Capítulo 10
As Cores do Paraíso - Capítulo 10
Quando Alice entrou na sala de Larissa, naquela manhã, trazia nos lábios um sorriso bobo. Típico de uma pessoa apaixonada. A empresária sentiu inveja daquela leveza de espirito. A corretora tinha tantos problemas pessoais. A mãe doente com câncer, a levou a se afundar em dividas. Foram tantas internações, tantas cirurgias que já havia perdido a conta. Como era possível ser feliz com tantos problemas?
-- Bom dia chefia - sentou na cadeira à frente da empresária - Não vou dizer que você está com uma cara péssima. Mulher nenhuma gosta disso, mas, olha, chegou perto.
-- Digamos que não foi uma noite muito agradável - batucava com a caneta na mesa, apesar da cabeça estar explodindo - Vamos sair hoje à noite?
-- Marquei com a Gabi - falou sem jeito - A gente vai a uma balada GLS na Boa Vista.
-- Tudo bem. Vou ligar para a Paula e a Fê, então - apertou os olhos tentando diminuir a dor.
-- Elas vão com a gente - Alice sentiu tristeza, não haviam convidado a empresária porque ela odeia lugares fechados e lotados.
-- Estou vendo que perdi as minhas amigas para a trombadinha e a catadora de papelão.
-- Não fala assim. A Gabi é pintora e a Tali é tatuadora. Artistas são pessoas descoladas. Ambas são lindas e meigas.
-- Desculpa, sou uma grossa, mesmo. Afinal de contas ela é a sua namorada - foi até o frigobar e pegou uma garrafinha de água - Quanto ao que falei ontem...te peço que esqueça. Falei sem pensar.
Alice não resistiu. Correu até a amiga e a beijou no rosto.
-- Ei, calma aí. Também não precisa exagerar na dose - sorriu divertida.
-- Essa é a minha amiga Lari. Aquela de ontem, cheia de ódio e rancor, definitivamente não era você - foi em direção a porta e antes de sair falou: -- Se quiser ir com a gente, deixarei o endereço em sua mesa - Alice saiu com a certeza de que ela não iria.
O dia amanheceu lindo na Praia do Encanto, um céu azul de anil, o sol brilhando forte logo cedo. Uma brisa fraquinha que sequer mexia os cabelos. Mar calmo e verdinho, parecia acompanhar Gabriela com olhar curioso.
"Amanhecendo, começa o teu dia com alegria renovada e sem passado negativo, enriquecido pelas experiências que te constituirão recurso valioso para a vitória que buscas" (Joanna de Ângelis).
Calmamente caminhava sentindo a areia molhada da praia em seus pés. Essa praia lhe recebeu com tanto amor e carinho, que se sentia praticamente uma filha. Uma filha muito querida por sinal.
Lembrou do sonho com Munique Rossi. Pediu perdão a Deus pela descrença. Mas estava muito espantada com a revelação, tinha muitas dúvidas sobre sua identidade. Por isso precisava ter certeza que a mulher que encontrou na praia no dia anterior, era realmente a pintora.
Ajeitou a mochila nas costas. Estava nervosa, não sabia porquê. Olhou lá adiante e viu a casinha charmosa. As cores combinando, não deixava dúvida que era da pintora. Andou um pouco mais e parou em frente. Sentiu vontade de chorar. Sensação de saudade. Sentimento de perda, emoções estranhas para quem nunca havia pisado naquele lugar.
Abriu o portãozinho de ferro e chegou até a porta. Tocou a campainha diversas vezes, e nada.
Estava retornando desanimada, quando ouviu a voz de Luísa ao longe.
-- GABI, GABI...
Ela olhou em torno para ver de onde vinha a voz e viu Luísa e Munique na beira da praia.
Pareciam estar fazendo um piquenique, pois tinha uma toalha estendida cuidadosamente na areia e cestos de palha repletos de frutas, pãezinhos e suco.
-- Sabíamos que viria, Gabriela, por isso preparamos um piquenique -- Luísa pegou alguns alimentos da cesta, entregou uma maçã para a filha -- Senta aqui Gabriela - bateu com a mão na toalha.
-- Eu vim até aqui pedir para a dona Munique me ensinar a técnica do autorretrato -- apontou para Samanta que estava sentada comendo uma barra de cereal.
Luísa deu uma gargalhada gostosa que se juntou ao barulho das ondas do mar e os gritos de algumas gaivotas solitárias.
