O Peso do Azul por asuna
Capítulo 27
A noite arrastara-se numa sucessão de horas sem descanso. Revirei-me entre os lençóis que se transformaram em cordas, o corpo exausto protestando contra cada posição, a mente disparando como motor desregulado. O colchão, que antes oferecia conforto, tornara-se território hostil onde cada centímetro queimava memórias recentes.
Cada vez que fechava as pálpebras, lá estava ela. Na praia. O vento marítimo a despentear-lhe os cabelos enquanto as lágrimas desciam pelas faces numa vulnerabilidade tão crua que me cortava por dentro. E depois, aquele momento suspenso no tempo, quando o espaço entre os nossos lábios se reduziu a milímetros de possibilidade e destruição.
Linfoma.
A palavra ricocheteava no meu peito como bala perdida, ecoando em cada batimento cardíaco irregular. Grace estava doente. Chloe estava a despedaçar-se lentamente, e eu? Eu quase transformara a dor dela num momento de fraqueza egoísta.
Não tornes isto sobre ti, Maya. A consciência flagelava-me com precisão cirúrgica. Grace precisa de apoio. Chloe precisa de estabilidade. Não de mais drama.
Abandonei a cama antes da primeira claridade tingir o horizonte, vesti uma roupa de corrida com movimentos automáticos e lancei-me para a rua numa fuga disfarçada de exercício. Os pés martelavam o asfalto ainda húmido do orvalho matinal, cada passada uma tentativa desesperada de deixar para trás a confusão que fervilhava dentro do meu peito.
O ar frio da madrugada queimava-me os pulmões como absolvição gelada. Se conseguisse correr o suficiente, talvez a culpa se dissolvesse no suor. Se forçasse o corpo até ao limite, talvez a mente parasse de reproduzir aquele momento em que quase cometi o imperdoável.
Determinação. A palavra transformou-se em mantra rítmico que acompanhava cada respiração ofegante. Era isso que precisava. Não autocomiseração, não análise emocional estéril. Ação concreta.
Quando regressei, o aroma a café fresco já impregnava a cozinha como promessa de normalidade. Mia estava curvada sobre a chávena como quem abraça salvação líquida, o vapor subindo em espirais que lhe emolduravam o rosto ainda marcado por vestígios de sono.
Ergueu o rosto quando entrei, e algo na sua expressão, uma preocupação cuidadosa, medida, fez-me perceber que as olheiras cavadas no meu semblante contavam uma história que preferia manter guardada.
— Estás bem? — perguntou, a voz ainda rouca do acordar.
Tentei esboçar um sorriso tranquilizador, contudo o resultado deve ter sido mais uma careta pálida.
— Encontrei a Chloe ontem — confessei, deixando-me cair na cadeira com um cansaço que transcendia o físico. — Na praia.
Esta inclinou-se ligeiramente para a frente, a curiosidade misturando-se com uma preocupação genuína que me aqueceu o peito de forma inesperada.
— E como ela estava?
— Destruída. — A palavra saiu crua, sem filtros nem diplomacia. Mantive o olhar fixo na mesa, depois ergui os olhos devagar. — Mia... eu sei que sempre que conversámos evitaste responder a esta pergunta. Mas o que é que tu sabes, realmente, sobre a ausência delas?
A sua expressão vacilou. Um recuo quase impercetível, como se ponderasse até onde devia ir.
— No centro... ouvi alguns comentários — expôs, por fim, com um encolher de ombros contido. — Especulações, imagino. Por estarem as duas afastadas, havia quem dissesse que algo se passava. Mas sinceramente? Acho que ninguém sabe o que se passa de verdade. Achavam que era só... stress. Ou que tinham discutido. Que a relação estava instável.
Assenti devagar, sentindo o peso da palavra que ainda não dissera em voz alta.
— A Grace tem um linfoma.
Vi o momento exato em que a informação a atingiu. Os olhos alargaram-se como quem recebe um golpe, depois estreitaram-se numa compreensão dolorosa que falava de experiência demasiado precoce com perdas.
— Meu Deus — sussurrou, a mão voando instintivamente para o peito. — Por isso a Chloe tem estado...
— Ausente — terminei, assentindo. — Como é que consegues funcionar normalmente quando a pessoa que amas está a lutar pela vida? — Murmurei, e a frase saiu antes que pudesse travá-la. A memória veio inteira, sem pedir licença. Lembrei-me de como era respirar com o peito apertado, medir cada gesto para não transparecer o medo, fingir que estava tudo bem para que ele o meu pai acreditasse.
