Capítulo 2 - A Manhã do Primeiro Dia
A pesada porta de madeira da sala de reuniões rangeu suavemente ao ser fechada, Mizuki era a única da comitiva japonesa que não deixaria o país naquela tarde. Todos já haviam saído e agora apenas na companhia da funcionária de Recursos Humanos, que organizava uma pilha de papéis sobre a mesa de mogno, a sua última missão iria começar. Lá fora, o ritmo acelerado da manhã se intensificou ainda mais após os acontecimentos e o burburinho do escritório da filial brasileira do Grupo Kodama com as últimas notícias.
Luís que apesar de ter o cargo de Gerente do RH parecia não ter nenhum preparo para o trabalho, chamou com urgência sua subordinada Dayana que aparentemente era quem de fato resolvia as coisas por ali. Enquanto a Supervisora com seus óculos de armação fina escorregando levemente pelo nariz, providenciava os últimos documentos de admissão para a nova Diretora da filial, Mizuki sentia um misto de alívio e uma pontada familiar de desafio. Assinar era a parte fácil, o verdadeiro trabalho começaria depois. Assim que a última folha foi rubricada e a Dayana começou a recolher os formulários com um ar de quem finalmente terminaria o dia, Mizuki, com um sorriso quase imperceptível, arriscou a primeira pergunta:
— Shinai no hoterumade no ikikata o oshiete itadakemasu ka? — Sua voz era suave, perfeitamente modulada, mas as palavras japonesas preencheram o ar como um estranho.
A mulher do RH, que estava prestes a guardar a pasta, parou abruptamente. Seu olhar, antes focado nos papéis, subiu para Mizuki e se preencheu de um assombro misturado com total confusão. As sobrancelhas se arquearam, e um leve rubor subiu-lhe ao pescoço.
Mizuki suspirou internamente. Era um teste, em que a mulher à sua frente já estava falhando. Tentou de novo, mudando para o inglês, uma língua que considerava universal:
— Could you tell me how to get to the hotel in town?
A reação da moça não mudou. O olhar confuso persistia, agora com uma pitada de desculpas silenciosas.
"Nossa, isso vai ser mais complicado do que eu imaginei"
Uma frustração sutil aflorando. Sua fluência em japonês e inglês era quase perfeita, mas o português era uma barreira que ela ainda não havia superado totalmente.
Sem hesitar, Mizuki pegou seu celular do bolso interno do blazer. Abriu o aplicativo de tradução, digitou a frase no campo de texto e mostrou a tela para a funcionária. Um flash de reconhecimento finalmente iluminou o rosto da mulher. Com as mãos ainda um pouco trêmulas, ela pegou o celular e digitou a resposta.
Bastavam algumas instruções simples: dirigir pela estrada principal e virar na praça da cidade. O hotel ficava bem em frente, um prédio modesto, mas com uma fachada limpa, como a foto que aparecia no site de reservas. Mizuki já havia reservado um quarto, apenas para passar os dias necessários. Suas investigações anteriores raramente duravam mais de um mês, e ela imaginava que não seria diferente desta vez. Não havia necessidade de se apegar àquela cidadezinha pacata.
Havia uma certa liberdade em cada uma dessas missões. Mizuki até gostava de se disfarçar, de se misturar. Eram momentos preciosos em que ela não precisava ser a filha perfeita do Senhor Kodama, a herdeira da vasta fortuna da família, a jovem disciplinada e impecável que a sociedade japonesa esperava. Essa estadia no Brasil, longe dos olhares e das expectativas, era quase como umas férias da sua vida de verdade, um interlúdio onde ela podia ser apenas Mizuki, e talvez, apenas talvez, descobrir algo sobre si mesma além do nome de sua família.
—xxx—
Ao adentrar o lobby do hotel, Mizuki sentiu um leve alívio. A recepcionista, uma mulher jovem de sorriso acolhedor e olhos curiosos, parecia já estar à sua espera. A comunicação, para sua surpresa, fluiu sem muitas dificuldades. Em poucos minutos, com a chave do quarto em mãos, Mizuki foi rapidamente encaminhada por um funcionário atencioso, que carregava sua única mala de mão, discreta e elegante.
Ela havia feito uma observação especial em sua reserva, solicitando uma chaleira elétrica e uma bicicleta ergométrica para seus exercícios matinais. Trabalhando a maior parte do tempo em escritórios, Mizuki mantinha uma rotina de exercícios diária e rigorosa, essencial para sua disciplina e bem-estar físico e mental. Contudo, ao entrar no quarto, uma leve careta de desapontamento marcou seu rosto. A chaleira estava lá, brilhando sobre uma pequena mesa, mas a bicicleta ergométrica, não era bem o que ela esperava. Era um modelo antigo, de metal pesado e desgastado, mais parecia uma peça de museu do que um equipamento funcional.
