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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 4007
Acessos: 160   |  Postado em: 10/11/2025

Capítulo 31

Acordei antes da luz por inquietação. O corpo sabia antes de mim que já não havia espaço para adiar.

A casa ainda respirava em silêncio quando desci as escadas. Na cozinha, a luz do exaustor recortou a penumbra em duas faixas mornas. Preparei café devagar e levei a caneca para a sala. A mesa grande esperava-me. Sobre ela, o laptop, um caderno, canetas e post-its.

Sentei-me no tecido da cadeira ainda frio. A primeira inspiração custou a passar. Abri a tela. “Portfólio — C.M.”. O cursor piscou. E, daquela vez não fechei os olhos.

As miniaturas alinharam-se como uma procissão quieta. Mar. Sombra. Ferro velho a romper a vegetação. Rostos pela metade, quase ausentes. E, entre tudo, a assinatura invisível do seu olhar, aquele modo de encontrar o nervo exato, a fissura por onde a luz entra.

Comecei a organizar as imagens arrastando-as para pastas novas. Criei quatro séries.

O oceano de Chloe, não como paisagem, mas como um corpo que respira;

Janelas, vitrines, reflexos que devolvem o mundo em fragmentos;

Bancos de estação, quartos com camas por fazer, portas entreabertas;

O humano reduzido ao essencial: curva, osso, pele, silêncio. Onde a luz toca o limite do pudor e da entrega. Corpos sem rosto, revelados apenas no instante em que a sombra os reconhece. Gestos suspensos, pele em respiração, fronteiras entre quem observa e quem é observado.

No caderno, delineei as notas de cada catálogo. Pausei, observando as fotografias que me eram familiares, a caneca encostada no meu lábio enquanto avaliava cada curva do meu corpo. As lembranças começaram a desfazer-se em mim como sal na água morna, primeiro um ardor brando, depois uma claridade que não perdoa.

Não eram imagens lineares, mas pulsações. O estalar quase inaudível do rolo a avançar na câmera, a pele a arrepiar-se quando a cortina cedia um centímetro de luz. O cheiro misto de creme barato e maresia, a resina do soalho aquecido pelo verão, o metal frio do tripé que me tocava no ombro por engano. E sobretudo aquele momento em que eu aprendia a respirar no mesmo compasso que ela.

Analisei-me nas fotografias com uma estranheza antiga. Fiquei ali a ouvir o meu próprio sangue, como se o corpo guardasse uma memória que a mente sempre adiou.

Percebi então que a contraluz não me escondia, ela dava-me lugar. A mão procurou o caderno por conta própria. Escrevi devagar, a grafite a morder o papel com uma doçura áspera, como se o lápis soubesse antes de mim o que precisava de ser anotado.

Estava tão concentrada que quase me assustei quando percebi a presença de Mia do meu lado.

Não a ouvi descer. Devia ter estado ali há algum tempo, talvez receosa de interromper. Quando levantei o rosto, vi-a encostada ao batente da porta, envolta na luz pálida que entrava pelas janelas, os braços cruzados sobre o peito, os cabelos ainda desalinhados do sono.

— Já estás a trabalhar? Tão cedo. — Perguntou, movendo o corpo ligeiramente.

— Preciso de terminar este trabalho o mais rápido possível. — Murmurei.

Mia aproximou-se devagar, os pés descalços a sussurrarem no chão. Espiou por cima do meu ombro o que eu fazia, os olhos atentos, curiosos, e por um instante pareceu pequena outra vez.

— São dela? — perguntou, quase num sussurro.

Assenti.

— São.

Ela inclinou-se um pouco mais, observando as imagens na tela. O reflexo da luz do monitor tingia-lhe o rosto de azul.

— Parecem… melancólicas. — Comentou, depois de um tempo. — Ou talvez seja apenas a forma como as observávamos.

Sorri sem perceber muito bem se por ternura ou por dor.

— Talvez seja uma mistura das duas.

Esta deixou-se cair na cadeira à minha frente. Ficou ali a estudar-me como quem procura a continuação de uma história.

— O que vais fazer com elas?

— Um leilão. — respondi, sem rodeios. — Para o centro. Para ajudar a angariar mais fundos para que finalmente tenha uma certa estabilidade.

Esta ficou calada durante um momento, processando.

— Então a Chloe disponibilizou essas fotos para serem vendidas a estranhos?

A sua pergunta não era de curiosidade, mas sim de espanto. Observei a tela novamente. O meu corpo, transformado em luz, em peça de exposição.

