O Peso do Azul por asuna
Capítulo 28
A luz do meio-dia infiltrava-se pelas janelas amplas da sala principal, criando padrões dourados sobre as pilhas de formulários que se espalhavam pela mesa como evidência física de uma manhã produtiva. Tinha chegado ao centro às oito, decidida a organizar o sistema de inscrições para o evento beneficente que se aproximava a passos largos.
Finalmente o trabalho árduo começava a dar frutos, três empresas locais tinham confirmado patrocínio adicional, um fornecedor de água oferecera-se para cobrir toda a hidratação, e o jornal local queria fazer uma reportagem sobre o evento.
Estava a verificar pela terceira vez a lista de voluntários quando percebi que me tinha perdido nos números. Nos últimos três dias, desde que assumira oficialmente funções no centro, descobrira que gostava desta componente prática do trabalho. O tempo corria como líquido, quando olhava para o relógio ou já estava a meio do dia ou era interrompida por Mia que me chamava para ir para casa.
O murmúrio constante do centro, vozes no corredor, risos de crianças numa sala próxima, o pulsar de vida em movimento, criava uma banda sonora reconfortante para o trabalho solitário. Era um som que falava de propósito, de comunidade, de diferenças pequenas, contudo significativas sendo feitas uma interação de cada vez.
Estava a finalizar uma folha de calculo quando James irrompeu pela porta, o rosto lívido contrastando brutalmente com o cabelo grisalho, a respiração entrecortada como se tivesse atravessado a cidade a correr.
— Maya — chamou, a voz carregada de uma urgência que me gelou o sangue. — Preciso que venhas cá fora imediatamente. A Mia... houve um acidente.
Deixei cair a caneta, levantando-me num impulso que fez a cadeira ranger contra o chão.
Quando cheguei ao exterior, a ambulância já estava estacionada à entrada, as luzes vermelhas e azuis pintando a fachada do edifício com cores de emergência que me cortaram o fôlego. Um pequeno grupo aglomerava-se no passeio, rostos tensos voltados para onde dois paramédicos se curvavam sobre uma figura deitada no asfalto.
Mia.
Corri na sua direção, os saltos batendo contra o pavimento numa percussão desesperada.
Finalmente aproximei-me do local onde os paramédicos trabalhavam com eficiência silenciosa, as suas mãos experientes verificando sinais vitais e estabilizando a jovem que jazia sobre a maca portátil. Mia estava consciente, respondendo às perguntas com voz trémula, porém clara, os olhos focados apesar da palidez óbvia que contrastava com as nódoas de sangue no rosto e braços.
Quando me viu aproximar, algo na sua expressão relaxou visivelmente, como se a minha presença fosse âncora em tempestade.
— Maya — sussurrou, estendendo a mão esquerda na minha direção, a direita imobilizada contra o peito numa posição que sugeria uma lesão significativa.
Ajoelhei-me junto à maca, segurando os seus dedos com a delicadeza reverente de quem manuseia cristal rachado, sentindo o tremor fino que lhe percorria a pele fria.
— Estou aqui — murmurei, mantendo a voz baixa e tranquilizadora. — Não vais ficar sozinha nem por um segundo.
— É necessário acompanhamento hospitalar imediato — interveio o paramédico sénior, ajustando a tala temporária que imobilizava o braço direito. — Menor de idade requer presença de encarregado de educação ou responsável legal. Presumo que seja a senhora?
— Sou eu, sim — respondi sem hesitação, apertando suavemente os dedos de Mia. — Vou acompanhá-la em tudo.
Vi os paramédicos trocarem um olhar breve antes de iniciarem a manobra de transporte. Com gestos precisos, ergueram a maca portátil e começaram a encaminhar Mia em direção à ambulância.
Segui-os com o olhar até desaparecerem no interior do veículo, o meu corpo dividido entre a necessidade de correr atrás e a certeza de que havia ainda perguntas sem resposta. Foi então que senti James aproximar-se pelas minhas costas, a respiração ofegante a cortar o ar.
— O que aconteceu? — perguntei, virando-me para ele.
— Estava a sair para o almoço quando um carro azul acelerou direto na sua direção. Tentou desviar-se, tropeçou no passeio e caiu mesmo quando ele passou.
— Conseguiram identificar o condutor? Anotaram a matrícula?
— Rapaz jovem. Cabelo escuro. — A hesitação espessou o ar entre nós. — Maya... pareceu intencional. A forma como acelerou não foi acidental.
A fúria que me atravessou foi visceral, primitiva.
Observei a fachada do edifício durante um segundo, depois voltei-me na sua direção com determinação férrea.
— Quero que o segurança verifique as câmaras de segurança da entrada principal e envie tudo para o meu email imediatamente.
Este acenou gravemente, dirigindo-se de volta para o centro onde já se formara um pequeno grupo de curiosos e funcionários inquietos.
***
Durante o trajeto para o hospital, mantive-me sentada do seu lado, observando os monitores que piscavam números tranquilizadores enquanto as sirenes cortavam o trânsito da cidade. O Hospital Central materializou-se diante de nós como fortaleza médica, as portas das urgências engolindo-nos num mundo dominado pelo cheiro penetrante a antissético e pela luminosidade artificial que nunca dormia.
O ambiente hospitalar envolvia-me com familiaridade perturbadora, as paredes em tons neutros, o eco constante de passos sobre linóleo polido, o murmúrio incessante de conversas médicas misturadas com preocupações familiares. Um universo que conhecera intimamente, recordei as horas intermináveis ao lado do meu pai, a sensação de impotência a corroer-me como veneno lento, o cheiro a desinfetante colado à pele como cicatriz invisível.