A noite se arrastou, parecendo mais longa do que o normal. Mizuki teve uma dificuldade imensa para dormir. A cama era desconfortável, o colchão afundando em lugares estranhos, e os lençois pareciam ásperos em sua pele sensível. Tudo no quarto tinha um cheiro estranho, um aroma abafado de mofo e algum tipo de desinfetante barato que a fez virar e revirar. Além disso, a implacável mudança de fuso horário era um inimigo invisível, sussurrando constantemente para seu cérebro que não era hora de dormir, mas sim de estar trabalhando, de estar ativa, a milhas de distância dali. Ela sabia, porém, que levaria algum tempo até seu corpo se acostumar com a mudança drástica causada por sua viagem ao redor do planeta.
Na manhã seguinte, cerca de duas horas depois que Mizuki finalmente conseguiu pegar no sono, o som suave de seu despertador, programado metodicamente na noite anterior, avisou que era hora de acordar. Seu corpo estava exausto, cada músculo pesado, e perdiam apenas para sua mente, que implorava por mais algumas horas de sono, por qualquer vestígio de descanso.
“E ontem eu achava que já estava cansada”, pensou, enquanto tentava afastar o véu de sono que a envolvia. “Mas por mais que eu queira dormir, preciso me forçar a me acostumar o mais rápido possível.” A urgência da missão pairava sobre ela, aquele era um lembrete constante de seu propósito.
Levantou-se da cama com um gemido inaudível, o corpo protestando a cada movimento. Os primeiros raios de sol mal espreitavam pelas cortinas pesadas. Sem ânimo, ela arrastou-se até a pequena bancada e colocou a chaleira para aquecer a água. Preparou um chá verde, seu ritual diário de despertar, e tomou-o devagar, saboreando o amargor reconfortante. O líquido quente começou a despertar seu cérebro aos poucos, enviando ondas de energia.
Despiu-se do pijama, deixando-o amarrotado ao lado da cama, e vestiu sua roupa de exercícios: uma calça legging e um top pretos com discretos detalhes em branco na lateral. Depois de fazer uma série de alongamentos cuidadosos, sentindo seus músculos rígidos se esticarem, Mizuki finalmente encarou a bicicleta em seu quarto. Aproximou-se dela com um ceticismo crescente. Mexeu de um lado, tentando ajustar o assento, tentou do outro, verificando os pedais. O metal rangia, a corrente parecia enferrujada.
“Esse negócio parece que saiu de um museu”, murmurou para si mesma, o desapontamento evidente em sua voz. “Sem chance de eu conseguir fazer exercícios aqui. Posso encomendar uma nova, mas acho que vai demorar demais para chegar aqui nessa cidadezinha.” Ela precisava de uma solução imediata.
Mizuki olhou pela janela do quarto do hotel, o sol já estava alto, pintando o céu com tons suaves de laranja e rosa. Decidiu que não podia depender daquele equipamento arcaico e resolveu arriscar uma corrida ao ar livre. Pegou sua blusa de treino que fazia parte do seu conjunto e calçou seu tênis de corrida, um modelo de alta performance, branco e elegante. Desceu para o saguão, que a essa hora da manhã estava totalmente vazio, e começou a caminhar, sentindo a brisa suave da manhã em seu rosto. Ligou seus fones de ouvido e selecionou sua playlist de K-pop, o ritmo energético começando a bombear em suas veias.
Enquanto seus olhos varriam o cenário, observou a pequena praça em frente ao hotel. Do outro lado da rua, uma mulher com seu filho passava apressada; o garotinho, de uniforme escolar, enquanto a mãe equilibrava a própria bolsa com a mochila do filho em seu outro ombro. Mizuki imaginou que estariam atrasados para a escola, uma cena tão mundana e familiar, ainda que em um cenário tão diferente do seu cotidiano em Tóquio. Do lado direito, um homem de roupas simples pedalava sua bicicleta, provavelmente a caminho do trabalho, seu semblante sério, mas não tenso.
"As coisas são tão calmas por aqui", pensou Mizuki, sentindo um contraste gritante com o ritmo frenético de sua vida. "Parece que estou em um universo paralelo da minha realidade."
Agora que seu corpo já estava começando a aquecer, ela acelerou um pouco o ritmo, o que combinava perfeitamente com a batida cheia de energia que ressoava em seus ouvidos. Virou à direita na primeira esquina e notou que um homem de idade mais avançada estava colocando uma cadeira de vime na calçada, sentando-se no sol para apreciar a manhã. De repente, o homem levantou a mão, cumprimentando Mizuki de longe com um aceno amigável.
"Aquele senhor me conhece? Por que ele está me cumprimentando? Será que ele trabalha na empresa? Não me lembro de ter visto ele ontem…", questionou-se, um leve desconforto misturado à surpresa. Ela não parou para escutar se o homem havia dito alguma coisa, afinal, só o que ela ouvia eram as batidas da música ditando o ritmo da corrida. Mais à frente, outro homem pedalando em sua bicicleta vindo no sentido contrário ao de Mizuki também levantou a mão para cumprimentá-la. Mesmo sem conhecer o homem, Mizuki imitou seu gesto e se sentiu estranha ao fazê-lo pela primeira vez, um leve sorriso brincando em seus lábios.