Um fragmento de mim para ser analisado como mercadoria por olhos que nunca me conheceram, que nunca saberiam o que cada linha daquela pele continha de silêncio e de amor.

Senti uma pontada funda, não exatamente dor, no entanto, algo próximo da vertigem, como se a imagem me puxasse para dentro de si, convidando-me a reviver o instante em que existi sem medo.

Era estranho, o desconforto e a ternura misturavam-se num só sopro.

Mia manteve a atenção fixa na imagem, sem compreender o peso do que via.

— Então… vais deixá-las serem vistas? — insistiu, mais baixo, como se temesse quebrar algo.

Demorei um instante antes de responder.

A minha respiração bateu na tela e enevoou a imagem por um segundo, escondendo-a, foi aí, nesse breve véu, que percebi, não era a vergonha que me prendia, era o medo de ser mal interpretada.

Inclinei ligeiramente a cabeça, o coração em desalinho.

— Sim… estarão disponíveis para o leilão.

Mia ergueu o rosto na minha direção, como se procurasse certeza onde só havia calma.

— Tens a certeza? — perguntou.

Assenti, devagar.

— Tenho. — Repeti, devagar, deixando que o som da palavra se instalasse no ar. — Porque o que vai ser mostrado não é o corpo... é o gesto. A sensação. A beleza que existe entre o que é visto e o que se pressente através da lente.

Enquanto falava, voltei a observar a imagem. O meu rosto refletia na tela, por um instante, tive a impressão de que a mulher refletida ali não era eu, mas alguém que aprendi a reconhecer de fora.

Mia analisou-me em silêncio, a sua expressão oscilava entre dúvida e admiração, como se tentasse medir a distância entre coragem e exposição. Por fim, pousou a sua mão sobre a mesa, perto das minhas anotações.

— Acho que entendo o que queres dizer. — Murmurou. — Às vezes o que se mostra não é o que se revela.

Sorri.

— Exatamente isso. — respondi, enquanto olhava para o relógio. — Acho que alguém está atrasada. — Comentei, encarando-a novamente.

A sua expressão mudou subitamente para desespero.

— Oh meu deus perdi completamente a noção do tempo.

Mia levantou-se num salto, tropeçando na perna da cadeira, o cabelo a cair-lhe sobre o rosto como uma cortina desalinhada.

— Vou chegar atrasada outra vez — murmurou, mais para si do que para mim, enquanto tentava prender o cabelo com as mãos ainda trémulas.

O riso escapou-me baixo, leve, quase um suspiro.

— Respira. Se quiseres chamamos um Uber. — Sugeri, pousando o lápis e inclinando o corpo para a frente. — Agora vai-te arranjar eu vou adiantar algo para comeres antes de saíres de casa.

Ela parou, já a meio caminho da porta, e olhou-me com um sorriso cheio de ternura.

— Tu és a melhor.

O elogio, simples e inesperado, instalou-se dentro de mim como um calor discreto. Não disse nada, apenas acenei a cabeça.

Ela desapareceu pelo corredor, levantei-me devagar e caminhei ate a cozinha. Enquanto colocava duas fatias de pão na torradeira, ouvi a água do chuveiro cessar. Um silêncio breve, depois o ranger leve da porta do quarto. Sorri, sem pensar, enquanto o cheiro de pão quente começava a preencher o ar.

Quando Mia voltou à cozinha, ainda a abotoar a camisa, a mesa já a esperava, café fresco, pão quente, geleia, manteiga, queijo, e o som distante do mar a atravessar o dia nascente.

Ela olhou para mim com surpresa e um brilho divertido nos olhos.

— Perfeccionista como sempre. — Comentou, antes de se sentar.

Sorri, sem levantar o olhar da caneca que enchia devagar.

— Alguém tem de manter a rotina funcional. — Respondi, com um tom leve que tentava disfarçar o prazer simples de a ver sorrir. — Já que uma certa pessoa gosta de a destabilizar.

Ela sentou-se, puxando a cadeira com um ranger suave. Pegou no pão ainda quente, o vapor a subir-lhe para o rosto, e respirou fundo, quase em gratidão.

— A vida seria tão monótona sem um pouco de caos.

— E seria insuportável sem algum tipo de ordem. — Retorqui, num tom calmo, quase cúmplice.

Ela arqueou uma sobrancelha, divertida.