O silêncio que se seguiu pesou como manta molhada, carregado de implicações que nenhuma de nós queria verbalizar completamente. Havia demasiadas camadas naquela situação: Grace doente, Chloe despedaçada, eu ali como fantasma ressurgido no pior momento possível.
— O que vamos fazer? — perguntou finalmente, e o "nós" naquela frase simples fez algo apertar na minha garganta.
Podia inventar uma resposta tranquilizadora, embrulhada em algo reconfortante. Mas havia algo na forma como me observava, sem julgamento, apenas esperança cautelosa, que exigia honestidade.
— Já estou a fazer — respondi simplesmente.
***
Os dias que se seguiram dissolveram-se numa névoa de trabalho obsessivo que consumia horas como fogueira faminta. Acordava antes do sol nascer, corria até o cérebro clarificar como vidro lavado, depois mergulhava nas pesquisas com a determinação feroz de quem luta contra cronómetros invisíveis.
Mia deslizava pela casa como sombra prestativa, materializando-se com comida que eu esquecia de comer, substituindo café frio por quente ainda fumegante, oferecendo o tipo de apoio silencioso que só quem partilha o mesmo espaço consegue dar com perfeição intuitiva. Por vezes encontrava-me ainda acordada quando descia para o primeiro café, ou chegava do centro e eu continuava na mesma posição, apenas com mais papéis espalhados em órbitas caóticas ao meu redor.
— Maya, tens de dormir — murmurava, a voz carregada de preocupação que tentava disfarçar de sugestão casual.
— Só mais uma hora — mentia com a naturalidade de quem repetira aquela frase demasiadas vezes, sabendo que seriam mais três ou quatro até conseguir parar.
Terça derreteu-se em quarta. Quarta evaporou-se em quinta. Cada manhã trazia nova urgência que se agarra às minhas costelas como parasita, cada noite estendia-se até à madrugada numa procissão de dados e gráficos. Recolhi histórias no centro como arqueóloga emocional, compilei estatísticas demográficas com precisão científica, investiguei organizações parceiras até conhecer os seus orçamentos melhor que os próprios diretores.
Transformei vidas em argumentos de venda, dor humana em oportunidades de marketing. E a ironia não me escapava, estava a usar as mesmas competências que antes aplicava em campanhas de produtos supérfluos, agora canalizando-as para algo que realmente importava.
Sábado chegou como avalanche inevitável, trazendo consigo a proximidade cortante do prazo que Piper me estabelecera. Encontrei-me sentada à mesa da cozinha, rodeada pelo trabalho de uma semana inteira que se espalha como evidência física da minha obsessão.
Vinte e seis páginas organizadas em secções meticulosas. Gráficos coloridos que transformavam necessidades humanas em projeções financeiras palatáveis para mentes empresariais. Cronogramas que prometiam soluções ordenadas onde antes existiam apenas problemas espinhosos.
Mia desceu a escada, parando na entrada da cozinha como quem se depara com campo de batalha após um conflito. Os olhos percorreram a paisagem de papéis com uma expressão que misturava admiração e preocupação.
— Meu Deus, Maya — sussurrou, aproximando-se com cuidado de quem receia perturbar sistema complexo e frágil. — Isto é... impressionante.
Ergui a cabeça pela primeira vez em horas, piscando contra a luz matinal que entrava pela janela. Devia ter aspeto terrível, cabelo desarrumado, olheiras profundas, a mesma roupa de ontem, no entanto sentia-me estranhamente triunfante.
— Está pronto — anunciei, a voz rouca pelo pouco uso. — Ou quase. Ainda preciso de rever algumas secções, mas está aqui tudo.
Mia sentou-se cautelosamente na cadeira do meu lado, examinando as páginas espalhadas com curiosidade crescente.
— Posso perguntar o que exatamente é tudo isto? — Pegou numa folha coberta de gráficos e percentagens. — Não entendo metade destes termos.
Sorri pela primeira vez em dias, sentindo um momento de clareza que não tinha a ver com cafeína ou adrenalina pura.
