Capítulo 19 - Efêmero
Sam reprogramou o alarme do seu comunicador, acabou despertando mais tarde, as dez da manhã, queria repor um pouco do sono perdido. Desligou o bip que vinha do aparelho na mesinha ao lado, ainda sonolenta sentou-se na beira da cama, esfregando os olhos.
Por mais improvável que fosse, só se deu conta que Theo dormia ao seu lado segundos depois. A lançou um olhar terno, Theo dormia virada para o outro lado, sua respiração era alta, mas não o bastante para um ronco.
Sam desistiu de sair da cama, a olhou receosa, hesitou em tocá-la, por fim voltou para baixo das cobertas e amoldou-se em Theo, delicadamente, como se testando a investida. Subiu a mão à sua frente e beijou de leve seu pescoço, trazendo um sorriso de Theo, ainda de olhos fechados.
– Bom dia, oficial. – Theo murmurou, com a voz um pouco rouca.
– Bom dia, recruta. – A abraçou com mais segurança agora.
– Estou atrasada? Já vou levantar.
– Na verdade são dez da manhã.
Theo abriu os olhos, assustada.
– Estamos bem atrasadas, a viagem será longa. – Fez menção de levantar-se, sendo impedida por Sam.
– Não, fique. Só preciso de dez minutos, posso ficar dez minutos aqui, assim com você?
– Hum… Quinze, e não se fala mais nisso. – Theo voltou a fechar os olhos, agora segurava a mão de Sam em seu peito.
Sam aconchegou-se, deixando seu rosto no pescoço dela. Procurava alguns minutos da mais completa paz, ali podia ouvir de perto a respiração de Theo, sua mão sentia o movimento. Sentia-se viva, uma felicidade efêmera a distraia da sua sórdida busca pela sobrevivência.
– Por que você fica desenhando em mim? – Theo perguntou de olhos fechados, sentindo os dedos de Sam acariciando seu ombro colorido.
– Desenhando?
– Com os dedos, como está fazendo agora.
– Ah… – Sam riu. – Eu tenho essa mania de ficar desenhando o símbolo do infinito com os dedos, ou rabiscando por aí.
– Algum significado mais profundo?
– Hábito.
– Daí você fica desenhando lemniscatas no meu corpo.
– Lemni o que?
– O nome verdadeiro disso é lemniscata. Símbolo do infinito é apenas mais uma atribuição que deram.
Sam voltou a correr seus dedos fazendo o mesmo movimento em seu ombro.
– Se importa de ter lemnistacas sendo desenhadas em você?
– Lemniscatas. Não, não me importo nem um pouco, fique à vontade.
***
Enquanto colocavam suas coisas no carro, Sam atendeu uma ligação da irmã, afastou-se para falar de forma privada.
– Por favor, me dê boas novas, porque não aguento mais acender velas para você. – Lindsay dizia do outro lado.
– Tivemos uma boa pista ontem, encontramos um cara que nos deu informações e estamos indo falar com ele novamente agora. – Sam dizia, com animação.
– Ótimo, eu não vejo a hora dessa sua viagem do terror terminar, e você voltar para casa.
– Estou chegando lá, tenho tempo hábil.
– E como anda essa pouca vergonha que você anda fazendo nas horas vagas?
– Ainda estou fazendo. – Sam falou com insegurança.
– Você não se sente mal com essa situação?
– Sim, me sinto mal, mas por outro lado me faz bem. E agora temos um acordo, isso vai acabar quando Mike chegar, então me sinto menos culpada.
– Porque não para com isso logo?
– Porque… Porque é bom. – Sam disse gesticulando.
– Não é nada bom perante Deus. Nem perante seu futuro marido.
– Lynn… Entenda que não há nada real acontecendo entre nós duas, ela é mulher, não há envolvimento, ela é uma válvula de escape, apenas isso.
– Você está a usando?
– De repente ficou com pena dela?
– Não é pena, não me importo nem um pouco com essa garota, a questão é o que você está fazendo. Ela é uma mulher da vida, e você está se tornando uma também, praticando um dos tipos mais sujos de sex*, colocando prazer acima de seus valores.
– Quando eu recomeçar minha vida irei apagar esses dias da minha existência, tudo vai voltar ao normal, ok?
– Que Mike chegue logo.
– Amém.