E, por baixo dessa memória, outra ainda mais funda a última vez que estivera com Chloe, dez anos antes. Esse lugar devolvia-me sempre o que eu tentava enterrar, o arrependimento das escolhas que fiz, e a dor silenciosa de ter perdido quem nunca consegui esquecer.
Sacudi a lembrança com esforço, obrigando-me a focar no presente. Foi nesse estado de vigília inquieta que, duas horas depois, vi um médico aproximar-se com propósito determinado.
— É a responsável pela jovem Mia? — questionou o médico, um homem na casa dos cinquenta com expressão cansada, porém atenta.
— Sim, sou eu — respondi, levantando-me instintivamente. — Como ela está?
— Dr. Martin, ortopedia. — Apresentou-se com a objetividade ensaiada de quem já dissera aquelas frases milhares de vezes. — A jovem apresenta fratura do rádio distal no braço direito, conseguimos reduzi-la e imobilizá-la adequadamente. Também há contusão moderada na coxa esquerda e escoriações superficiais múltiplas.
O vocabulário técnico, tão frio e calculado, trouxeram-me memórias indesejadas de relatórios sobre o estado do meu pai, descrições em linguagem médica que tentavam disfarçar a fragilidade humana atrás de diagnósticos.
— E a cabeça? — forcei, a garganta seca.
— Realizámos uma tomografia por protocolo. — Pausa breve, como se medisse o impacto antes de continuar. — Não há sinais de lesão intracraniana. Manteremos em observação algumas horas. Se tudo correr bem, terá alta ainda hoje.
O alívio que me percorreu foi físico, tangível, como se um peso invisível se desprendesse dos meus ombros.
— Posso vê-la?
— Claro. Sala de observação número sete. Vou pedir para que alguém a oriente.
Segui pelo corredor, os passos apressados a ecoarem no piso. Quando finalmente entrei, o mundo pareceu encolher.
Encontrei-a na sala de observação, deitada numa cama estreita com grades metálicas, o rosto pálido contrastando brutalmente com o cabelo espalhado sobre a almofada branca. Tinha o braço direito imobilizado numa tala ortopédica rígida, arranhões superficiais que contavam a história brutal do encontro entre pele humana e asfalto áspero. A expressão nos seus olhos misturava dor física com algo muito mais profundo, uma vulnerabilidade crua que me fez querer envolvê-la em proteção absoluta.
Aproximei-me devagar, sentei-me na cadeira junto da cama. Estendi a mão por reflexo, mas hesitei ao ver o soro gotejando lentamente e o oxímetro no dedo fino, a tela piscando números tranquilizadores. Toquei-lhe apenas no ombro esquerdo, num gesto contido, como quem teme causar mais dor do que consolo.
— Como te sentes? — perguntei baixo, tentando que a minha voz fosse porto seguro.
— Como se tivesse sido atropelada por um carro — respondeu, tentando esboçar um sorriso fraco.
O humor frágil partiu-me por dentro.
— Preciso que me contes o que aconteceu.
Os seus olhos fecharam-se por um instante. Inspirou fundo, o peito a erguer-se com esforço.
— Tinha acabado de sair do centro... — começou, a voz embargada. — Ia encontrar-me com a Samantha no café da esquina. Foi quando o vi. Um carro azul, parado do outro lado da rua. Reconheci-o imediatamente.
O meu sangue gelou.
— O Ryan.
— Sim. — A confirmação chegou como sussurro carregado de medo residual. — Tentei agir normalmente, caminhar na direção oposta, fingir que não o tinha visto. Mas quando cheguei perto do cruzamento... ele arrancou.
Fez uma pausa, os dedos da mão esquerda contraindo-se contra o lençol hospitalar.
— No início pensei que fosse coincidência — murmurou, a voz trémula, mas lúcida. — Contudo depois... Maya, ele virou o volante diretamente na minha direção. Não foi para me assustar. Foi para me atingir.
A frieza na descrição fez-me estremecer. Violência deliberada, calculada, direcionada a uma jovem cuja única culpa fora procurar segurança longe de um relacionamento tóxico.
— E depois? — incentivei, mesmo temendo a resposta.
— Tentei correr, mas estava em pânico. Os meus pés enroscaram-se um no outro e caí naquele preciso momento. — As lágrimas finalmente transbordaram. — Se não tivesse tropeçado, se tivesse continuado a correr nada disto teria acontecido.
— Para — Interrompi, segurando-lhe o ombro com firmeza. — Não penses assim. O que aconteceu não foi culpa tua. Foi uma tentativa deliberada de te magoar, e tu sobreviveste.
A sua atenção fixou-se num ponto indefinido para além de mim, perdidos entre incredulidade e vergonha.
— Achei que ele iria parar... verificar se eu estava bem. — A voz saiu num sussurro quase infantil. — Mas não. Acelerou ainda mais. Como se quisesse ter a certeza de que me tinha magoado.
A raiva que me atravessou foi visceral, uma fúria que parecia vir de um lugar ancestral. Inclinei-me, obrigando-a a encontrar o meu olhar.
— Mia, escuta-me com atenção — inclinei-me até que os meus olhos estivessem à altura dos dela, para que não restasse espaço para dúvidas. — Isto não vai ficar assim. O que ele fez foi tentativa de homicídio. E vai haver consequências.
— Maya, não... — protestou, a voz embargada, forçando o corpo a erguer-se na cama. — Será a minha palavra contra a dele.
— Há uma testemunha. O James viu tudo. Disse que foi claramente intencional. Além disso, o centro tem câmaras de vigilância. Não estás sozinha nisto.
Vi o instante em que a informação a atingiu. Primeiro, alívio breve como um sopro. Depois, medo renovado, estampado no brilho húmido dos seus olhos.