— É o idioma do dinheiro, Mia. E da responsabilidade social corporativa. — Peguei na folha das suas mãos, apontando para uma secção específica. — Vês, não basta dizer às empresas para ajudarem o centro porque é uma causa social. Tenho de lhes mostrar como apoiar-nos pode gerar benefícios diversificados para os seus negócios.
— Como assim?
— Olha. — Estendi várias páginas à sua frente, organizando-as como se me preparasse para uma aula. — O centro é uma entidade sem fins lucrativos, certo? Mas as empresas que vão patrocinar os eventos operam num mundo onde cada decisão tem de se justificar financeiramente. Por isso, preciso de apresentar dados que mostrem um valor real para elas.
Apontei para uma tabela colorida.
— Reforço de valores humanos e éticos — comecei contando nos dedos. — Quando uma firma apoia o centro, demonstra publicamente que se importa com questões sociais. Isso constrói confiança para com os clientes que valorizam responsabilidade social.
Mia franziu ligeiramente as sobrancelhas, claramente a processar informação.
— Mas isso não é só... propaganda?
— É marketing de causa — corrigi. — No entanto vai muito além de superficialidade. É sobre histórias que humanizam a marca. — Virei uma página, mostrando-lhe perfis anónimos de pessoas que frequentavam o centro. — Mas tens de perceber, Mia, que não posso apresentar a mesma história para todas as empresas. Cada patrocinador precisa de ver como a sua contribuição se alinha aos valores e objetivos do seu negócio. Imagina que tens uma empresa de contabilidade local. Em vez de fazeres anúncios genéricos sobre serviços de qualidade, podes contar a história de como ajudaste a Madison a terminar a sua formação.
— A Madison?
— Uma das mães solteiras que conheci no centro. — Peguei numa folha específica, coberta de dados estatísticos. — Olha os números: mulheres que completam formação profissional têm 73% mais probabilidade de sair dos apoios sociais permanentemente. Isso traduz-se em menos dependência do estado, mais impostos pagos, contribuição positiva para a economia local.
Acenou lentamente, começando a captar a lógica subjacente.
— Então... estás a transformar ajudar pessoas em argumentos de negócio?
— Exatamente. — Senti uma pontada de desconforto com a frieza da descrição, porém continuei. — Responsabilidade social corporativa não é caridade, Mia. É estratégia. No mundo empresarial, fazer o bem tem de fazer sentido financeiro, senão não acontece.
Ela pegou noutra página, esta repleta de gráficos sobre desenvolvimento interno e cultura de equipa.
— E isto?
— Desenvolvimento interno — expliquei. — Quando uma empresa se envolve em causas sociais, isso afeta positivamente a cultura e moral da equipa. Os funcionários sentem-se orgulhosos de trabalhar numa empresa que demonstra valores. Isso reduz a rotatividade de pessoal, aumenta produtividade, melhora o ambiente de trabalho.
— Isso... funciona mesmo?
— Num mercado saturado onde todas as marcas dizem ser inovadoras, dinâmicas, conscientes, o apoio a uma entidade como o centro é prova concreta de ação — recitei, as palavras fluindo com a facilidade de quem as tinha repetido mentalmente centenas de vezes. — Não é apenas falar sobre valores. É demonstrá-los.
Mia permaneceu em silêncio por um momento que se alongou, absorvendo tudo com atenção.
— Maya — disse finalmente, a voz cuidadosa — isto é brilhante. Mas também é um pouco... calculista, não achas?
Senti um sorriso triste formar-se nos meus lábios. Aos dezasseis anos, Mia tinha uma perceção que muitos adultos levavam décadas a desenvolver. Havia orgulho naquele momento, reconhecimento, porém também um suspiro de derrota que me escapou sem conseguir controlar.
— Tens razão — admiti, passando as mãos pelo rosto. — É exatamente isso que estou a fazer. A reduzir vidas humanas a argumentos de venda, a transformar dor real em oportunidades de marketing. Infelizmente esse é o sistema que eles seguem — respondi, contudo, as palavras soaram ocas mesmo aos meus próprios ouvidos. — Se quero que me ouçam, tenho de me expressar de uma forma em que toque no que eles querem ouvir.
— E se não resultar? — questionou suavemente. — Todo este trabalho, todas estas horas e se disserem não?
A pergunta ficou suspensa no ar entre nós como espada pendente. Era exatamente o medo que me tinha mantido acordada noite após noite, que alimentava aquela necessidade obsessiva de perfeição.
