Capítulo 8
As Cores do Paraíso - Capítulo 8
-- Bom dia dona Luísa - Talita abriu a porta e deu espaço para a arquiteta entrar.
-- Bom dia - Luísa olhou para Talita de auto a baixo. A garota estava com o rosto todo sujo e vestindo uma roupa toda rasgada.
-- Antes que pergunte o motivo de eu estar nesse estado lastimável, já vou dizendo - foi até a geladeira e pegou uma garrafinha de água - Estou dando a minha parcela de contribuição à arte.
-- Vestindo-se de mendiga? - Parou no meio da sala ainda não entendendo.
-- A futura grande, talentosa, famosa pintora Gabi-Gabriela solicitou os meus dotes modelístico e transformista. Ela está iniciando uma nova fase em sua carreira. Agora as suas pinturas buscam retratar principalmente os personagens marginalizados dos centros urbanos.
-- Há tá - olhou para as telas de Munique que estavam expostas alí na sala. A amiga geralmente escolhia cenas de exteriores como temas para suas obras: paisagens, pessoas humildes...- Isso é moda agora?
-- Não. Isso é arte moderna - fez uma careta engraçada - Só não entendo como uma coisa que surgiu no final do século XIX pode ser chamada de moderna, mas tudo bem, o que importa é que serei imortalizada.
-- Como se chamará essa obra prima?
-- "Talita a catadora de papelão". Legal né? - Sorriu feliz.
-- Muito - deu mais uma olhada no look da garota e entrou no ateliê da filha.
Gabriela estava sentada na cadeira que outrora pertenceu a amiga Munique. Pintava tão concentrada que Luísa nem foi percebida. Sentou em uma poltrona disposta em um canto e ficou em silêncio apenas observando.
Interessante que não conseguia ver Gabriela sentada alí. Talvez fosse loucura, imaginação, remorso, mas só conseguia ver Munique.
A pintora interessava-se pelo proletariado e pelas questões sociais, que pintava com cores mais escuras e tristes. Retratava a população brasileira, sobretudo as classes sociais menos favorecidas.
Gabriela pincelava e pincelava sua tela. Continuava compenetrada. Luísa notou os respingos de tinta na jaqueta com capuz da filha, sua boca que segurava alguns pincéis, suas mãos pequenas que deslizavam sobre a tela.
A mendiga Talita entrou no ateliê com um pão francês na mão.
-- Agora não é mais modernismo, é realismo - levantou o pão lá no alto -- Estava morta da fome. Servida?
Ofereceu um pão com quase meio quilo de queijo dentro.
-- Não obrigada. Já tomei meu café da manhã - voltou sua atenção para a filha.
-- Hô Gabriela Dá Vinte - Talita chamou a amiga - A dona Luísa está aqui.
Gabriela finalmente percebeu a presença da arquiteta.
-- Desculpa, faz tempo que está sentada aí? - Sorriu sem jeito.
-- Um bom tempo - levantou foi até a filha e beijou sua cabeça carinhosamente - Não queria atrapalhar - foi até a janela, abriu bem as cortinas deixando que o sol entrasse por inteiro - Esse ateliê fica bem mais aconchegante com a janela aberta para que a brisa do mar entre.
-- Está muito frio - Gabriela reclamou.
-- Frio? - Olhou admirada para a filha - O sol está brilhando. O dia está quente.
-- Não estranha dona Luísa. Artista é tudo maluco - Talita falou com a boca cheia.
Luísa sorriu, passou a mão no ombro da filha e caminhou em direção a porta.
-- Vou indo, só passei para dizer um olá e trazer o Tobias. Ele estava sentindo falta do lar.
-- Aonde ele está?
-- Lá fora, Gabi. Cuida bem dele. O garoto sempre foi muito fiel.
Larissa dirigia o seu carro em direção à Praia do Encanto. Mal conseguia se concentrar na estrada. Seus pensamentos ainda estavam presos a conversa que teve logo cedo com Alice.
-- Aquela safada, mal conheceu a garota e já deu para ela - deu um soco no volante que chegou a doer a mão - "Não foi trans*, foi amor". Idiota, a Poodle marginal não deve nem lembrar mais dela.
