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O Peso do Azul por asuna

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Palavras: 4577
Acessos: 204   |  Postado em: 15/09/2025

Capítulo 29

A manhã chegou, no entanto, dentro de mim nada parecia ter amanhecido. Continuei deitada, a atenção fixa no teto branco que mais parecia um espelho das minhas inquietações. Cada fissura da pintura lembrava-me a noite anterior.

Não tinha forças para me erguer. O corpo ainda guardava o peso do perfume dela, entranhado na pele como cicatriz invisível. Havia em mim uma urgência clandestina, o desejo de me render a fantasia que me perseguia há dez anos, de repetir aquele instante, e ao mesmo tempo a repulsa de saber que devia apagá-lo.

O silêncio da casa era quase absoluto. Pensei em levantar-me para preparar um café, contudo permaneci ali, deitada, imóvel, como quem espera por um sinal que nunca chega. Se ainda acreditasse, talvez pedisse uma por uma resposta, mas há muito que esse vazio não me devolvia nada.

Algo latej*v* sob a pele não era só receio, era a memória viva do toque. Como se cada nervo ainda recordasse a aproximação de um corpo conhecido, como se os anos não tivessem sido suficientes para quebrar esse reconhecimento. Fechei os olhos, tentando disciplinar a respiração, mas ela voltava sempre entrecortada.

Rolei na cama, escondendo o rosto na almofada. O tecido recebeu as lágrimas silenciosas que me escapavam, gotas que ardiam como pequenos fragmentos de culpa a perfurar-me devagar.

Como vou encarar a Chloe agora?

Como é que se sustenta um olhar depois daquilo? Depois de sentir os seus lábios colarem-se aos meus, do desespero que nos uniu por segundos, da forma como o meu próprio corpo a recebeu antes que eu tivesse coragem de recuar? A lembrança queimava como fogo lento, devorando o que eu tentava reconstruir com tanto esforço.

E Grace, como a vou encarar? Como suportar a dignidade cansada do seu sorriso, sabendo que, enquanto ela lutava para respirar, eu deixei que a vulnerabilidade da mulher que ama me puxasse de volta para o abismo?

Essa era a maior ferida. Saber que dentro de mim conviviam a chama e a cinza, o desejo e o peso de o renegar. Saber que parte de mim ainda ardia e que outra, não menos real, queria apagar-se por completo.

Quis desaparecer dentro do colchão, ser engolida pela almofada até que nada restasse de mim. Contudo, havia sempre algo a puxar-me de volta. Foi então que o silêncio se quebrou. Primeiro um estalar suave da madeira, depois o arrastar hesitante de passos no corredor. Pés leves, cuidadosos, como se quisessem atravessar o mundo sem o acordar.

Mia.

O coração acelerou de imediato pela urgência de me recompor antes que ela me visse assim, não podia permitir que o meu caos interno se infiltrasse na sua vida. Esfreguei os olhos com a manga do pijama, respirei fundo e sentei-me devagar na cama.

Na porta, a sombra pequena projetou-se contra a luz suave do corredor.

— Maya...? — a voz soou baixa, embargada pelo sono.

— Podes entrar — respondi, levantando-me para arrumar a cama, como se a ordem dos lençóis pudesse disfarçar a desordem que me consumia.

Ouvi os seus passos lentos enquanto entrava no quarto, respiração ligeiramente pesada.

— Dói? — perguntei.

— Só quando respiro… — sorriu de lado. — Ou quando me mexo.

Um riso abafado escapou-me.

— Vamos até à cozinha. Preparo qualquer coisa para comeres e tomas a medicação.

Apoiei-a pelas escadas, o corpo dela leve e vulnerável junto ao meu. O braço bom enlaçava-se ao corrimão, mas era em mim que se apoiava de verdade, cada passo hesitante transmitindo o peso da dor que não dizia em voz alta. Senti-lhe o calor atravessar o tecido fino da camisola, a respiração prender-se a cada degrau.

Quando chegámos ao rés-do-chão, vi-a soltar um suspiro quase impercetível, seguidamente levei-a até à cadeira mais próxima e esperei que se sentasse antes de me afastar.

