Capitulo 10
Por Luísa:
Ainda de olhos fechados, senti a pele quente e úmida, como se tivesse acabado de sair de uma maratona. Só que, em vez de corrida, o esforço tinha sido puramente mental. Meu corpo inteiro ainda carregava o rastro elétrico do sonho, aquele tipo de sonho que não se dissipa no momento em que a gente acorda, mas gruda na pele e se recusa a ir embora.
Com ela. Com Bia.
E não foi um sonho qualquer, desses desconexos em que nem conseguimos montar uma sequência lógica dos acontecimentos. Não. Esse foi daqueles bem nítidos, cinematográficos, com direito a arrepios e sensações afloradas. Eu conseguia sentir o cheiro do perfume dela, a forma como a boca encontrava a minha sem pressa, mas com aquele sorriso convencido.
Estava na minha sala, no sofá e a Bia apareceu, virando tudo de cabeça para baixo.
Ela me beijava, pressionava seu corpo contra o meu com sensualidade e aquela confiança irritante, como se fosse dona da situação. E pior, como se fosse dona de mim. Eu queria contestar, empurrar ela para fora da minha sala. Mas não fiz. Meu corpo queria. E fizemos mais e mais.
E agora ali estava eu, deitada na cama, descabelada, abraçando um travesseiro como se isso fosse apagar as últimas cenas do sonho.
Eu nem sabia como processar o que estava acontecendo comigo. Nunca tive um relacionamento sério antes. Já tinha beijado garotos, rapazes, mas nunca passou disso. Nunca foi algo profundo, nunca um namoro. E agora aqui estou eu… sonhando com uma mulher. Sonhando com alguém que detesto.
Parte de mim queria deletar tudo e fingir que nada aconteceu. Que eu não tinha gostado. Que não tinha sentido meu corpo inteiro vibrar só com a lembrança.
A outra parte?
Bem… sem hipocrisia, queria voltar a dormir e ver se conseguia continuar de onde o sonho parou.
O melhor que eu poderia fazer por mim naquela situação era correr para o banheiro e tomar um banho gelado. E foi exatamente o que fiz. A água fria bateu no meu corpo e por alguns segundos me concentrei apenas na sensação gelada escorrendo pela minha pele. Meu corpo relaxou, mas minha mente ainda insistia em rebobinar as imagens do sonho. Bia. O sofá. O calor da pele dela na minha. Revirei os olhos, irritada comigo mesma.
Saí do banho ainda meio desconcertada, vesti qualquer coisa e fui até a sala de jantar. Minha mãe já estava sentada à mesa, cercada pelo café da manhã impecavel preparado por Célia. O jornal estava aberto à sua frente, e ela me observava por cima dos óculos de leitura, com aquele olhar de quem estava analisando tudo.
— Bom dia! — Ela disse, dobrando o jornal com calma e colocando ao lado do prato.
— Bom dia, mãe! Já se atualizou das últimas tragédias do mundo? — Peguei uma xícara de café e me servi, tentando soar casual.
— Sim. Importante. Me lembre que preciso falar com Alexandre sobre o ensaio na praia. Tive algumas ideias.
O barulho dos talheres que Célia colocava na mesa parou no mesmo instante. Ela me lançou um olhar de preocupação, mas ficou quieta.
Engoli em seco. Alexandre, meu pai, havia falecido. De novo, minha mãe trocava os nomes, misturando passado e presente como se sua mente estivesse uma bagunça.
— Falaremos com Roger sim, dona Valéria. Não se preocupe. — Me adiantei, com a delicadeza de quem já sabia o que fazer nesses momentos.
Minha mãe assentiu, satisfeita, como se nada tivesse acontecido.
— Mãe… e sobre o retorno ao neurologista?
Ela suspirou, ajeitando os óculos no rosto.
— Bobagem, Luísa. Não será necessário. Estou tomando vitaminas e remédios para memória.