Para garantir parou o carro do outro lado da rua e ficou olhando para a casa. Não fazia ideia de como seria recebida pela viúva de Samanta, mas tinha que insistir, aproveitar esse momento de fragilidade e revolta pelo qual ela deveria estar passando.
Saltou do carro assim que avistou Luísa descendo os degraus da varanda.
-- Ei, dona Luísa! - Acenou para a arquiteta que quando lhe viu acelerou o passo.
-- Espera - correu atrás.
Luísa queria afasta-la para o mais longe possível da casa. Gabriela estava com a ideia fixa de vender a propriedade. Não podia permitir que isso acontecesse.
-- O que você quer? - Perguntou de mau humor.
-- Você sabe o que eu quero - acompanhava a mulher que continuava andando.
-- Pois fique sabendo que continuo com a mesma resposta: Não, e ponto final.
-- Pensei que depois de tudo o que aconteceu você não tivesse mais clima para continuar morando aqui - finalmente a arquiteta cessou o passo - Imagino que seja difícil viver de lembranças. Sozinha e vendo todos os sonhos indo embora com ela.
-- Não estou sozinha e ainda tenho muitos sonhos. Posso lhe garantir que em todos eles, essa propriedade faz parte.
-- Você já está com outra pessoa? - Fez uma careta de desprezo.
-- Não doutora eu e Samanta tivemos uma filha... - percebeu que havia falado demais, agora era tarde.
-- Uma filha? - E essa agora. As coisas estavam se complicando ou melhorando, quem sabe.
-- A propriedade é dela. Não tenho mais nada que conversar com você - voltou a andar.
-- Aonde ela está? - Perguntou de longe.
-- Na Alemanha - deu uma risadinha.
-- Droga - resmungava enquanto retornava para o carro.
-- TOBIAS!!! Vem comer, seu labradossauro.
Larissa parou e ficou olhando para a pessoa que dava comida para o cachorro.
-- Êpa, êpa, êpa!!! Tem alguma coisa estranha nessa história e eu, vou descobrir - foi até o muro da casa - Moça, por favor, podemos conversar por alguns minutos.
-- Testemunha de Jeová?
-- Não...
-- Pastoral da Visitação?
-- Não, eu gostaria...
-- Censo do IBGE?
Larissa não falou mais nada. Aquela garota maltrapilha, com a cara toda suja. Não podia ser a filha da elegante Luísa.
-- Se você não se identificar. Não vou lhe atender - Talita já ia entrando.
-- Eu quero comprar a propriedade - foi direta.
Talita voltou.
-- Hum, interessante.
-- Você é a dona?
-- Não. A minha amiga que é a dona desse paraíso. Ela quer vender para pagar a faculdade de artes plásticas. Ela é pintora e mora lá em Pomerode com os avós. A mãe, que morreu assassinada pelo Senador Davi, deixou para ela como herança. Eu particularmente, acho que ela não devia vender. Poderíamos muito bem vivermos aqui em Recife, mas ela está decidida, fazer o que? O vô Klaus é quem está...
-- Escuta - cortou o resumo que a garota fazia sobre a vida da amiga -- Será que você podia chamar ela? Tenho uma oferta irrecusável a fazer - aquela frase: "Sou pobre, mas sou limpinha! " Não condizia com a realidade daquela garota. Pensou, sentindo uns dez tipos de nojo.
-- Então entra - Talita foi na frente e parou na sala.
Larissa a seguiu.
-- Pode sentar e esperar um pouco, que eu vou chama-la - apontou para o sofá e saiu chamar a amiga.
Estava um calor danado lá dentro. Todas as janelas fechadas. Dava a impressão que morava um vampiro naquela casa. Larissa sentou no sofá, mexia impaciente com as mãos, olhava para a porta de minuto a minuto. Olhou no relógio e bufou irritada. Já haviam se passado dez minutos e nem sinal da pessoa.
Cinco minutos depois, sua paciência se esgotou. Levantou decidida a não ficar mais alí parada esperando. Empinou o nariz e o bumbum e foi andando rápida em direção a porta do ateliê.