Na cozinha, os gestos automáticos de preparar café ofereceram-me alívio temporário. O aroma familiar encheu o espaço como promessa breve de normalidade. Mia mordia distraída uma fatia de pão. E eu, enquanto a observava, comecei a formar mentalmente uma lista do que teria de fazer, advogado, polícia, restrição, relatórios, reunião com Piper. E, inevitável, o peso de decidir se devia ou não enfrentar Chloe depois do que acontecera.

 — Maya? — Mia inclinou a cabeça, atenta. — Estás bem? Hoje pareces... diferente.
— Só cansada — menti, escondendo-me atrás do vapor do fogão. — Espero que o James já tenha enviado o vídeo, assim decidimos o próximo passo.

Esta assentiu, enquanto levava a caneca aos lábios.

— O comprimido já começou a fazer efeito? — perguntei, tocando-lhe ligeiramente no ombro bom.

— A dor agora está suportável. Acho que consigo tomar um duche sozinha.

Quando terminou, recolhi os pratos e carreguei a máquina. Assim que esta subiu de volta para o quarto, aproveitei para me sentar à mesa com o laptop. Os e-mails começaram a chegar, o link com as imagens, a minuta da queixa, a confirmação do jornal sobre a reportagem do evento. Tudo em filas ordenadas.

Abri o vídeo das câmaras.

Mia a sair do centro, o casaco claro, o passo apressado. Um carro azul encostado mais adiante. O arranque. A trajetória. O choque iminente. O meu corpo gelou, como se a sala tivesse sido mergulhada num congelador. Rebobinei. Voltei a ver. Duas vezes. Três. Não havia margem para dúvidas.

— Maya! — a voz de Mia soou do andar de cima.

Subi as escadas com passos pesados, encontrando Mia sentada na beirada da cama, tentando enfiar uma T-Shirt pela cabeça com uma mão só. A tala ortopédica tornava o movimento impossível, vi a frustração acumular-se no seu rosto como nuvem de tempestade.

— Preciso de ajuda — murmurou, sem orgulho ferido, apenas reconhecimento pragmático da sua limitação temporária.

— Claro — respondi, surpreendendo-me com a normalidade da minha própria voz.

Aproximei-me devagar. Ajudei-a a enfiar o tecido, cuidando para que a manga não tocasse na tala, ajeitando-o com gestos quase maternais.

— Pronto.

Mia ajeitou a bainha da T-shirt com a mão esquerda, os olhos baixos. Sentei-me na beira da cama, ainda próxima, sem saber se devia quebrar o silêncio.

Foi ela quem o fez.

— Ontem à noite, tive a impressão de ter ouvido alguém. — A voz soou hesitante, quase como se tivesse medo de incomodar. — Fiquei na dúvida… talvez tenha sido só a minha cabeça.

O ar abandonou-me os pulmões. Comprimi os lábios, sentindo o calor subir pelo pescoço, denunciando-me antes de qualquer palavra.

— Chloe esteve aqui — confessei, baixando o olhar. — Veio saber como estavas. Eu disse-lhe que estavas a dormir. Prometeu voltar noutra altura.

Mia ergueu o rosto, olhos mais velhos do que a idade que carregava.

— Ela não precisa de se preocupar comigo — disse, firme, como quem enuncia um facto indiscutível. — O lugar dela é com a Grace. É lá que ela deve estar, é com ela que precisa gastar cada segundo de força que ainda tem.

O eco expandiu-se dentro de mim, atingindo o ponto exato onde a lembrança da noite anterior ainda queimava.  Senti o rubor subir-me à pele, quente e ácido, enquanto o coração se apertava com a clareza brutal da frase de Mia. O lugar de Chloe era com Grace. Não comigo. Nunca comigo. Fiz um esforço quase físico para não desviar o olhar, para não denunciar o tumulto que as palavras dela despertavam. Mas dentro de mim, a culpa já se tinha entranhado como ferrugem, corroendo devagar o que eu tentava preservar de íntegro.

Engoli em seco.

— A Chloe preocupa-se contigo, Mia — murmurei, tentando manter a voz estável. — Veio cá por isso. Mesmo com tudo o que carrega, mesmo com a Grace… ainda assim, preocupou-se.

A frase saiu mais baixa do que eu queria, carregada de um peso que não confessei. Porque, no fundo, soava a justificação — não para Mia, mas para mim mesma.

Ela limitou-se a observar-me em silêncio durante alguns segundos, como se avaliasse cada fissura da minha expressão. E foi então que desviou o olhar, mordendo o lábio inferior, antes de falar de novo.