***
Pouco depois do meio-dia Sam guiava em velocidade reduzida nos arredores do estádio de futebol da cidade vizinha, Si Dios Quiere, buscavam a casa de Odín.
– Quem disse que aqui é atrás do estádio? – Theo perguntou, enquanto Sam estacionava na calçada.
– Bom, tem um portão grande do outro lado, então aqui é mais ou menos atrás.
– Mais ou menos?
– O estádio é redondo, ok? É uma rua estreita com umas vinte casas no máximo, se aqui realmente for os fundos, então não… Oh-ou. – Sam interrompeu a frase com preocupação.
– Oh-ou por quê?
– Tem um carro da polícia parado mais à frente, só vi agora.
– Droga. – Theo abaixou-se no banco, em pânico.
– O carro está vazio, não precisa se abaixar, apenas haja naturalmente. – Sam puxou Theo de volta, pela gola da jaqueta verde.
– Será que é a casa de algum policial? – Theo perguntou, ajeitando o boné.
– Se estivéssemos num mundo perfeito eu diria que sim, que provavelmente esse carro está ali porque é a morada de algum policial. Mas como é mundo real e a maré nunca está ao nosso favor, isso não está me cheirando bem. – Sam olhava atentamente na direção do carro.
– Será que estão interrogando Odín?
– Esse é o meu temor. – Sam respondeu, segurava ainda firme o volante, mesmo com o carro desligado.
– Vamos aguardar?
– Abaixe-se! – Sam empurrou Theo para baixo, escondendo-se também. Mais ao longe podia se ouvir o barulho de um carro dando partida e tomando distância.
Sam levantou-se devagar, certificou que a viatura havia de fato ido embora.
– Ok, vamos lá. – Sam disse, já saindo do carro e buscando Theo do outro lado.
– Eram quantos? – Theo perguntou, enquanto caminhavam para a casa de onde a viatura saíra.
– Três policiais. Se estiverem investigando a ação no beco de ontem, estamos ferradas, talvez houvessem câmeras por lá. Eu já sou procurada pela polícia, mas você ainda não é. Você não é, certo?
– Pela polícia não.
Sam deu uma boa olhada ao redor, e bateu na porta. Como ninguém aparecera, bateu mais uma vez e por fim abriu a porta lentamente.
– E se não for a casa dele? – Theo perguntou, sussurrando.
– Pedimos desculpas e procuramos na próxima. – Sam adentrava com passos calculados, Theo a acompanhava. Os móveis eram antigos e as cortinas eram verdes e pesadas, estavam fechadas.
– Odín? – Sam chamou, olhando para todos os lados.
– Talvez não seja a casa dele. – Theo murmurou, esbarrando numa mesinha de centro.
Sam continuava andando pela casa, agora entrava num corredor mal iluminado, percebeu uma porta aberta, por onde vinha a claridade daquele ambiente. Esgueirou-se para dentro do cômodo, segurou ainda mais firme na mão de Theo, olhou por alguns segundos, em silêncio.
– Merda! Merda! Merda! – Sam segurou com força a mão de Theo e saiu praticamente correndo pelo corredor.
– O que foi??
– Vamos sair daqui, agora!
Voltavam apressadas para o carro, Theo era quase arrastada pela mão.
– O que aconteceu?? Havia um estranho no quarto?
– Era Odín.
– Odín?
– Morto. – Sam respondeu com um semblante transtornado.
– Tem certeza? – Theo entrava no carro.
– Um tiro na testa. Ninguém sobrevive a um tiro na cabeça. – Sam deu a partida no carro.
– Por que saímos correndo?
– E se aparecer alguém? Se tem outra pessoa na casa? Iriam nos acusar de assassinato. – Sam olhava ao redor, procurando alguma rua para fugir dali.
Ambas assimilavam o acontecimento, em silêncio. Theo mantinha o olhar correndo por baixo, refletindo.
– A polícia matou Odín, os policiais mataram o pobre Odín. – Theo balbuciou.
– Agora entende o nível da encrenca em que está metida? – Sam já dirigia numa via expressa, em alta velocidade.
– Isso é grande. Não podemos confiar em ninguém.
Sam balançou a cabeça lentamente, concordando.
– Ele morreu por nossa culpa. – Sam disse, incomodada.
