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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 3720
Acessos: 249   |  Postado em: 05/10/2025

Capítulo 30

O som da batida pareceu ecoar dentro de mim mais do que na própria porta. Fiquei ali, imóvel, a sentir o coração pulsar no pescoço.

Passos aproximaram-se do outro lado, arrastados, acompanhados por um ranger suave do soalho que me devolveu de imediato às noites em que adormecia no quarto do andar de cima, ouvindo aquele mesmo som como um embalo.

A maçaneta rodou devagar, e a porta abriu-se apenas uma fresta. Primeiro, apenas os olhos de Amanda, semicerrados pela penumbra, tentando decifrar quem ousava interromper aquela hora. A sua expressão era de estranheza, um franzir de sobrolhos que misturava vigilância e cansaço.

Mas então, quando a luz do candeeiro da sala se inclinou sobre o meu rosto, vi a transformação acontecer. A sua expressão vacilou, confundida, quase como se não acreditasse no que via. Num instante seguinte, alargou-se em surpresa, incredulidade, e finalmente um brilho húmido de reconhecimento.

— Maya…? — A voz saiu rouca, a meio caminho entre pergunta e exalação.

O meu corpo reagiu antes da mente. Senti o nó na garganta fechar a respiração, as mãos trémulas junto ao corpo, incapazes de qualquer gesto. Apenas consegui acenar, mínimo, vulnerável, como quem pede desculpa por regressar tarde demais.

Esta levou instintivamente a mão ao peito, os lábios entreabertos num misto de choque e emoção, finalmente abrindo a porta. A luz quente da sala escorreu para a rua, envolvendo-me como um abraço que não ousava ainda tocar.

— Entra… filha.

A palavra atingiu-me como se tivesse atravessado pele e osso. Dei um passo para dentro e fui colhida de imediato pelo cheiro familiar da madeira encerada e o perfume doce de algo esquecido na cozinha. Tudo tão igual, tudo tão intocado pelo tempo que senti as lágrimas subirem antes de conseguir impedi-las.

Atrás dela, um vulto surgiu no corredor, atraído pelo som da porta e pela emoção súbita. Paul deteve-se na soleira, o corpo largo a recortar-se contra a meia-luz da sala. A expressão era de reserva, quase defesa, olhos semicerrados, como quem mede a situação antes de intervir. Durante alguns segundos, limitou-se a observar em silêncio, fazendo pesar sobre mim a estranheza, como se fosse apenas uma estranha parada à entrada daquela casa.

Depois, a luz apanhou-me em cheio, vi o instante exato em que o reconhecimento o atravessou. Os traços do rosto, antes tensos, suavizaram. A boca abriu num suspiro breve, o queixo vacilou, e nos olhos, por trás da cautela, nasceu um brilho antigo, o mesmo com que tantas vezes me recebera depois da escola, perguntando como tinha sido o meu dia.

— Maya… — o nome saiu grave, arrastado, quase incrédulo.

Senti um novo calafrio percorrer-me, como se a própria casa respirasse comigo. As pernas quiseram ceder, contudo forcei-as a manter-se firmes.

Paul aproximou-se devagar, cada passo hesitante, como se tivesse medo de que eu desaparecesse ao menor gesto. Quando enfim se colocou diante de mim, pousou as mãos pesadas nos meus ombros.

— Estás mesmo aqui… — murmurou.

Amanda afastou-se ligeiramente, como quem cede espaço não só à entrada, como também ao tempo perdido.

— Entra, querida, entra. — Repetiu, com mais firmeza apesar do embargo.

Por fim atravessei o limiar devagar, cada passo dentro daquele espaço trazia de volta uma torrente de lembranças. A mesa de jantar estava posta apenas para duas pessoas. O relógio de parede batia compassos iguais, lembrando que o tempo ali dentro parecia correr de forma diferente, de forma mais lenta, mais íntima.

Paul caminhou atrás de mim, ainda com aquela expressão de assombro que não disfarçava.