— E se ele... se ele tentar novamente? — murmurou, quase sem fôlego.
— Não vai tentar. — afirmei com convicção férrea. — Porque eu não vou deixar que ele se aproxime de ti novamente. Desta vez vamos envolver as autoridades.
Ela piscou lentamente, como se a palavra “autoridades” fosse demasiado grande, demasiado definitiva para caber no seu corpo ferido.
— As autoridades...?
Assenti, segurando-lhe a mão boa com delicadeza.
— Advogado. Polícia. Ordem de restrição. O que for necessário para te manter segura. — Fiz uma pausa, deixando que o silêncio carregasse a promessa. — Mia, quando te levei para casa, prometi que ninguém te magoaria enquanto estivesses comigo. Hoje falhei... mas não vai voltar a acontecer.
— Não falhaste. — Interrompeu de imediato, quase com medo que eu acreditasse no contrário. — Maya, tu deste-me uma vida nova. Um lugar onde me sinto segura. Uma estabilidade como uma família que nunca pensei ter. O que o Ryan fez não é culpa tua.
A palavra “família” ficou suspensa no ar, vibrando dentro da sala assética como se transformasse o espaço. Não era apenas uma palavra. Era pertença. Era raiz. Era verdade.
Mia fora, no início, uma responsabilidade assumida por instinto, uma vida colocada nas minhas mãos. Agora, ali, deitada numa cama estreita, o braço imobilizado e o corpo marcado por contusões, percebi o quanto se tornara muito mais do que isso. Era parte de mim. Um laço tecido não pelo sangue, mas pela escolha.
Senti um sorriso nascer-me nos lábios, involuntário, ao vê-la tentar manter alguma normalidade no meio do caos.
— Quando é que posso ir para casa? — questionou, a voz cansada, mas carregada de expectativa.
— O médico disse que precisas de ficar algumas horas em observação. — Toquei de leve no seu cobertor, como se o gesto pudesse acalmar-lhe a impaciência. — Só para garantir que não há complicações do susto. — Consultei o relógio no pulso. — Provavelmente ainda esta noite.
— E depois...? — insistiu, os olhos fixos em mim.
— Depois... — inspirei fundo, sentindo o peso da decisão solidificar-se em mim — fazemos o que devíamos ter feito desde o início. Garantimos que o Ryan nunca mais se aproxime.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo ranger suave da porta. Uma enfermeira entrou com passos discretos, o uniforme impecável e a voz profissional. Aproximou-se de Mia, verificando o oxímetro, ajustando a pressão da braçadeira e anotando números num tablet.
Enquanto observava Mia responder às perguntas, cada palavra carregada de esforço, a voz embargada por uma mistura de dor física e cansaço emocional o meu peito apertou-se com uma sensação dupla de impotência e de urgência.
Tantas decisões a ser tomadas. E tão pouco espaço para hesitações.
Primeira coisa da manhã advogado especializado em violência doméstica. Ordem de restrição. Queixa formal por tentativa de homicídio. Cada recurso legal possível, cada camada de proteção erguida entre ela e o perigo que a rondava.
Quando a enfermeira terminou e saiu, Mia recostou-se com um suspiro pequeno, os olhos semicerrados pela exaustão. Inclinei-me para ela, tocando-lhe no ombro de leve.
— Vou buscar água para ti. E um café para mim. — anunciei num tom baixo, como quem promete regressar depressa.
Esta acenou em silêncio, o olhar cheio de uma confiança que me atingiu mais do que qualquer palavra.
Ao fechar a porta atrás de mim, deixei escapar um suspiro longo, quase um desabafo. A mão percorreu-me o cabelo, tentando alinhar pensamentos que se atropelavam como ondas em tempestade. O corredor cheirava a desinfetante e cansaço humano. Fixei cada detalhe para me orientar no regresso, o quadro de avisos à direita, o extintor vermelho junto ao elevador, a sala de equipamentos com a porta entreaberta.
Comecei a caminhar lentamente pelo corredor, ainda processando a magnitude das decisões que teria de tomar nas próximas horas.
Estava a passar pelo cruzamento de corredores quando avistei uma figura familiar aproximar-se na minha direção. O reconhecimento foi instantâneo, todavia a transformação física tão dramática que por um momento duvidei, o coração contraindo-se numa mistura de choque e compaixão.
Grace deslocava-se lentamente numa cadeira de rodas, empurrada por um auxiliar de enfermagem com a paciência profissional de quem compreendia que cada movimento custava energia preciosa. Mesmo sentada, a mudança desde o nosso último encontro era devastadora, como se os meses de luta contra o linfoma tivessem acelerado o tempo numa crueldade particular.
O tratamento agressivo de quimioterapia esculpira o seu corpo numa fragilidade etérea que cortava a respiração. Perdera peso considerável, transformando-se numa versão espectral de si mesma, os ossos da face agora proeminentes sob pele translúcida que lembrava papel pergaminho à luz. Os braços, pousados sobre o cobertor que lhe cobria as pernas, pareciam galhos delicados que o vento poderia partir.
A cabeça estava completamente despida de cabelo, a pele do couro cabeludo pálida e vulnerável sob a luminosidade crua das lâmpadas fluorescentes. Mas foi a ausência de camuflagem da realidade visual da doença que me atingiu com força inesperada.
Era nudez como honestidade brutal, uma escolha consciente de enfrentar o mundo sem artifícios ou proteções. Havia algo simultaneamente devastador e profundamente corajoso naquela decisão de se mostrar como realmente estava, frágil, lutadora, humana na sua vulnerabilidade mais crua.
— Maya? — A voz chegou mais fraca do que recordava, reduzida quase a sussurro, mas carregada de surpresa genuína que iluminou brevemente os seus olhos claros. — O que fazes aqui?