– Não, ele morreu por conta do que sabia, não foi nossa culpa.
– Se ele não tivesse conversado com a gente, talvez ainda estivesse vivo. – Sam lamentava.
– Eu discordo, Odín morreu no dia que resolveu se rebelar contra o sistema, era questão de tempo. Ele estava sendo vigiado, ninguém que ajude a resistência, sob o conhecimento do governo, sobrevive. Aparece boiando num rio ou some.
– Ou leva um tiro na cabeça.
– Exato. Não é culpa nossa.
– Então será nosso fim, irão nos eliminar mais cedo ou mais tarde.
– Não, ainda não sabem sobre nós. Sam, não estou ao seu lado como membro da resistência, claro que usarei o que sei a nosso favor, mas nossa busca é particular, com o governo eu me viro depois. Foque nessa busca do seu coração.
– Estou tentando… Estou tentando…
Theo percebeu que haviam feito uma curva acentuada, como um retorno.
– Para onde estamos indo?
– Peru, Madre de Dios, vamos até o depósito intermediário.
– Só sabemos que fica depois de uma ponte vermelha. – Theo rebateu.
– É o suficiente.
No decorrer do dia os ânimos foram se acalmando, após o almoço já costeavam a Colômbia, descendo no mapa da América do Sul.
A tarde a conversa estava amena, não falavam mais sobre Odín ou a busca.
– Você que gosta de mar, tenho uma boa notícia. – Sam dizia, assim que a viagem reiniciou.
– Qual?
– A maior parte de nosso longo trajeto de 2 mil quilômetros até o Peru é pela costa.
Theo se animou.
– Então com certeza será uma viagem mais agradável que aquela de três dias pelo deserto radioativo da Zona Morta.
– Nem me fale nesses três dias, você não me deixou dormir, me encheu de cotoveladas e chutes, e eu odeio ficar sem dormir.
– Fica ranzinza e resmungona.
– Lembre-me de nunca mais dormir no carro com você.
– Nunca se sabe o dia de amanhã… – Theo ligava o som do carro, e mudou de assunto. – Percebi que a oração de hoje de manhã foi mais longa. Ou você estava dormindo sentada.
– É… Rezei pela alma de Odín, sendo culpa nossa ou não, ele morreu de forma injusta.
– Acho curioso seu critério de penitência. Você matou aquele segurança que estava me arrastando de volta para o Circus, matou o mendigo que nos atacou, e você parece mais consternada com o carro que roubou, por exemplo.
Sam ficou alguns segundos introspectiva, e respondeu.
– Sabe, uma das primeiras coisas que nos ensinam no Exército é a tomar lados. Em situações críticas, temos que ter raciocínio lógico rápido para discernir o que precisa ser feito para salvaguardar nossas vidas e de nossos companheiros, e às vezes é necessário ferir ou matar alguém. Nesse momento, tomamos lado, e colocamos pessoas do outro lado.
– O lado inimigo.
– Sim, e o lado inimigo poderá sofrer baixas, se for preciso. Lei da sobrevivência.
– Gosto da sua praticidade. – Theo deu um meio sorriso.
– Não significa que eu não tenha compaixão pelas pessoas do outro lado, mas eu tenho convicção que não me deixaram escolha, e eu fiz o que foi preciso para manter minha integridade física, e a do restante do pelotão.
– Eu sou o seu pelotão agora.
– É sim, uma recruta desastrada.
– Mas uma recruta fiel escudeira da oficial em comando.
O acordo da noite anterior servia como prerrogativa para que Sam tomasse liberdade com Theo, uma falsa permissividade concedida por ela mesma.
– Super fiel, me largou no meio da noite, passei dois dias terríveis, preocupada com você.
– Eu realmente achei que estava te fazendo um favor.
– Isso é me fazer um favor. – Sam tomou a mão de Theo. – Estar do meu lado.
– Confessa, você também gosta de certeza física. – Theo entrelaçou seus dedos aos dela.
Sam sorriu abertamente, trouxe a mão dela até seus lábios e beijou.
– Adoro.
No final da tarde daquele mesmo dia, Sam continuava dirigindo já por horas a fio, ambas estavam sonolentas, em silêncio no interior do carro. Costeavam agora o restinho da Colômbia.
– Vamos parar, quero te mostrar uma coisa. – Sam interrompeu aquele momento letárgico.