— Maya… — começou devagar, mordendo o lábio inferior. — Vais mesmo falar com a polícia, não vais?

Agradeci em silêncio pela mudança de rumo da conversa. A pergunta ficou a ecoar no quarto. Vi a sua mão boa crispar-se no tecido da T-shirt, como se antecipasse a resposta.

Assenti lentamente.

— Vou. Já não é uma hipótese, Mia. O vídeo é claro. O James testemunhou. Não podemos fingir que foi um acidente.

Ela respirou fundo, os olhos fixos num ponto qualquer da parede, como se encarasse um inimigo invisível.

— E o advogado? Disseste ontem que ias procurar um…

— Sim. — A minha voz saiu firme, mesmo que por dentro tremesse. — Já estou a tratar disso.

O silêncio voltou a instalar-se, mas era outro, mais denso, como se cada palavra tivesse aberto espaço para um peso maior.

— Maya… — a sua voz fraquejou, quase um sussurro. — E se nada disto for suficiente? E se ele tentar outra vez?

A pergunta partiu-me por dentro. Vi-lhe o olhar fixar-se em mim, não buscando apenas respostas, mas algo maior: a certeza de que havia um porto seguro contra a tempestade.

Aproximei-me, segurei-lhe a mão esquerda entre as minhas, sentindo a pele fria, o leve tremor que lhe percorria os dedos.

— Eu não sei o que a polícia fará. — Confessei, cada palavra pesada como chumbo. — Mas se ele for idiota o suficiente para voltar a aproximar-se, juro-te, Mia, eu faço de tudo para que seja preso. Nem que tenha de enfrentar o mundo inteiro.

Ela não respondeu. Apenas deixou que a respiração se tornasse mais lenta, mais profunda, como se o corpo, exausto da tensão, finalmente tivesse encontrado refúgio. A medicação começou a fazer efeito, dissolvendo o tremor dos seus dedos, fechando-lhe os olhos devagar até o sono a agarrar por completo.

Fiquei a observá-la durante alguns minutos. O rosto repousado parecia mais jovem do que nunca, frágil, quase infantil, como se o peso dos últimos dias tivesse cedido por instantes. Ajeitei-lhe o cobertor sobre os ombros e permaneci imóvel, a escutar a cadência tranquila da sua respiração, até sentir que estava verdadeiramente entregue ao descanso. Só então me levantei, saindo em silêncio do quarto.

Na sala, a tela do computador ainda brilhava, os emails alinhados como ordens silenciosas à espera de serem cumpridas. Entre eles, a resposta do advogado que eu tinha procurado de madrugada. Peguei no telefone e disquei o número.

A conversa foi objetiva, desprovida de sentimentalismo, porém cada palavra caiu sobre mim com o peso de uma responsabilidade nova. Ele explicou o caminho a seguir, apresentar o vídeo como prova, registar imediatamente a ocorrência na polícia, solicitar medidas de proteção urgentes para Mia. Reforçou que, no caso de menores, a denúncia não era apenas um direito, mas uma obrigação legal.

Falou-me de prazos, de burocracias inevitáveis, de papéis que teria de assinar e acompanhar, de audiências que viriam em seguida. Havia um protocolo claro, uma linha reta que começava agora e que não poderia mais ser interrompida.

Quando a chamada terminou, fechei os olhos, deixando a cabeça cair contra o encosto da cadeira. O peso da decisão ainda ecoava dentro de mim quando o dispositivo vibrou sobre a mesa. Uma notificação. Um lembrete quase esquecido, reunião com Piper.

Soltei um suspiro, passando as mãos pelo rosto. Entre hospitais, advogados e aparições da noite anterior, aquela reunião parecia pertencer a outro universo. Ainda assim, ignorá-la seria adiar mais uma responsabilidade. Voltei a pegar no telefone e, antes que o cansaço me convencesse a desligar de tudo, procurei o seu contacto.

O som de chamada ecoou do outro lado, acompanhado do reflexo de mim mesma na tela, olhos vermelhos, cabelo desalinhado, o rosto ainda marcado por uma noite que parecia não ter acabado. Pensei em desligar, em inventar uma desculpa, contudo Piper atendeu rápido demais.

