Clara

Nico e eu deixamos o prédio às pressas, combinei com Sam que iríamos a um restaurante perto da praia.  Como hoje é sábado, não precisamos nos preocupar com as preocupações da semana e podemos aproveitar um momento em família. 

Estamos indo para a casa dela agora, Liz e Marcos vão com a gente. Graças a Deus, Liz está conseguindo ter mais tempo para a gente.

— Mamãe, será que a Sam vai brincar comigo no parquinho? — Pergunta enquanto segura minha mão e caminha chutando as pedras.

— Acho que sim, amor. — Tento sorrir. — Mas lembra da regra: nada de desobedecer a ela.

Ele ri, satisfeito. Seus passinhos são apressados para tentar acompanhar os meus. Ele carrega sua mochila com alguns brinquedos e uma muda de roupa.

— Eu sei! Eu sempre obedeço.

O coração amolece um pouco ao ouvi-lo. Sam e Nico se dão tão bem que, às vezes, é como se ela sempre tivesse feito parte da nossa vida.

Estamos quase chegando na esquina que dá para a avenida principal do condomínio, quando ouço meu nome ser chamado.

— Clara?

Viro e vejo Zoe parada ao lado de um carro prateado, o cabelo preso num coque impecável, roupas esportivas e um sorriso gentil. É raro encontrá-la, as poucas vezes que a vi, estava acompanhada de Sam, mas sempre gostei dela. Educada, atenciosa, discreta. Uma daquelas pessoas que parecem genuinamente boas.

— Oi, Zoe! — Digo, sorrindo. — Que coincidência!

— Pois é. — Ela se aproxima, tirando os óculos escuros. — Está indo ver a Sam?

— Sim, a gente combinou de almoçar.

— Ah… — Zoe hesita, e o olhar dela parece pesar. — Então, acho que vocês vão conversar.

Meu corpo se enrijece sem saber por quê, mas uma sensação estranha me domina subitamente.

— Conversar? — Tento entender do que ela está falando.

— É sobre a proposta da Espanha — Responde, num tom quase confidencial. — A Sam não te contou?

— Que proposta?

— O convite para treinar a equipe principal. — Ela suspira, teatralmente. — É uma oportunidade enorme, Clara. O tipo de coisa que qualquer atleta do mundo sonharia em ter.

Sinto o ar preso no peito, como eu não estou sabendo disso? Ver a preocupação no olhar de Zoe me deixa um pouco atordoada.

— Ela não me disse nada — Admito.

Zoe arqueia as sobrancelhas, surpresa, tenta avaliar se estou falando a verdade.

— Sério? Achei que ela tivesse te contado, achei que fossem o tipo de casal que se contam tudo. Sam normalmente conta tudo para suas companheiras — Faz uma breve pausa — Ontem à noite, quando eu a vi, ela disse que tinha recusado por sua causa.

A frase me atinge em cheio, como um soco no estômago.

— Por minha causa? — Minha voz sai mais alta do que eu esperava.

— É, disse que não queria deixar você e o Nico. — Zoe faz uma pausa e baixa o tom de voz. — Ela parecia… dividida. Triste, sabe?

Olho para ela tentando entender. Zoe fala com uma sinceridade tão natural que é impossível duvidar. Mas algo dentro de mim grita que essa história não faz sentido, mas ao mesmo tempo parece tão real. 

— Eu nunca pedi que ela recusasse nada — Murmuro, mais para mim do que para ela.

— Eu sei, querida. — Ela toca meu braço, num gesto delicado. — Mas às vezes, quando amamos alguém, fazemos escolhas que não deveríamos. Samanta sempre foi emocionada, eu preciso estar de olho para ela não acabar com a vida dela com escolhas feitas pelo coração e não pela razão.

Nico puxa minha mão, inquieto. Eu havia me esquecido de que meu filho está comigo e ouvindo tudo isso.

— Mamãe, a Sam vai embora? — Pergunta com o cenho franzido — Ela disse que não ia abandonar a gente, por que ela mentiu?

Zoe sorri para ele, se abaixa na altura dele e diz.

— Ainda não, querido. Mas isso pode acontecer.

— Você está mentindo — Ele berra e tenta se esconder atrás da minha perna.

— Não estou — Diz firme — Me parece que quem não está falando a verdade nessa história é a Samanta.

Seguro a mão do meu filho mais forte, infelizmente não posso tranquilizá-lo, sendo que nem eu sei a verdade. 

