O Peso do Azul por asuna
Capítulo 26
Encontrei Piper numa pequena esplanada a duas ruas do centro comunitário, instalada à mesa com aquela postura descontraída que a caracterizava, uma perna dobrada sobre a outra, o corpo ligeiramente inclinado para o lado, um café duplo fumegando à sua frente como um manifesto silencioso contra a inércia da tarde.
— Cheguei atrasada? — perguntei, enquanto pousava a mala com um cuidado deliberado.
A ruiva ergueu o rosto, o sorriso enviesado já desenhado nos lábios como se me esperasse há mais tempo do que admitiria.
— Só no relógio. No resto, chegaste exatamente a tempo de parecer alguém perturbadoramente funcional.
Revirei os olhos, todavia a curva involuntária dos lábios traiu-me antes que pudesse evitar.
— Olá para ti também — murmurei, fazendo sinal ao funcionário. — E obrigada pela generosa avaliação da minha estabilidade emocional.
— Dou crédito onde é devido — retorquiu, com um encolher de ombros despreocupado, inclinando-se ligeiramente para a frente com renovado interesse. — Agora vamos ao que interessa. O que precisas?
— Na verdade — comecei pausando quando o rapaz trouxe o meu café — não sei se a Chloe te contou, mas tenho andado a trabalhar numa proposta para ajudar o centro financeiramente.
— Ah. — O seu tom mudou subtilmente, a provocação habitual dando lugar a curiosidade genuína. — Problemas de orçamento?
— Não exatamente problemas, mas... — Respirei fundo, tentando organizar os pensamentos. — Mas o centro está a operar com recursos muito limitados desde que perderam o maior financiador. E o trabalho que fazem… não devia ter de sobreviver à custa de milagres. Por isso pensei em encontrar uma solução que pudesse aliviar a pressão a curto prazo, sem comprometer a longo. E achei que talvez tu pudesses ajudar.
Piper arqueou uma sobrancelha, a atenção capturada de forma irreversível.
— Continua.
— Como organizadora de eventos — avancei, inclinando-me superficialmente para a frente — deves ter contactos e experiência com eventos desportivos ligados a causas de caridade. Maratonas, meias-maratonas, corridas solidárias... coisas assim, onde os participantes representam instituições e angariam fundos.
— Tenho — confirmou, mais devagar agora, como se a mente já começasse a desenhar possibilidades. — Na verdade, trabalho com várias organizações que coordenam exatamente esse tipo de evento. Por quê?
— Estava a pensar — comecei, as palavras ganhando velocidade conforme a ideia se cristalizava — noutros países, instituições de caridade são representadas por atletas. Cada quilómetro corrido equivale a uma doação. O centro podia beneficiar disso. Pessoas comuns inscrevem-se por uma causa, procuram patrocínios entre amigos e empresas locais. E além dos fundos, há algo que talvez valha ainda mais: visibilidade. Muitas das pessoas que o centro ajuda têm histórias que merecem ser conhecidas. Imagina atletas a correr por rostos concretos, por vidas reais.
Ela ficou em silêncio por um momento, os dedos tamborilando pensativamente sobre a mesa.
— Isso é.… na verdade é brilhante — admitiu, e o facto de não ter incluído uma provocação ou comentário sarcástico fez-me perceber que estava genuinamente a considerar a proposta. — A maioria dos eventos de caridade luta para criar uma ligação emocional verdadeira entre os participantes e a causa. Isso que propões humaniza. Torna pessoal.
— Exatamente. — Senti o entusiasmo a crescer, vibrante como uma corrente. — E não seria apenas uma coisa pontual. Pode ser algo contínuo. Diferentes eventos ao longo do ano, diferentes histórias, construindo uma rede de apoio sustentável.
— Hmm. — Piper recostou-se na cadeira, a expressão pensativa. — Tenho contactos em pelo menos três organizações que fazem isso com regularidade. A grande questão é... — inclinou-se para a frente, com um semicerrar calculado no olhar — isto não tem absolutamente nada a ver com impressionar uma certa fotógrafa?
A pergunta caiu como um desafio, porém desta vez não me fez encolher ou ficar na defensiva.
— Tem a ver com fazer a coisa certa — respondi calmamente. — O pedido de ajuda não veio dela. Partiu da Grace. E eu sou competente o suficiente para separar as coisas.
Ela estudou-me em silêncio, com aquela atenção incisiva.
— Olha só para ti, toda crescida e com prioridades morais — murmurou por fim, a voz a roçar algo entre ironia contida e um respeito inesperado. — Está bem, Maya. Vou fazer algumas chamadas. Ver que tipo de oportunidades existem e que encaixam com o que estás a pensar.
— A sério? — Não consegui esconder a surpresa.
— A sério. — Pegou no celular e começou a navegar pela lista de contactos. — Dou-te uma semana para preparares uma proposta adequada. Algo que mostre exatamente como isto funcionaria, que tipo de histórias terias para partilhar, que impacto esperas ter. Se for convincente, apresento-te a algumas pessoas que podem tornar realidade.
— Piper... obrigada. — As palavras saíram mais emotivas do que pretendia.
— Não me agradeças ainda — atalhou, embora um sorriso genuíno lhe desenhasse a boca. — Vai ser trabalhoso, e a maioria destas organizações não têm paciência para amadores bem-intencionados. No entanto se estás realmente decidida...
— Então vamos a isto. Uma semana.
Piper recostou-se na cadeira, contudo continuou a avaliar-me com aquela intensidade particular quase desconfortável.
— Há mais alguma coisa? — questionou finalmente. — Pareces... não sei, como se tivesses algo na entalado na garganta.
Hesitei, os dedos a girarem devagar a asa da xícara entre as mãos.
— Na verdade, há — admiti finalmente. — Hoje, quando falei com a Chloe sobre o projeto... ela estava diferente. Distraída, ausente, como se algo a perturbasse profundamente. Nunca a presenciei assim, nem mesmo nos nossos piores momentos.
Vi algo atravessar rapidamente na sua expressividade, um lampejo de conhecimento, talvez até de preocupação, no entanto recompôs-se num instante.