— Senta-te, Maya. — Pediu, apontando para o sofá onde eu tantas vezes me encolhera em tardes tranquilas e chá quente.

Obedeci, o peso da almofada cedeu sob o meu corpo como se me reconhecesse. Amanda sentou-se na poltrona do lado, mantendo-me sempre no seu campo de visão, como se tivesse receio que eu desaparecesse de novo.

A ausência de som prolongou-se por alguns instantes. Não era desconfortável, era apenas uma carência carregada pelo não-dito, pelas perguntas que permaneciam presas na garganta, das memórias que se atropelavam entre nós.

Amanda foi a primeira a quebrá-lo.

— Nunca pensei… — começou, com tom baixo, trémulo. — Nunca pensei voltar a ver-te sentada aqui.

Paul inclinou-se para a frente, os cotovelos nos joelhos, fitando-me com intensidade.

— Mas estás. — Completou, de forma grave.

As palavras caíram sobre mim como um manto quente e pesado. Realmente eu estava ali. De novo. E, pela primeira vez em muito tempo, a casa devolveu-me a sensação de pertença.

Permaneci ali, imóvel, deixando o olhar percorrer a sala novamente como se a visse pela primeira vez e, ao mesmo tempo, como se nunca tivesse saído dela. As paredes estavam cobertas das mesmas fotografias de família, agora ligeiramente desbotadas pela luz dos anos. Nas molduras, sorrisos que me eram familiares observavam-me como testemunhas de um tempo que julgava enterrado.

Na estante, os livros alinhados, alguns tombados uns contra os outros, exalavam aquele cheiro doce de papel envelhecido que me trouxe de volta a momentos em que Amanda lia em voz alta, e eu a observava admirada pelo som cadenciado da sua voz.

Senti uma estranha contradição, como se nada tivesse mudado, e, ao mesmo tempo, como se tudo tivesse mudado irremediavelmente. A casa parecia reconhecer-me, e eu, a cada detalhe, reconhecia a casa.

— Maya… — chamou Paul devagar, quase como se testasse a sonoridade do meu nome depois de tantos anos.

Levantei os olhos, encontrando os dele.

— Como tens estado? — questionou, simples, direto, porém com uma ternura subterrânea que suavizava o peso da questão.

A pergunta caiu sobre mim com a força de algo inevitável. Era uma questão banal, no entanto ali, naquele espaço onde o tempo parecia suspenso, tornou-se imensa.

Desviei a atenção para o abajur aceso, para o reflexo do candeeiro no tampo da mesa, procurando um refúgio para a confusão que me assaltava.

Abri a boca, fechei-a. Voltei a abri-la, contudo, nenhuma palavra parecia certa. Apenas um sopro, um murmúrio incompleto, denunciando o quanto era difícil deixar escapar sequer uma resposta.

Inspirei fundo, como se o ar pudesse dar forma às palavras que se recusavam a sair. Mantive o olhar no reflexo do candeeiro sobre a mesa, só depois encontrei a coragem para encarar Paul.

— Tenho estado… bem. — Conclui por fim, a voz mais baixa do que pretendia. A palavra soou insuficiente, pobre, no entanto era o máximo que conseguia articular sem que a garganta me traísse. — Devia ter vindo antes… — acrescentei, senti a pele arder com a confissão. — Desculpem por não vos ter visitado mais cedo. Não foi por falta de vontade, foi… — hesitei, procurando no vazio uma desculpa que pudesse parecer plausível, mas apenas encontrei a verdade crua — foi medo. Medo de regressar e não saber como seria recebida.

As palavras vacilaram antes de sair.

— Provavelmente vocês ouviram da Piper… — continuei, mais baixo — souberam como a Chloe ficou. — As mãos, até então pousadas sobre o colo, começaram a mexer-se por conta própria, inquietas, apertando o tecido das calças como se tentassem segurar o que já escapava. O peito contraiu-se, e percebi que o ar me faltava sem aviso. — Do quanto a magoei. — Acrescentei, quase num sopro.