– Ãhn?
Sam estacionou o carro no acostamento, havia apenas o mar de um lado e morros repletos de pequenas casinhas do outro.
– É para sair?
– Não, fique no carro. – Sam disse já saindo por sua porta e indo na direção da porta do passageiro.
Abriu a porta e tomou a mão de Theo, a orientando.
– Não dê nenhum passo à frente, senão você vai cair desse paredão, tem uns dois metros até a areia.
– Ok. – Theo apenas a obedecia, sem entender.
– Venha, sente-se aqui. – Sam a colocou recostada no lateral do carro.
– Você vai começar a me explicar o que está acontecendo?
– Vou. Não saia daí de cima, eu estou aqui do lado.
– Ok. – Theo fechou sua jaqueta verde e ajeitou o boné, por conta do vento.
Sam a olhou com um sorriso arteiro, e lançou os olhos para onde acontecia o pôr-do-sol.
– Eu precisava parar e te mostrar a imagem que estou vendo, é a mais bonita que vi até agora, em sua companhia. Sabe onde está, não sabe?
– Sei, de frente para o mar. Eu sinto o cheiro do sal e da areia, e essa brisa marítima melecando meu rosto. – Theo dizia agora com semblante relaxado, o vento balançava os cabelos de ambas.
– O mar está calmo, por isso o sol está fazendo um trilho dourado até próximo da praia, à sua esquerda, onze horas.
– Tem nuvens?
– Nenhuma para contar a história. – Sam riu. – O sol já está baixo e grande, perto do horizonte. E daqui dá para ver um horizonte que não sei onde começa nem onde termina, mas parece tão pertinho.
– Parece que o sol está se escondendo logo ali, não é?
– Parece.
Theo tateou discretamente pela lataria do carro, até encontrar a mão de Sam e entrelaçar alguns dedos, trazendo um sorriso surpreso dela.
– O mar aqui também é cinza, como na maior parte do planeta?
– Não, não é. – Sam dizia com um sorriso contente. – É verde escuro, parece feito de vidro.
– Eu adoro mar, praia, casa de praia, qualquer coisa referente à praia… – Theo devaneava. Ficaram algum tempo em silêncio, apenas o vento emitia algum ruído.
– Vamos, você já viu o bastante por hoje. – Sam virou o boné de Theo para trás, e a conduziu até a porta aberta do carro.
Após se acomodarem, Sam fitava Theo, com as mãos no volante, como se planejando algo. Theo apenas esperava que desse a partida, mas Sam deu um murro na janela lateral.
– Merda! – Sam exclamou.
– O que foi isso?? – Theo assustou-se com o barulho.
– Bati a testa no vidro.
– Machucou?
– Não, mas vai subir um galo já já.
– Podemos impedir que isso aconteça, só preciso de algo frio, tipo um… Preciso de algo frio para colocar em cima.
– Sério?
– Não sei se funciona, mas minha mãe sempre fazia comigo. Já sei! Uma faca, tem facas aqui atrás. – Theo já se inclinava na direção do banco de trás, mexendo nas bolsas, Sam apenas acompanhava.
– Aqui, uma faca, coloque em cima.
– Coloque aqui. – Sam disse.
– Então me guie até sua testa. – Theo ergueu a mão com a faca e se aproximou dela.
Sam pegou seu pulso e a trouxe para perto, lhe beijando. Após o susto, Theo respondeu ao beijo, passando a mão por trás da sua nuca.
Instantes depois o beijo parou com uma pequena mordida de Theo no lábio de Sam.
– Ai!
– Eu acreditei que você havia batido a cabeça. – Theo disse.
Sam começou a rir.
– Melhor do que pedir, não acha? – Sam zombou.
– É, assim combina mais com você.
– Também acho. – Sam já guiava o carro de volta à estrada pouco movimentada, um restinho de luz do sol ainda fazia companhia.
– Que bom que você está brincando com esse assunto – Theo voltou a falar.
– Temos um acordo, não temos?
– Temos. Mas você já se deu conta que esse acordo é com você mesma?
– Hum… Em partes, sim, sei que fiz um acordo com minha consciência. Mas também tenho um acordo com você.
– De fato temos. – Theo falava calmamente. – Fique tranquila, não tenho pretensão alguma com você, estou cumprindo minha parte.