Perguntei-lhe se preferia fazermos por chamada de vídeo ou se queria encontrar-se em casa. A minha voz saiu baixa, sem a energia habitual, no entanto, ainda assim clara. Do outro lado, a ruiva hesitou apenas um instante, antes de responder com a sua habitual leveza.

— Imagino que a tua vida esteja um turbilhão, Maya. — disse sem rodeios. — Mas como isto é só para acertar pequenos pormenores sobre o evento, podemos perfeitamente fazer por chamada de vídeo. Não te preocupes em sair de casa.

Senti um alívio imediato a escorrer-me pelos ombros.

— Um minuto e já te ligo. — Acrescentou, com uma naturalidade que não deixava espaço para protestos.

A tela acendeu-se de novo, e a imagem de Piper surgiu emoldurada pela claridade forte da sua sala, os cabelos em desalinho, mas o olhar vivo como sempre. O contraste com o meu reflexo, esgotado e pálido, era gritante.

— Então, vamos a isto. — disse, direta, como quem tem pouco tempo para perder, no entanto, toda a energia para gastar. — Precisamos de afinar os detalhes da corrida. Quero que o centro seja o coração visível do evento, não apenas o bastidor. É importante que cada corredor traga o nome do centro estampado, que se sinta parte da causa. Não é apenas um desporto, é visibilidade.

Fui fixando mentalmente enquanto a ouvia. A ruiva falava com um entusiasmo que me obrigava a acompanhar o ritmo.

— E quanto a imprensa? — perguntei.

Ela inclinou a cabeça, já preparada.

— Já recebi confirmação da presença de alguns jornalistas. — explicou Piper, a energia a brilhar-lhe nos olhos. — Mas o ideal será abordá-los preparada, com imagens fortes e declarações alinhadas. Os corredores podem também ser porta-vozes, talvez algum deles tenha histórias pessoais que se cruzem com a missão do centro. Essa ligação direta pode dar-nos certa visibilidade.

Assenti, sentindo a clareza do plano a devolver-me alguma ordem no meio do turbilhão.

— Há outra coisa que gostaria de discutir. — Comecei ajeitando a postura na cadeira. — Seria importante termos uma área de descanso para os corredores. Um espaço simples, no entanto, funcional, com cadeiras, sombra e claro, hidratação.

Esta arqueou uma sobrancelha, curiosa.

— Continua…

— Consegui que um fornecedor de água se oferecesse para cobrir toda a hidratação. — respondi, e a pequena centelha de orgulho aqueceu-me por dentro. — Além disso, três empresas locais confirmaram patrocínio adicional. Isso dá-nos margem para criar algo sólido, não apenas improvisado. E acho que um gesto assim mostra, de forma concreta, o quanto valorizamos as pessoas que vão correr pelo centro.

Esta endireitou-se na tela, um meio sorriso a nascer-lhe nos lábios, mas sem sombra de ironia.

— Isso é… inteligente. — Murmurou, com um brilho de aprovação no olhar. — Não só cuidamos dos corredores, como passamos uma mensagem clara que o centro valoriza cada um que decide vestir a nossa causa.

Fez uma pausa breve, como se já estivesse a visualizar o espaço montado.

— Vou garantir que essa área esteja numa zona de destaque, não escondida. Quero que quem passe veja os corredores a descansar ali, com o nome do centro bem visível, que perceba o quanto valorizamos as pessoas. Isso vai atrair atenção.

Assenti, sentindo uma estranha mistura de responsabilidade e alívio.

— E precisamos de voluntários para essa zona também. — Continuou já a deslizar em ritmo acelerado. — Gente que ofereça apoio, que saiba lidar com a imprensa caso apareça. Não quero ninguém desprevenido, cada palavra conta quando estamos a ser observados.

— Deixa comigo. — respondi, enquanto esfregava a nuca, tentando aliviar a tensão que parecia entranhada nos ossos.

Do outro lado, a ruiva estreitou a expressão, reparando no gesto. O sorriso diminuiu, cedendo lugar a uma expressão mais séria.

— Estás exausta. — Constatou, sem perguntar.

Baixei o rosto, deixando escapar um suspiro breve.

— Tem sido uma longa semana. — Murmurei, escolhendo as palavras com cuidado, sem entrar naquilo que me queimava por dentro. Chloe, o beijo, a culpa, nada disso podia atravessar esta chamada. — Piper… — comecei, hesitante. — Tenho pensado… queria visitar os teus pais. Faz anos que não os vejo, infelizmente desde a minha chegada tenho estado tão absorta nos afazeres que ainda não tive oportunidade.