-- Não se preocupe, ela está ansiosíssima para lhe mostrar a técnica -- bateu novamente na toalha -- Senta aqui entre a gente, Gabriela. Deixa de ser arisca, garota.
Gabriela jogou a mochila na areia e mesmo contrariada sentou entre elas.
-- Vou te contar uma história. Por favor, te peço paciência, isso é muito importante. Pode ser?
A garota fez um gesto com a cabeça concordando, então Luísa começou a contar:
-- No ano de 1994, em uma festa de réveillon na Praia do Pina, zona sul do Recife, conheci uma garota linda. Sabe quando vemos aquela pessoa e sentimos que foi amor à primeira vista? Que encontramos a nossa alma gêmea? Pois é, foi assim que nos sentimos. Ela era tão maravilhosa, tão meiga, tão linda...
Gabriela rodou os olhos e bufou.
-- Ainda bem que não sou diabética.
Risos.
-- Ela só tinha dezoito anos. Estava no primeiro ano da faculdade e eu, já era formada. O nosso amor era forte, indestrutível e mesmo contra a vontade do seu pai fomos morar juntas. Nada, nada e nem ninguém poderia destruir o nosso amor. Vivíamos um verdadeiro conto de fadas.
Nessa época conhecemos um rapaz muito legal. Nos tornamos grandes amigos, quase inseparáveis. Foi muito divertido. Saiamos para curtir, quase todas as noites... Bons tempos aqueles -- olhou para o horizonte, suspirou fundo e continuou -- Foi esse rapaz quem nos deu a grande ideia de fazermos a inseminação artificial.
Gabriela estava começando a entender a razão de Luísa estar contando tudo aquilo. Seus olhos estavam com um azul aguado.
-- Confiávamos tanto nele, Gabriela. Era como se fôssemos irmãos. Somente nós sabíamos da sua homossexualidade.
Naquele instante.... Uma revoada de pássaros barulhentos passou por elas fazendo com que Luísa fizesse uma pequena pausa.
-- Ele ofereceu-se para ser o doador e nós, felizes da vida aceitamos -- pegou duas caixinhas de suco, entregou uma para Samanta e outra para Gabriela, depois pegou uma para ela.
-- Foram nove meses maravilhosos. Curtimos tanto essa gestação. Contávamos os dias no calendário.
Compramos essa propriedade maravilhosa e a chamamos de Paraíso. Construímos a nossa casinha toda planejada para o bebê. A felicidade agora tinha nome, endereço e o colorido do arco-íris.
Quando vimos no ultrassom que seria uma menina, festejamos com fogos, aqui na areia da praia. Gabriela, do Hebraico, a enviada de Deus. Esse seria o nome do nosso anjo.
-- A véspera do nascimento. Fomos procuradas por esse amigo. Para nossa surpresa ele estava ali para exigir os direitos sobre a criança.
-- Vocês deviam ter enfrentado ele -- Gabriela se manifestou pela primeira vez.
-- Com certeza hoje faríamos isso, mas naquela época éramos tão jovens Gabi, tão imaturas -- começou a chorar, mas secou as lágrimas com as mãos -- Eles eram muito poderosos. O pai dele na época era Senador da República, queria a criança a qualquer custo.
-- Deixe-me ver.... então vocês me mandaram para morar em uma cidadezinha do interior, no meio do mato, longe de tudo e de todos, por medo de me perder?
-- Foi isso... Gabi. Ele iria te levar para longe de nós.
-- Será que vocês não pensaram que eu iria sofrer do mesmo jeito? -- as lágrimas rolavam-lhe em dois fios ao longo da face pálida -- Você não faz ideia de quantas noites fiquei acordada chorando, me perguntando o porquê da minha mãe não gostar de mim? O que uma criança poderia ter feito de tão ruim? Será que eu era tão feia assim? Chorona? Sei lá em quantas outras coisas mais pensei. Eu pedia a Deus só uma chance, alguns minutinhos... Para fazer essa pergunta... Porque?
Samanta chorava em silêncio. Sempre soube que esse momento seria difícil, mas não imaginou que fosse tanto.
-- Em algumas datas eu fingia estar doente, só para não ir para a escola -- contou entre o riso e o choro -- Eu amo os meus avós e agradeço a Deus por eles existirem, mas não era a mesma coisa... -- olhou para Luísa que estava de cabeça baixa -- Eu entregava uma rosa para a vó no dia das mães, mas eu queria mesmo era estar entregando para vocês -- olhou para caixinha do suco que continuava fechada, em sua mão.