Baixei a cabeça, sentindo o calor subir-me ao rosto, uma vergonha antiga e viva, misturada com o medo de que o silêncio deles confirmasse aquilo que mais temia.

Amanda, levou a mão à boca, enquanto a sua expressão se enchia de uma ternura tácita. Paul, por sua vez, manteve a atenção firme sobre mim.

— Maya… — murmurou— o tempo pode ter passado, mas a nossa porta nunca deixou de estar aberta para ti.

As suas palavras ainda ecoavam dentro de mim quando Amanda, que até então permanecera em silêncio, inclinou-se ligeiramente para a frente. Os olhos ainda brilhavam sob a luz suave do candeeiro.

— É verdade, Maya. — afirmou, num tom caloroso. — Esta casa nunca deixou de ser tua também. Temos tanto para conversar… Não importa quanto tempo passou ou o que aconteceu, o importante é que estás aqui agora.

Esta estendeu a mão sobre a mesa, o gesto pequeno, no entanto cheio de significado, eu deixei que os meus dedos encontrassem os dela. O calor do toque devolveu-me a sensação de pertença que julgava perdida.

— A Piper comentou… — começou, a voz ainda baixa, como se tivesse medo de quebrar o frágil equilíbrio daquele reencontro. — Que tens estado a trabalhar num projeto para ajudar o centro.

Houve um brilho orgulhoso no reflexo contido do rosto, uma centelha de ternura que me atingiu como um abraço não dito

— Disse que te envolveste em tudo, que assumiste responsabilidades, que tens estado a lutar para manter o espaço vivo. — Fez uma pausa breve, e o seu sorriso ampliou-se, cheio de uma admiração sincera. — Isso é bonito, Maya. É… um ato que diz muito da pessoa que te tornaste.

Senti o peito contrair-se. Era estranho, quase desconcertante, ser vista daquela forma, como se o que eu fazia tivesse um peso maior do que eu própria lhe atribuía.

— Não sei … — murmurei, desviando novamente o rosto para o abajur. — Acho que foi apenas a única forma que encontrei de... — Fiz uma pausa humedeceu os lábios antes de prosseguir. — Acho que o centro me ajudou a ter um propósito quando eu mais precisava.

Amanda manteve-se muda, no entanto, a pressão do seu toque sobre a minha pele aumentou, como quem confirma que compreende mais do que as palavras explicam.

Alguns minutos depois ouvi-a inspirar fundo, o olhar demorando-se em mim como quem procura medir até onde pode ir. A mão que ainda segurava a minha deslizou levemente, num gesto quase maternal.

— A Piper também nos disse… — começou devagar, como quem atravessa um terreno frágil — que a fé já não tem lugar na tua vida.

A quietude que se seguiu pareceu engrossar o ar entre nós. Vi a sua expressão suavizar, porém também a endurecer de preocupação.

— Não digo isto para te julgar, querida. — Acrescentou rapidamente, a voz aveludada pela ternura. — Só… nós sabemos o quão importante isso era na tua vida e custa-me imaginar-te a carregar certas dores sem esse amparo. Pergunto-me se foi muito difícil para ti, esse afastamento.

As palavras caíram sobre mim como um peso antigo. O peito apertou-se.

— Não foi uma escolha simples. — respondi por fim, a voz mais baixa do que gostaria. — Nem sequer foi uma escolha consciente, Amanda. Foi… inevitável.

Ajeitei a posição, tentando reduzir o desconforto que começava a surgir, ela por seu lado manteve-se imóvel, segundos depois acenou de forma subtil encorajando-me a continuar.

— Só depois da morte do meu pai percebi a verdadeira razão do abandono da minha mãe. — Soltei devagar, sentindo como se algo afiado tivesse a atravessar-me. — Eu cresci a acreditar que a minha mãe me tinha abandonado. Que não me quis ou melhor que não nos quis. Foi isso que o meu pai deixou entrar em mim, como uma certeza. Mas a verdadeira razão não foi essa.

Vi-a franzir a testa, a confusão e a dor a misturarem-se.

— O que queres dizer?