O seu rosto suavizou.

— Acho que eles iriam gostar muito. — respondeu, sem hesitar. — Eles falam de ti de vez em quando. A minha mãe ainda guarda algumas fotografias antigas.

Sorri, porém, o gesto saiu mais melancólico do que queria.

— Se decidires aparecer, vai ser uma surpresa que os vai deixar felizes. Eu, entretanto, vou viajar esta noite, por isso não estarei lá. Mas, honestamente, talvez seja até melhor assim.

Assenti, sentindo um nó apertar-se no peito.

— Obrigada. — Murmurei.

Esta inclinou a cabeça, avaliando-me uma última vez, como quem decide não forçar mais.

— Bom preciso de correr. Descansa, Maya. Já fizeste mais do que a maioria faria em tão pouco tempo.

A tela escureceu quando a chamada terminou, devolvendo-me ao reflexo solitário da sala. Fiquei alguns segundos imóvel, a olhar para o vazio, antes de permitir que a respiração voltasse ao seu ritmo natural.

Foi então que o computador voltou a piscar. Uma notificação discreta, mas que fez o meu estômago contrair-se. Chloe Montgomery. Assunto: Portfólio.

As mãos tremeram antes mesmo de se moverem. Toquei no mouse devagar, como quem teme acionar um mecanismo oculto. A janela abriu-se, e os meus olhos correram pelo texto:

Maya,

Envio-te a seleção que consegui reunir. Demorei a decidir o que incluir, talvez mais do que deveria, mas confio no teu julgamento. Se achares que têm valor, poderemos discutir o próximo passo.

Chloe.

Senti a respiração prender-se. Deslizei a seta do mouse até ao ficheiro, as imagens atravessaram, como se empurrasse uma porta que talvez não devesse abrir. As miniaturas surgiram em fila. Um mar revolto, quase negro. Um par de mãos entrelaçadas em contraluz. Uma figura feminina solitária num banco de estação.

Fechei os olhos por um instante, e a sensação de déjà-vu foi imediata. Era como regressar à sua exposição, àquele lugar onde cada fotografia me devolvia não apenas uma imagem, mas uma ferida. Não eram simples registos visuais. Eram confissões camufladas, sombras de tudo o que nunca ousámos nomear. Cada ângulo, cada contraste, vibrava na mesma frequência do silêncio que se instalara entre nós desde o momento em que nos afastámos.

Percorri aquelas representações devagar, deixando que me atravessassem como lâminas. O mar devolveu-me o beijo, aquela onda súbita, brutal, que me arrastara sem aviso. As mãos entrelaçadas lembraram-me do instante em que os seus dedos se fecharam no tecido da minha roupa. A figura na estação podia ser eu: sempre à espera, sempre dividida entre o partir e o ficar.

Afastei o laptop alguns centímetros, como se a distância física pudesse aliviar o peso que me esmagava. Inútil. O que nos ligava não cabia em telas nem em pastas digitais. Estava dentro de mim, queimando-me sob a pele.

Passei a mão pelo rosto, sentindo a humidade insistente no canto dos olhos. O que fazer com aquilo? Eram um gesto de entrega, sim. No entanto, também uma armadilha. Uma entrega mascarada de profissionalismo, carregada de tudo o que não se dizia.

As mãos tremiam quando voltei a puxar o laptop para mim. Inspirei fundo e, quase em penitência, deixei as imagens correr uma a uma. Cada fotografia uma ferida reaberta, e, ainda assim, não conseguia parar. Era como revisitar cicatrizes que, de tão familiares, se confundiam com consolo.

Foi então que a próxima imagem surgiu.

O choque foi imediato. O estômago contraiu-se, e uma corrente fria subiu-me pela espinha.

Ali estava ela. O instante roubado que eu acreditara perdido para sempre. Reconheci-o de imediato. As minhas costas nuas, recortadas pela luz oblíqua, sombras a deslizarem como véus. Vulnerabilidade pura, sem rosto, porém com tudo o que eu era gravado ali.

A memória da sua voz regressou-me como lâmina: “Se havia algo naquela exposição que não estava à venda era aquela fotografia.” E, no entanto, naquele momento ali estava ela, transformada em anexo digital, enviada sem explicações, incluída no portfólio como se fosse apenas mais uma.