Soltei o ar, prendendo o impulso de argumentar. Tinha sido uma luta convencê-la a ir ao médico da primeira vez. Agora, eu precisava pisar em ovos para não assustá-la, mas também não podia fingir que nada estava acontecendo. Como é que eu deveria lidar com isso? Minha mãe sempre foi a fortaleza da casa. Como, de repente, eu é que teria que dar as ordens?
Apoiei os cotovelos na mesa, massageando as têmporas, sentindo uma pontada de dor ameaçar latejar ali. Minha paciência já começava a se esvair antes mesmo do café esfriar.
— Certo, mãe. É ótimo que esteja tomando suas vitaminas e tudo mais, mas precisamos levar os exames ao neurologista. Lembra?
Ela bufou, ajeitando os óculos de leitura no rosto.
— Claro que eu me lembro! Sei que tenho tido alguns lapsos de memória, mas isso tudo é só estresse com o trabalho. Agora que as coisas estão tomando um rumo bom…
Cruzei os braços, encarando-a.
— A empresa nunca esteve em maus lençóis, Dona Valéria. Tivemos uma queda, sim, mas os resultados ainda estão longe de qualquer catástrofe, e continuarão assim. E sabe por quê? Porque eu tive que me estressar o dobro. Me sujeitar a coisas que não concordo. Então, se quer que eu continue cumprindo minha parte, te peço que cumpra a sua: vá comigo à consulta de retorno.
Ela estreitou os olhos, pousando a xícara de café no pires com um clique sonoro.
— Está achando que pode chantagear sua própria mãe?
Dei um sorriso de canto, arqueando uma sobrancelha.
— Ora, ora… Você mesma me ensinou a ser assim. Tive a quem puxar.
Valéria suspirou, apertando os olhos como se tentasse dissipar os pensamentos que se formavam.
— Tudo bem. Marque o retorno para a semana que vem.
— Ótimo. — Peguei um pedaço de pão, satisfeita com minha pequena vitória. — Ah, e hoje não almoço em casa. Tomo café com você e saio logo em seguida. Mandei mensagem para aqueles meus amigos da equipe de paracanoagem e decidi participar do treino de hoje.
Minha mãe levantou os olhos do jornal novamente e fez uma expressão de surpresa.
— Faz mais de dois anos que você não pratica… E agora… até isso. Ultimamente tem usado roupas que mostram sua prótese, vai voltar a treinar… o que está acontecendo?
Encolhi os ombros, casual.
— Não tem nada acontecendo, mãe. Apenas acho que está na hora de voltar a ter uma vida fora da empresa. Não posso viver só daquilo senão vou enlouquecer. E agora que minha prótese não é mais um segredo de Estado, decidi que vou usar o que eu quiser, independente de ela aparecer ou não.
Ela me analisou por um momento, então sorriu e tomou um gole de café.
— Hum… Entendo.
*
— Caramba, Luísa! Para quem ficou tanto tempo fora, até que não te deixamos comendo água por muito tempo. — Cátia debochou assim que cheguei à margem.
Soltei um riso curto, sentindo a canoa bater contra a rampa. Meu corpo ainda estava aquecido do esforço, e o gosto salgado da água continuava presente nos lábios.
— Cheguei em último, Cátia. — Rolei os olhos, aceitando a derrota com dignidade.
— Sinceramente, apostamos que você nem conseguiria finalizar. — Vitor disse, estendendo a mão para me ajudar a sair da canoa. — Mas admito que foi uma surpresa boa receber sua mensagem e te ver de volta.
Apoiei a mão no ombro dele para me equilibrar enquanto subia a rampa. O mar se estendia à nossa frente espelhado. Não havia ondas, era como se a água respirasse lentamente. O sol começava a baixar no horizonte, pintando o céu com tons alaranjados, mas nada era tão quente quanto o olhar de Cátia, que brilhava de pura curiosidade.
— Estamos acompanhando você na imprensa, Lu. — Ela inclinou a cabeça, como quem já sabia a resposta, mas queria me fazer confessar. — Tá namorando?
Senti minha boca se abrir antes mesmo de decidir qual resposta dar.