— Diferente como? — questionou, o tom cuidadosamente neutro.
— Como se estivesse a carregar um peso enorme e a tentar escondê-lo de toda a gente. — Pausei, analisando a sua reação. — Tu sabes o que está a acontecer, não sabes?
Ela ficou calada por alguns segundos, os dedos tamborilando novamente sobre a mesa numa batida irregular que revelava a sua agitação interna.
— Maya — articulou finalmente, a voz mais baixa — há coisas que não me competem contar. Mesmo que soubesse... não seria meu lugar dizer. Não estou a confirmar, nem a negar.
— Não te estou a pedir que quebres confidências — interrompi suavemente. — Só estou a dizer que, se a Chloe estiver realmente a passar por alguma situação difícil...
Fiz uma pausa, surpreendendo-me com a clareza da decisão que se formava na minha mente.
— Vou dedicar-me ainda mais a este projeto. Se ela tem preocupações em qualquer área da sua vida, pelo menos posso tentar tirar-lhe um pouco desse carga profissionalmente. Assegurar-me de que uma coisa, pelo menos, corre bem sem que ela se preocupe.
Piper observou-me com um semblante que não conseguia decifrar completamente. Havia surpresa ali, também algo que se assemelhava a aprovação.
— Isso é... surpreendentemente maduro da tua parte — soltou por fim.
— As pessoas mudam, Piper. — A minha voz saiu mais firme do que esperava. — Ou pelo menos, algumas de nós tentam.
— Hmm. — Ela curvou-se novamente para a frente, as mãos envolvendo a porcelana de café. — E se eu te dissesse que o que quer que esteja a acontecer com a Chloe... é complicado? Mais complicado do que uma simples sobrecarga de trabalho ou stress? Algo que talvez nem tu consigas consertar?
— Diria que isso só me dá ainda mais vontade de estar presente — respondi sem hesitar. — Porque há dez anos, eu não estive à altura. — engoli em seco — Não vou cometer o mesmo erro duas vezes.
O intervalo mudo que se seguiu ficou suspenso entre nós como uma corda esticada. Esta estudou-me longamente, com um certo foco impiedoso.
— Sabes que isso pode significar passar muito mais tempo com ela, certo? — questionou finalmente. — Trabalhar em proximidade, tomar decisões em conjunto, estar presente quando ela precisar... tens a certeza de que consegues lidar com isso sem complicar as coisas?
A pergunta era justa. Demasiado justa. Por um momento considerei todas as implicações. Estar perto de Chloe, especialmente de uma versão vulnerável dela, seria emotivamente desafiante. Contudo a alternativa, saber que estava a sofrer e não fazer nada, era simplesmente inaceitável.
— Consigo — declarei por fim. — Porque desta vez não se trata de mim. Trata-se de fazer a coisa certa.
Esta assentiu lentamente, como se tivesse chegado a alguma conclusão interna.
— Está bem — anunciou, pegando no celular. — Nesse caso, vou fazer mais do que apenas algumas chamadas. Vou mobilizar todos os contactos que tenho. Se estás realmente determinada a transformar este projeto em algo significativo, então vamos fazê-lo como deve ser, com estilo.
— Piper... — comecei, no entanto, levantou a mão para me interromper.
— Não é por ti — expôs rapidamente, mas havia algo no tom que sugeria que não era completamente verdade. — É porque, às vezes, as pessoas certas precisam de ajuda no momento certo. talvez tenhas chegado na hora certa.
Bebeu o resto do café de um só trago, como quem sela um pacto. Depois levantou-se, deixando algumas moedas na mesa sem sequer as contar.
— Uma semana, Maya. Proposta sólida, números realistas, histórias que façam as pessoas chorar e abrir a carteira. — Arqueou ligeiramente uma sobrancelha. — Achas que consegues?
— Consigo — assegurei novamente, sentindo uma determinação que não experimentava há anos.
— Bem. — Piper sorriu de um jeito raro, menos sarcástico, mais genuíno. — Então vamos ver do que realmente és capaz.
***
O centro comunitário tornara-se novamente território familiar. Mia ajudara-me a estabelecer uma espécie de posto na mesa de canto do espaço comum. O laptop ocupava o centro, rodeado por pilhas meticulosas de documentos, cadernos com anotações rabiscadas numa caligrafia que só eu conseguia decifrar, e uma caneca de café que se esvaziava e reabastecia com uma regularidade quase ritual.
Os dias começaram a ganhar um ritmo próprio, quase orgânico. As manhãs eram dedicadas a compilar dados, alinhar números, cruzar registos como quem desenha um mapa invisível de urgências. As tardes, essas, pertenciam às histórias e às pessoas por trás delas. Aos poucos, as estatísticas deixavam de ser apenas colunas e percentagens. Tornavam-se rostos. Vozes. Vidas reais.
Os funcionários cumprimentavam-me pelo nome, com a familiaridade tranquila de quem já me reconhecia como parte do lugar. Alguns paravam junto à mesa para perguntar pelo progresso do projeto, outros apenas deixavam um aceno cúmplice. Enquanto que os frequentadores habituais, sempre discretos, ofereciam sorrisos pequenos, porém cheios de significado.
Com o tempo comecei a perceber que esse reconhecimento silencioso, repetido nos gestos mais simples, fazia-me sentir mais presente. Mais necessária. E, de forma quase dolorosa, mais viva do que qualquer elogio profissional que recebera nos últimos anos.
— Maya — Mia aproximou-se com aquela eficiência silenciosa que eu notara, uma pasta espessa equilibrada contra o peito. — Consegui os relatórios que pediste. Dados dos últimos seis meses sobre os programas de apoio familiar.
— És absolutamente brilhante — afirmei, estendendo as mãos para aceitar os documentos. — Sabes, é impressionante ver como este lugar evoluiu. Há dez anos, quando fazia voluntariado, era pouco mais que um espaço onde se liam histórias para crianças. Agora...
Fiz um gesto abrangente em direção ao programa de atividades afixado na parede próxima, com a sua grelha colorida de compromissos que se estendia desde aulas de alfabetização até grupos de apoio para viúvos.