— Então procuro outra forma — respondi, surpreendendo-me com a firmeza da minha voz. — E depois outra. Até encontrar algo que funcione.
Mia estudou-me novamente com aquela perspicácia que me lembrava constantemente de que, apesar da idade, tinha uma inteligência emocional afiada.
— Isto não é apenas sobre o centro, pois não? — expôs finalmente.
Não respondi, no entanto, a ausência de palavras foi resposta suficiente.
— Maya — continuou, a voz suave, no entanto firme — sei que isto tem a ver com a Chloe. E está tudo bem. Às vezes, as melhores ações vêm de motivações complicadas.
Observei as folhas espalhadas à minha frente. Vinte e seis páginas que representavam uma semana de trabalho obsessivo. Uma semana em que transformei amor não correspondido em competência profissional, culpa antiga em ação concreta.
— Vai funcionar — sussurrei, mais para mim mesma do que para ela. — Tem de funcionar.
Recolhi-as numa pilha organizada, revi o que faltava para finalizar e carreguei tudo para o email que enviaria a Piper. O movimento final de uma semana que me consumira por completo.
— Pronto — anunciei, pressionando "enviar" com uma mistura de alívio e ansiedade. — Agora é esperar.
A quietude que se instalou foi diferente. Menos carregada de urgência, mais próximo da exaustão que finalmente podia reconhecer. Mia observou-me com atenção, como se esperasse que eu desmoronasse agora que não tinha mais trabalho para me distrair. Reencostei-me na cadeira, esfregando as têmporas, libertando a tensão que inconscientemente ainda carregava.
— Na verdade eu gostaria de me desculpar — comecei agora encarando-a. — Sinto que fiquei tão absorta no trabalho que talvez não te tenha dado atenção suficiente.
— Maya isso não é verdade.
— Não, é verdade sim — insisti, sentindo o peso da culpa instalar-se no peito como pedra. — O teu ex-namorado voltou a incomodar-te?
— O Ryan... não me tem incomodado — respondeu, as palavras saindo numa pressa, como se quisesse expulsar o assunto rapidamente. — Não desde aquela noite que apareci aqui.
Senti o alívio instalar-se nos meus ombros como peso que finalmente podia largar, seguida também por uma pontada de culpa por só agora estar a fazer essa pergunta.
— Como é que te sentes em relação a isso?
— Livre — respondeu imediatamente, depois riu baixinho. — Parece estranho dizer, mas é isso. Livre. Graças à tua ajuda, consegui focar-me apenas na escola e no estágio no centro.
— E quanto àquele trabalho no bar? Depois de teres deixado, tiveste algum problema?
— Não, nenhum — afirmou, contudo algo no seu tom fez-me prestar mais atenção. — Quer dizer, o patrão não ficou contente, quanto ao Ryan... eu acho que ele percebeu que não ia conseguir forçar-me a voltar pelo menos enquanto se eu tivesse um lugar seguro para ficar.
A forma como o disse fez-me pensar se, em alguma noite, ela ficou acordada, preocupada que eu mudasse de ideias, que a pusesse fora de casa, que a deixasse voltar para aquela situação.
— Mia — comecei cuidadosamente — eu deveria ter perguntado isto há dias, mas... como é que te sentes a viver aqui? Honestamente. Sentes-te segura? Sentes que tens espaço suficiente?
— Maya...
— Não, deixa-me falar — cortei suavemente. — Eu trouxe-te para cá numa emergência, depois mergulhei no trabalho e assumi que estavas bem só porque não reclamavas. Não é justo. Tu não deverias ter de ser grata e silenciosa só para manteres um lugar onde morar.
Vi lágrimas começarem a formar-se nos seus olhos, e de repente percebi que tinha tocado em algo profundo.
— Eu... — começou, a voz tremendo ligeiramente. — Eu tinha tanto medo que fosses como os outros adultos da minha vida. Que cuidasses de mim enquanto fosse conveniente, mas que me pusesses de lado assim que tivesses outras prioridades.
As palavras atingiram-me como bofetada. Porque tinha feito exatamente isso. Talvez não a tivesse posto de lado, mas certamente a tinha negligenciado em favor da minha obsessão com o projeto.
— Tens razão para ter esse medo — admiti, a voz saindo mais rouca do que esperava. — Porque foi isso que fiz esta semana. Não intencionalmente, mas foi. E isso não é aceitável.