— Desde que venha em doses pequenas, eu aceito. — Disse, pegando outra fatia de pão. — Tipo café: forte o suficiente para acordar, mas não ao ponto de me dar taquicardia.

Soltei uma risada breve.

— Então estamos combinadas, metade caos, metade café. — Respondi.

— E um quarto de paciência tua. — Acrescentou, piscando-me o olho. — Se não for agora, acho que nem o Uber me salva. — Exclamou, levantando-se num salto e apanhando a mochila.

Gargalhei ao vê-la tropeçar ligeiramente na pressa, o pão ainda na mão, a mochila meio aberta e a energia caótica que parecia segui-la por onde passasse.

— Vai com calma, ou ainda deixas metade do pequeno-almoço pelo caminho. — Brinquei, enquanto ela corria para a porta.

— É combustível para o dia! — respondeu, rindo, antes de dar um último gole no café e deslizar para fora. — Obrigada, Maya!

Ouvi a porta bater com suavidade, seguida pelo som distante dos seus passos a desaparecer lá fora. A cozinha manteve o cheiro de pão e café fresco. Por um momento, deixei-me ficar encostada ao balcão, a sorrir sozinha.

— Metade caos, metade café. Parece-me uma boa forma de começar o dia. — Comentei para mim própria enquanto levava a caneca de café aos lábios.

Depois de ter preparado o meu próprio combustível matinal, voltei à sala.

O laptop continuava aberto, o cursor imóvel sobre o mesmo arquivo. Sentei-me novamente diante dele, observei as anotações, finalizando-as. Abri uma nova página e comecei a delinear possibilidades.

O evento precisava de ser mais do que um simples leilão, queria que fosse uma exposição, uma travessia. Cada fotografia contava uma história, e eu precisava de criar um espaço onde o público pudesse senti-las no seu devido tempo antes de oferecer um preço por elas.

No entanto, o gesto de licitar, esse poderia acontecer à distância, sem barulho, sem pressa, sem o constrangimento de levantar uma placa num salão cheio de olhares.

“Licitação presencial ou online?” — escrevi no topo da página.

As duas opções pesavam de forma diferente. Passei a ponta do lápis pelos lábios, hesitante.

As horas começaram a dissolver-se enquanto fazia listas, desenhava esquemas, apagava e reescrevia, como se o tempo tivesse deixado de ter fronteiras. Abri o browser. Pesquisei plataformas de leilão artístico, naveguei por páginas de fundações e galerias virtuais, troquei e-mails.

Por fim, escrevi no caderno.

“Exposição física. Leilão online.”

A frase ficou ali, suspensa, a ganhar corpo. A ideia começou a expandir-se por dentro como uma chama pequena, mas segura. Cada detalhe que imaginava parecia encaixar-se naturalmente.

Comecei a fazer anotações rápidas: datas, plataformas seguras de leilão, percentagens de doação, convites, divulgação.

As horas escorriam entre o som dos cliques do teclado e o movimento quase hipnótico do cursor. A casa enchia-se da luz morna da tarde e, pouco a pouco, o tempo amaciou.

Levantei-me por instinto e fui até à janela. Lá fora, o sol já se inclinava sobre o mar, tingindo a água de cobre e mel.

Voltei à mesa.

Na tela, o documento tinha crescido.

“Exposição – Luz em Resguardo”.

Sorri ao ler o título. Era simples, quase tímido, porém soava de forma assertiva. Fechei o caderno, deixei o lápis sobre a mesa e recostei-me na cadeira. Por um instante, deixei o olhar perder-se na tela, até que as letras começaram a desfocar-se pelo cansaço.

O som do mar chegava distante, misturado ao zumbido ténue do frigorífico e ao estalar do soalho a ajustar-se à mudança de temperatura.

A casa respirava comigo.

Foi nesse intervalo que a campainha tocou.

Fiquei imóvel por um instante, como se o próprio ar tivesse suspendido o movimento à espera da minha reação. Depois ergui-me. A madeira do chão gem*u sob os meus pés descalços enquanto atravessava o corredor.

O toque soou uma segunda vez.

Quando finalmente destravei a porta, o ar pareceu hesitar entre nós antes de a abrir por completo.

Grace estava ali de pé, envolta na luz baça do entardecer, como se o próprio dia se tivesse detido para não a ferir.

