas coisas feitas pelo coração...". Creio que Ana jamais se imaginou apaixonada por sua secretária, e no entanto, parece que esta será mais uma doce história de final feliz.
Resposta do autor em 22/04/2016:
Ola moça,as vezes esses hiatos me assolam até que lhes de vida.
"O amor é um rock..." como diria Tom Zé. No caso dessas duas com uma pitada de drama :) Esta historia terá final feliz sim, se é que existe final. O amor torna tudo póssivel.
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Silvia Moura
Em: 17/04/2016
Tão doce sua estoria... amei...tem parte dois?
"Eu te mumurro
Eu te suspiro
Eu, que soletro
Teu nome no escuro.”
Chico Buarque.
Autora... boa noite, fica com a Deusa... beijos...
Resposta do autor em 17/04/2016:
Doce é amar...
Boa noite,fica com a Deusa voce também.
Beijos.
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