Mas não era. Eu sabia. Ela sabia.

O golpe mais fundo não foi a imagem em si, contudo, o silêncio que a acompanhava. Um silêncio pesado, cheio de intenções que eu não sabia decifrar.

E se fosse um ato de desapego? Uma forma de me dizer que já não precisava de me guardar? Que o corpo que um dia lhe pertencera já não pesava nada, transformado em mercadoria, fragmento de memória descartável?

Engoli em seco, sentindo a garganta arder. A ideia soava a sentença.

Se fosse isso, então aquele beijo, naquele instante de desespero e urgência, em que ambos os corpos se reconheceram antes de a razão conseguir intervir, não passava de uma falha, um erro humano que agora ela queria enterrar. E esta fotografia seria a pá de cal sobre o que restava.

Inclinei-me para a frente, esmagada pelo peso da possibilidade. O coração batia irregular, um som surdo a martelar-me os ouvidos, lembrando-me que estava viva, todavia não inteira.

Mas… e se não fosse desapego? E se fosse precisamente o contrário? E se, ao enviar-me esta imagem, Chloe tivesse encontrado a forma mais crua de me dizer: “Continuas sendo tu. Tu ainda estás em mim, mesmo que não devesses.”

O labirinto fechava-se sobre si mesmo. Cada hipótese anulava a anterior. Adeus ou insistência? Desapego ou confissão? Erro ou desejo? A dúvida corroía-me mais do que qualquer certeza poderia alguma vez corroer.

Levantei o rosto encarando de novo a tela. Ali estava eu, partida e inteira, desejada e esquecida, entregue e retirada. Todas as versões possíveis de mim, condensadas numa só imagem.

Continuei imóvel, os olhos cravados naquela curva de luz e sombra que era ao mesmo tempo minha e já não era. Sentia o corpo oscilar entre a vertigem e o torpor, como se tivesse caído num poço onde não havia saída.

Foi então que o som me arrancou da espiral.

— Maya? — A voz de Mia, frágil, no entanto firme, desceu pelo corredor. — Vamos à delegacia hoje?

Pisquei, atordoada, demorando alguns segundos a regressar à superfície do mundo real. A tela iluminada permaneceu diante de mim, acusadora. Deslizei com a ponta dos dedos pela tampa, fechando-o devagar, como quem esconde um ferimento aberto debaixo de um pano.

Respirei fundo, tentando recompor o tom de voz.

— Sim. Vamos, claro que vamos.

Levantei-me da cadeira, as pernas pesadas como se carregassem todo o peso do que acabara de ver, contudo não podia permitir que a minha turbulência se infiltrasse em Mia.

Endireitei os ombros e subi as escadas para encontrá-la. Ao vê-la, com o braço preso à tala, a força que fazia para se manter erguida apesar da dor, compreendi que não havia espaço para me perder nas minhas divagações. Não naquele momento. A prioridade era ela.

— Dá-me só uns minutos para me preparar e saímos. — Murmurei, pousando-lhe a mão no ombro. — Desta vez, não vamos deixar nada por fazer.

O seu aceno discreto foi suficiente para me devolver à rota. Precisava de manter-me focada.

Durante o trajeto, o silêncio foi quase absoluto. Ela observava pela janela, o rosto sério, como se já estivesse a ensaiar mentalmente as palavras que teria de repetir diante de estranhos. Por minha vez, eu concentrava-me no trânsito, tentando não me deixar cair na espiral de pensamentos que ameaçava puxar-me de volta ao email de Chloe. Fechei os dedos com mais força, obrigando-me a pensar noutro rumo. A única decisão que me permiti ensaiar foi outra, se visitaria ou não a casa dos Walsh ao final daquela tarde, ou se voltaria a adiar mais uma vez.

O letreiro da delegacia surgiu à frente, iluminado pelo frio das luzes artificiais.

— Chegamos. — Murmurei.

Ela inspirou fundo e assentiu em silêncio.

Quando entrámos na delegacia, o ar frio e estagnado das paredes nuas caiu sobre nós como um peso. O balcão metálico refletia a luz agressiva das lâmpadas, e o tilintar de teclados e telefones a tocar em fundo dava ao espaço uma cadência mecânica. Apertei os dedos de Mia de leve, lembrando-lhe sem palavras que estava ali.