Mais uma vez senti a garganta a fechar-se forçando-me a inspirei fundo antes de prosseguir.

— Depois da sua morte… — comecei, com dificuldade — encontrei caixas escondidas. Caixas com cartas. Escritas pela minha mãe. Eram muitas. Todas dirigidas a mim. Ela nunca me esqueceu, Amanda. Nunca deixou de me procurar. Mas o meu pai… — a voz falhou, precisei de parar, antes de conseguir prosseguir num sussurro — As cartas estavam escondidas no sótão, amarradas com um cordel como se fossem um segredo vergonhoso. A mesma vergonha que o fazia dizer às pessoas que ela tinha morrido quando na verdade o tinha abandonado. — Soltei um riso seco — Ela foi esmagada pela pressão. Pela exigência de perfeição, pelos olhares da comunidade, pelas regras que a diminuíam todos os dias. Não fugiu de mim. Mas do meu pai e da religião que a empurrou para longe.

Vi o choque estampar-se no rosto dela, a sua mão a fugir à boca como se quisesse conter um grito.

— Meu Deus… Maya…

Balancei a cabeça, sentindo a dor latejar de novo como se tivesse sido ontem.

— Ele fez com que eu acreditasse que ela tinha simplesmente desaparecido. Que nunca quis voltar. Mas a verdade… — a respiração tornou-se curta — é que ele conseguiu impedir que ela me procurasse. Não sei como, mas conseguiu afastá-la de mim. — A respiração partiu-se. — Quando li aquelas cartas, senti-me despedaçada. Todos aqueles anos a acreditar que não era suficiente para ela… quando, na verdade, ela era nova, apenas se tentou libertar.  E ele, ele guardou-as, escondendo tudo de mim.

Esta levou a mão ao peito, os olhos marejados, contudo não me interrompeu. Paul por sua vez permaneceu calado, a expressão grave, atenta.

Demorei um pouco até conseguir continuar. As palavras pesavam-me na língua, como se cada sílaba tivesse de atravessar o corpo inteiro antes de sair.

— Quando pude… — comecei, a voz entrecortada — quando finalmente tive coragem de a procurar, já era tarde demais.

O ar pareceu desaparecer à minha volta, como se o próprio mundo tivesse prendido a respiração comigo.

— Descobri que ela tinha concluído um curso de assistente social… — prossegui, devagar, escolhendo as palavras como quem caminha sobre vidro. — Que trabalhava num orfanato, a cuidar de crianças que ninguém quis. — Engoli em seco, contudo a minha voz falhou mesmo assim. — Tive a oportunidade de falar com a diretora. Contou-me que… — o peito apertou, a garganta incendiada — que ela tinha morrido num acidente de carro, há alguns anos atrás.

Fechei os olhos. Senti o peso da notícia como se me tivesse sido dada naquele momento, pela primeira vez.

— O único consolo… — continuei, a custo, a voz embargada — o único consolo que tive dessa visita foi saber que ela falava sobre mim. Que nunca deixou de o fazer. Disseram-me que ela tratava cada criança como se fosse eu. Que as chamava de “meus pequenos milagres”... — um riso trémulo escapou-me, ferido. — Talvez fosse a forma dela continuar a amar-me, mesmo sem me ter ao alcance.

Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando controlar o tremor que me subia pelos dedos. O coração batia-me tão alto que parecia ecoar pela sala.

— Quando descobri isso… — continuei, a voz quase um sussurro — percebi que já não conseguia acreditar num Deus que permitisse que a fé fosse usada como arma. Não consegui. Ainda não consigo. Mas não é rejeição, Amanda… é uma ferida. Que ainda está aberta.

Por um momento vacilei, porém, decidi avançar.

— E não foi apenas isso. — Acrescentei, a voz mais trémula. — No fundo eu sempre percebi que a minha vida nunca caberia no molde que esperavam de mim. Sempre me senti atraída por mulheres… e em vez de ser compreendida, em vez de aceitar, disseram-me que era pecado. Passei anos a tentar calar essa parte de mim, a escondê-la até de mim própria.