O auxiliar parou a cadeira a poucos metros de distância, mantendo-se discretamente presente, todavia respeitando a privacidade do momento. Pude ver nos seus olhos a mesma perplexidade que sentia, dois mundos separados, o meu com Mia ferida numa cama de hospital, o seu com uma batalha oncológica que se travava em salas de tratamento, cruzando-se inesperadamente nos corredores assépticos onde a vida e a morte negociavam diariamente.
A indecisão atravessou a minha mente como lâmina fria. Deveria contar a verdade completa? Observei-a atentamente enquanto pesava as opções, notando a forma como se apoiava ligeiramente na cadeira, como se até manter-se sentada direita custasse energia que mal podia desperdiçar. Grace já carregava o peso de uma luta que consumia cada fibra do seu ser - seria justo adicionar mais uma preocupação, mais uma fonte de stress a alguém que precisava de toda a força para a própria sobrevivência?
Mas ao mesmo tempo, havia algo na honestidade brutal com que ela escolhera mostrar-se ao mundo que exigia reciprocidade. Se ela podia enfrentar a realidade sem disfarces, talvez merecesse a mesma honestidade de mim.
Humedeci os lábios, procurando uma forma mais delicada de explicar o que acontecera sem minimizar a gravidade nem causar alarme desnecessário.
— A Mia teve um acidente — comecei cuidadosamente, escolhendo cada palavra como quem caminha em campo minado. — Está bem, os médicos garantiram-me isso, mas... — pausei, observando a sua reação — teve de ser hospitalizada para observação.
Vi preocupação imediata instalar-se na sua expressão, aquela compaixão instintiva que transcendia o próprio sofrimento.
— Um acidente? — repetiu, a voz carregando uma ternura maternal que me tocou inesperadamente. — Que tipo de acidente?
A pergunta ficou suspensa entre nós. Podia inventar uma outra versão, um tropeção, uma queda acidental, algo que não implicasse violência deliberada. Porém havia algo na forma como esta me examinava, naquela honestidade feroz que irradiava mesmo na fragilidade, que tornava impossível qualquer dissimulação.
— Foi atropelada — expus finalmente, as palavras saindo mais pesadas do que pretendia. — À entrada do centro, na hora do almoço.
— Oh, meu Deus — sussurrou, levando instintivamente a mão ao peito, os dedos contraindo-se contra o tecido da bata hospitalar. — Foi grave? Está muito magoada?
— Fratura no braço, contusões, alguns arranhões. — Forcei-me a manter o tom tranquilizador. — Nada que não cicatrize completamente. Os médicos querem mantê-la em observação apenas por precaução, devido à pancada na cabeça.
Grace acenou lentamente, processando a informação com aquela atenção cuidadosa de alguém que aprendera a valorizar cada detalhe sobre o bem-estar das pessoas que importavam.
— Maya — começou endireitando-se ligeiramente na cadeira com um esforço deliberado que falava de determinação em manter a dignidade apesar das circunstâncias — eu não tive oportunidade de te agradecer por tudo o que tens feito até agora.
A mudança no tom apanhou-me desprevenida. Havia uma autoridade suave nas suas palavras, uma presença que transcendia a fragilidade física.
— Não precisas de...
— Preciso, sim — interrompeu com firmeza gentil, erguendo ligeiramente a mão numa demonstração de que queria ser ouvida. — Por favor, deixa-me dizer isto. Sei que ficaste no centro quando a Chloe mais precisava. Sei que trabalhas em projetos, organizas eventos, angariaste fundos, assumiste responsabilidades que lhe deram liberdade para estar comigo durante o tratamento.
Havia uma clareza que contrastava brutalmente com a fragilidade do corpo, como se a doença tivesse afiado a sua capacidade de ver verdades essenciais.
— E sei também — continuou, a voz ganhando força — que isso não foi fácil para ti. Voltar depois de tanto tempo, assumir o papel de... — pausou, procurando a palavra certa — talvez de guardiã silenciosa de alguém que um dia amaste, que ainda amas, sabendo que ela está com outra pessoa.
A honestidade brutal da observação fez-me estremecer. Não havia acusação nas suas palavras, nem sombra de ressentimento. Apenas o reconhecimento sereno de uma verdade demasiado difícil de encarar. Os meus dedos cerraram-se no tecido áspero das calças, num gesto automático, como se aquele punho escondido fosse a única âncora capaz de me impedir de vacilar. O desconforto não vinha de raiva, mas da exposição crua, do eco de uma ferida antiga que alguém acabara de nomear em voz alta. E, nesse instante, percebi o quanto doía ouvir, fora dos meus pensamentos, aquilo que eu própria tentava sufocar em silêncio.
— Grace...
— Não, deixa-me terminar — pediu, inclinando-se ligeiramente para a frente com uma intensidade que me lembrou exatamente por que Chloe se apaixonara por esta mulher. — Durante este tempo eu não estive presente, mas eu sei o quanto trabalhaste. Sei da dedicação com que organizaste e continuas a organizar cada detalhe para garantir com que o centro não só sobreviva, mas que prospere. E nunca... nunca tentaste usar isso como forma de te aproximares da Chloe de forma inadequada.
A análise era tão perspicaz, tão desprovida de qualquer sentimentalismo, que me deixou momentaneamente sem palavras.
— Isso transmite o teu carácter — prosseguiu, um pequeno sorriso formando-se nos lábios pálidos. — E a tua maturidade emocional. Muitas pessoas, na tua situação, teriam tentado capitalizar sobre a vulnerabilidade do momento.
— Nunca faria isso — protestei suavemente, sentindo a garganta apertada.