— Hoje tem programas para qualquer idade, qualquer necessidade. Olha só — apontei para uma linha específica — até tem um grupo de tricô às quartas-feiras.
Ela seguiu a linha da minha atenção e um sorriso discreto formou-se nos seus lábios, como se aquele detalhe lhe confirmasse algo que já sabia, mas gostava de voltar a ver.
— Nem todas as pessoas que frequentam o centro estão em situações precárias — comentou, com uma lucidez tranquila que me surpreendeu pela sua maturidade. — Algumas simplesmente vêm aqui porque se sentem isoladas.
— Exatamente. — Senti a animação crescer por dentro, como se cada história recolhida fosse um impulso vital. — Ontem conheci um senhor, Mike. Viúvo há dois anos, entrou numa depressão tão profunda que os filhos já não sabiam o que fazer. Agora coordena o grupo de xadrez e diz que ter algo para ensinar lhe devolveu o sentido de propósito.
Virei a tela ligeiramente na sua direção, mostrando as notas que compilara.
— Imagina um corredor numa maratona, não apenas a representar uma causa abstrata, mas a correr especificamente pelo Mike. Cada quilómetro percorrido, cada dígito angariado através de patrocínios, está diretamente ligado à possibilidade de manter esse grupo de xadrez a funcionar, de dar a este senhor e a outros como ele um lugar onde são necessários.
Mia inclinou-se ligeiramente, lendo as anotações por cima do meu ombro com concentração.
— É completamente diferente de apenas dizer "ajudem os idosos" — concordou com entusiasmo genuíno. — É pessoal. Real. Faz com que as pessoas se importem de verdade porque conhecem a pessoa por trás da necessidade.
— Precisamente. — Voltei a atenção para a tela, no entanto a pergunta que me queimava na garganta já não podia ser adiada. O cursor a piscar parecia acompanhar a inquietação dentro de mim. Forcei-me a erguer o rosto, encontrando o dela. — Mia, posso perguntar-te uma coisa?
— Claro.
— Há quanto tempo não vês a Chloe ou a Grace?
A questão pousou no ar entre nós. Vi o momento exato em que ela a processou não apenas as palavras, mas toda a preocupação subjacente que as alimentava. Os ombros contraíram-se ligeiramente, um reflexo defensivo que agora começava a reconhecer com facilidade. Tinha-o visto algumas vezes nas últimas semanas em que qualquer pergunta direta a fazia se recolher.
— Não sei exatamente — respondeu finalmente, mas havia incerteza na voz que mais umas vezes sugeria que sabia mais do que estava disposta a admitir.
— É que... — Pausei, tentando manter o tom casual apesar da inquietação que se vinha entranhando no meu estômago. — A última vez que vi a Chloe foi há uma semana. E desde então, nem ela nem a Grace apareceram. Isso acontece com frequência?
Mia suspirou, um som pequeno, mas repleto de peso. Desviou o olhar para a parede, como se procurasse as palavras certas afixadas algures entre os cartazes de atividades comunitárias.
— A Grace... ela nunca costuma ficar mais de dois dias ausente — admitiu lentamente. — É quase obsessiva com o controlo de tudo o que acontece aqui. E a Chloe, mesmo quando não tem reuniões específicas marcadas, passa sempre pelo centro. Nem que seja só para verificar se está tudo bem, para falar com algumas pessoas habituais.
— Mas isso não tem acontecido ultimamente.
— Não. — A palavra saiu firme, definitiva. — Não tem.
Senti o nó apertar-se no estômago. Um peso frio, quase metálico, como chumbo a instalar-se devagar. Forcei-me a manter a expressão neutra. Os dedos passaram distraidamente pelas folhas à minha frente, fingindo ordem onde, por dentro, tudo começava a desorganizar-se.
— Talvez tenham ido a alguma conferência — arrisquei, a voz mais baixa do que o habitual, embora a sugestão me soasse oca mesmo aos meus próprios ouvidos. — Ou a um evento qualquer, ligado ao trabalho.
Estudei-a por um momento, e naquele olhar, atento, quieto, reconheci uma inteligência emocional que me lembrou dolorosamente que esta jovem aprendera a ler nas entrelinhas muito antes da idade apropriada.
— Talvez — anuiu finalmente, mas o tom traía a ausência de convicção.
O silêncio que se seguiu foi preenchido pelos sons familiares da vida comunitária ao nosso redor, conversas baixas, o murmúrio de uma impressora, o tinir distante de louça na pequena cozinha. Sons normais, reconfortantes, que contrastavam brutalmente com a inquietação que crescia dentro de mim como tempestade silenciosa.
— Bom, vamos voltar ao trabalho — murmurei, esticando os braços numa tentativa inútil de dissipar a tensão acumulada nos ombros.
Mia assentiu, parecendo igualmente aliviada por termos um motivo para nos afastar do território desconfortável das especulações. Voltou ao seu posto na receção enquanto eu me concentrava novamente, forçando os dedos a moverem-se sobre o teclado numa dança familiar de produtividade.
Durante a hora seguinte, mergulhei nas estatísticas com determinação quase agressiva. Números de frequência, dados demográficos, relatórios de impacto. Transformei a preocupação crescente numa energia direcionada para o projeto, como se conseguir angariar fundos suficientes pudesse de alguma forma compensar qualquer crise que estivessem a enfrentar.
Estava a compilar uma lista de empresas locais para contactar quando ouvi passos apressados na minha direção. Ergui a atenção, Mia aproximava-se novamente, o rosto carregado de uma urgência contida que me fez endireitar imediatamente na cadeira.
— Maya — chamou, num sussurro urgente, inclinando-se ligeiramente sobre a mesa. — Temos um problema.
— Que tipo de problema?
— Há uma senhora na receção. Diz que tem uma reunião marcada com a Grace hoje às duas horas. — Segredou, direcionando a sua atenção discretamente por cima do ombro. — Está bastante agitada. Já esperou vinte minutos e ninguém consegue entrar em contacto com a Grace... nem com a Chloe. Para complicar a situação não tem mais ninguém disponível que a possa ajudar.