Amanda apertou ainda mais os meus dedos, enquanto eu notava a humidade nos seus olhos aumentar.

— Essa foi uma das razões pela qual aceitei casar. — Confessei, a voz embargada. — Achei que, talvez, se me entregasse a um homem bondoso… tudo desapareceria. Ele não tinha culpa. Mas eu… eu nunca consegui. Por mais que tentasse, não havia em mim espaço para amar assim. O meu corpo não respondia, o meu coração não se entregava. Era como viver sempre pela metade. Eu sentia-me presa num corpo que não era meu, numa vida que não era minha. Por dentro, gritava. Por fora… sorria.

Suspirei fundo, e um riso curto, seco, escapou-me.

— Engraçado, não é? O meu pai sendo pastor, eu a filha dele… era óbvio que seria criada com o mesmo destino que a minha mãe. Olhando para trás, eu sei que ele fez o que achava ser certo para mim, eu não consigo o odiar pela forma como me criou.

Passei as mãos pelo rosto, tentando conter a torrente.

— Cresci ouvindo, dia após dia, sermões que declaravam como uma mulher devia ser. — Comecei, a minha própria voz pareceu vacilar, como se atravessasse um corredor estreito demais. — Submissa. Dócil. Guardiã do lar.

Cada palavra soava como um eco antigo, um preceito gravado a fogo.

— Criada para ser cuidada por um homem, para depender dele, para o servir. — Prossegui, a respiração falhando a meio da frase. — Cuidar dos filhos, cuidar da casa, cuidar da reputação dele… — fiz uma pausa breve, o olhar a perder-se no vazio — e da família. No entanto nunca de mim.

O silêncio que se seguiu pareceu ferir o ar. Senti a garganta queimar, e as palavras seguintes saíram entrecortadas, como se cada uma pesasse mais do que podia suportar.

— Cresci a acreditar que o amor era um contrato… não um encontro. — As mãos agora no colo tremiam, percebi que as apertava com força, como se o corpo ainda tentasse resistir à memória. — Que a minha vida seria entregue a um “bom provedor” escolhido não por mim, mas pela comunidade. Um homem exemplar, ativo na igreja. — Suspirei, o som tão baixo que quase não existiu. — Casar cedo era sinal de virtude. E eu… eu fui moldada para isso. Desde criança que me repetiam — sussurrei, a fala desfeita — que o maior sonho de uma filha era um lar sólido, um homem respeitável do seu lado.

A última frase morreu lentamente entre nós, como um eco que não se queria apagar. Baixei a cabeça para as minhas mãos.

— O casamento foi uma mentira piedosa. E quando desmoronou, fiquei apenas com vergonha. Não por ele… mas por mim. Por ter tentado ser alguém que nunca fui.

Por um instante, ninguém se mexeu. O relógio da sala continuava o seu compasso, e cada tique soava como um eco distante daquilo que acabara de ser dito.

Pelo canto do olho vi Paul desviar o olhar em direção da janela, talvez para esconder o tremor subtil que lhe endurecia o maxilar. Os dedos, entrelaçados, apertaram-se sobre os joelhos, como quem procura conter algo que não se sabe nomear. Amanda, por sua vez, inclinou-se para a frente. A respiração era lenta, visivelmente contida, e os olhos... os olhos continham uma dor antiga, a dor de quem se pergunta como foi possível o mundo ter sido tão cruel com alguém que amava.

Quando finalmente se recompôs para falar, as palavras saíram trémulas, como se também elas tivessem atravessado um deserto.

— Maya… — murmurou. — Meu Deus… minha querida…

Estendeu novamente a mão, hesitando no ar por um segundo antes de me tocar, como se receasse ferir o que restava de mim.

Senti o calor dos seus dedos sobre os meus, o leve tremor que denunciava tudo o que não se dizia. Por um momento, as palavras deixaram de ser necessárias. Só havia aquela quietude espessa, carregada, onde três respirações tentavam reorganizar o ar.