— Eu sei. É por isso que te estou a agradecer. — Fez uma pausa, como se escolhesse cuidadosamente as próximas palavras. — De certa forma, é reconfortante saber que ela tem alguém como tu na sua vida.
O auxiliar aproximou-se discretamente, indicando que era hora de continuarem.
— Preciso de ir — anunciou, gesticulando para o jovem empurrar a cadeira. — Ainda tenho algumas coisas que gostaria de discutir contigo, mas infelizmente preciso de voltar à sala de tratamento. Por favor diz à Mia que lhe desejo melhoras, cuida bem dela, Maya. Essa menina merece toda a proteção que lhe puderes dar.
— Claro — respondi, observando-a afastar-se pelo corredor com uma dignidade que transcendia a cadeira de rodas e a fragilidade evidente. — Grace?
Esta virou ligeiramente a cabeça.
— Obrigada. Por... por tudo o que disseste.
A curva dos seus lábios surgiu sem artifício.
— Cuida-te, Maya. E até breve.
Dirigi-me finalmente à máquina de bebidas, depois de ter ficado parada alguns instantes a vê-la desaparecer numa esquina distante. O som metálico do copo a cair na grelha soou mais alto do que devia, quebrando o turbilhão dos meus pensamentos.
Quando regressei ao quarto, encontrei Mia já mais desperta, embora a palidez ainda lhe dominasse o rosto.
— Demorou mais tempo do que esperava — comentou, num tom suave. — Estava a começar a pensar que te tinhas perdido neste labirinto.
— Encontrei uma conhecida pelo caminho. — Coloquei a garrafa de água na sua mão, ajeitando-lhe a posição na cama para que conseguisse segurar melhor. — A Grace pediu-me que te transmitisse melhoras.
— A Grace? — Os olhos de Mia abriram-se de surpresa, um brilho breve a atravessar a sua expressão. — Como ela está?
Suspirei, permitindo que a minha mão repousasse por um momento sobre a sua almofada, perto dela.
— Gostaria de poder dizer que está melhor, mas a verdade é que não consigo. — A honestidade saiu como um murmúrio, pesada. — Ela continua a lutar.
Esta assentiu devagar, os lábios tocando a borda da garrafa enquanto bebia alguns goles pequenos. Um silêncio terno instalou-se, denso, no entanto reconfortante, como se cada uma estivesse a absorver a presença da outra.
— E tu... como te sentes agora? — questionei, num tom que misturava preocupação e um cuidado quase materno.
Pousou a garrafa, respirando fundo.
— Melhor. — Um lampejo de firmeza atravessou-lhe o olhar. — Acho que, pelo que a enfermeira disse, daqui a pouco recebo alta.
Duas horas mais tarde, o Dr. Martin entrou no quarto com um dossier na mão e um ar de dever cumprido.
— Instruções para casa — anunciou, entregando-me uma folha detalhada. — Repouso, medicação para a dor conforme necessário, e consulta de seguimento em ortopedia dentro de uma semana. Qualquer sinal de deterioração, vómitos, confusão, dor de cabeça intensa, regressem imediatamente às urgências.
Assenti, gravando cada palavra como se fossem mandamentos, como se a vida de Mia dependesse da minha obediência escrupulosa.
— E lembrem-se — acrescentou, inclinando-se levemente para ela — o corpo precisa de tempo para se curar. Não tentem apressar o processo.
O trajeto de regresso a casa decorreu em silêncio contemplativo. Mia recostou-se no banco, os olhos semicerrados, absorvendo o simples prazer de estar fora do ambiente hospitalar. Pedi ao motorista do Uber que dirigisse com cuidado extra, evitando buracos e travagens bruscas que pudessem agravar o seu desconforto.
Quando chegámos, ajudei-a a sair do carro com gestos cuidadosos, quase cerimoniais. O braço imobilizado tornava cada movimento uma pequena batalha, porém assim que cruzámos a porta de casa, vi os seus ombros relaxarem, como se tivesse largado um peso invisível.
— Banho? — sugeri, pousando os papéis médicos sobre a mesa. — Posso ajudar-te a adaptar o duche para que não molhes a tala.
— Soa perfeito — murmurou, a voz ainda fatigada, mas já tingida de doçura. Começou a subir as escadas com passos lentos, apoiando-se no corrimão. — E depois, talvez possamos pedir comida chinesa e ver o que está disponível na televisão.
— Parece-me um plano excelente — respondi, sentindo que tínhamos chegado a um porto seguro.
A noite avançou sem pressa. O banho devolveu a Mia algum conforto, o vapor quente envolvendo-a como um casulo frágil. Depois, instalámo-nos na sala com caixas de comida chinesa abertas sobre a mesa baixa, rindo discretamente dos diálogos mal escritos num filme qualquer que a televisão insistia em transmitir. Era banal, quase ridículo, no entanto naquele banal encontrei uma serenidade rara, o género de normalidade que parecia inalcançável horas antes.
Quando a medicação começou a fazer efeito, levei-a até ao quarto e ajeitei as almofadas, certificando-me de que o braço imobilizado permanecia numa posição segura. Adormeceu depressa, respiração lenta, o corpo finalmente entregue ao repouso que lhe era tão necessário.
Fiquei ainda algum tempo a observar a cadência tranquila do seu sono, antes de descer novamente, quando o fiz, deitei-me no sofá, um livro aberto nas mãos que rapidamente deslizou para o chão quando me rendi ao cansaço.
Acordei com um som longínquo, quase impercetível. O relógio no pulso denunciava uma hora indecente, por um instante julguei estar presa num sonho mal remendado, ecos do trauma ainda a reverberarem no meu corpo. Porém o som voltou.
Um bater contido à porta. Baixo. Hesitante. Quase como um pedido de ajuda sussurrado.