No exato momento em que Larissa entrava, Gabriela saia. Se esbarraram cabeça com cabeça, ficando uma de frente para a outra completamente estateladas no chão. Ficaram se olhando por um tempo que pareceu imenso. Os olhos verdes fitavam os azuis quase sem piscar.
-- Aiiiiii...sua maluca. O que você faz aqui? - Gabriela perguntou esfregando a mão na cabeça.
-- Aiiiiii... sua grossa. Eu é quem pergunto - também esfregava a mão na cabeça.
Quando se atentaram ao fato de estarem sentadas no chão e quão ridículo era aquela cena. Levantaram rápidas, mas, cambaleando.
-- Como assim? Estou na minha casa, a intrusa aqui é você, dona arrogante - colocou as mãos no bolso da frente da jaqueta e a encarou.
Larissa enfim entendeu a sua realidade. Aquela garota parada a sua frente era a filha de Samanta, consequentemente, a nova proprietária do melhor e mais cobiçado pedaço de terra de Recife. O seu sonho de aquisição.
-- Tenho motivos suficientes para acreditar que eu lavei minha calcinha na manjedoura. É inacreditável, tinha que ser justo a vampira marginal? - pensou alto.
-- Vampira marginal? Você não tem amor à vida? Noé deve ter perdido as contas e colocado dez antas na arca.
-- O QUE? Sua...sua... - se abanou com as mãos se soprando - Você deve ser louca, de jaqueta com um calorão desses. Abre essas janelas.
-- Estou com frio - cruzou os braços sobre o peito e fez bico.
-- É louca - pegou uma revista de cima da mesa e abanou-se vigorosamente - Bem, negócios são negócios, ódios a parte - suspirou fundo -- Soube que você está querendo vender a propriedade.
Gabriela colocou as duas mãos no bolso, olhou bem na cara da empresária e respondeu firme: -- Não!
-- Como assim? Não.
-- Mudei de ideia, querida - olhou para cima e assoviou uma música qualquer.
-- Quando você mudou de ideia?
-- Fazem exatamente... - olhou no relógio de parede - Dez minutos...
-- Você não pode fazer isso comigo. Tenho uma proposta irrecusável para te fazer.
-- Posso sim, sou a dona.
Larissa fechou a mão com força e ficou apertando. Seu sangue ferveu e sua face ruborizou.
Talita saiu do ateliê com a cara toda suja de carvão.
-- Vai demorar muito? Picasso de Pomerode - colocou as duas mãos nas costas e fez uma careta de dor -- Se eu soubesse que para ser modelo de pintor tinha que ficar tanto tempo imóvel, não tinha aceitado nunca. Parece que catei papelão a noite inteira.
-- Escuta...
-- Meu nome é Gabriela, dona arrogante.
Larissa deixou guardado uns dez xingões.
-- Escuta, Gabriela, deixe-me mostrar a proposta. Tenho certeza que vai aceitar na hora. Imagino que estejam precisando de dinheiro - olhou para Talita com desdém.
-- Não - Gabriela respondeu olhando-a nos olhos.
-- Dê apenas uma olhada na proposta...
-- Não. Já disse e não vou mudar de ideia - foi até a porta e abriu -- Tenho um quadro para pintar.
-- Você vai se....
-- TOBIAAAAAS - Berrou da porta e o cachorro gigante veio correndo.
-- Sua idiota. Que ódio! - Saiu correndo até o portão. O salto se enterrando na areia fina e fofa - Te odeio sua...sua...vampira branca.
-- Que todo seu ódio vire gordura - Gabriela falou sorrindo -- Não mando você para o inferno porque tenho dó do diabo.
-- Agora você pegou pesado, loira - Talita ria da empresária.
Larissa ameaçou voltar, estava cuspindo marimbondo.
-- TOBIAAAAS...
Larissa mudou de ideia, deu meia volta, entrou no carro e foi embora cantando pneu.
No dia seguinte, na construtora.
-- Eu não acredito... Alice jogou-se na poltrona, estava passada.
-- Pois acredite. Sua namoradinha vampira é a filha de Samanta e a catadora de papelão é a namorada da Paula.