Nos despedimos rapidamente, e eu sigo com o coração em tumulto. O que mais Sam está escondendo? Ela me olhou nos olhos ontem à noite e disse que estava tudo bem, que não havia novidades. Que estava feliz. E agora descubro que recusou o maior sonho da carreira dela. Por mim?

O caminho até o condomínio parece mais longo do que o habitual. Cada passo que dou, o coração aperta ainda mais. Eu preciso saber a verdade.

Quando finalmente entramos pelos portões do residencial, minha cabeça está fervendo. As ruas arborizadas, o cheiro de grama cortada, o silêncio tranquilo — tudo parece falso, um cenário bonito cobrindo algo que não sei nomear.

Nico está quieto. Ele sente o meu humor, sempre sente. Mas é algo além disso, ele também está chateado.

— Mamãe, eu não quero ver a tia Sam.

— Eu vou descobrir a verdade, meu amor — Tento convencer mais a mim do que a ele — Tudo ficará bem.

Logo estamos em frente à casa dela, as janelas estão abertas, a cortina balançando com o vento. Ouço música lá dentro, uma melodia calma, despreocupada. É o tipo de detalhe que me deixa ainda mais irritada, o contraste entre a serenidade dela e o caos que Zoe acabou de colocar dentro de mim.

Quando Sam aparece na varanda, com o cabelo solto e uma blusa branca simples, meu coração vacila. Ela sorri, como se nada pudesse abalar a alegria dela em nos ver.

— Ei! Que bom que chegaram!

Nico sai correndo e passa por ela sem cumprimentar, não aprovo a atitude dele, mas não o repreendo, afinal, preciso conversar com ela.

— Oi. — Digo, seca, assim que ela me olha.

— O que foi? — Pergunta, percebendo o tom. — Está tudo bem?

— Eu que devia perguntar isso para você — Sou direta, e não escondo meu desagrado.

— Como assim? — Ela franze o cenho, confusa.

— Por que você não me contou sobre a proposta da Espanha?

O riso dela morre no ar, ela é pega de surpresa, e é nesse momento que vejo que ela realmente mentiu para mim e a esperança que eu tinha de ser tudo um mal-entendido foi por água abaixo.

— Quem te contou sobre isso? — Sua voz é séria.

— Isso é mais importante do que o fato de que você não me contou? — Elevo a voz já perdendo o controle.

— Não achei que fosse algo relevante, não queria te preocupar com algo que não tem importância.

— E quando você acha que seria relevante me contar? Quando eu te visse de malas prontas? 

— Não estou entendendo, Clara — Ela passa a mão pelos cabelos — Você está chateada por uma proposta que eu recusei?

— Você realmente queria recusar? Ou se convenceu de que não pode ir por minha causa? — Explodo e vejo dona Rosa e Liz saírem pela porta para ver o que está acontecendo.

— Do que você está falando? Quem te contou isso? — Ela insiste — foi a Sophie?

— Quer dizer que até ela sabia e eu não? — Me decepciono ainda mais.

— Quando recebi a proposta, eu ainda namorava ela, eu não tinha vindo para cá ainda — Explica.

— Não foi ela, mas pelo jeito tem gente demais sabendo dessa história, enquanto eu, sua namorada, estou sendo feita de trouxa.

— Meninas! — Dona Rosa chama nossa atenção. — Acho que é melhor vocês conversarem lá dentro, aqui vai chamar muita atenção.

Ela tem razão, mas antes de falar qualquer coisa, eu entro e subo as escadas, indo para o quarto dela. Essa é uma conversa que precisa ser só entre nós duas.

Não vejo Nico na sala, sinal de que deve estar em algum lugar da casa, escondido, para não ter que encontrar com ela.

— Quem te contou sobre isso? — Ela volta a perguntar, fechando a porta atrás de nós.

— Zoe foi mais decente em me contar do que você — Digo, magoada.

— Ela não tinha esse direito — Urra — Olha, amor, isso não deveria tomar essa proporção, eu recusei desde o início.

— E por que você usou como desculpa meu filho e eu? 

— Isso não faz sentido, eu recusei quando estava nos Estados Unidos, mas, Zoe, fica com essa história de eu repensar — Começa a andar de um lado para o outro — Eu não quis te esconder isso, só não achei que fosse importante, pois nunca foi algo que considerei.

— Eu não entendo — confesso. — Por que Zoe me procurou para dizer que você está dividida? Que sempre toma as decisões erradas por amar alguém.