Agora erguida conseguia notar com mais clareza que o corpo lhe parecia menor, mais frágil, o tecido do casaco pendia-lhe dos ombros, demasiado largo, como se tivesse encolhido dentro de si. Os ossos da clavícula desenhavam-se sob a pele e o lenço que antes era colocado em volta do pescoço cobria agora parcialmente a cabeça.

No rosto mantinha aquela serenidade, ainda assim, os traços traziam cansaço, a pele pálida com um tom quase translúcido, os lábios sem cor, e, nos olhos, oh, nos olhos, o mesmo brilho de sempre, intenso, vivo, como se ainda houvesse dentro dela um lugar onde o tempo não pudesse entrar.

Tinha as mãos entrelaçadas diante do peito, e mesmo o gesto, tão simples, parecia carregado de uma delicadeza estudada, como se o próprio ato de permanecer de pé exigisse mais esforço do que deixava transparecer.

— Maya. — A voz saiu-lhe baixa, rouca, no entanto ainda doce. — Espero não estar a incomodar.

Demorei um segundo a conseguir respirar. O coração bateu-me no peito com uma força que misturava surpresa e inquietação.

— Grace… — murmurei. — Como é que? Devias estar a descansar. Vem aqui, deixa-me ajudar-te a entrar.

Comecei a estender-lhe a mão, num gesto automático de cuidado, contudo esta travou-me com um movimento firme e contido. O olhar, embora cansado, mantinha uma nitidez impressionante, uma luz que não admitia piedade.

— Eu consigo sozinha, obrigada. — afirmou, com suavidade, mas também com uma convicção que me fez recuar meio passo.

Afastei-me para lhe abrir caminho, sentindo na pele o peso de uma fronteira invisível traçada por aquela resposta. Ela avançou pelo corredor com passos lentos, porém seguros, como se cada movimento fosse uma afirmação. Acompanhei-a em silêncio, a minha mente girava em círculos, alinhando perguntas, ensaiando frases que, naquele momento, me pareciam pequenas demais.

Quando chegou à mesa onde eu trabalhara minutos antes, deixou o olhar pousar nas fotografias abertas na tela. Demorou-se nelas como quem escuta uma música que conhece de cor, procurando a nota que falhou e a que salvou a melodia. O brilho frio do monitor desenhou-lhe contornos mais finos no rosto.

— Então… é isto que tens estado a preparar ultimamente? — perguntou por fim, a voz baixa, mas estável. — Luz em Resguardo. — A pausa foi breve, quase um toque de dedos sobre vidro. — Belo nome.

Fiquei de pé, sem saber onde colocar as mãos, um nó a apertar-me a garganta como um fio. O soalho estalou levemente sob o deslocar do seu peso. Grace apoiou a palma numa das cadeiras, não para se sentar, mas para marcar território, respirou fundo e levantou o queixo, encarando-me com uma serenidade que me desarmou.

— Precisamos de conversar. — declarou, com uma firmeza mansa. — Sobre a Chloe. E sobre ti.

As palavras caíram no espaço com a gravidade de uma pedra lançada a um lago, primeiro o impacto, depois os círculos a alargarem-se, tocando tudo.

Senti o peito contrair, como se a sala encolhesse meio centímetro à minha volta.

No entanto, no seu rosto não havia dureza, apenas uma atenção profunda, uma compaixão lúcida, a força suave de quem já não tem tempo a perder.

— Eu não vou rodear o assunto, Maya. — Começou, e a sua voz, embora baixa, tinha a densidade de quem fala depois de atravessar a dor. — Até porque tempo… é o que menos tenho. — Pausou, deixando que o peso da frase se instalasse no ar. — Por isso vou ser direta.

Deu um passo à frente, endireitando a postura como quem se prepara para um embate de igual para igual. Mesmo enfraquecida, havia nela uma elegância de quem recusa ser medida pela doença.

— Eu imagino o quanto dói estar nessa pele. — Continuou, os olhos firmes nos meus. — Mas achas mesmo que eu não percebo? Que eu não vejo o modo como a Chloe fala sobre ti? — O tom dela não era acusação, mas sim constatação. — Como segura o celular a meio da noite, a querer ligar-te e a desistir no último segundo… Como tenta ficar presente quando está comigo, contudo, a sua mente… está sempre em outro lugar.

Grace suspirou, e o ar pareceu estremecer entre nós.

— Maya, quando alguém nos observa como ela te observa, o mundo nunca mais volta a ser o mesmo. Nem para ela. Nem para ti. — Um sopro de sorriso atravessou-lhe o rosto. — E acredita… nem para mim, que fiquei no meio, a ver-vos tentar existir uma sem a outra.