Novamente Sam não sabia como se sentir ouvindo essas coisas, ficava confusa num piscar de olhos. Refletiu por um instante.
– E se não houvesse acordo?
– O acordo proíbe esse tipo de conversa.
– É mesmo? Não lembro dessa cláusula.
– Estava nas letras miúdas. – Theo respondeu de bate pronto.
Sam a olhou, tentando organizar os pensamentos que fugiram da frágil cerca que ela os havia confinado.
– Você tem razão, é melhor não termos conversas sobre isso.
– Nem pensamentos.
– É melhor para mim ou para você?
– Você está infringindo o acordo de novo.
– Ok.
Pararam numa lanchonete de beira de estrada antes da pausa para a pernoite.
– Fique aqui, vou buscar alguns sanduíches para nós. – Sam disse, ao estacionar o carro em frente ao local.
– O meu é sem molho.
– Eu sei. E não abra a porta ou janelas para ninguém, ok?
– E se for uma garota bonita com segundas intenções? – Theo provocou.
– Não quero você flertando com ninguém no meu carro.
– Fora do carro pode?
– Pode, mas aviso que irei passar a noite sozinha comendo dois sanduíches.
– Vá logo buscar comida.
– Você é de uma ousadia… – Sam disse dando dois tapinhas no braço dela.
– Vá, me alimente.
Cinco minutos depois o sistema de som do carro começou a emitir um bip constante, num primeiro momento Theo não entendeu o que acontecia, mas depois percebeu que era o sistema de detecção de sentinelas.
– Puta que o pariu. – Tateou a porta do carro procurando o botão que abria, abriu com pressa e dirigiu-se à lanchonete.
No caminho de terra até a porta frontal, esbarrou com violência numa lixeira, batendo com a lateral do corpo e caindo de costas.
– Mas que merd*… Merda de cegueira! – Levantou-se com a mão sobre o quadril, com dor, e subiu os degraus que davam até a porta.
Abriu a porta de vidro que ficava mais ao canto da lanchonete, entrando esbaforida, ainda com a mão no local da batida. Caminhou até o meio do balcão, com passos inseguros e a mão direita erguida como guia, esperou que Sam talvez a enxergasse e fosse até ela, mas nada aconteceu, a lanchonete estava praticamente em silêncio.
– Pois não? – A balconista lhe atendeu.
– Boa noite, você vê uma moça com um casaco de couro por perto?
– Quer cor é o casaco?
– Eu não sei. É uma mulher alta de cabelos compridos e castanhos, escuros, ela deve ter pedido dois lanches.
A moça relanceou os olhos pelo local, até achar alguém que se encaixava na descrição.
– Achei, o que faço?
– A chame até aqui, é urgente.
Segundos depois a garçonete a aborda.
– Prontinho, ela está aqui.
– Sam? – Theo disse baixinho.
– Quem? – Ouviu uma voz estranha respondendo.
– Não é você.
– Quem é você?
– Alguém que procura por uma pessoa chamada Samantha, e não é você.
– Por que me chamou aqui?
– Eu não te chamei, eu sou cega, estou procurando por minha amiga, mas a garçonete incompetente não a encontrou. – Theo gesticulava impaciente.
Um ruído mecânico pode ser ouvido após a porta se abrir, era um sentinela adentrando a lanchonete.
– Agora fodeu de vez. – Theo esmurrou o balcão a sua frente.
– Me ajude, encontre uma mulher com um casaco de couro, ela tem cabelos compridos escuros e deve estar por aqui esperando o pedido.
– Por que eu ajudaria você? – A mulher pouco solícita rebateu.
Theo tirou a arma que estava no cós da calça e apontou discretamente.
– Por que tenho um bom argumento.
Trinta segundos depois ouviu a mesma mulher proferindo algumas palavras.
– É essa aqui?
– Theo, o que você está fazendo aqui? Eu disse para você ficar no carro.
– Eu sou cega, você não! Tem a porr* de um sentinela aqui! – Theo esbravejou em voz baixa.
– Tem?
– Agilize, procure outra saída, temos que sair daqui.
– Meu Deus, tem mesmo, está do outro lado. – Sam se dava conta.
– Não fique parada aí, procure outra saída!
A voz metalizada pode ser ouvida.