Verifiquei o relógio. Duas e vinte. Se realmente esta reunião tinha sido marcada e ninguém aparecera, então a situação era mais séria do que imaginara.
— Como se chama a senhora?
— Mary. — respondeu, a tom agora quase impercetível. — Pelo que percebi, está a tentar resolver questões relacionadas com o apoio domiciliário para a mãe. É a segunda vez que vem aqui e parece... desesperada.
Fechei o laptop sem hesitar.
— Onde é que ela está?
— Junto à receção. Maya, eu não sei o que lhe dizer. Não tenho autorização para aceder à agenda da Grace ou para remarcar reuniões.
— Não te preocupes. — Levantei-me, alisando a blusa numa tentativa instintiva de parecer mais profissional. — Vou falar com ela.
— Mas tu... tu não trabalhas oficialmente aqui...
— Neste momento, parece que sou a única pessoa disponível que pode ajudar. — As palavras saíram com uma convicção que me surpreendeu pela clareza.
Dirigi-me à receção, onde encontrei uma mulher de cerca de cinquenta anos sentada na borda de uma cadeira de plástico, as mãos agarradas a uma pasta de documentos. O cabelo grisalho estava ligeiramente desarrumado, como se tivesse passado os dedos por ele repetidamente, e havia uma tensão nos ombros que reconheci como desespero mal disfarçado.
— Senhora? — Aproximei-me com um gesto contido que tentei fazer caber entre a empatia e a competência. — Sou a Maya. Estou a colaborar com o centro numa capacidade consultiva. A Mia mencionou que tem uma reunião marcada com a Grace?
Mary ergueu o rosto, e logo notei uma mistura de alívio e frustração.
— Finalmente alguém que me pode ajudar. — A sua voz carregava o cansaço de quem lutara contra a burocracia durante demasiado tempo. — Marquei esta reunião há três semanas. Preciso desesperadamente de falar com alguém sobre os serviços de apoio domiciliário.
— Com certeza. Por favor, venha comigo. — Apontei para uma das salas de reunião mais pequenas. — Vamos conversar com calma e ver o que posso fazer por si.
Instalámo-nos na sala, eu do lado profissional da mesa, todavia mantive o corpo inclinado na sua direção, tentando quebrar qualquer barreira invisível. Mary pousou a pasta com um gesto quase automático e começou a retirar documentos com movimentos que revelavam familiaridade dolorosa com o processo.
— É sobre a minha mãe — começou, sem rodeios. — Tem oitenta e seis anos. Demência precoce. E eu... — a voz falhou, como se um músculo dentro dela tivesse desistido — eu já não consigo cuidar dela sozinha.
Vi-a morder o lábio inferior, enquanto tentava manter a compostura.
— Trabalho a tempo inteiro. Tenho dois filhos adolescentes. E ela precisa de vigilância constante. Na semana passada, fugiu de casa duas vezes. Uma delas... encontrámo-la três ruas abaixo, de pijama, completamente desorientada.
Endireitei-me na cadeira, mantendo o contato visual.
— Deve ser extremamente difícil — expus suavemente. — Cuidar de alguém com demência enquanto se tenta equilibrar todas as outras responsabilidades... não há nada de fácil nisso.
Esta assentiu, as lágrimas finalmente escapando apesar dos seus esforços para as conter.
— A assistente social do hospital disse que o centro comunitário tinha programas de apoio domiciliário. Que podia haver alguém que viesse algumas horas por dia, só para me dar um pouco de alívio. Para eu poder trabalhar sem me preocupar constantemente se ela está segura.
— E a Grace estava a coordenar o processo?
— Sim. Ela disse que havia uma lista de espera, mas que talvez conseguisse acelerar o processo se... — Parou, encarando-me com súbita apreensão. — Onde é que ela está? Aconteceu alguma coisa?
A pergunta direta obrigou-me a tomar uma decisão rápida. Podia inventar uma desculpa vaga, ou podia ser honesta sobre a nossa incerteza.
— Para ser franca, não sabemos exatamente onde ela está — admiti cuidadosamente. — Mas isso não significa que não a possamos ajudar. Posso aceder aos registos dos programas de apoio domiciliário e ver exatamente a sua posição na lista de espera.
Mary inclinou-se para a frente, como quem ainda não acredita completamente, mas quer desesperadamente acreditar.
— Consegue fazer isso?
— Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance. — Levantei-me, dirigindo-me à porta. — Dê-me alguns minutos para verificar o sistema e falar com uma outra colega. Quer um café enquanto espera?
— Obrigada. Café seria... seria muito bom.
Saí da sala com o coração a bater mais depressa do que seria razoável. Tecnicamente, não tinha autorização para aceder aos registos internos do centro. Mas, naquele momento, os formalismos parecia irrelevante. Aquela mulher precisava de ajuda, e eu era, ali, a única disponível para lha dar.
Dirigi-me diretamente a Mia, que me viu aproximar com um olhar misto entre a curiosidade e alerta.
— Preciso que me mostres como aceder aos registos do programa de apoio domiciliário — pedi em voz baixa. — E preciso de saber quem mais, além da Grace, tem autoridade para tomar decisões sobre as listas de espera.
Mia hesitou. A hesitação não foi longa, mas foi densa.
— Maya, se ela descobrir que andámos a mexer nos seus ficheiros...
— Se a Grace estiver em condições de descobrir qualquer coisa, ficará feliz por termos ajudado alguém que precisava. — Repliquei com firmeza. — E se não estiver... bem, então alguém tem de assumir a responsabilidade temporariamente.
Os nossos olhares cruzaram-se. E vi o exato momento em que Mia fez a transição da dúvida para a decisão. A preocupação cedeu lugar a um tipo de determinação silenciosa que reconheci.
— Está bem. Mas se isto correr mal, foi ideia tua.
— Aceito completamente a responsabilidade.
Cinco minutos depois, voltei à sala de reunião com um café e informações concretas. Sentei-me na sua frente, consultando as anotações.