— Sim. — O sorriso amarelo surgiu antes que eu pudesse impedir.
Cátia ergueu uma sobrancelha, divertida, enquanto Vitor soltava um assobio baixo. Eu sabia que agora viriam perguntas do tipo “Como assim?”, “Uma mulher?” e estava planejando mentalmente como escapar delas.
Vitor e Cátia não eram apenas amigos de treino, eram quase como irmãos de guerra. Nos conhecemos no centro de reabilitação, dividindo as mesmas piadas amargas e os mesmos olhares de quem sabia exatamente o peso de uma perda.
Cátia, nasceu com uma má formação e sem uma das pernas, e era a mais ágil, a mais rápida, a mais debochada de todos nós. Já Vitor, perdeu parte da perna abaixo do joelho e o antebraço em um acidente de carro quando era adolescente. Trauma duplo. Como se perder estas partes do corpo não fosse suficiente, ele ainda carregava a lembrança da morte do amigo naquele dia.
Não que uma perna se comparasse a uma vida. Longe disso. Eu, mais do que ninguém, sabia bem disso. Perdi minha perna em um acidente também. Mas, se pudesse escolher entre ela e a vida do meu pai, eu entregaria minhas duas pernas sem pensar.
Abracei os braços ao redor do próprio corpo por um segundo, espantando o arrepio que não tinha nada a ver com o frio.
— Então... — Cátia quebrou o silêncio, jogando um dos remos no chão com desdém. — Vai aparecer mais vezes nos treinos ou foi só um showzinho pra impressionar a influencer?
Revirei os olhos, mas um canto da minha boca ameaçou levantar.
— Claro, Cátia, voltei só pra isso. Passei a tarde toda me matando na água, com os braços ardendo, só por esse motivo.
Ela ergueu as mãos, rindo.
— Ei, algumas pessoas acham remadores sexys.
— Ótimo, então da próxima vez já venho direto com uma t-shirt estampada com: "Namore comigo, eu remo!"
Vitor soltou uma risada abafada ao meu lado, cruzando os braços. O olhar dele oscilou entre divertido e... algo mais. Como se estivesse me lendo além da minha piada.
Eu tinha me afastado dos dois quando eles começaram a namorar. Não por falta de tempo, não por falta de vontade. Mas porque me sentia uma intrusa depois que eles me contaram do namoro. E, sendo sincera, também morria de ciúmes. Não um ciúme bobo, infantil, mas aquela sensação azeda de quem está sempre um passo atrás, observando os outros viverem o que você ainda nem sabe como é.
Nunca tive um relacionamento sério e minha única tentativa até agora era... uma mentira.
Balancei a cabeça, espantando os pensamentos. Não era hora de afundar naquele poço de autocomiseração.
— Eu volto a treinar com vocês mais vezes, Cátia. — Afirmei, cruzando os braços. — Mas só se você prometer que vai tentar, pelo menos uma vez, perder pra mim.
Ela gargalhou alto, batendo a mão no peito como se a ideia fosse um ultraje.
— Querida, eu perderia a outra perna antes de perder pra você.
Vitor apenas riu ao nosso lado, sacudindo a cabeça.
Era bom estar ali de novo. Sentir o sal secando na pele, a adrenalina nos músculos, o cansaço gostoso de um esforço real. Era bom lembrar que eu ainda tinha algo fora do trabalho, fora das mentiras, fora da pressão, fora de todas as coisas que me prendiam.
E, por mais que eu nunca admitisse em voz alta, era bom saber que, mesmo depois de tanto tempo, aquele pedaço da minha vida ainda estava aqui, esperando por mim.
*
Quando cheguei em casa, a noite já tinha se instalado. Meu celular vibrou e uma notificação chamou minha atenção. Cátia havia postado uma foto de nós três ainda molhados depois do treino de canoagem, sorrindo e cansados, mas felizes na margem. A legenda dizia: "Adivinha quem voltou pros treinos depois de anos sumida? 🛶💪 @luisafischer, sentimos sua falta! Agora não some mais, hein? #squadgoals #canoagem #friends #voltouagigante".