– Samantha Cooper, fugitivo localizado, não se mova.
Sam tomou a mão de Theo e saíram em velocidade na direção da cozinha da lanchonete, esbarraram em panelas e mesas, finalmente saindo e correndo para o carro.
– Rápido! – Theo dizia assombrada, já dentro do carro.
O gigante de aço com o olho único iluminado em vermelho aproximou-se da caminhonete.
– Samantha Cooper, foragido localizado, saia do carro. – O ciclope abriu seus dedos de aço e segurou o carro pelo para-choques.
Sam acelerou, mas os pneus giravam sem mover o carro, acelerou ainda mais e o para-choques soltou-se, deu ré rapidamente e pegou a estrada.
– Ok, já estamos nos distanciando, já estamos seguras.
– Não tem nada nos seguindo?
– Nada, já estamos seguras, relaxe. Apenas perdemos o para-choques. Tome. – Largou uma sacola com os lanches em seu colo.
– Como você não viu esse robô enorme?? – Theo dizia ainda agitada.
– Não vi, eu estava distraída do outro lado da lanchonete, não percebi ele entrando.
– Onde está seu instinto de auto preservação? Você precisa ficar mais atenta.
– Eu me distrai, estava conversando com um homem enquanto meu pedido ficava pronto.
– Ah, que ótimo Samantha, você estava de papinho com um cara e esqueceu o mundo ao redor.
– Eu não estava de papinho com um cara. – Sam franziu as sobrancelhas. – Ele estava me falando sobre a estrada que seguiremos até o Peru.
– Espero que tenha sido uma conversa útil.
– Foi sim, ele me falou sobre um desvio que teremos que pegar. – Sam ficou em silêncio um instante. – E se eu estiver de papinho com um cara, o que você tem a ver com isso?
– Absolutamente nada. – Theo respondeu, de forma emburrada.
– Bom saber.
Por uma longa hora que pareceu ter mil minutos, seguiram em silêncio no interior escuro do carro azul.
Sam encontrou uma grande casa envelhecida de dois pavimentos que parecia abandonada, e parou o carro na parte de trás. Silenciosamente levaram tudo para o interior, Sam organizava um lugar para passarem a noite, sob a luz do refletor portátil que carregava.
– Sente-se aí, não precisa ajudar. – Sam disse, ao ver Theo carregando os cobertores.
– Ok, bom saber que não precisa da minha ajuda. – Theo respondeu, largando a pilha ao lado e sentando-se em cima.
Depois de alguns minutos Sam colocou a mão nas costas de Theo, a conduzindo para o local onde havia instalado um chuveiro de viagem e improvisado uma pia.
– Toalha e roupas limpas estão à sua direita, a meia altura. Sabonete aqui. Não demore. – Sam entregou o sabonete em sua mão e saiu.
Ao término, Theo andou na direção da luz do refletor, e aguardou orientações, que não vieram.
– Você poderia me dizer onde está o colchão? – Falou num tom frio.
– Não, não vou dizer. – Sam aproximou-se.
– Tudo bem, eu o encontro.
Sam não permitiu que ela saísse dali, a impedindo com uma mão em seu braço.
A olhou por uns segundos antes de falar.
– Você sabe como é o nome do comportamento que você está tendo?
– Racional?
– Passivo agressivo. Sabe o que é isso?
– Eu sei o que é.
– Vai continuar assim por quanto tempo? – Sam questionou, ainda à sua frente.
Theo ensaiou proferir algumas palavras em resposta, mas pensou antes de falar.
– E se eu mudar para ativo agressivo? – Finalizou com um sorriso, trazendo o de Sam.
– E se você abandonar o agressivo?
– Feito. – Theo estendeu a mão, para um aperto.
– Feito. – Sam correspondeu ao aperto de mão.
Theo soltou sua mão e a ergueu, em busca do rosto de Sam, que a tomou e conduziu até seu rosto. Pousou alguns dedos no seu lábio, beijando posteriormente.
– É tão fácil fazer as pazes com você. – Sam zombou.
– Vá tomar banho, vou deitar. – Theo disse.
– Vou dar uma verificada nesse lugar antes. O colchão está dois passos à sua frente. – Sam disse já indo na direção do banheiro improvisado.
Theo deu os dois passos inseguros e chutou a borda do colhão.