— Boas notícias — comecei observando como a tensão dos seus ombros se dissipava. — Está na lista de espera há seis semanas, o que a coloca na quarta posição. Normalmente, isso significaria mais algumas semanas de espera, mas...
Pausei, tomando uma decisão que sabia estar a exceder a minha autoridade.
— Vou falar pessoalmente com a coordenadora do programa de apoio domiciliário. Dada as circunstâncias da sua mãe e os riscos de segurança que mencionou, acredito que podemos classificar o caso como prioritário.
As lágrimas de alívio surgiram no seu semblante.
— A sério? Consegue fazer isso?
— Vou conseguir — respondi com uma convicção que vinha de um lugar muito mais profundo que competência profissional. — Por favor deixe o seu número comigo. Ligo-lhe até ao final da semana com uma atualização definitiva.
Quando a reunião terminou, regressei à minha mesa com uma sensação estranha, mas profundamente certa. Tinha assumido responsabilidades que não me pertenciam, tomado decisões que excediam qualquer função que oficialmente ocupasse, prometido resultados que talvez nem pudesse garantir.
E, ainda assim, pela primeira vez em anos... senti que estava exatamente onde devia estar.
— Maya — Mia aproximou-se, a expressão misturando admiração e uma inquietação que ela não tentou disfarçar. — Isso foi... impressionante. Mas e se a Grace aparecer amanhã e quiser saber quem autorizou tudo isto?
— Então diz-lhe que fui eu — abri novamente o laptop, a determinação assentando-se nos meus ossos como certeza recém-descoberta. — E se ela tiver algum problema, posso esclarecer o que quer que seja quando ela quiser.
Mia ficou em silêncio por um momento, como se me visse com novos olhos. Depois assentiu, discretamente, e voltou ao seu lugar.
***
O dia no centro deixara-me simultaneamente energizada e exausta, uma combinação estranha que me fez trocar a roupa por equipamento de corrida assim que cheguei a casa. Mia optara por ficar enclausurada, imersa num projeto escolar que adiara durante semanas. Eu, por outro lado, precisava de movimento no corpo.
A praia estendia-se diante de mim numa fita dourada que desaparecia na bruma do final da tarde. O ar salgado encheu-me os pulmões enquanto estabelecia um ritmo confortável, os ténis afundando ligeiramente na areia compacta junto à linha da água. Era a hora perfeita, tarde o suficiente para que a maior parte dos banhistas já tivesse partido, no entanto com iluminação suficiente para correr em segurança.
Durante os primeiros quilómetros, a mente divagou entre as conquistas do dia e as preocupações crescentes. Cada passada era uma tentativa de organizar estes pensamentos numa ordem que fizesse sentido.
Foi quando reduzi o ritmo para uma caminhada, cerca de quatro quilómetros depois, que notei a silhueta familiar.
Não era a figura em si que me chamou a atenção. De longe, podia ser qualquer pessoa sentada na areia a contemplar o oceano. Era o cão do seu lado, a cabeça erguida em alerta, que me fez parar completamente.
Golden retriever. Pelo dourado e sedoso que brilhava mesmo na luz difusa do entardecer.
Aproximei-me alguns passos, ainda incerta, até que não as dúvidas se dissiparam. Chloe estava sentada na areia seca, bem acima da linha da maré, os braços envolvendo os joelhos contra o peito numa postura que irradiava vulnerabilidade. O cabelo loiro estava solto, dançando levemente na brisa marítima, e mesmo à distância conseguia perceber que havia algo diferente na forma como se mantinha. Mais curvada, mais pequena, como se tentasse ocupar o menor espaço possível.
O animal, que agora definitivamente reconhecera como sendo dela, notou a minha presença instantaneamente. Ergueu a cabeça na minha direção, a cauda abanando ligeiramente, contudo sem se levantar ou latir. Um cão bem-educado, treinado para não incomodar estranhos.
Vacilei por um longo momento. Todos os instintos me diziam para continuar a correr, para respeitar aquela que era claramente uma busca de solidão. Ela ainda não me tinha visto, provavelmente por estar absorta na contemplação do horizonte, seria fácil passar despercebida.
Mas algo naquela postura me fez avançar.
Caminhei lentamente, os passos deliberadamente audíveis na areia para não a assustar. O golden retriever observou-me com interesse amigável, a cauda batendo mais vigorosamente contra a areia. Foi esse movimento que finalmente a alertou para a minha presença.
Virou a cabeça, e quando os nossos olhos se encontraram, vi ali uma mistura de surpresa, constrangimento e algo que se assemelhava a alívio. Não disse nada, apenas me observou a aproximar, como se estivesse a tentar decidir se devia ficar ou partir.
Sem pedir permissão, deixei-me cair na areia do seu lado, mantendo uma distância respeitosa, porém suficientemente próxima para que a minha presença fosse um conforto silencioso. Voltei-me para o oceano, seguindo a sua linha de visão rumo ao horizonte onde o sol começava a sua descida lenta.
A quietude que se instalou entre nós não era desconfortável. Era espesso, carregado de tudo o que não podíamos ou não sabíamos como dizer, mas não hostil. O golden retriever aproveitou a minha chegada para se reposicionar, estendendo-se na areia entre nós duas como ponte peluda e calorosa.
As ondas quebravam numa cadência hipnótica, cada uma levando um pouco da tensão que eu nem sabia estar a carregar. De soslaio, observei Chloe. Os ombros continuavam tensos, mas havia algo na forma como respirava, profunda, controlada que sugeria que a minha presença não era indesejada.
Estendi a mão cuidadosamente em direção ao animal, que imediatamente se inclinou para o meu toque, o pelo macio e quente sob os meus dedos. Era um gesto simples, mas que pareceu quebrar alguma barreira invisível.
— Como se chama? — questionei finalmente, a voz baixa para não perturbar a quietude do momento.
— Alfie — respondeu, a primeira palavra que proferia desde que me aproximara. A voz estava rouca, como se não a tivesse usado muito nos últimos tempos.
Continuei a fazer carinho, sentindo a tensão dele desaparecer completamente enquanto se entregava á afeição. Havia algo terapêutico naquele contacto, não apenas para ele, para mim também.
