Servi um prato com a comida que tinha preparado para Giovanna e montei uma mesa improvisada para nós duas no balcão mesmo. Tinha acabado de pôr o pé no primeiro degrau da escada quando o interfone tocou na cozinha. Era o porteiro avisando que tinha chegado uma encomenda endereçada a mim, não consegui lembrar-me de algo que estivesse esperando, mas disse que depois desceria para pegar.

            Desliguei e subi as escadas para chamar Giovanna, caso contrário a comida esfriaria novamente. Entrei no quarto chamando por ela, mas o barulho do chuveiro me fez ter a certeza de que ela ainda estava no banho. A porta estava aberta, por isso não me fiz de rogada, entrei mesmo sem ser convidada.

            Espantei-me quando a vi. Ela estava com os braços estendidos apoiando-se nas paredes de azulejos. Seus olhos fechados e o rosto lívido fizeram com a que minha preocupação subisse assustadoramente em questão de segundos. Chamei-a, e quando ela finalmente me olhou tive a certeza de que nada estava bem.

            Desesperei-me, e antes que eu pudesse chegar até ela seu corpo começava a cair para trás. Esforcei-me como pude, e uma agilidade incomum me fez segurar o corpo de minha esposa. Ajoelhei-me com ela em meus braços. A água ainda caia, assim como as lágrimas que brotavam em meus olhos.

-- Giovanna meu amor. Giovanna? Acorda vida.

            Eu falava enquanto tocava seu rosto. Giovanna estava muito pálida, e seu corpo não estava gélido apenas pela água que caia sobre nós. Tomei seu pulso. Sua pressão estava muito baixa.

            Levantei com ela em meu colo e a levei até a cama. Deitei-a com todo o cuidado, enrolei seu corpo com uma toalha e sentei ao seu lado, chamando-a novamente. Meu desespero estava chegando a um nível absurdo, já tinha se passado certo tempo e nada de Giovanna acordar.

-- Meu amor acorda, não faz isso comigo não. – falei beijando seus lábios suavemente.

            Ouvi um pequeno resmungo vindo da ruiva e eu voltei meu olhar para ela, na expectativa de que ela enfim abrisse os olhos. Aos poucos pude enxergar novamente aquele azul lindo e vibrante dos olhos dela. Ela olhava em volta, me olhava com atenção, parecendo estar perdida.

-- Oi meu amor.

-- O que houve? – perguntou franzindo a testa.

-- Você desmaiou meu amor. Graças a Deus eu estava aqui, do contrário você teria caído dentro do Box. O que foi que aconteceu? Ainda está sentindo algo?

-- Não sei bem, de repente comecei a me sentir fraca, fiquei meio zonza e as coisas foram ficando escuras. – suspirou – Estou sentindo meu corpo mole.

-- Acho que a sua pressão baixou. Quer ir ao hospital?

-- Não amor, só quero ficar deitadinha aqui, eu vou melhorar.

-- Tudo bem. Mas, se esse mal estar não passar eu vou te levar ao médico ta?

-- Tá bom.

-- Vem, deixa eu vestir algo em você.

            Fui até o guarda roupa, tirei de lá um roupão de banho limpinho e uma toalha seca para ela. Fiz com que ela sentasse na cama, sequei seus cabelos, enxuguei seu corpo com a outra toalha e por fim vesti-lhe o roupão seco.

-- Eu tinha servido um prato para você lá embaixo. È a sua comida favorita. Mas acho que não vai querer comer agora, não é?

-- Estou me sentindo enjoada. É lasanha?

            Aquele sorrisinho me derretia inteira.

-- É sim. Sei que não tem a menor condição de competir com comida de mãe, mas eu fiz com carinho.

-- A sua lasanha é uma delícia amor. Posso comer mais tarde?

-- Claro que pode. Eu vou guardar no forno, quando estiver se sentindo melhor eu sirvo outra vez. Vou pegar alguma bolacha salgada, vai fazer a sua pressão subir.

            Foi só o tempo de descer até a cozinha e voltar com a bolacha salgada, quando entrei novamente no quarto encontrei Giovanna chorando baixinho enquanto passava as mãos sobre a barriga. Sentei na cama e entreguei a ela o pacotinho de bolacha.