— Não, tu deste-me casa, comida, segurança...
— Dei-te o básico — cortei. — Contudo não te dei atenção. Não te perguntei sobre os teus dias, os teus medos, os teus sonhos. Não te perguntei se precisavas de alguma coisa. Limitei-me a assumir que estavas bem porque ficaste calada.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de verdades desconfortáveis que ambas sabíamos serem necessárias.
— Como posso ser melhor? — questionei finalmente. A ausência de uma presença materna fazia com que cada gesto com Mia parecesse uma tentativa às cegas. — Como posso ser o tipo de apoio que mereces, e não apenas alguém que te oferece uma cama e comida?
Mia limpou os olhos com as costas das mãos, respirando fundo antes de responder.
— Talvez... talvez pudéssemos jantar juntas. Mesmo que seja só quinze minutos. E talvez... — hesitou — talvez pudesses perguntar-me sobre o centro, sobre como correm os projetos. Eu sei que é o teu trabalho agora, mas também é a minha paixão.
A simplicidade dos pedidos fez-me perceber o quão pouco tinha oferecido, e o quão grata ela estava por migalhas de atenção.
— Tens razão — afirmei firmemente. — E quero que saibas que isto não é caridade da minha parte, Mia. Tu não és um projeto ou uma obrigação. És... — pausei, procurando as palavras certas — és alguém de quem gosto genuinamente e que quero ver florescer. E se não tenho mostrado isso adequadamente, então preciso de mudar.
— A sério?
— Sim. — Levantei-me da cadeira, sentindo-me mais desperta do que há dias. — De facto, que tal começarmos agora? Conta-me sobre como está a correr o teu projeto no estágio. Quero saber tudo.
O rosto de Mia iluminou-se como se tivesse acendido uma luz interior. Foi a primeira vez que a vi verdadeiramente animada desde que chegara à minha casa, e perceber que bastava a minha atenção genuína para provocar essa transformação fez-me sentir simultaneamente culpada e determinada a fazer melhor.
Durante a meia hora seguinte, Mia falou sem parar sobre o projeto de fim de ano que estava a desenvolver no centro. Era sobre criação de um programa de mentoria entre adolescentes mais velhos e crianças em risco, baseado na sua própria experiência. Vi-a explicar com paixão como pretendia estruturar as sessões, que tipo de atividades incluir, como medir o impacto.
— ... e a parte mais interessante é que não se trata apenas de dar conselhos — dizia, os olhos brilhando enquanto gesticulava — é sobre criar conexões genuínas. Porque muitas vezes estas crianças só precisam de alguém que as veja realmente, que as ouça sem julgamentos.
— Mia, isso é brilhante — disse sinceramente. — E imagino que vás usar a tua própria experiência como base?
— Sim, mas de forma cuidadosa. Não quero que seja sobre mim, mas sobre o que aprendi. — Pausou, olhando-me diretamente. — Sobre como uma pessoa pode mudar a vida de outra simplesmente estando presente.
Naquele momento, o meu dispositivo vibrou sobre a mesa com um zumbido insistente. Instintivamente, os meus olhos dirigiram-se para o ecrã, mas forcei-me a não olhar. Fosse quem fosse, podia esperar.
— Não vais atender? — perguntou Mia, notando a minha hesitação.
— Não. — A decisão saiu firme, definitiva. — Agora estou a falar contigo. Tudo o resto pode esperar.
O sorriso que me dirigiu valeu mais que qualquer email de trabalho.
— Que tal fazermos algo diferente hoje? — sugeri, levantando-me da mesa. — Podemos pedir comida japonesa e ver um filme. O que achas?
— Seria perfeito.
***
Depois de ter enviado a proposta, descobri que uma reunião tinha sido agendada para o início da semana.
A reunião decorreu numa sala pequena, contudo profissional no centro da cidade. Richard, o diretor da organização, revelou-se um homem na casa dos quarenta, energético e evidentemente apaixonado pelo trabalho que fazia. A sua parceira, Vivian, coordenava a parte logística e tinha aquela eficiência prática que imediatamente me inspirou confiança.
Durante cinquenta minutos, apresentei a proposta como se a minha vida dependesse dela. Porque, de certa forma, dependia. Não apenas do sucesso profissional, mas da possibilidade de transformar dias de trabalho obsessivo em algo que realmente importasse. Cada slide estava calibrado para grande impacto. Cada história pessoal era contada com precisão emocional que via refletir-se nos rostos dos meus ouvintes. Quando cheguei às projeções financeiras, Richard inclinava-se para a frente com interesse óbvio.