— Há quanto tempo o tens? — perguntei, mantendo o tom conversacional e leve.
— Três anos — respondeu após uma pausa.
Continuei a acarinhar o seu pelo, deixando que o silêncio voltasse a instalar-se entre nós como cobertor partilhado.
O sol continuava a sua descida, pintando o céu em tons de laranja e rosa que se refletiam na superfície da água. Era o tipo de pôr-do-sol que normalmente me faria pegar no telefone para tirar fotografias, mas naquele momento, a única coisa que queria era estar presente.
O silêncio estendia-se entre nós como fio dourado, interrompido apenas pelo ritmo hipnótico das ondas e pela respiração suave de Alfie. Observei a linha do horizonte, onde as luzes da cidade começavam a piscar como estrelas terrestres, e senti uma familiaridade estranha e reconfortante.
— É engraçado — murmurei, mais para mim mesma. — Esta cidade, é como se nada tivesse mudado. As mesmas lojas, os mesmos cafés, até o aroma no ar é igual. Como nunca tivesse ido embora.
Chloe virou ligeiramente a cabeça na minha direção, um movimento quase ausente que me fez perceber que estava a ouvir.
— Às vezes penso que talvez seja essa a única constante que temos — continuei deixando os pensamentos fluírem livremente. — Lugares que permanecem iguais enquanto nós mudamos lentamente.
Deteve-se em mim por um instante antes de se voltar para a frente.
— Tu mudaste — proferiu suavemente, a voz tão baixa que quase se perdeu no murmúrio das ondas. — Não és a mesma pessoa que partiu.
As palavras pairaram no ar entre nós, carregadas por uma observação que me surpreendeu pela sua precisão.
— Achas que sim?
O azul das suas íris focou-se em mim, enquanto ponderava se deveria continuar ou não. Humedeceu os lábios, um gesto inconsciente, quase frágil.
— De certa forma. Para ser sincera, não sei se mudar é a palavra certa. Talvez tenhas apenas ajustado algumas partes. — Pausou, os dedos brincando distraidamente com a areia. —Mas por outro lado, a forma como lidaste comigo na sala de reuniões. Como te sentaste aqui sem fazeres perguntas. Nunca te achei invasiva, mesmo quando eu sei que tens milhares de interrogações a ferver por dentro.
Senti uma pontada aguda de reconhecimento. Havia naquela observação uma intimidade antiga, o reflexo silencioso de quem sempre soubera ver para lá das minhas palavras.
— E tu? — perguntei cuidadosamente, virando-me ligeiramente para a enfrentar. — Achas que mudaste?
Chloe ficou em silêncio por tanto tempo que pensei que não fosse responder. Quando finalmente falou, foi como se as palavras lhe fossem arrancadas de algum lugar muito profundo e doloroso.
— Costumava pensar que era forte — expôs, a voz tremendo ligeiramente. — Que conseguia lidar com qualquer coisa, desde que tivesse controlo suficiente sobre as variáveis. Que bastava planear, organizar, manter tudo nos seus devidos lugares.
Alfie mexeu-se ligeiramente, como se sentisse a mudança na energia da sua dona, posicionando a cabeça mais próxima do joelho dela. Vi-a passar a mão pela pelagem dourada numa carícia ausente que revelava anos de conforto mútuo.
— Mas há coisas... — A voz partiu-se ligeiramente, e vi-a lutar contra as palavras como se lutasse contra uma corrente. — Coisas com que não conseguimos lidar, não importa o quanto nos preparemos. Não importa o quanto amemos alguém ou o quanto estejamos dispostos a sacrificar.
Havia uma dor crua naquelas palavras que me fez querer estender a mão, tocar-lhe no braço, oferecer algum tipo de conforto físico. No entanto algo me disse para esperar, para deixar que ela chegasse a este momento no seu próprio ritmo.
Engoliu em seco, a mão que antes estava enterrada na areia agora tremendo ligeiramente.
— Grace tem um linfoma raro, do tipo não-Hodgkin.
A frase caiu como uma pedra num lago imóvel. As ondas espalharam-se por dentro de mim em círculos silenciosos. O ar saiu-me dos pulmões como se tivesse levado um murro, mas forcei-me a permanecer imóvel, a não quebrar o fio delicado da sua confiança.
— Descobrimos há oito meses — continuou, a voz ganhando uma qualidade mecânica, como se recitar os factos pudesse de alguma forma diminuir o seu peso. — No início, os médicos foram... otimistas. Disseram que era um tipo tratável. Que as perspetivas eram boas.
Fiquei completamente imóvel. O meu corpo queria aproximar-se, envolvê-la, absorver parte da dor que irradiava dela como calor de ferida aberta. Mas havia um medo silencioso em mim, de quebrar algo frágil, de lhe roubar o espaço para dizer aquilo que precisava libertar.
— Durante meses, pareceu que o tratamento realmente estava a funcionar — continuou, e percebi como custava fisicamente formar cada palavra. — Fizemos tudo o que disseram. Quimio leve, imunoterapia. Ela respondeu bem, os marcadores no sangue estavam a diminuir. Começámos a planear novamente o futuro.
O som quebrou-se completamente na última palavra e vi o momento em que cerrou os punhos na areia.
— Eu cheguei a acreditar... — Parou, abanando a cabeça como se a própria esperança fosse traição. — Cheguei a acreditar que tínhamos vencido.
— Mas na semana passada — engoliu em seco, as palavras saindo como confissão arrancada — os exames de controlo mostraram atividade aumentada em novos gânglios. O oncologista disse que precisamos de um tratamento muito mais agressivo. Transplante de medula óssea, quimioterapia de alta dosagem...
O tom desvaneceu-se completamente, substituído por uma respiração irregular que me fez perceber o quanto custava manter-se inteira.
— Coisas que vão destruí-la antes de a salvarem — terminou numa exalação quase inaudível.
O silêncio que se seguiu foi devastador. Finalmente compreendia a exaustão que vira nos seus olhos, a distração, a forma como parecia estar sempre parcialmente noutro lugar. Não era apenas preocupação era terror puro, a perspetiva de perder a pessoa que amava e não conseguir fazer nada para a salvar.