– Achei. Boa noite.
– Não ouse dormir. – Falou, já ao longe.
Ainda de pé, com as mãos na cintura, Theo assimilava a situação em que estava metida. Após alguns segundos reflexivos, sorriu e balançou a cabeça, deitando-se em seguida.
Sam desligou o pequeno refletor alguns minutos depois, e deitou-se ao seu lado, onde Theo fingia dormir imitando um ronco.
– Não é assim que você ronca. – Sam disse.
– Então como é? – Theo virou-se, rindo.
– É mais grave, mais ruidoso, lembra um motor de carro antigo.
– Sério? Depois de ouvir isso acho que preciso de tratamento médico. – Theo subiu a coberta ao fim da frase.
– Está com frio? – Sam perguntou.
– Não, só estou me ajeitando para dormir. – Theo disse já de olhos fechados.
Sam a observou por um momento.
– Eu não vi o sentinela entrando. – Sam voltou a falar, agora em voz baixa.
– É, eu percebi. – Theo murmurou.
Estavam mais ao canto num cômodo grande de uma casa que fora pomposa um dia, o pé direito era baixo e as paredes estavam revestidas com papel de parede bege que descolava.
Sam continuava deitada de frente para uma Theo quase adormecida, a fitando com um semblante entristecido.
– Eu não estava mais falando com o homem, ele me deu a dica do desvio e foi embora.
Theo abriu os olhos e perguntou.
– Por que se distraiu? Estava assistindo TV?
Sam hesitou antes de falar, num tom baixo.
– Eu estava pensando no beijo que havia roubado de você no carro… E no quanto queria logo encontrar um lugar para dormir, para poder ficar com você.
– Por que não me contou então? – Theo disse com um leve sorriso.
– Porque não consegui, você brigou comigo.
– Eu não briguei com você. – Theo usava um tom confortável de voz.
– Você me chamou de Samantha. – Sam disse de forma sofrível.
Theo acabou rindo, seu sorriso era grande, aberto. Esticou seu braço e correu seus dedos pelo rosto de Sam.
– Me desculpa? Sam.
– Desculpo. Theodora.
– Sabe, eu me machuquei quando fui te avisar sobre o sentinela.
– Machucou? – Sam franziu as sobrancelhas. – Onde?
– Aqui do lado, eu bati com força em algo no caminho, aquilo me nocauteou.
– Deixe eu ver.
– Não precisa, não foi nada que precise de intervenção médica.
– Deixe eu ver.
Theo se destampou, desceu a beirada da calça e mostrou um ferimento na lateral do quadril.
– Tem um hematoma bem feio, mas você vai sobreviver. – Sam constatou, sentada no colchão, olhando de perto.
– Hematomas somem.
Theo assustou-se e contraiu o corpo com um beijo sem aviso na região do hematoma.
– Te assustei? – Sam perguntou, rindo.
– É bem fácil me assustar.
– Ok, agora você está avisada. – Sam falou e voltou a beijá-la naquela região, agora subia os beijos ao mesmo tempo que subia a camiseta dela com as mãos. Chegando aos seios, parecia um explorador desbravando um novo mundo, uma nova experiência.
Notou o corpo de sua amante tendo arrepios, e percebia uma resposta intensa quando deslizava seus lábios em certas regiões, principalmente pelos bicos de seus seios. Animou-se com a possibilidade de proporcionar prazer à Theo, tirou sua própria camisa e a dela, e a fitou com um sorriso de quem tem segundas e terceiras intenções.
Investiu num beijo volumoso, e depois de algum tempo em que o beijo engatara-se, Sam ousou. Deslizou sua mão para dentro da calça de Theo, sendo prontamente impedida de continuar suas intenções. Theo segurou sua mão, e a subiu em seu corpo, delicadamente, trazendo um rápido franzir de sobrancelhas de Sam.
Theo virou-se sobre ela, e lhe deu o prazer máximo com suas mãos. Sam ainda ofegante e de olhos fechados, foi desperta daquele estado sublime de consciência por um toque em seu comunicador.
Suspirou pesadamente quando viu o nome de Mike na tela. Vestiu sua camiseta de malha e abandonou o leito. Afastou-se até uma fina pilastra no canto oposto e atendeu a ligação.
– Por que está me ligando assim tarde? – Sam logo perguntou.
