Linhas de Sangue e Silêncios Quebrados
O som do vinho preenchendo a taça foi cortado de imediato pela mão de Elisa, que, sem cerimônia, arrancou o vidro das mãos de Lia.
— Ei, você não pode mais beber. — disse firme, olhando diretamente nos olhos da bruxa.
Lia ergueu as mãos, rendida, deixando escapar um suspiro carregado.
— Tem razão... Ainda não estou habituada a isso. — falou enquanto gesticulava, desenhando um círculo invisível sobre a própria barriga, ou sobre o que agora começava a ser mais do que apenas dela.
Elisa sorriu de canto, mas havia um misto de estranheza e encantamento naquele sorriso. Caminhou até o sofá e se acomodou tentando não pressionar os ferimentos.
— É... realmente é algo completamente... incomum. Eu honestamente não sabia que... que era capaz disso. — sua voz parecia flutuar entre a incredulidade e uma ponta de orgulho mal disfarçado.
Lia sentou ao lado, a observando por alguns segundos antes de arquear uma sobrancelha, jogando uma provocação no ar:
— Então, Elisa... se você... se ninguém sabia que você podia engravidar alguém... existe chance de você ter uns filhos perdidos por aí, né? — sorriu maliciosa, esperando arrancar uma risada.
Mas Elisa não riu.
A expressão dela, ao invés disso, endureceu.
O olhar se perdeu em algum ponto invisível da parede, e seu corpo enrijeceu no sofá como se um velho fantasma lhe puxasse pelos ombros.
— Acho que não... — respondeu em tom automático, tentando descontrair — Eu só fiz isso, digo, mudei de forma... com três mulheres.
Lia imediatamente parou. Seu sorriso vacilou, mas ela manteve a postura descontraída, embora seus sentidos já estivessem em alerta.
— Três, hein... E quem foram? — perguntou, cruzando as pernas, fingindo despretensão
Elisa respirou fundo, ajeitou-se no sofá como se precisasse de uma âncora
— Uma foi você, obvio… — sorriu de canto, tentando aliviar — ...a outra faleceu já faz quase trinta anos, nunca teve filhos.
Mas, enquanto divagava em lembranças, ela ficou em silêncio por um momento. E esse silêncio não era qualquer silêncio. Era aquele tipo de pausa que fazia prender a respiração.
— E a terceira? — Lia insistiu, a voz mais baixa, mais densa.
Os olhos de Elisa, agora dilatados, buscaram os de Lia. Havia confusão ali. E incredulidade.
— A... a Ísis. — respondeu, como se cada letra cortasse sua própria garganta. — Mas... não... não tem como, né? — tentava convencer a si mesma mais do que a Lia.
O tempo pareceu comprimir. Lia piscou algumas vezes, sem saber se ouvira corretamente, e então, rindo de nervoso, pegou o celular.
— Não tem como o quê, exatamente? — A pergunta de Lia era retórica. Tanto, que já desbloqueava o celular e acessava a galeria de fotos, na intenção de encontrar uma foto para poder comparar.
Elisa esfregava as mãos nas coxas, inquieta. — O filho da Ísis, o Enzo... Ele… Ele se parece comigo?
O ar da sala pareceu mudar, mais pesado, mais denso.
Lia respirou fundo, deslizando os dedos pela galeria de fotos e abriu a primeira imagem de Enzo sorrindo que encontrou, na foto, o menino estava numa das viagens ao planeta da Alex.
Estendeu o celular para Elisa, sem dizer nada.
E Elisa viu.
Viu os mesmos olhos. O mesmo tom de cabelo. As bochechas, a linha do queixo, até aquele sutil arqueamento das sobrancelhas.
— Meu Deus... — deixou escapar, as palavras falhando. — Ele... ele parece muito com o Leif... — sussurrou, comparando mentalmente com o filho que havia gestado anos atrás.
— E a Ísis já te falou sobre o pai dele? — Lia perguntou, apesar da seriedade do assunto, ela estava se divertindo com a situação.
Elisa demorou alguns segundos, a mente borbulhando.
— Mais ou menos… Ela disse que, numa das crises dissociativas, uma das personalidades dela saiu com um homem... de um bar... mas ela não lembra quem era. Nem tem certeza se aconteceu realmente…
Lia cruzou os braços, tombando a cabeça pro lado, analisando.
— Certo… O Enzo tem quatro anos. Na época que a Ísis engravidou... nós, eu e ela, tínhamos acabado de terminar. — deixou a frase pairar no ar, cortante. — Vocês estavam… ficando… nessa época?
Elisa fechou os olhos. Respirou fundo. E respondeu, como se arrancasse palavras de dentro de uma ferida mal curada.
— Sim. Antes de você e ela… antes de você e eu… às vezes… A gente se via… e acontecia. Mas nunca passou disso. Nós eramos amigas… que trans*vam às vezes. — a última frase saiu quase como um pedido de desculpa.
Lia levou a mão ao rosto, respirando fundo, balançando a cabeça, rindo e assimilando tudo que ouvia.
— O rebuceteio nunca decepciona… né? Nunca! — ironizou, não conseguindo evitar a gargalhada que veio em seguida. — Você percebe a ironia disso? Você me julgou tanto pelo que aconteceu entre mim e a Ísis naquele dia... e olha só.
Elisa apertou os olhos, respirando fundo, a mandíbula cerrada.
— Lia, esse não é o momento… — repreendeu, desconfortável, ajeitando-se no sofá.
— Não é o momento… Não… claro. Mas enfim… O que a gente faz agora? — Lia esfregava o rosto, rindo.
Elisa respirou fundo, massageando a têmpora.
— Eu... preciso falar com ela. Com a Ísis. Precisamos esclarecer isso. Vou ligar pra ela agora. — sua voz agora tinha outro peso.
— É uma da manhã, Elisa. Isso é conversa de olhar nos olhos. — Lia respondeu suave. — Você fala com ela quando amanhecer. E para ser sincera, eu acho essa uma ótima notícia! Muito inesperada, mas é ótima!
— Sim… É incrível, na verdade… Mas, se ele for mesmo meu filho, já perdi quatro anos da vida dele.
Ambas se calaram. O silêncio parecia um terceiro corpo no cômodo.
— Você vai recuperar. Temos muito tempo pela frente. — Lia falou, compreensiva, acariciando a mão da nefilin.
Mais um silêncio veio em seguida, mas a mente das duas não parava um segundo.
— Você já falou com a Zina? — Elisa quebrou o silêncio, mudando completamente o assunto.
Lia balançou a cabeça, lembrando de toda a questão que enfrentava.
— Não, na verdade, eu acho melhor falar direto com a Penélope. Afinal, ela é a líder do Coven, não quero passar por cima da autoridade dela, mas eu vou mandar mensagem pela manhã.
Elisa assentiu.
— Tá. Você tá certa. A gente precisa descansar. Isso tudo foi informação demais para um dia só.
— Nem me fale.… — Lia respondeu, se levantando.
Foram para o quarto, descansar, mas dormir, de fato, era uma palavra ambiciosa. Cochilaram. Encostaram uma na outra, caladas, com os pensamentos gritando mais alto que qualquer coisa.
Fim do capítulo
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