            Ela me deu um sorrisinho triste e comeu em silêncio duas das três bolachas do pacote. Fiquei o tempo todo do lado dela, não perguntei nada, apenas estive ali, para quando ela precisasse. Sei que ela me contaria tudo quando se sentisse pronta.

-- Está se sentindo melhor?

-- Um pouco.

-- Deita um pouco, descansa.

-- Preciso que me faça um favor amor.

-- Qual?

-- Liga para a Alice e a Elisa, pede para elas virem até aqui.

            Apesar de estranhar o pedido, não perguntei o que motivou pedido tão repentino. Alcancei o telefone sem fio ao lado da cama e disquei o número de minha amiga. Quando começou a chamar me afastei um pouco.

            Chamou algumas vezes até que eu pudesse ouvir aquela voz efusiva de quem estava sempre feliz.

-- Diz amor. – foi assim que me atendeu.

-- Só uma dica, eu estou perto da Giovanna. – brinquei.

-- Opa! – pigarreou - Diz amiga.

            Sorrimos ao mesmo tempo.

-- Onde você está?

-- Estou no apartamento da Elisa.

-- Depois que a lusitana mudou de vez para cá, você não pensa em outra coisa não é?

-- Ah Malu, vá para a...

-- Olha o linguajar! Será madrinha e tia em breve.

-- Desculpa. – falou em tom arrependido.

-- Agora falando sério: precisamos de vocês. Será que podem vir até aqui?

-- O que aconteceu?

-- Não sei bem. Mas resumindo tudo: fui buscar a Giovanna no trabalho e encontrei o Henrique agarrando o braço dela, dei um murro nele, ele ficou estatelado no chão e a Giovanna ficou emocionalmente abalada, passou mal, desmaiou e agora está chamando vocês.

-- Tá. Estamos indo. Vai ter que me explicar isso direito.

            Alice tinha adquirido uma mania que estava me tirando do sério. Onde foi que ela aprendeu a desligar na cara dos outros, assim, sem mais nem menos?

-- Pronto! Elas estão vindo pra cá.

-- Obrigada.

-- Não quer comer a sua lasanha antes que elas cheguem?

-- Pode ser.

            Giovanna desceu comigo e mais uma vez aqueci a lasanha. Pensei que ela comeria pouco, que provavelmente o enjôo e o que tinha sentido a pouco tiraria o seu apetite, mas acabei me enganando, foi só colocar o prato de lasanha quentinha na frente dela para despertar todo o seu apetite.

            Adorava a catinha que ela fazia a cada nova garfada. Era satisfação, alegria e gula estampadas em uma mesma feição. Eu detinha-me apenas em olhá-la com admiração. Era apenas isso que eu sabia fazer: admirar e amar cada vez mais.

            Depois de levar uma pequena bronca dela, acabei me servindo e comendo junto com ela. A danada ainda roubou pequenas porções de meu prato. Como brigar diante de carinha tão sapeca quanto aquela?

            Lavamos a louça entre uma brincadeira e outra. Giovanna estava mais calma, mais radiante. Sem aquela aura de tristeza de antes.

-- Amor?

-- Oi minha ruiva.

-- Você sabe que eu te amo mais do que tudo nessa vida, não sabe? – perguntou sentando ao meu lado no sofá.

            A campainha soou, e como num passe de mágica, toda aquela tranqüilidade que ela demonstrava sumiu. Literalmente evaporou. Giovanna me lançou um olhar apreensivo, e posso até jurar que senti seu corpo tremer.

            Apertei levemente a sua mão e levantei para abrir aporta. Alice foi a primeira a entrar, e depois, tudo o que enxerguei foi um vulto passar mais do que pressa a minha frente. Era Giovanna. Ela havia corrido e agora estava abraçada à Alice. Sua cabeça estava baixa no ombro de minha amiga, mas aquele som eu conhecia. Gio chorava.

            A cada segundo que se passava eu me sentia perdida e impotente. Não fazia ideia do que podia estar acontecendo, mas meu íntimo me dizia, quer dizer, gritava que tinha tudo haver com Henrique. E era exatamente isso que me dava arrepios.