Porém desta vez, enquanto apresentava os dados sobre Madison e outras pessoas que conhecera, conseguia ver os seus rostos na minha mente não apenas como estatísticas, porém como seres humanos. E talvez fosse essa diferença, essa humanização genuína em vez de manipulação estratégica que tornara a apresentação mais poderosa.
— Maya — começou Vivian quando terminei — em quinze anos a fazer isto, raramente vimos uma proposta tão bem estruturada e, mais importante, tão genuinamente apaixonada.
— Os números são realmente impressionantes — acrescentou Richard. — Mas o que nos convenceu foi a clareza da visão e a autenticidade do comprometimento.
Quando saí daquela sala com um contrato assinado e um cronograma para o primeiro evento em três semanas, senti algo diferente do triunfo profissional habitual. Senti a satisfação de ter canalizado energia pessoal para algo que realmente faria diferença.
E pela primeira vez em semanas, conseguia imaginar-me a contar as boas notícias a Mia durante o jantar, vendo os seus olhos brilharem com orgulho genuíno pelo trabalho que fazíamos juntas, cada uma da sua forma, para tornar o mundo um pouco melhor.
Os dias que se seguiram à reunião passaram numa voragem de logística que me lembrou porque sempre gostara da parte prática do marketing. Havia algo satisfatório em transformar ideias abstratas em elementos tangíveis, contratos, cronogramas, produtos que podia tocar e examinar.
Sentada na mesa de canto do centro que se tornara o meu posto de comando, tinha o laptop aberto numa folha de cálculo complexa que detalhava cada aspeto do orçamento do evento. Cada linha representava uma decisão: quantas t-shirts encomendar, que tipo de material usar, como equilibrar qualidade com viabilidade financeira.
— Maya — Mia aproximou-se com uma chávena de café fumegante, depositando-a cuidadosamente ao lado do meu cotovelo. — Há quanto tempo estás a trabalhar nisso?
— Desde as sete — respondi, sem erguer o rosto da tela, onde comparava orçamentos de três fornecedores diferentes. — Preciso de ter todos os números confirmados hoje para poder fazer as encomendas amanhã.
— São quase duas da tarde.
Pisquei, surpreendida. O tempo tinha-se dissolvido enquanto me concentrava nos detalhes. Mas desta vez, ao contrário da semana anterior, não havia obsessão desesperada. Havia propósito claro, prazos reais, pessoas contando comigo para entregar resultados.
— Obrigada pelo café — disse, finalmente olhando para ela. — Como está a correr o teu projeto?
— Bem. Na verdade, queria falar contigo sobre isso ao jantar. — Sorriu, e vi naquele gesto simples a diferença que algumas mudanças pequenas tinham feito. — Mas primeiro, preciso de te avisar que está aqui uma entrega para ti.
— Entrega?
— Caixas. Muitas caixas. O homem disse que eram t-shirts personalizadas?
Senti uma onda de satisfação. As amostras tinham chegado.
— Perfeito. Onde é que ele as deixou?
— Na sala de reuniões pequena. Não sabia onde mais pôr.
Levantei-me, esticando os músculos tensos de tanto tempo curvada. Quando entrei na sala, encontrei cinco caixas de cartão empilhadas com cuidado, cada uma etiquetada com especificações técnicas que reconheci dos meus emails.
Abri a primeira caixa com cuidado de criança no Natal. Dentro, cuidadosamente dobradas, estavam cinquenta t-shirts azul-claro com o logo do centro impresso no canto esquerdo. O material era suave ao toque, a impressão nítida e profissional. Na parte de trás, tinha mandado incluir uma das fotografias de Chloe, uma imagem em preto e branco de mãos entrelaçadas que capturava perfeitamente a essência do que representávamos entre conexão, apoio, humanidade.
— Ficaram lindas — murmurei para mim mesma, segurando uma contra a luz para examinar a qualidade da impressão.
Era surreal ver semanas de planeamento transformadas em algo tão concreto. Em três semanas, centenas de pessoas estariam a usar estas t-shirts, correndo por uma causa que realmente importava, angariando fundos que garantiriam a nossa continuidade.