– Boa noite, meu amor, também estou com saudades. – Mike ironizou.
– Desculpe, boa noite, amor.
– Aqui não é tarde, deu oito horas agora.
– São três horas a mais aqui.
– Te acordei? Você está com a voz estranha. – Mike dizia, displicentemente.
– Não, estava acordada. Como você está? – Sam se escorava na velha pilastra revestida de algum restante de gesso.
– Pessimamente mal.
– Por que? O que houve?
– Estou sentindo sua falta, estou pensando em você o dia inteiro. – Mike mantinha uma voz terna.
Sam fechou os olhos com força, assimilando.
– Também sinto sua falta, Mike.
– Nunca passamos tanto tempo assim afastados um do outro, você faz tanta falta.
– Em breve sua licença irá sair e não nos afastaremos mais.
– Ah, tenho uma ótima notícia para você, falei com seu pai essa semana e ele disse que nossa casa está quase pronta, que irão finalizar até o mês que vem. – Mike dizia, animado.
– É mesmo? Aceleraram agora na reta final?
– Acho que sim, meu pai pagou a última parcela à empreiteira, estão colocando as portas e janelas agora, teremos nossa casinha já no mês que vem!
– Não vejo a hora de ver a casa pronta, é mais que uma casa, é um projeto de vida, você sabe disso. – Sam já estava absorta com a conversa.
– E vamos usar nossa poupança conjunta para mobiliar assim que entregarem as chaves. Claro, só poderemos comprar o básico, mas nosso cantinho ficará pronto para morar.
– Lynn já disse que dará a geladeira, como presente de casamento. Um gasto a menos.
– Esse será nosso ano, tudo vai mudar e em muito breve teremos nossa união abençoada. – Mike também falava com animação.
– Assim espero.
– Não sei se ando com tempo livre demais, mas andei pensando nos últimos dias. – Mike falava, sem pressa. – Quando você estiver com o novo coração, nós vamos voltar para Kent, e vamos marcar o casamento.
– Para esse ano?
– Sim, para agosto, o mês do seu aniversário, o que acha?
– É perfeito. – Sam sorriu.
– Eu conversei com Padre Clive, ele ficou tão feliz em saber que a casa está quase pronta e vamos finalmente casar.
– Saudades de conversar com Padre Clive, ele tinha sempre bons conselhos.
– Mês que vem vamos nos reunir com ele, acredite, logo estaremos na nossa cidade, na nossa igreja. Quando eu sugeri agosto e falei o motivo, ele se animou, disse que vai tentar marcar para a data mais próxima possível do seu aniversário.
– Ele foi praticamente nosso cupido, não é? – Sam disse, ainda recostada na pilastra. – Ele acompanhou nosso namoro desde o início, nos orientando e perseverando por nós.
– Sim, faço questão que ele celebre nosso casamento, são oito anos de espera por esse momento, tem que ser especial. Bom, vou deixar você dormir, já está tarde aí para você. E eu também ainda tenho algumas pendências para resolver aqui antes de dormir, amanhã tenho uma missão conjunta com um regimento que veio da Espanha, vou me reunir com o comandante deles daqui a pouco.
– Cuidado no campo.
– Fique tranquila, Deus está no comando, nada de ruim vai acontecer. Boa noite, amor.
Sam desligou o comunicador ainda com o vislumbre do seu casamento e do começo de uma nova vida permeando seus pensamentos. A mágica do momento se desfez quando olhou para o outro lado do recinto e viu Theo sentada, vestindo sua camiseta.
Apertou os olhos com os dedos, uma revolução de níveis dantescos acontecia em silêncio em seu interior. “Senhor, ilumine minhas decisões, eu quero que isso pare, e que pare hoje, me dê serenidade e determinação para conversar com Theo.” Sam orava ainda com os dedos cobrindo seus olhos.
Voltou a olhar na direção do colchão ao canto, balançava a cabeça numa atitude hesitante, tomando coragem para conversar com Theo.
– Que droga, que droga… – Murmurou para si, e chutou a pilastra com irritação.
Com o impacto, a viga partiu-se e parte da estrutura do teto despencou sobre Sam, fazendo um grande estrondo e deixando Theo atônita.
Efêmero: adj.: Algo passageiro, transitório, de curta duração.
Fim do capítulo
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