O agente de serviço ergueu os olhos do monitor e pediu-nos para esperar alguns minutos. O coração de Mia batia rápido sob a palma da minha mão, contudo, quando finalmente se sentou diante dele, surpreendeu-me. A mão esquerda segurava os papéis que o advogado nos ajudara a preencher, e a direita, presa à tala, parecia lembrá-la da violência que quase a esmagara, mas não a calara.

Com uma firmeza que não esperava, pronunciou cada termo: tentativa de homicídio, perseguição, ordem de restrição. As palavras soaram duras, definitivas, maiores do que ela, no entanto, a sua voz não vacilou. Fiz questão de me manter do seu lado, sempre, deixando que fosse dela o peso do testemunho. Precisava de sentir que era a sua própria voz a erguer-se contra o medo.

Assinei os documentos necessários, respondi a perguntas adicionais, confirmei datas, preenchi lacunas. Tudo no timbre mais objetivo possível. Cada detalhe que registava era também uma forma de controlar a torrente que ameaçava desviar-me.

Quando finalmente saímos, senti-lhe os ombros relaxarem, como se o simples ato de registar a denúncia fosse já um primeiro tijolo contra o medo.

Deixei-a em casa pouco depois, ajeitando-lhe o cobertor no sofá antes de me despedir.

— Volto logo. — Prometi, tocando-lhe de leve no ombro. — Se precisares de alguma coisa, liga. Correrei sem hesitar para cá.

Ela acenou em silêncio, com a expressão visivelmente cansada.

Quando fechei a porta atrás de mim, o relógio no pulso marcava 19h30. Talvez fosse um pouco tarde para visitas. Por um instante, considerei voltar para casa. Mas quantos dias já tinha adiado? Quantos anos, na verdade? O tempo na Austrália corria como areia entre os dedos, e se havia uma dívida que não queria carregar de volta comigo, era a de não ter procurado Amanda e Paul.

Eles tinham-me dado mais do que um teto quando precisei. Tinham-me oferecido uma família em momentos em que a minha se desmoronava. Ignorar isso agora seria uma ingratidão que não suportava acrescentar ao peso que já trazia.

Observei o motorista dirigir o carro pelas ruas tranquilas, o céu pintado em tons alaranjados que cediam lugar à noite. Quando dobrou a esquina que levava à casa deles, um aperto nostálgico tomou-me de assalto. A fachada permanecia quase igual, o portão levemente gasto, o jardim bem cuidado, as luzes interiores acesas. Cada detalhe parecia murmurar memórias que julgava adormecidas, risos ao redor da mesa, a voz doce de Amanda a chamar para o jantar, o timbre grave e sereno de Paul a perguntar como tinha sido o dia.

O uber estacionou em frente à casa, fiquei ali imóvel por alguns segundos. Havia um receio estranho em mim, como se a porta pudesse não se abrir, como se os anos tivessem levantado uma barreira invisível. Contudo, logo o medo cedeu à certeza, eu precisava estar ali, mesmo que apenas para agradecer.

Abri a porta do carro e inspirei fundo antes de sair. O ar noturno cheirava a jasmim e relva recém-regada, lembranças da adolescência coladas à pele. A cada passo em direção à porta, a nostalgia apertava mais, como se os fantasmas do passado me empurrassem suavemente para a frente.

Levantei a mão e bati, o som ecoando familiar. E, pela primeira vez em muito tempo, senti-me prestes a regressar a um lugar que fora casa.

 

 

Fim do capítulo

Notas finais:

Espero, do fundo do coração, que a história, até aqui, não vos tenha desapontado.

Até ao próximo capítulo. 


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Comentários para 30 - Capítulo 29:
Mmila
Mmila

Em: 15/09/2025

Está excelente a história.

Com todas as nuances necessárias.

Gosto do desenvolvimento, das pontuações das passagens da história.

Parabéns autora.


asuna

asuna Em: 05/10/2025 Autora da história
Fico muito feliz!!
Obrigada por acompanhar :)


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HelOliveira
HelOliveira

Em: 15/09/2025

A história continua muito boa, só melhora a cada capítulo e aumenta a ansiedade para o próximo...


asuna

asuna Em: 05/10/2025 Autora da história
Espero que o próximo continue a despertar a curiosidade!
Obrigada


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