As suas palavras avançavam com a calma de quem já não teme o silêncio que vem depois.

— Este projeto — prosseguiu, apontando com um leve movimento de cabeça para o computador ainda aceso — é bonito, é sensível. Eu entendo que seja a tua forma de reparar algo que se partiu. — Fez uma pausa curta. — Mas há coisas que não se curam só com luz nas paredes. Elas precisam de serem ditas em voz alta, no lugar certo, no tempo certo.

O silêncio que se seguiu não foi vazio.

Grace tocou o encosto da cadeira, e desta vez deixou-se sentar. Fê-lo com cuidado, sem pressa, o gesto meticuloso de quem continua a escolher cada movimento.

Acompanhei-a quase sem dar por isso, sentando-me também. O meu corpo, até então suspenso, assentou finalmente sobre o tecido do sofá.

A luz do entardecer filtrava-se pela janela, pousando-lhe sobre o lenço uma tonalidade dourada, quase sagrada. Naquele instante eu soube com a clareza que a dor às vezes concede que a conversa que se abria diante de nós não era um ajuste de contas.

— Estou a ouvir. — Murmurei, a voz a sair-me trémula, mas inteira.

Grace inclinou-se ligeiramente para a frente. O lenço moldou-se-lhe à nuca, o rosto iluminado pela claridade branda.

Os seus olhos, cansados, mas serenos, fixaram-se nos meus.

— Eu sei que a Chloe esteve aqui. — Começou, num tom tranquilo, quase confessado. — Sei por que fui eu que lhe disse para vir.

Fez uma pausa curta, como se medisse o peso das palavras.

— E depois dessa visita… algo mudou nela. — Continuou, a voz a baixar um pouco, ganhando textura. — Mudou de uma forma tão visível que era impossível não perceber.

— Grace… — comecei, mas ela levantou ligeiramente a mão, pedindo-me silêncio.

— Não preciso que me contes o que aconteceu. — Declarou, firme, mas sem dureza. — Tu e a Chloe têm uma história. — As palavras soaram como um reconhecimento, não como acusação. — Mas eu e ela também temos uma. — Acrescentou, pousando a mão sobre o peito, num gesto quase involuntário. — E é por isso que eu estou aqui. Eu quero que saibas, que eu quero que ela esteja do meu lado. Mas não por obrigação. Não porque sente que me deve algo… ou por culpa.

O ar pareceu prender-se entre nós, espesso e sensível. Grace desviou a sua atenção por um instante, como se procurasse força. Quando voltou a falar, a voz tinha um tremor novo, não de fraqueza, mas de verdade.

— Só quero que compreendas que amar não é um campo de batalha. Eu não quero tornar tudo isto numa luta. — Fez uma pausa, e o silêncio entre nós pareceu ganhar contornos humanos. — Se realmente ainda houver algo entre vocês, espero que seja verdadeiro. Que não seja culpa disfarçada de amor, nem sacrifício disfarçado de coragem.

Ela parou, o peito a erguer-se num esforço discreto, e durante alguns segundos pareceu que o próprio ar lhe pesava nos pulmões.

— Maya… — disse, baixando um pouco a voz. — Eu sei o que me espera. — As palavras saíram brandas, sem dramatismo, apenas um reconhecimento tranquilo. — O meu corpo está a despedir-se, e já não há nada que os médicos possam oferecer além de tempo… e tempo é uma coisa que se esgota depressa. — Sorriu com doçura. — Mas ainda assim, quero viver o que me resta com verdade, com leveza, e com as pessoas que amo.

Os olhos dela, marejados, procuraram os meus.

— Como eu disse antes eu quero e espero que a Chloe fique comigo nestes últimos dias. — A sua voz enfraqueceu um pouco, mas o tom manteve-se seguro. — E, se ela te procurar… se precisar de espaço, de silêncio, de tempo para compreender o que sente… por favor, propulsiona-lhe isso. Não tomes o afastamento como rejeição. Às vezes, amar também é saber esperar do lado de fora da dor do outro.

Grace pousou a mão sobre a mesa, o gesto lento, quase ritual.

— Eu sei que, no fundo, ela ainda te ama. Não preciso de ouvir isso de ninguém. Mas agora… ela precisa de se permitir estar inteira comigo, antes de se voltar a dividir entre o passado e o futuro.

O lenço escorregou-lhe ligeiramente sobre a testa; ela ajustou-o com a ponta dos dedos, sem constrangimento.