Duas ruas à frente, ela virou à esquerda e observou de longe um ônibus fazendo uma curva na próxima esquina. Mizuki seguiu seu caminho e sua corrida, aproximando-se. Uma grande placa com uma seta indicava "Rodoviária" e apontava para a direita, exatamente de onde o ônibus havia saído. Curiosa, ela decidiu virar à direita, seguindo o rastro do ônibus.
De repente, Mizuki sentiu seu corpo se chocar em algo — ou melhor, em alguém. Não houve tempo para pensar ou entender a situação, pois foi em um piscar de olhos que ela já estava caída no chão, mas não diretamente no asfalto. Algo havia amortecido sua queda e, quando abriu os olhos, viu que o corpo de uma jovem havia amortecido o impacto.
Um gemido doloroso ecoou de debaixo dela:
— Ai! — A voz trouxe Mizuki de volta ao presente.
Assustada e atordoada, ela se apoiou nos cotovelos e ergueu o rosto. Seus olhos encontraram os da desconhecida: olhos castanhos claros, quase dourados, que brilhavam mesmo sob o sol da manhã. Os cabelos da jovem formavam uma cascata de fios ondulados e castanhos, estavam ligeiramente desgrenhados pela queda, com algumas folhas secas coladas aos cachos.
Com um pulo desajeitado, Mizuki ergueu. Agora de pé, observou a garota com mais atenção. Ela aparentava ter cerca de vinte e poucos anos e estava coberta por uma pequena coleção de bolsas: uma mochila cinza volumosa nas costas, uma bolsa de couro preta escorregando pelo ombro, outra do tipo térmica presa de forma transversal no peito e, caída ao lado, uma case de notebook. Seu visual era despretensioso: jeans desbotados, uma camiseta com estampa de desenho animado visivelmente desgastada e um par de tênis tão surrado que parecia contar histórias nos próprios rasgos.
Mizuki deu um passo instável para trás, tentando recuperar o fôlego e a compostura, sentindo os olhares curiosos de algumas pessoas ao longe. A jovem no chão já se levantava, recolhendo as bolsas espalhadas com um ar quase cômico, um jeito atrapalhado e gentil ao mesmo tempo.
— Perdão, moça! Eu não vi você. Você se machucou? — perguntou a jovem com um olhar preocupado e uma voz um pouco ofegante.
Mizuki entendeu as palavras, mas hesitou. Apesar dos meses estudando o idioma, ainda não se sentia à vontade para responder em português. Seus olhos demoraram por um instante a mais no rosto da garota, que era bonito de um jeito inesperado, com um sorriso contido e traços expressivos. E por mais um segundo, Mizuki se perdeu naqueles olhos. Mas logo lembrou dos ensinamentos que a treinavam para não se deixar levar por distrações. Retomou o autocontrole como quem puxa as rédeas de um pensamento inapropriado.
— Moça? Está bem? — insistiu a jovem, agora sacudindo as roupas e tentando retirar um pouco da poeira que havia nelas após a queda.
Mizuki, ainda muda, estendeu a mão e retirou uma folha seca que estava presa nos cabelos da moça.
— Ah... obrigada — disse a garota, sorrindo. Seus olhos caíram para o chão. — Ah, você deixou cair seu fone.
Ao se abaixar para pegá-lo, uma das bolsas escorregou mais uma vez, quase fazendo a moça perder o equilíbrio. Ver aquela moça tão desajeitada fez Mizuki conter um riso silencioso. A jovem finalmente se recompôs e estendeu o fone para ela.
— Thanks and I’m sorry for that. — murmurou Mizuki, com uma breve reverência, aceitando o objeto e se virando em seguida para seguir seu caminho, sem coragem de acrescentar mais nada.
— Tenha um bom dia, moça! — ouviu a garota dizer com naturalidade, antes de recolocar seus próprios fones e retomar a corrida, como se aquela colisão tivesse sido apenas mais uma parte curiosa de sua rotina.
Mizuki pensou por um momento, sentindo a pulsação da música em seus ouvidos. "Se esse lugar for tão imprevisível quanto essa manhã... nem sei o que esperar dessa investigação."
Fim do capítulo
E ai meu povo, Baum?
Primeiro encontro digno de um dorama não acham? Só faltou um momento em câmera lenta e uma musica de fundo.
Pra quem gostou acho que vão gostar também dos conteúdos exclusivos que eu posto no Instagram.
@emi_alfena
Bora lá?
Comentar este capítulo:
Zanja45
Em: 30/11/2025
Mizuki que não está acostumada com a vida em cidades pequenas, ver essa cordialidade toda foi estranho para ela.
Esse encontrão foi com a estagiária? KKKK! Só pode ser a dorminhoca ( do mais cincos minutos na cama).
Zanja45
Em: 30/11/2025
Kkkkk
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EmiAlfena Em: 30/11/2025 Autora da história
Só mais 5 min kkkkk quem nunca?