Passei a hora seguinte a catalogar o conteúdo de cada caixa, verificando tamanhos, contando quantidades, assegurando-me de que tudo correspondia ao que tinha encomendado. Era trabalho meticuloso, contudo necessário. Cada detalhe tinha de estar perfeito.
Estava a organizar os últimos detalhes da distribuição quando ouvi passos no corredor. Ergui a cabeça, e lá estava ela.
Chloe deteve-se à entrada da sala, os olhos percorrendo as caixas empilhadas e os documentos espalhados sobre a mesa com expressão que mesclava surpresa e algo próximo da incredulidade. Usava jeans escuros e camisola creme que realçava a tonalidade dos olhos, o cabelo apanhado em rabo-de-cavalo prático que revelava a linha elegante do pescoço. Havia uma palidez na pele que não estava lá na semana passada, vestígios de noites sem dormir gravados como sombras subtis.
— Maya — começou, a voz carregando uma mistura de surpresa e curiosidade. — O que é tudo isto?
— Preparação para o evento — respondi, levantando-me da cadeira. — As t-shirts chegaram hoje. Queres ver?
Sem esperar resposta, peguei numa das peças. Vi o momento preciso em que reconheceu a própria fotografia na parte de trás, os olhos alargando-se numa surpresa que rapidamente se transformou em algo mais complexo.
— Maya... isto é... — A voz falhou, os dedos tremendo ligeiramente ao tocar o tecido.
— A tua fotografia ficou perfeita — expliquei, sentindo satisfação genuína aquecer-me o peito. — Capta exatamente o espírito do que fazemos aqui.
Ela virou a t-shirt, examinando o logo na frente com atenção minuciosa, depois voltou à imagem das mãos entrelaçadas. Havia algo na sua expressão que não conseguia decifrar completamente, surpresa mesclada com apreço, mas também vulnerabilidade que me fez querer desviar o olhar.
— Quantas são? — perguntou finalmente.
— Duzentas para este primeiro evento. Se correr bem, vamos precisar de encomendar muito mais para os próximos. — Pausei, observando a sua reação. — Chloe, este evento... vai gerar aproximadamente vinte mil para o centro. Suficiente para garantir as operações durante o próximo mês sem depender de financiamento externo.
Vi-a piscar, tentando processar os números.
— Vinte mil?
— No mínimo. Se correr como espero, talvez trinta. — Respirei fundo. — E há mais. Já tenho outros três eventos programados para os próximos seis meses. Se todos correrem bem, o centro fica financeiramente estável durante pelo menos meio ano.
O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de implicações que ambas compreendíamos perfeitamente. Um ano de estabilidade significava que Chloe não teria de se preocupar com o centro durante o tratamento de Grace. Significava segurança para todas as pessoas que dependiam dos serviços. Significava que o trabalho que ambas amávamos continuaria, independentemente do que acontecesse.
— Há algo mais que preciso de te pedir. — Continuei sabendo que tinha de aproveitar este momento. — Quero que me tornes voluntária oficial do centro. Com autorização para tomar decisões, assinar contratos, gerir programas autonomamente.
A cabeça ergueu-se bruscamente.
— Maya...
— Já preparei toda a documentação — interrompi, dirigindo-me à mesa para recolher a pasta que organizara meticulosamente. — Descrição de funções, responsabilidades, procedimentos de emergência. Tudo estruturado, tudo pensado para que possas confiar completamente.
Chloe folheou os documentos com atenção crescente, vi o momento em que percebeu a extensão real do trabalho que fizera. Não apenas os papéis, mas a compreensão profunda de cada aspeto do funcionamento do centro.
— Isto é... — Murmurou, parando numa página específica.
— Quero fazer isto da forma correta — expliquei. — Não quero assumir responsabilidades informalmente. Quero que saibas que quando estiveres com a Grace, quando estiveres nos hospitais... o centro estará seguro. As pessoas estarão a ser cuidadas. Tudo continuará.
O silêncio que se seguiu foi diferente. Menos carregado de resistência, mais próximo de algo que se assemelhava a alívio.
— Maya — pronunciou cuidadosamente — isso é uma responsabilidade enorme. Tens a certeza de que queres assumir tudo isso?
— Tenho — respondi sem hesitar.
— Tens consciência de que isto vai alem da ajuda que te foi pedida? Por que estás a fazer isto tudo? Honestamente.