— Cuida dela do teu jeito, Maya. Mesmo que isso signifique deixá-la cuidar de mim primeiro. — A voz saiu-lhe tão baixa que mal a ouvi. — Se conseguires fazer isso, se conseguires ser paciente, já estarás a amá-la no melhor sentido da palavra.

O silêncio instalou-se entre nós, denso, quase sagrado. O som distante do mar entrou pela janela entreaberta, misturando-se com a sua respiração pausada. Depois, voltou a erguer os olhos para mim. Havia neles uma doçura nova, quase maternal.

— E quando a minha hora chegar… — começou, com uma calma que me dilacerou — espero que sejas compreensiva. — Deixou a frase pairar, como se pesasse cada palavra antes de continuar. — Compreensiva antes de a quereres para ti.

Senti o ar rarear. As mãos apertaram-se no colo, como se procurassem uma âncora invisível.

— Quando eu já não estiver aqui, ela vai quebrar. — Fechou os olhos por um instante, como se já visse a cena acontecer. — E quando isso acontecer, Maya… deixa-a quebrar. Não tentes consertá-la logo.

Engoli em seco, incapaz de responder. Esta curvou ligeiramente os lábios, frágil, todavia carregado de ternura.

— As pessoas tentam sempre apressar a cura dos outros. Mas a Chloe vai precisar de se perder um pouco antes de te reencontrar. A morte tem uma forma cruel de roubar o que não foi dito, mas também de devolver o que ainda pode ser sentido.

Ergueu um pouco o queixo, a voz a quebrar-se apenas no final.

— E se houver um depois para mim, se houver mesmo algo além disto, eu espero… — respirou fundo, o olhar húmido e luminoso — eu espero ver-vos lá, uma ao lado da outra.

Não consegui dizer nada. As palavras, todas elas, pareciam pequenas demais diante da imensidão daquele momento.

Levantei-me num impulso contido e, sem pensar, ajoelhei-me diante dela. As minhas mãos procuraram as suas, frias e frágeis, mas ainda firmes, e puxei-a para mim.

Grace deixou-se envolver sem resistência. O corpo dela encaixou-se no meu com uma leveza inquietante, como se o mundo, por um instante, tivesse parado de pesar.
Senti o bater fraco do seu coração contra o meu ombro, compassado, teimoso, e foi ali, nesse ritmo irregular, que as lágrimas começaram a correr. Primeiro uma, depois outra, até que a respiração se confundiu com o choro.

Ela não disse nada. Limitou-se a passar a mão pelo meu cabelo. Abracei-a com mais força, sentindo o cheiro do seu perfume misturar-se ao sal das minhas lágrimas.

Não havia nada a prometer, nada a explicar, apenas aquele instante suspenso em que o amor, a dor e o adeus coexistiam sem se anularem.

 

 

Fim do capítulo


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Comentários para 32 - Capítulo 31:
Carolzit
Carolzit

Em: 12/11/2025

Bom dia autora!!! Primeiro, estou simplesmente emocionada pelo capítulo. Que capítulo profundo, intenso... A forma como escreve é único e a sensação que passa é que está falando de você mesmo de tão íntimo que é. Quando vc fala de amor, dor, renuncia é como se estivesse vivendo aquilo , sentindo a dor, o amor não vivido mas sentido e isso hoje em dia é tão raro de se encontrar... Parabéns!!! Agora falando da história, que maturidade da Grace em saber, mesmo em meio a dor da morte iminente e de saber que sua esposa está sofrendo por outra mulher, lidar tão serena e ainda se preocupar com os sentimentos tanto da Chloe e da Maya como ela tem feito.. ela poderia manipular e até usar a doença dela para manter a Chloe junto a ela mas ela não o faz e isso é de um caráter sem tamanho e a maturidade da Maya em entender que agora não é o momento delas estarem juntas mas entender que a Chloe vai precisar dela no futuro e não se afastar.. história muito linda e vale muito a espera e espero que não demore muito a voltar. Esperando ansiosamente . Bjs e continue nesse caminho que vc tem muito talento 

Responder

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Socorro
Socorro

Em: 11/11/2025

fortes emoções!!

Que capítulo foi esse? 

sem palavras ... 

Responder

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HelOliveira
HelOliveira

Em: 10/11/2025

Lindo capítulo, e com uma intensidade que de fato não existe palavras a serem ditas.

Grace é iluminada

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