-- Essa foi demais...quanta coincidência - Alice levantou e andou pela enorme sala, até parar de frente a mesa de Larissa - E agora? Ela jamais vai vender a propriedade para você.
-- Tenho um trunfo nas mãos - sorriu diabólica.
-- E qual seria esse seu trunfo? - Perguntou sorrindo.
A amiga estava completamente obcecada pela propriedade e agora também por Gabriela... Por Gabriela? Uma ruguinha de preocupação começou a se formar bem no alto do nariz de Alice.
-- Você. Você é o meu trunfo - levantou e foi até a amiga corretora - Ela é praticamente uma menina e você, uma mulher experiente, com certeza vai saber usar o sex* para conseguir tudo o que desejar dela.
-- Isso é nojento - Alice não conseguia se imaginar fazendo algo desse tipo - Nunca faria isso com ninguém e muito menos com a Gabi. Ela é uma garota simples, sem maldades. Não conte comigo.
-- Então querida, infelizmente você vai perder a namorada.
Alice não entendeu.
-- O que você quer dizer com isso Larissa?
-- Que eu usarei todas as armas possíveis para vencer essa guerra.
-- Você é muito...
-- Pense bem o que vai falar Alicinha - pegou a bolsa e colocou no ombro - Acho que nem preciso lhe lembrar o quanto você precisa desse emprego.
Abriu a porta e saiu deixando Alice estagnada no mesmo lugar.
Na Praia dos Encantos.
-- Sabe o que eu penso de tudo isso, não é mesmo? - Talita só mexia a boca - Estou amando esse lugar. Por mim viveríamos aqui pelo resto de nossas vidas.
-- Eu, você, dois filhos e um cachorro?
-- Isso mesmo.
-- Nem pensar.
-- Assim você me magoa, Gabi.
-- Se algum dia senti algum tesão por você, depois dessa tela, perdi completamente.
-- Eu aqui me sacrificando por você, e recebo em troca isso. Eu mereço.
-- Você está fazendo isso pelo cachê e não pelo amor à arte.
-- O pagamento não é o mais importante, mas é necessário. Sábado quero levar a Paula em um motel bem chique.
-- Pronto, está liberada - olhou para a tela e sorriu - Agora só faltam poucos detalhes.
Talita parou do lado da amiga.
-- Gabi, eu não entendo muito desses lances de arte, mas cara, essa tela é tudo de mais lindo que você pintou até hoje.
-- Você não está falando isso porque foi a modelo, não é mesmo?
-- Isso também conta - sorriu - Mas não é. Sério mesmo, ficou muito louco.
A pintura retrata o momento brasileiro. A expressão representada pelo catador, passa ao espectador a sensação de tristeza, indiferença e cansaço. Esses sentimentos representam as péssimas condições de trabalho às quais muitos brasileiros estão submetidos, assim como remetem à falta de perspectiva de um futuro melhor.
-- Vou tomar um banho. Acabo de encerrar minhas atividades como catadora de papelão.
Gabriela olhou para a sua tela e por mais que buscasse um olhar crítico sobre o seu trabalho, não conseguia. Precisa de um profissional, alguém que não analisasse com o coração.
A garota sabia que algo de muito estranho estava acontecendo. Desde que chegou à casa da mãe, seu estilo havia mudado. Seus quadros eram bem coloridos, alegres que apresentavam pessoas, animais e objetos. Agora eram tecnicamente soturnas, de cores escuras, marrons e preto, que torna o ambiente abafado, um universo fechado em si mesmo pela força das cores. Até mesmo a luz parece ter dificuldade em se movimentar pelo ar entumecido. Tudo dentro de uma tendência realista social.
Samanta estava passeando pela praia, chutando as ondas e pensando na vida reclusa que estava sendo obrigada a viver, afinal, estava morta.
O sol estava se pondo rapidamente e metade de sua coroa já se escondera entre as montanhas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais um fim de tarde.
A arquiteta abaixou-se e escreveu na areia: Amor.
Quando levantou a cabeça foi pega de surpresa com uma lambida em cheio em seu rosto.
-- Tobias? O que faz aqui, meu querido?
-- Você foi a mulher que eu pintei imaginando ser a minha mãe...
Fim do capítulo
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