Levantei-me, os músculos protestando contra horas de sono desconfortável. Subi as escadas num impulso instintivo: Mia. A tranquilidade do seu sono permaneceu intacta, a respiração profunda revelava que a medicação ainda a protegia. Respirei de alívio e desci de novo.
Abri a porta com cautela, preparada para tudo menos para o que me esperava.
Chloe.
Os cabelos loiros desgrenhados pelo vento noturno, a pele húmida pelo orvalho que lhe colava às maçãs do rosto. Os olhos azul-turquesa, sempre tão controlados agora toldados por um desespero cru, irreconhecível, que nem nos nossos piores confrontos tinha emergido assim. E, ao mesmo tempo, uma urgência muda que me cortou a respiração.
Não esperou convite, simplesmente atravessou o limiar como quem foge de algo assombroso, deixou-se cair no chão da sala num colapso que transmitia energia finalmente esgotada, enterrando o rosto nas mãos numa tentativa vã de esconder o que já não conseguia conter.
Aproximei-me devagar. Cada passo medido. O seu corpo tremia, não soube dizer se do frio da madrugada ou da exaustão acumulada.
— Chloe... — sussurrei, ajoelhando-me à sua frente. — O que aconteceu?
A respiração saiu-lhe num soluço contido, tão agudo e frágil que me cortou por dentro como lâmina fina.
— Eu não aguento mais, Maya... — a voz era áspera, gasta, como se tivesse sido corroída por horas de choro sem testemunhas. — A Grace está a definhar diante dos meus olhos e eu... eu devia estar lá em cada segundo, devia ser suficiente, devia arranjar formas de a fazer sorrir apesar de tudo... mas não sou. Estou sempre a falhar. — O tom estalou, carregado de dor. — E depois há a Mia... eu devia ter-lhe dado mais atenção, devia ter estado lá para a proteger, devia ter cuidado melhor dela. E eu... eu nem sequer sabia. Todos sabiam que ela estava contigo. Todos... menos eu.
Levantou o rosto e os olhos, marejados, refletiram incredulidade. Havia neles um desespero cru, tão despido de defesas, que me fez estremecer.
— Eu não consigo estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Não consigo ser tudo para todos. E toda a gente espera que eu tenha respostas, que seja forte, que mantenha tudo a funcionar... — o timbre cedeu por completo, fragmentado. — Mas eu estou a desmoronar, Maya. Estou a desmoronar e não posso mostrar isso a ninguém.
Estendi a mão e toquei-lhe no ombro, com a delicadeza com que se toca uma ferida aberta. O tecido húmido da camisola colava-se-lhe à pele, denunciando o tremor que lhe percorria o corpo.
— Chloe... tu és apenas uma pessoa. Só uma. — As minha palavras saíram baixas, firmes, como uma oração íntima. — Não podes carregar o mundo inteiro nos ombros. Nem salvar toda a gente ao mesmo tempo. Nem ser perfeita enquanto tudo à tua volta se desfaz.
A ausência de som que se seguiu foi um abismo onde cabiam dez anos de história mal cicatrizada. Ela fitou-me como quem se agarra a uma tábua em mar revolto, como se cada palavra tivesse encontrado o núcleo da culpa que a consumia em silêncio.
E então vi. Os ombros cederam. O corpo colapsou sob o peso de meses de força encenada. Sem pensar, enlacei as suas mãos nas minhas.
O toque foi elétrico. Familiar. Devastador na sua simplicidade.
Havia no espelho quieto do seu rosto uma urgência que queimava, um desespero contido que a altivez de sempre já não conseguia disfarçar. Ali, diante de mim, estava Chloe despida de todas as defesas, sem máscaras, sem artifícios. Vulnerabilidade pura.
Mantive os seus dedos entre os meus, sentindo o frio da pele colado ao meu próprio calor. Era como segurar cacos frágeis, e ao mesmo tempo a corrente elétrica atravessava-me de uma ponta à outra.
— Respira comigo... — segredei, quase sem dar por isso. A cadência da minha voz acompanhava o compasso do meu peito, na esperança de que ela o seguisse, de que encontrasse refúgio nesse ritmo.
Ela fechou os olhos por um instante, como quem se permite, pela primeira vez em meses, descansar a própria dor nas mãos de alguém. Quando voltou a encarar-me, aquele azul sem escapatória estava inundado de uma clareza cortante, despido de qualquer fingimento.
O silêncio entre nós tornou-se quase palpável, espesso como se pudesse ser tocado. O mundo encolheu àquele pequeno espaço, ao eco ténue da respiração entrecortada dela, ao meu coração batendo descompassado contra as costelas.
Vi o deslizar do seu foco descer, hesitar nos meus lábios, e subir de novo, rápido demais para ser inocente, lento demais para ser acidental. A urgência ali, contida, a lutar contra todas as muralhas que ainda restavam de pé.
A minha mão deslizou do ombro para lhe afastar uma madeixa molhada que lhe colava à face. O gesto foi instintivo, quase reverente, e no instante em que a ponta dos meus dedos lhe roçaram a pele fria, prendeu a respiração.
O espaço entre nós diminuiu sem que eu me apercebesse. Primeiro milímetro, depois a distância de um suspiro. O seu corpo inclinou-se impercetivelmente para a frente, como se cedesse a uma gravidade antiga, uma força que nos puxava uma para a outra desde sempre.
A sala parecia suspensa, como se o tempo tivesse parado à espera do próximo gesto.
E nesse limiar, no intervalo entre o medo e o desejo, senti. O impulso do beijo, tão próximo que era quase inevitável.
E foi então que aconteceu.