            Sem que fosse preciso pronunciar nenhuma palavra, Alice e Giovanna sumiram pelo corredor que levava ao quarto de hóspede e escritório. Provavelmente teriam ido para o escritório em busca de mais privacidade. Mas, era mesmo necessário ter privacidade em relação a mim?

-- E então, como é que está o meu sobrinho. – Elisa sentou no sofá a minha frente, me olhando com atenção.

-- A médica disse que está crescendo com muita saúde. Você tinha que ter ouvido as batidas do coraçãozinho. Nunca senti emoção tão grande quanto aquela Elisa. Quase não deu pra ver o rostinho, ainda é tão pequenino.

-- Será que eu poderia ir à próxima ultra?

-- É claro que sim Elisa, você é a tia.

            Elisa sorriu abertamente. Não foi difícil mantermos uma conversa alegre e solta. Só conseguíamos falar do bebê. Elisa estava tão efusiva quanto eu, quer dizer, eu estava bem mais do que ela, não tinha como concorrer.

            Apesar de estar ali conversando, minha atenção não conseguia ficar completamente voltada para Elisa. Eu desejava ser uma mosquinha para poder entrar naquele escritório e saber o que estava acontecendo.

-- Giovanna me contou a opção dos nomes para cada sex*.

-- E você gostou?

-- Amei. Os dois nomes são lindos! Mas tenho que te dizer uma coisa Malu, eu sou a tia, certo, mas vocês não precisam que eu me meta sempre no assunto. Vocês serão as mães, e cabem a vocês duas as decisões mais importantes na vida dessa criança.

-- Eu sei disso Elisa, é que tendo você junto, a probabilidade de erro se torna cada vez menor. Ainda sinto-me insegura, não tive bons exemplos em casa, e agora não sei em quem espelhar e me basear na educação de meu filho.

-- Você vai se sair super bem Malu, acredite, eu posso sentir isso no fundo do meu coração.

-- Elisa, como era o seu irmão?

-- Fisicamente?

-- Fisicamente e emocionalmente.

-- Fisicamente ele era muito parecido comigo, os olhos eram da mesma cor, tínhamos quase a mesma altura e os cabelos dele eram lisos como o meu. Só que os cabelos dele eram mais claros, quase loiros. E emocionalmente falando: Edgar era maduro demais para a idade dele, era bondoso, inteligente, bem humorado, extrovertido, companheiro...meu irmão era uma pessoa maravilhosa.

 Elisa finalizou com um tom de melancolia, e imediatamente me arrependi de ter feito aquela pergunta. Era óbvio que ninguém gostava de falar de pessoas queridas das qual você sentia saudade.

A conversa cessou, meu corpo enrijeceu e meu coração bateu aceleradamente quando ouvi um pequeno soluço. Era Giovanna que entrava na sala abraçada ao corpo de Alice. Seus olhos haviam perdido o brilho natural, estavam avermelhados assim como a ponta de seu nariz. Alice também não tinha uma cara boa, evitava me olhar e parecia abatida. Tinha chorado também.

Me pus de pé.

Diante de tanto silêncio e uma enorme angustia eu meu coração não agüentei mais esperar pacientemente para que algo fosse dito.

-- Será que alguém pode, por favor, me explicar o que está acontecendo aqui?

Perguntei dividindo o olhar entre os três rostos que agora pareciam ter feito um pacto silencioso, de um modo que somente elas haviam se entendido, sem terem trocado palavras entre elas.

-- Alguém? – perguntei pondo as mãos na cabeça.

-- Malu nós precisamos conversar. – começou Alice.

-- Sim, eu sei, sei que precisamos conversar porque eu não estou entendendo mais nada. Fui paciente e compreensiva, mas estou me sentindo como uma peça descartável no meio desse jogo.

-- Amiga, eu preciso que sente que se mantenha calma e pense muito bem antes de fazer ou falar qualquer coisa.

-- Alice chega de enrolar. Podem falar de uma vez.

-- O assunto é bastante delicado.