E foi nesse espaço quieto entre nós que percebi que algo dentro de mim começava, devagar, a desatar-se.

Senti o movimento do seu corpo curvar-se mais, até que a distância entre nós se dissolveu. O seu ombro era um lugar antigo e conhecido, um refúgio que eu julgara perdido. Devagar encostei a cabeça nele, e nesse gesto simples, quase infantil, senti o corpo inteiro ceder.

O choro veio sem aviso, primeiro um soluço breve, depois uma torrente mansa, quase serena, como se cada lágrima lavasse um pedaço de culpa acumulada.

Permaneceu calada. Passou a mão pelos meus cabelos num gesto compassado, maternal, como se recordasse os rituais de antigamente quando o toque era o suficiente para acalmar todos os medos. Paul manteve-se diante de nós, as mãos cruzadas, o rosto baixo. A sua presença sólida, silenciosa, era um testemunho de respeito, de quem entende que há dores que só se escutam com o coração.

— Nenhuma fé, nenhum homem, nenhum pai, nenhuma comunidade devia roubar-te o direito de seres quem és. — Concluiu Amanda, num sussurro trémulo, no entanto cheio de doçura. — Muito menos uma mãe, meu amor… — Fez uma pausa breve, como se quisesse que eu a encarasse, que acreditasse em cada palavra. — Essa culpa não te pertence, Maya. Nunca te pertenceu.

As últimas palavras dissolveram-se em mim como um bálsamo quente. Foi então que desabei por completo não em desespero, mas numa entrega lenta, necessária, a tudo o que durante anos tinha ficado apenas dentro de mim.

As lágrimas foram rareando até se tornarem apenas respiração.

Fiquei ali, encostada no seu ombro, sentindo o cheiro doce do seu perfume misturar-se ao calor da casa. O tecido da sua blusa guardava o sal das minhas lágrimas, e por um instante desejei poder ficar ali, pequena e anónima, sem passado nem futuro, apenas presente naquele amparo que não exigia explicações.

Contudo o corpo começou a pedir por ar e espaço. Endireitei-me devagar, limpando o rosto com o dorso da mão. Amanda não disse nada, apenas pousou a palma sobre o meu braço, num gesto silencioso de continuidade.

E foi nesse silêncio morno, nesse intervalo entre o consolo e o que viria depois, que algo dentro de mim começou a mover-se.

A dor antiga, a culpa herdada, a fé que me moldara, tudo isso parecia finalmente começar a dissolver-se. E, ainda assim, havia outra coisa, mais recente, que não me deixava em paz.

Amanda disse que a culpa não me pertencia e talvez não pertencesse, de facto, aquela antiga culpa que me tinha prendido por tantos anos.

Porém havia outra, uma mais recente, mais íntima, que eu precisava de enfrentar.

Uma culpa que não nascia da fé, mas da omissão.

Do silêncio entre mim e Chloe.

Daquilo que aconteceu e que ainda não tive coragem de enfrentar.

Senti o peito apertar de novo, de uma forma diferente. Não pelo que foi, mas pelo que ainda é.

Porque agora que tinha voltado a expor a verdade em voz alta, percebe que o silêncio também era uma mentira. E continuar calada seria regressar ao mesmo lugar de onde acabara de sair.

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Há acontecimentos que se contam como quem atravessa um rio gelado, passo a passo, tremendo, sem saber se o chão vai ceder.

Qual será o próximo passo?

Obrigada. Ate ao próximo capitulo

 


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Comentários para 31 - Capítulo 30:
Mmila
Mmila

Em: 06/10/2025

Maya desde sempre teve uma vivência complicada na família é isso refletiu nas suas escolhas de vida.

O hoje, pode vir a ser um amanhã com uma expectativa melhor.

Responder

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HelOliveira
HelOliveira

Em: 05/10/2025

Maya não teve uma vida fácil desde pequena, e a pessoa devia cuidar,  complicava muito mais em nome da Fé, e ainda afastar a mãe, não consigo não ficar com raiva desse pai dela...

 

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