Vejo Samanta revirar os olhos e puxar o ar mais profundamente, sei que minha namorada não é a pessoa mais paciente do mundo, mas não quero me importar com isso agora. 

— Eu não sei qual foi a intenção dela, mas vou descobrir. — Se aproxima lentamente — Clara, eu amo você e o Nico, e se fosse algo que eu estivesse pensando em considerar, eu ia conversar com você, ia ver o melhor caminho, se vocês me acompanhariam, ou o que iríamos fazer. Mas essa decisão foi tomada antes mesmo de eu embarcar no avião para o Brasil, e não há outro lugar que eu queira estar.

— Promete para mim que nunca mais vai me deixar saber as coisas por outra pessoa — Peço, quase imploro — Eu senti que você estava me enganando e que eu estava atrapalhando seus sonhos, não quero sentir isso de novo.

— Eu prometo — Segura as laterais do meu rosto e me faz encará-la — Mas eu não estou te escondendo nada e eu não vou embora sem vocês.

Ela me beija, um beijo calmo e cheio de sentimentos, de cumplicidade e de reconciliação. Não entendi a intenção de Zoe, mas não quero pensar nisso agora.

Encerro o beijo com alguns selinhos.

— Existe outra pessoa que está chateada com você — Aviso, procurando seu olhar.

— Ela falou isso para ele também? 

— Ele estava junto comigo, e acha que você vai ir embora.

— Eu vou fazer picadinho dela, mas antes vou resolver esse problemão.

Ela sai do quarto e eu a sigo, ela pergunta à sua irmã onde está nosso pequeno e Liz avisa que ele está no jardim. Seguimos para lá e o encontramos deitado no banco com a cabeça apoiada na perna do pai de Sam, enquanto recebe um carinho em seus cabelos.

— Deixa que eu começo — Peço — Ele vai resistir no início.

Aproximo-me do meu filho e me abaixo, ficando da sua altura, e sorrio para ele ver que o clima está melhor. Ele se senta ao ver minha presença, e depois abraça meu pescoço e sinto sua respiração falhar.

— Está tudo bem agora, meu amor — O puxo para meu colo e me sento no banco.

O pai de Sam faz um sinal para a filha se aproximar, deixando-a se sentar no lugar que ele está. Ele se retira discretamente.

Não paro de afagar as costas do meu filho, para que ele se sinta seguro.

— Você consegue olhar para mamãe? — Pergunto. 

Ele demora um pouquinho até tirar o rostinho da curva do meu pescoço e encarar meus olhos. Meu coração se aperta quando vejo seu olhar triste e vermelho por causa do choro.

— Lembra o que a Zoe falou? — Começo, e ele apenas afirma com a cabeça — Não era verdade, a Sam não quer ir embora, ela quer ficar aqui com a gente.

Ele não diz nada, apenas encara a atleta sentada ao nosso lado, procurando saber se é verdade o que eu digo. Os olhos de Samanta estão marejados, vejo o medo de decepcioná-lo, de feri-lo.

— Eu não vou a lugar nenhum — Ela se arrisca a dizer.

— Eu não gostei daquela mulher, ela mentiu e fez meu coração ficar triste. — Ele é sincero.

A atleta estende os braços sutilmente para que ele vá para o colo dela. De início, ele pensa se quer, mas logo cede e pula para os braços dela, abraçando-a com força. Samanta não segura o choro, se deixa desabar.

— Eu nunca quis ferir você e sua mãe, eu não posso mais viver sem vocês, eu nunca vou ir embora e deixar vocês — Ela garante.

— Eu não quero te perder — Meu filho fala com a voz embargada — Eu não quero mais ter só uma mamãe agora que tenho duas.

Meu coração pula no peito ao ver meus dois amores assim, frágeis, entregues ao sentimento. Meu mundo está aqui, nesse banco. Minha família.

— Você me perdoa? — Ela tenta encará-lo, mas logo me olha também — Vocês me perdoam? Eu não queria causar esse mal-entendido.

— Eu te perdoo por não contar que estava sendo pressionada, que não quer a vaga e mesmo assim Zoe tem insistido — Digo — Porém, entendo que ela causou uma situação desnecessária.

— Eu vou falar com ela.

— Eu te amo, mamãe Sam! 

Samanta volta a chorar e me puxa para o abraço, sei que foi importante para ela ouvir isso, mas sei que para meu filho foi mais importante conseguir falar. 

Meu mundo está definitivamente completo.

— Eu também te amo, meu filho.

Fim do capítulo