Curti o post e assim que levantei o rosto, me deparei com Célia na sala, de braços cruzados e uma expressão carregada de segredos.
Tive a leve impressão de que ela estava me esperando.
— Boa noite, Célia! E a minha mãe? — perguntei, tirando a jaqueta e me aproximando dela.
— Boa noite! A Dona Valéria já foi se deitar. Não quis jantar.
— Algum problema, Célia? — perguntei, notando a inquietação estampada em seu olhar.
Ela olhou ao redor, como se até os móveis pudessem ouvir, e então abaixou o tom de voz:
— Ai, menina… você pediu pra te contar quando visse algo estranho…
A forma como ela falou fez minha espinha gelar. Célia tinha o dom de transformar qualquer coisa em uma cena de novela mexicana.
— Pode falar, Célia — incentivei, pousando a mão no ombro dela.
— Ontem, como sempre faz, ela pediu café depois do jantar e eu fiz. Mas meia hora depois que tomou, me chamou de novo e pediu outro, como se tivesse esquecido que já tinha tomado… E agora há pouco, ela se levantou do sofá, disse que ia ao banheiro, mas parou no meio do corredor. Ficou lá, parada, olhando em volta como se não soubesse o que estava fazendo. Meio confusa, sabe, menina?
Apertei os lábios.
Eu já sabia que esse momento chegaria. Minha mãe vinha apresentando comportamentos mais rudes que o habitual, alteração de humor e lapsos há algum tempo, mas ouvir isso da boca de alguém que também a conhecia foi como levar um tapa. Duro, direto e impossível de ignorar.
— Entendi, Célia. E eu vejo que você está preocupada. Eu também estou. Mas amanhã mesmo eu pego o resultado dos exames e marco a consulta com o neuro de novo.
Célia soltou um suspiro aliviado.
— Que bom! Quer que eu faça algo pra você jantar?
— Não, não. Agradeço. Comi uma pizza com meus amigos. Vou só passar no quarto da minha mãe pra dar boa noite.
— Está bem. Bom descanso, menina!
Subi as escadas sentindo um peso familiar se instalar nos meus ombros. O tipo de peso que não era físico, mas emocional. Daqueles que nem um banho quente consegue tirar.
Ao chegar perto do quarto de Valéria, percebi que a porta estava entreaberta. Dei uma leve batida antes de entrar e a encontrei sentada de frente para a penteadeira, passando creme no rosto com movimentos metódicos.
O aroma do hidratante, misturado ao cheiro dos cabelos ainda úmidos, me envolveu como uma lembrança de infância. Noites em que ela me transformava em sua modelo particular, testando maquiagens enquanto ria de alguma história que meu pai contava.
Ela percebeu meu reflexo no espelho e sorriu, estendendo a mão.
— Já voltou? Como foi com seus amigos?
— Acabei de chegar. E foi tudo bem. Deu pra suar bastante.
— Estou vendo. Então coma alguma coisa e vá tomar um banho.
— Já comi. E agora já vou pro banho. Só passei aqui pra te dar boa noite.
Me aproximei e ela segurou minha mão, o toque quente contrastando com minha pele fria.
— Boa noite, filha. Bom descanso. Amanhã iniciamos uma semana importante.
Engoli em seco.
— Eu sei, Dona Valéria.
Apertei a mão dela e soltei, me virando para sair. Mas antes que eu cruzasse a porta, a voz dela me chamou de volta:
— Luísa.
Me virei.
— O que foi?
Ela me olhou com aquela expressão que só mães sabem fazer. Um misto de orgulho e preocupação.
— Agradeço o que você está fazendo pela empresa. E também o que ainda terá que fazer.
Fiquei ali por um instante, encarando-a. Aquelas palavras pesavam mais do que eu esperava.
Assenti com a cabeça e saí do quarto, fechando a porta atrás de mim.
E foi só quando encostei as costas na madeira que soltei o ar que nem percebi que estava prendendo.
Fim do capítulo
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