-- No dia que voltei de Pomerode, havia tomado a decisão de conversar com a Samanta e te buscar para viver com a gente, mas.... Muita coisa aconteceu e....
-- Você levou dezenove anos para tomar essa decisão -- jogou a caixinha em cima da toalha e levantou -- Para mim foi uma vida.
-- Você tinha que ser maior de idade para poder tomar a sua própria decisão de ficar conosco.
-- Você não pensou que eu talvez quisesse conhecer o meu pai?
Luísa ficou sem ação. Não esperava por isso.
-- Ele era um mal caráter Gabi.
-- E eu poderia ter descoberto isso sozinha se vocês tivessem me dado a oportunidade -- caminhou até a beirada da água. Fechou os olhos, respirou fundo sentindo o cheiro da maresia -- "Diante da noite, não acuse as trevas. Aprenda a fazer luz." (André Luiz). Talvez meu pai realmente me quisesse...
O vazio e a dor que sentia era tão grande que ela chorou ainda mais e as lágrimas rolavam ...
-- De nada adiantou tudo isso Luísa. Minha mãe está morta, meu pai está morto. O meu nascimento só trouxe infelicidade.
-- Não diga isso nem brincando. Quando você nasceu filha, uma alegria enorme tomou conta de nós, por saber que veio ao mundo perfeita e cheia de vida e saúde.
Foi esperada com muito amor, foi um dia muito importante, de muita festa nos nossos corações e hoje meu amor, me lembro com saudade do dia que lhe peguei nos braços naquela maternidade. Foi a maior emoção da minha vida, se eu te amei naquele dia hoje o meu amor continua maior, cada vez mais, cada vez mais também, vejo o quanto tenho orgulho da minha filha -- estava tão emocionada que mal conseguia falar.
Ficaram algum tempo em silêncio, que foi quebrado pela própria Luísa.
-- Tenho mais coisas para te contar -- levantou e ficou do lado da filha -- Quando seu pai descobriu que você estava viva, ficou completamente fora de si.
-- Eu já sei disso Luísa, não precisa ficar me lembrando -- deu um chute na água.
-- Mas você não sabe de toda a verdade.
Gabriela a encarou, admirada.
-- Tem mais, ainda?
-- Tem -- olhou para a esposa, pedindo ajuda. Estava exausta.
Samanta levantou, colocou a mão no bolso e retirou um papel dobrado.
-- Eu fiz um autorretrato para você conhecer os meus dotes artísticos - sorriu estendendo o papel.
Gabriela desdobrou o papel e quando viu o desenho começou a rir e a chorar ao mesmo tempo. Era o desenho de uma família. Duas mulheres de mãos dadas com uma menina.
-- Eu sei que o desenho é horrível minha filha, mas me esforcei o máximo... Você é o meu presentinho de Deus! A luz que ilumina todo o meu caminho. Amo muito você filha, não há no mundo uma pessoa mais essencial e importante para mim do que você. Quero que você saiba que pode contar com a sua mãe, para tudo, para qualquer coisa mesmo. Sei que não posso esperar que simplesmente esqueça tudo e nos trate com amor e carinho, entenderei seus motivos e suas decisões. É difícil mesmo. Só queria que soubesse que sua mãe aqui, vai estar sempre com você, porque amo você demais.
Gabriela permanecia em silêncio, olhava fixa para o desenho.
-- Você não vai dizer nada? - Samanta estava aflita.
-- Você desenha tão mal mãe, dá até pena...
Chorando Samanta abraçou a filha.
Algumas situações na vida enfrentaremos independente do caminho que tenhamos decidido seguir. Além disso, Deus que enxerga além da nossa capacidade, prepara tudo para que possamos enfrentar essas situações da melhor forma possível, não nos abandonando em nenhum momento.
Luísa abraçou as duas.
O mundo a volta delas tem um novo colorido. O verde se tornou mais verde, o azul se tornou mais azul.
As cores mais vivas, mais intensas, brilham com sua alegria e magia, como se fosse um mundo de fantasia.
Os dias serão mais coloridos, mais perfumados, mais felizes.
No final, tudo se ajeita, a vida segue e o paraíso, com a casinha de varanda, suas flores, mar e pedras, volta a ficar colorido.
Não são os da consanguinidade os verdadeiros laços de família e sim os da simpatia e da comunhão de idéias, os quais prendem os espíritos antes, durante e depois de suas encarnações.
Allan Kardec
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Fim do capítulo
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