            Suspirei pesadamente. Estava cansada daquela brincadeira, parecia que eu estava em um labirinto, onde por mais que tentasse não conseguia achar a saída. Fosse o que fosse que me contassem de uma vez por todas e tirassem aquele peso do meu coração. 

            Todas nós nos sentamos, ficando Alice ao lado de Elisa em um sofá, e Giovanna ao meu lado em outro. O clima era pesado, era palpável e sufocante.

            Giovanna apertou as próprias mãos, suspirou, abaixou a cabeça, abriu e fechou a boca várias vezes. Notei o quando estava sendo difícil e senti-me mal por ter perdido a paciência.

-- Amor eu não sei como começar, não sei como te contar isso. Fico tudo martelando dentro da minha cabeça, me torturando, me fazendo sentir nojo e repulsa. Estou com tanto medo de te contar, eu não consigo imaginar qual será a sua reação, e isso me assusta de uma maneira inacreditável. Um sonho não pode se tornar um pesadelo dessa forma... – sussurrou mais para ela do que para mim.

-- Amor não tenha medo, eu estou aqui com você, não vou a lugar nenhum. Me conta o que está acontecendo, o que está te deixando assim.

            Novas lágrimas desciam silenciosamente pela pele alva.

-- Você não vai me perdoar...

-- Amor, por favor.

-- Você lembra-se das palestras que eu tive que participar? As que ocorreram na mesma época do campeonato regional?

-- Lembro.

-- Wilson praticamente me obrigou a ir, mesmo sabendo que eu não teria muito que fazer lá. Eu achei estranho desde o início, mas tive que ir de qualquer jeito, fazia parte de meu trabalho.

            Eu tentava acompanhar cada palavra que Giovanna dizia, mas, eu tinha uma pressa absurda dentro de meu coração.

-- Você me perguntou várias vezes se Henrique iria também, e eu, sempre negava, dizia que não porque era isso que Wilson me garantia. Mas na noite anterior ao nosso regresso para a cidade, teve aquela festa de encerramento. Wilson começou a noite me oferecendo um drink, foi somente isso o que eu tomei. Passadas poucas horas do primeiro drink Wilson me ofereceu outro, esse me pareceu com um gosto estranho e bem mais forte do que o outro. Eu ainda estava bebendo quando te liguei, de longe vi Henrique chegar. Fiquei surpresa com aquilo, ainda mais quando ele se aproximou de mim todo sorridente dizendo que Wilson estava nos chamando. Eu encerrei a ligação e o acompanhei. Só que a bebida começou a ter um efeito estranho sobre mim, comecei a ficar tonta e meio sonolenta. Lembro que em um determinado momento eu quase cai, e quem me ajudou foi Henrique, mas depois disso não me lembro de mais nada.

            Minha garganta começava a ficar seca somente pela menção daquele nome.

-- Não consegue lembrar-se de mais nada?

-- Não! Não consigo, e é isso que me deixa desesperada. – Giovanna parou por um instante procurando as palavras certas para continuar – Henrique me contou hoje o que aconteceu. Quando você chegou a meu consultório, ele tinha acabado de me contar.

-- O que ele contou? – perguntei sentindo meus olhos arderem.

-- Você precisa me perdoar...

-- O que eu preciso perdoar? Conta de uma vez!

-- Malu, calma, não é fácil pra ela. E eu posso imaginar o que está pensando, escute-a primeiro. – disse Alice tentando pacificar.

-- Me conta Giovanna.

-- Eu não consigo, não consigo. Você vai me deixar, vai me abandonar...   

            Giovanna chorava copiosamente, me deixando dividida, sem saber como agir. Tinha ímpetos de abraçá-la, de acalentá-la e dizer ao pé do ouvido que nada importava, que ficaria tudo bem. Mas ao mesmo tempo algo me impelia.

-- Por favor, vai ser melhor para nós, se você contar amor...

            Ela ficou calada por alguns segundos e finalmente me olhou nos olhos. Foi tão diferente que me fez até estremecer, no entanto, eu não sei definir que sentimento foi responsável por aquele estremecimento.

-- Henrique se aproveitou de mim naquela noite.

Fim do capítulo