Chloe inclinou-se primeiro, ou talvez tenha sido eu já não sei. De repente, os seus lábios estavam nos meus. O toque chegou sem aviso, nascido de uma necessidade que transcendia lógica ou consequências. Foi suave e faminto ao mesmo tempo, como se tivesse atravessado uma fronteira sem olhar para trás.
Por um instante, não existi fora daquela sensação. O gosto salgado de lágrimas não derramadas na sua boca, o tremor quase inexistente do seu maxilar, o calor da respiração irregular a confundir-se com a minha. Era como se dez anos de distanciamento se desfizessem numa única respiração partilhada.
E, contudo, dentro de mim rebentava um campo de batalha. Uma parte aquela que ainda ardia de tudo o que fôramos uma para a outra queria segurá-la, prolongar o momento, prometer-lhe descanso no meio do caos. Porém a outra gritava, ensurdecedora. Não usufruas, não roubes este instante de uma dor que não te pertence.
A imobilidade do cómodo amplificava a violência desse conflito. O tic-tac impiedoso do relógio. A sua respiração, trémula, colada à minha pele. A minha própria indecisão a martelar como tambor dentro do peito.
Senti os seus dedos fecharem-se no tecido da minha camisola, não para me puxar, mas como quem se agarra à beira de um precipício. E nesse gesto percebi a verdade nua e crua, aquele beijo não era apenas desejo antigo, era também um pedido desesperado de não ser deixada sozinha a afundar-se.
Os meus lábios ainda roçavam os dela quando fechei os olhos, tentando racionar. O coração disparava, forçando-me a escolher. Recuar, devolver-lhe o espaço, proteger-lhe a dignidade mesmo que isso me rasgasse o peito. Ou permanecer, aceitar que este instante podia mudar tudo, mesmo que viesse tingido de culpa e impossibilidade.
E nesse fio, compreendi que qualquer escolha me quebraria. Não havia caminho ileso.
Naquele momento senti os seus lábios moverem-se contra os meus e cedi.
Por um instante, apenas um, deixei de resistir. Eu correspondi. Deus, correspondi.
O movimento chegou como um reencontro com algo que nunca morrera verdadeiramente dentro de mim. A familiaridade daquele toque foi devastadora. O modo como os lábios dela se moldavam aos meus, como se o tempo não tivesse passado. Aquele ritmo, um pouco apressado, um pouco hesitante, com a mesma fome disfarçada em fragilidade igual ao que conheci na juventude, só que agora impregnado de uma dor mais profunda, de um peso que não existia antes. Era cru, era errado, era inevitável.
A minha mão ergueu-se sem pensar, quase tocando-lhe o rosto, como quem procura prender o tempo num instante frágil demais para durar. Cada fibra em mim gritava para prolongar aquele momento, para me perder nele como se não houvesse amanhã.
Mas então, como punhal certeiro, a imagem de Grace assomou-me com violência. A cabeça despida, o sorriso cansado, a coragem nua de se mostrar sem disfarces. As palavras de gratidão, o reconhecimento do meu cuidado, a confiança cega depositada em mim.
O beijo começou a arder-me nos lábios como culpa.
Com a alma em pedaços, obriguei o corpo a fazer o que o coração se recusava. Afastei-me lentamente, centímetros que doeram como se me arrancassem da própria pele. Dois fragmentos de mar revolto procuraram os meus, turquesa carregado de perguntas sem resposta.
— Chloe... — a minha voz saiu num sussurro quebrado, quase um pedido de perdão. — Eu não posso.
Vi a dor atravessar-lhe o rosto, não pelo recuo em si, mas pelo que ele significava. Os ombros vacilaram, como se o peso que carregava tivesse acabado de se multiplicar.
Afastei-me o suficiente para que o ar entrasse entre nós, porém não o suficiente para que ela se sentisse abandonada. O meu coração ruía no peito.
— Eu estou aqui. — murmurei. — Mas não assim.
O silêncio que se seguiu foi uma ferida aberta entre nós, impossível de suturar.
— Desculpa... — murmurou, num fio que mal se ouvia, porém sem recuar um centímetro. — Eu não devia... — repetiu, ainda mais baixo, como quem fala consigo própria numa conversa interior tortuosa.
As palavras eram cicatriz mal fechada, no entanto a sua proximidade denunciava o contrário. Permaneceu ali, perigosamente perto, como quem já não sabe viver sem apoio.
Aproximei uma mão hesitante ao seu ombro, não para a trazer de volta aos meus braços, mas para lhe oferecer o apoio sólido que claramente precisava. O calor da sua pele irradiava através do tecido contra a palma da minha mão, e nesse toque simples percebi a extensão devastadora da sua fragilidade.
— Chloe — disse, encontrando uma firmeza que quase não reconheci em mim — tu estás exausta. Estás a carregar demasiado peso sozinha, e isso está a consumir-te por dentro.
As minhas palavras caíram entre nós como lâmina. A intensidade turquesa dos seus olhos permaneceu presa à minha, agora embaciada por algo que não era só dor, mas sim orgulho ferido, vulnerabilidade exposta.
Por um instante pareceu que ia responder. Mas não. Limitou-se a inspirar fundo, como quem tenta reerguer uma parede que desmoronou.
Os seus dedos, ainda fechados no tecido da minha camisola, vacilaram e soltaram-se devagar. O gesto doeu mais do que qualquer palavra.
— Eu não devia ter vindo. — murmurou, a voz quase irreconhecível pela rouquidão.
Não havia desafio. Nem acusação. Só um cansaço absoluto, o tipo de cansaço que não se confessa em voz alta, mas que se entranha em cada sílaba.
Desviou o olhar para o chão, mordendo o lábio como se o simples ato de se manter inteira exigisse toda a energia que lhe restava. Por fim, fechou os olhos, inclinando ligeiramente a testa até quase encostar à minha mão que ainda repousava no seu ombro. Não era pedido, não era rendição, era apenas presença.