— Chloe... — comecei, todavia esta abanou a cabeça, os olhos ainda fixos no horizonte.
— Ela não sabe que eu sei sobre os novos resultados — continuou, como se precisasse de libertar todas as palavras antes de perder a coragem. — O médico ligou-me primeiro porque sou o contacto de emergência. Grace tem uma consulta amanhã. Vai descobrir que... que tudo em que acreditávamos sobre estar a melhorar era uma ilusão.
Lágrimas começaram a escorrer-lhe pelas faces, brilhando na luz dourada do pôr-do-sol como rastos de ouro líquido. Desta vez, não consegui resistir. Estendi a mão lentamente, tocando-lhe levemente os dedos. Ela não se afastou, contudo também não se voltou para mim.
— E a pior parte é que não posso fazer nada — admitiu, o fio de som partindo-se em fragmentos cortantes. — Nada. Posso estar do seu lado, posso segurar-lhe a mão durante as sessões de quimioterapia, posso fingir que sou forte quando ela precisa que eu seja. Sorrir quando ela diz que se sente melhor, mesmo sabendo que não é verdade. Mas não posso salvá-la. Não posso trocar de lugar com ela. Não posso...
A voz desapareceu completamente, substituída por soluços silenciosos que lhe sacudiam os ombros como tremores de terra.
— Eu daria tudo para trocar de lugar com ela, Maya. Tudo — sussurrou, e pela primeira vez desde que começara a falar, virou-se para me encarar. — Mas o amor, os cuidados, a presença, a fé... nada disso é suficiente para isto. Nada.
Houve uma pausa. Um daqueles silêncios em que até o mar parece recuar.
— E o mais cruel — continuou, com um tremor que não tentou esconder — é que, mesmo agora, mesmo aqui, no meio de toda esta dor... tu ainda me fazes sentir coisas que pensei ter enterrado. Quando eu já não deveria sentir nada além do medo de a perder. — Confessou com uma honestidade brutal que me atingiu como relâmpago
As palavras pairaram no ar entre nós como confissão perigosa. Vi o momento em que ela se apercebeu do que dissera, o pânico instantâneo que lhe atravessou a expressão, mas era tarde demais para retirar as palavras.
O meu coração disparou, batendo contra as costelas numa cadência irregular que ecoava nos meus ouvidos como tambores de guerra. Havia anos de história não resolvida naquelas palavras, camadas de desejo e arrependimento que tinham ficado enterradas sob o peso do tempo e das circunstâncias.
— Chloe — murmurei, a voz saindo mais rouca do que pretendia.
Ela desviou rapidamente o olhar, como se pudesse de alguma forma retirar a confissão, mas eu já a tinha ouvido, já tinha sentido o impacto de cada sílaba.
— Desculpa — sussurrou. — Não deveria ter... não era suposto...
— Não — cortei suavemente, movendo-me na areia até estar mais próxima. — Não peças desculpa. Nunca peças desculpa por seres humana.
Quando finalmente a envolvi num abraço, senti como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ela desmoronou-se contra mim, e eu absorvi o peso da sua dor, da sua confusão, de todas as emoções contraditórias que a dilaceravam por dentro.
— Xiu — sussurrei contra o seu cabelo, enquanto ela se desfazia ali, entre o som das ondas e o silêncio que lhe guardei. — Não tens de carregar isto sozinha.
Ficámos assim durante longos minutos, duas mulheres agarradas uma à outra na vastidão da praia, Alfie pressionado contra nós como se compreendesse que era necessário formar uma barreira de calor contra o mundo.
Quando finalmente se afastou, Chloe limpou as faces com as costas das mãos, tentando recuperar alguma compostura. No entanto algo tinha mudado entre nós, uma barreira tinha caído, uma verdade tinha sido libertada.
— Agora compreendes — afirmou, a voz ainda trémula — por que não tenho estado focada, por que não apareci no centro. Por que tudo o resto parece... insignificante.
— Compreendo — respondi, segurando o seu olhar. — E também compreendo que provavelmente precisavas de estar aqui sozinha.
— Não sozinha — corrigiu, tocando levemente na cabeça de Alfie. — Nunca completamente sozinha. Mas... longe de todos os que esperam que eu seja forte, que tenha respostas, que saiba o que fazer.
Mirei o oceano, onde as últimas cores do dia se desvaneciam lentamente no roxo profundo da noite. Havia tantas coisas que queria dizer, tantas formas como queria oferecer ajuda, apoio, qualquer coisa que pudesse aliviar nem que fosse uma pequena parte do seu sofrimento.
— Não tens de ser forte comigo — sussurrei finalmente, virando-me para a enfrentar completamente.
Essa foi a única coisa que consegui afirmar naquele momento. Chloe observou-me com uma intensidade que me tirou o fôlego, e de repente percebi o quão próximas estávamos. Os alarmes começaram a soar por todo o lado da minha mente quando vi o momento em que entreabriu os lábios, a língua humedecendo-os num gesto inconsciente que enviou um arrepio por todo o meu corpo.
O ar entre nós carregou-se de uma eletricidade perigosa, anos de história não resolvida condensando-se naquele espaço minúsculo que nos separava. Podia sentir o calor da sua respiração, ver o reflexo das últimas luzes do dia nos seus olhos azul-turquesa, e por um momento terrível e tentador, o resto do mundo desapareceu completamente.
Por um instante, esqueci-me de tudo, sobre a Grace, da doença, da razão pela qual estávamos ali. Só existia o espaço entre nós. E mesmo esse parecia estar a encolher com cada batida do meu coração.
Não te mexas, pensei. Não digas nada. Não tornes isto real.
Mas o corpo não obedecia à lógica.
As mãos começaram a formigar, como se o ambiente à nossa volta tivesse se tornado subitamente mais denso, mais íntimo. O aroma a maresia misturado com o perfume subtil da sua pele, o som abafado do mar, tudo conspirava contra a razão. E eu sentia o meu corpo inclinar-se impercetivelmente para ela, como se procurasse algo que não tinha nome, contudo reconhecia na memória muscular.