A pergunta era direta, sem rodeios, típica da pessoa que conhecia. Podia dar-lhe uma resposta politicamente correta sobre responsabilidade social e compromisso com a comunidade. Ou podia ser honesta.
— Porque o centro é importante demais — respondi, escolhendo a verdade mais segura. — E porque tu não devias ter de te preocupar com questões operacionais quando tens coisas mais importantes para lidar. Talvez não possa mudar o passado, mas posso assegurar-me de que desta vez não estejas sozinha.
Ela estudou-me por um longo momento, aquela intensidade familiar que sempre me fazia sentir como se estivesse a ser vista intimamente.
— Está bem — afirmou finalmente. — Mas com uma condição.
— Qual?
— Isto funciona nos dois sentidos. Se se tornar demasiado, se não conseguires promete-me que falarás. Não quero que sacrifiques a tua vida por uma culpa antiga.
— Combinado.
Ela estendeu a mão, e quando os nossos dedos se tocaram para selar o acordo, senti uma corrente elétrica familiar percorrer-me o braço. Era um aperto de mão profissional, no entanto havia algo na forma como os seus olhos se demoraram nos meus que sugeria camadas mais profundas de significado.
O momento alongou-se entre nós, Chloe soltou lentamente a minha mão, contudo os seus dedos demoraram-se um segundo mais do que necessário, como se relutasse em quebrar aquela conexão frágil.
— Preciso de ir — expôs finalmente, a voz recuperando algo da compostura profissional, embora ainda tremulasse ligeiramente. — A Grace tem consulta esta tarde. Envia-me toda a documentação por email, irei analisar e assinar em casa.
— Claro. — Pausei, reunindo coragem para mencionar o que me acompanhava desde o início. — Chloe... há mais uma coisa. Eu ainda não desisti da ideia inicial.
Ela deteve-se a meio caminho da porta, virando-se com curiosidade cautelosa.
— Como?
— O leilão do teu trabalho, eu ainda acho que isso pode gerar muito mais.
Vi-a vacilar, os lábios comprimindo-se
— Maya... — começou, a voz carregada de conflito interno.
— Tu escolherias as peças. Só as que te sentisses confortável em partilhar. — Expliquei cuidadosamente, interrompendo. — Eu trataria de toda a logística, toda a organização, toda a promoção. Tu só terias de conceder a autorização. E talvez aparecer na noite do evento, se quisesses. Não precisas de decidir agora, nem sequer precises de pensar nisso neste momento. Só queria que soubesses que a opção ainda existe.
Ela acenou devagar, ainda claramente a processar a magnitude da proposta.
— Quando estiveres pronta para discutir mais uma vez essa sugestão estarei aqui — acrescentei suavemente, vendo como ela processava a informação. — Vai cuidar da Grace. Vai fazer o que precises de fazer. O centro estará seguro, os eventos estão organizados, tudo continua.
Vi algo quebrar-se ligeiramente na sua compostura. Uma fissura pequena, quase impercetível, no entanto que revelou por um momento a vulnerabilidade crua que tentava esconder atrás da máscara profissional.
— Obrigada — declarou, a voz saindo mais baixa, carregada de uma gratidão que transcendia palavras simples.
O sorriso que me dirigiu foi frágil como vidro soprado, porém genuíno. Carregava uma mistura silenciosa de gratidão e esperança cautelosa que me aqueceu o peito de uma forma que não esperava.
Depois saiu, os passos ecoando pelo corredor até se dissolverem no murmúrio distante do centro em funcionamento. Fiquei sozinha rodeada por caixas empilhadas. Sentei-me novamente na cadeira, contemplando o trabalho espalhado à minha volta. Cada página meticulosamente preparada, cada detalhe previsto, cada contingência planeada representava não apenas um evento de caridade, mas uma forma tangível de redenção.
Fim do capítulo
Novo capítulo postado! Espero que tenham gostado e que já estejam curiosas para o próximo.
P.S.: Minha rotina continua corrida, mas o próximo capítulo sai logo, logo!
Comentar este capítulo:
HelOliveira
Em: 10/08/2025
Que crescimento fantástico.... Nossa capítulo muito bom
asuna
Em: 25/08/2025
Autora da história
Obrigada fico feliz por saber que gostou :)
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asuna Em: 25/08/2025 Autora da história
Fico feliz que tenha percebido a mudança.
Espero que goste do próximo
Obrigada por continuar a acompanhar :)