Eu mantive-me ali, imóvel, a sentir-lhe o tremor sob a pele. O relógio continuava a marcar a madrugada, impiedoso.
Chloe ergueu-se devagar, como se cada músculo fosse feito de vidro prestes a quebrar. Passou a mão pelos cabelos molhados, porém o gesto não trouxe ordem nenhuma apenas denunciou o tremor que ainda lhe percorria o corpo.
— Eu falo com a Mia depois. — anunciou, a voz rouca, arrastada pelo peso da noite.
Mas não se virou logo. Ficou alguns segundos de pé diante de mim, aquela intensidade cravada em mim, carregada de tudo o que não conseguia pôr em palavras.
Uma tentativa de leveza breve, falhada, atravessou-lhe os lábios, mais cicatriz do que gesto.
E então, apenas então, caminhou até à porta. Ao sair, não fechou com força. Deixou-a encostar-se devagar, como se parte dela ainda não quisesse ir.
Fiquei imóvel, com o eco do silêncio a expandir-se até ocupar toda a sala. O cheiro do seu perfume ainda pairava no ar, misturado ao calor do seu corpo que permanecia nos meus dedos como um vestígio impossível de apagar.
Olhei para a porta, sentindo o peito contrair-se com uma dor que não vinha só da distância física, mas daquilo que ficara suspenso entre nós. A noite não lhe bastara para se desfazer, e também não me bastara para a segurar.
Sentei-me devagar no sofá, o corpo pesado como se tivesse corrido léguas sem sair do lugar. O livro ainda estava caído no chão, esquecido, como uma testemunha muda de tudo o que não deveria ter acontecido.
Fechei os olhos, encostando a cabeça contra o encosto frio. Ainda sentia o fantasma dos seus lábios nos meus urgentes, frágeis, arrebatados. E, por baixo dessa memória viva, a culpa que se entranhava em mim como ferrugem, infiltrando-se nas fissuras mais íntimas.
E foi então que as lágrimas vieram. Primeiro tímidas, quentes, deslizando pelo rosto sem aviso. Depois em silêncio contínuo, como se o corpo tivesse finalmente decidido libertar aquilo que eu tentava aprisionar. Não houve soluço, não houve choro audível apenas a corrente silenciosa que escorria, denunciando uma verdade impossível de conter.
Permiti-me ficar assim, imóvel, enquanto o centro de tudo em mim batia em ruínas, e as lágrimas corriam como quem escreve, na pele, a história que não me atrevia a confessar em voz alta.
Foi nesse intervalo partido por soluços contidos que compreendi, não era apenas ela quem se estava a desmoronar. Mais uma vez, eu também estava.
Fim do capítulo
Maya, Grace e Chloe... cada uma no seu lugar, cada uma com a sua dor. Mas os beijos, quando nascem da dor, deixam sempre atrás de si a sombra da culpa. E essa culpa não é por não querer o toque, mas sim pelo peso da moralidade, quando fere outra pessoa.
História atualizada!
Obrigada por acompanharem
Até ao próximo capítulo!
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Carolzit
Em: 08/09/2025
Bom dia!! Que história fascinante!! Estou completamente viciada... Muito profundo e doloroso o que elas viveram, mas acho que há tempo certo para as coisas acontecerem. Escolhas, tudo na vida se baseia em escolhas, umas mais fáceis que outras. Entendo a Maya, ela era jovem, vivia num mundo onde tudo era regras, limites, onde a liberdade era sinal de pecado e fraqueza e ela foi criada assim e amarrass assim são difíceis de desfazer. Não a vejo como covarde e sim imatura, quis carregar seus dilemas sozinha enquanto a Chloe estava disposta a tudo para entende-la e apoia-la mas até que ponto a Chloe poderia mesmo ajuda-la. Me pergunto o que seria delas se a Maya escolhesse a ela ao invés do pai, pq seria essa a escolha que ela teria que fazer pq nunca o pai aceitaria. Ela viveria a vida toda com culpa e elas viveriam pela metade e até nem estariam juntas pq a Maya nunca estaria inteira nessa relação. Então acho que agora com o amadurecimento real da Maya , elas enfim consigam se reajustar e se entregarem plenamente ao amor delas. A Grace já sabe que elas se amam e de alguma forma está permitindo essa aproximação pq sabe que não há como lutar com um amor tão forte, que resistiu a décadas de separação. E fora pelo que tô vendo a Grace não tem muito tempo e acho que ela está aparando as arestas para que as duas vivam esse amor sem culpa ou medo do futuro. Amando demais e ansiosa pelo próximo capítulo. Bjs
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HelOliveira
Em: 25/08/2025
Maravilhoso, tenso e cheio de dores.... coração apertadinho...
asuna
Em: 15/09/2025
Autora da história
Ah… fico mesmo feliz por saber que, de certa forma, o impacto emocional te alcançou
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asuna Em: 15/09/2025 Autora da história
Que comentário lindo! Muito obrigada por partilhares uma opinião tão emocionalmente perspicaz.
É verdade que tudo na vida se baseia em escolhas e algumas delas não são apenas difíceis… exigem que abramos mão de partes de nós. É quase inevitável imaginar o que teria sido se a Maya tivesse escolhido a Chloe. Mas, por vezes, a única forma de amar verdadeiramente alguém é dar-nos o tempo necessário para nos tornarmos na melhor versão de nós próprios, naquela que é capaz de amar sem se perder.
E quanto à Grace… gosto de pensar que ela foi criada de uma forma muito especial ;)
Espero de coração que a continuação da história consiga exceder ás tuas expectativas.