"Não tens de ser forte comigo."
As minhas palavras tinham sido sinceras, nascidas de um lugar puro de compaixão. No entanto agora, ali, naquele limiar tão frágil, soavam perigosamente como convite. E se ela aceitasse? E se aquele movimento subtil dos lábios, aquele brilho nos olhos que não era apenas dor, fosse também desejo?
Engoli em seco, tentando encontrar um ponto de apoio dentro de mim. Mas tudo se desfazia. O passado. O presente. A noção entre o certo ou errado.
No fundo, no mais íntimo de mim, uma parte queria que ela me beijasse.
Queria sentir aquele toque de novo, mesmo que por segundos. Queria esquecer tudo. O que a impedia. O que me impedia. O que vinha depois. Só o agora. Só nós.
Porém a outra parte... Essa gritava.
E a Grace?
E a mulher que luta para continuar a respirar enquanto tu sentes este arrepio? E o facto de ela não saber ainda? Que a verdade ainda não lhe foi dita? Que este abraço entre lágrimas e silêncio ainda mal começou a arder, e tu já pensas em ceder ao que ficou por dizer entre ti e Chloe?
Fechei os olhos por um momento, como se isso bastasse para afastar o impulso. Todavia a sua imagem continuava ali, gravada. Não desaparecia.
— Chloe... — sussurrei, quase sem ar.
Ela não se mexeu. Também parecia suspensa naquele momento impossível. Pronta para qualquer gesto. Ou recuo.
Esse era o perigo. Porque naquele exato instante, ambas teríamos dito sim, se uma das duas tivesse tido a coragem de se pronunciar.
Contudo nenhuma o fez.
Só o vento falou por nós, atravessando os nossos corpos sem ruído, como se soprasse através de ruínas antigas onde uma vez algo floresceu.
Afastei-me primeiro. Não de forma brusca. Apenas um recuo pequeno, controlado. O suficiente para voltar a realidade do mundo que nos rodeava, com todas as suas complicações, responsabilidades e dores.
Ela compreendeu imediatamente.
Vi-o, na forma como piscou, na sua expressão, não de raiva, nem deceção. Algo mais triste. Uma aceitação muda, pesada de experiência. Como quem já sabe que há coisas que não podem ser tocadas, por mais que nos queimem as mãos de vontade.
— Eu acho que e melhor ir, preciso de voltar para casa — murmurei, tentando recuperar o controlo sobre a própria respiração.
Chloe assentiu devagar, os olhos desviando-se para o céu que escurecia progressivamente, como se procurasse no firmamento uma resposta mais fácil para perguntas que não se podem fazer.
— Obrigada — disse, a voz ainda rouca, mas mais estável. — Por te teres sentado, por me teres ouvido.
— Sempre que precisares — respondi, e desta vez não foi convite. Foi promessa. — Seja para o que for.
Levantei-me lentamente, escovando a areia das roupas num gesto automático que me deu tempo para recuperar a compostura. O corpo ainda vibrava com adrenalina e desejo não resolvido, como se cada célula soubesse que por milímetros não atravessara uma fronteira irreversível.
Alfie ergueu a cabeça, observando-me com aquela sabedoria silenciosa dos cães que compreendem mais do que mostram.
— Cuida bem dela — sussurrei, fazendo-lhe uma última caricia antes de me afastar.
Enquanto caminhava pela areia em direção ao trilho que me levaria de volta à estrada, senti os seus olhos nas minhas costas. Não me virei. Não confiava em mim mesma para manter a decisão de partir se visse novamente aquela vulnerabilidade no seu rosto.
Naquele momento soube, com uma clareza que doeu mais que qualquer ferida física, que o amor, aquele amor antigo e persistente, ainda morava em nós duas. Intacto, apesar dos anos. Apesar de tudo.
Contudo também sabia onde morava a culpa. E a responsabilidade. E o respeito pela vida que Chloe construíra com Grace, mesmo que essa vida estivesse agora ameaçada por forças que não podíamos controlar.
Por agora, nenhuma de nós quis cruzar esse território perigoso.
No entanto enquanto os meus passos me levavam para longe da praia, uma parte de mim permaneceu ali, sentada na areia do seu lado, guardando-lhe o silêncio e a dor.
Talvez esse fosse o único tipo de amor que me era permitido oferecer agora, presença sem exigências, apoio sem condições, compreensão sem julgamento.
Talvez fosse suficiente.
Ou talvez não… contudo agora precisava de ser.
Fim do capítulo
Capítulo 26 entregue!!
Obrigada a quem continua a acompanhar esta história :)
Como já vos tinha dito, estou com visitas e vou estar a viajar nos próximos dias, por isso o próximo capítulo não sairá já este fim de semana, mas no próximo.
Até ao próximo ***
Comentar este capítulo:
Mmila
Em: 21/07/2025
Momento sublime de Maya, pelo apoio humano, pelo sentido, pelo amor, sim pelo amor....
Eu até pensei nessa possibilidade de a Grace ter algum tipo de doença terminal ou algo assim.
Mas toda e qualquer possibilidade de se pensar um uma possibilidade futura entre as duas (Maya e Chloe) seria uma situação devastadora.
Enfim....
[Faça o login para poder comentar]
HelOliveira
Em: 21/07/2025
Mesmo com toda carga emocional, Maya soube silenciar, ouvir, acolher e respeitar esse momento de fragilidade da Chloe....
asuna
Em: 10/08/2025
Autora da história
Apesar de tudo o que estava a sentir, a Maya conseguiu colocar de lado os próprios conflitos para ser o apoio que a Chloe precisava naquele instante. Às vezes, o maior gesto de amor é exatamente esse, não é verdade?
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
asuna Em: 10/08/2025 Autora da história
A doença da Grace muda todo o equilíbrio, e é impossível que isso não reflita em cada escolha e relação.
E acho que a Maya ao assumir essa responsabilidade, ela começa a mostrar um lado mais maduro e decidido, mesmo que ainda esteja cheia de conflitos internos.