Capitulo 46
Heather ajudou Mei sair do carro, as duas ignorando o senhor Cheng. Mas antes que conseguissem sair do carro, a voz dura do dele quebrou o silêncio como um trovão.
— Yu! — ele gritou, o rosto vermelho de indignação ao ver a esposa ainda sentada no banco do carona do carro de Heather. — Saia de perto delas imediatamente!
A senhora Yu hesitou, as mãos trêmulas no colo. Os olhos marejados buscaram a filha, como se pedissem perdão por não ter forças para enfrentar de imediato a ordem do marido.
Heather deu um passo à frente, protetora.
— Com licença, senhor Cheng, sua esposa não está fazendo nada de errado.
O homem a atravessou com um olhar de ferro.
— Você cale a boca. Já fez o suficiente corrompendo minha filha.
Mei se ergueu de repente, a voz embargada, mas firme:
— Bà! Não fale assim com ela. A Heather não fez nada de errado, eu não fiz nada de errado.
— Nada de errado? — ele cuspiu, avançando um passo. — Desde criança você viveu sob este teto, sua mãe cuidou de você, eu me matei de trabalhar para te dar estudo, futuro, e o que recebo em troca? Vergonha! Você me ridicularizou diante da comunidade, diante dos vizinhos. — O olhar dele queimava. — Dormindo com essa mulher que eu deixei entrar na minha casa e fazer parte da minha família!
Heather tentou conter o impulso de responder, mas Mei tocou em seu braço. Ela não podia deixar que o pai ficasse impune sem saber exatamente como ela se sentia.
— Você não me ridicularizou o bastante quando me expulsou? — Mei disparou, as lágrimas começando a arder, mas a voz se mantinha alta. — Me bateu, me chamou de imunda, disse que eu não era mais sua filha! — o peito dela subia e descia em desespero. — Você me humilhou e me rejeitou.
O silêncio pesou. Yu cobriu a boca, as lágrimas escorrendo, mas Cheng não recuou.
— Porque você é um vergonha. — ele respondeu, gélido. — Filha minha não joga no lixo séculos de honra familiar. Eu não criei uma filha para se deitar com outra mulher.
Mei avançou dois passos, o rosto vermelho de raiva. Heather queria evitar que a namorada se machucasse, mas sabia que Mei precisava colocar tudo para fora, então ficou em alerta caso a mais nova precisasse dela.
— Então me diga, bà, qual honra existe em rejeitar sua própria filha? Qual honra existe em levantar a mão contra ela? Você fala de tradição, mas que tradição é essa que destrói quem você deveria proteger?
— Não me desafie! — Cheng rugiu, batendo o pé com força no chão. — Você não sabe o que é carregar o peso de uma família, de uma cultura.
— Eu sei o que é carregar o peso de não ser amada pelo próprio pai. — Mei rebateu, e a voz dela quebrou de vez. — Eu sei o que é passar noites em claro, fingindo ser alguém que eu não sou, só para não te decepcionar. — As lágrimas caíram, mas ela não as escondeu. — Eu tentei, bà. Eu tentei ser a filha que você queria. Mas nunca foi o bastante. Nunca.
Yu deu um passo à frente, suplicando:
— Cheng, por favor... já chega.
Ele ergueu a mão, mandando-a calar-se.
— Vá para dentro, Yu. Não se envolva.
Mas Yu não se moveu. Pela primeira vez, seu olhar encontrou o dele com firmeza.
— Ela é minha filha. Você pode mandar em mim, mas não vai arrancá-la do meu coração.
Cheng virou o rosto com raiva do enfrentamento da esposa. Mas ele resolveria aquilo depois.
— Se procurar a Yu de novo, você estará morta para mim. — Ele apontou o dedo para Mei, mas ela não se intimidou. As palavras cortavam o seu coração, só que eram importantes para romper com o respeito que ela ainda tinha por aquele homem.
Mei respirou fundo, como se arrancasse do peito o último fio de esperança.
— Então é isso. Você já me matou uma vez quando disse que eu não era mais sua filha. Agora acabou. — ela ergueu o queixo, as lágrimas caindo como fogo. — Já que nunca vou ser boa aos seus olhos, eu não o considero mais como pai.
Ela se virou, puxando Heather pela mão. Juntas, atravessaram a curta distância até a casa vizinha. Cada passo soava como um adeus definitivo.
Na porta, Mei olhou para trás uma última vez. Yu ainda estava na varanda, os olhos vermelhos, as mãos juntas em súplica silenciosa. Cheng permanecia de pé, rígido, como uma estátua de pedra.
A porta da casa de Heather se fechou atrás delas, abafando o vento e a fúria.
E no silêncio da casa dos Wang, Cheng entrou e bateu a porta com estrondo. A sala mergulhou numa penumbra pesada. Yu o seguiu, em silêncio, mas quando ele a mandou se afastar da filha, ela apenas baixou os olhos e disse com suavidade:
— Eu sou sua esposa. Vou te respeitar. Mas não me peça para deixar de ser mãe.
Cheng não respondeu. Apenas virou as costas e se trancou no quarto, sozinho, carregando sua fúria como uma couraça.
A senhora Wang ficou parada na sala, lágrimas escorrendo. Sabia que a paz da família jamais seria a mesma, mas dentro dela uma certeza florescia: jamais abandonaria Mei, por mais que o marido quisesse.
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Mei não conseguiu dar mais que dois passos. Suas pernas cederam, e ela desabou no sofá da sala, as mãos cobrindo o rosto. A respiração vinha em soluços curtos, descompassados.
Heather sentou-se ao lado dela sem dizer nada. Apenas envolveu-a num abraço firme, aconchegando a cabeça da engenheira contra o próprio peito.
— Tá tudo bem... — murmurou. — Eu tô aqui.
Mei balançou a cabeça, a voz quebrada escapando entre lágrimas:
— Eu sabia que seria assim, Hattie. Eu sabia. — Ela engasgou, apertando ainda mais o abraço. — Mas ouvir da boca dele que... ele prefere me ver morta do que me aceitar. Dói tanto.
Heather passou os dedos pelos cabelos molhados de lágrimas, tentando acalmá-la com toques suaves.
— Eu sei, amor. Eu sei. Mas você foi corajosa. Você disse tudo que precisava dizer. Não podemos controlar as atitudes dele.
Andrew apareceu discretamente na porta da cozinha. Não falou nada, apenas observou alguns segundos, respeitando o momento. Depois, sem chamar atenção, deixou uma chaleira no fogão e voltou para o quarto, deixando o espaço só para elas.
Mei enxugou o rosto com a manga da camisa, a respiração ainda trêmula.
— Ele nunca vai me aceitar, Hattie. Nunca. — Um sorriso amargo surgiu em meio às lágrimas. — Acho que, no fundo, eu ainda esperava... esperava que um dia ele olhasse pra mim e dissesse que tem orgulho de quem eu sou.
Heather segurou o rosto dela entre as mãos, obrigando-a a olhar em seus olhos.
— Eu tenho orgulho de você. Todos os dias. Você é brilhante, forte, generosa... e incrivelmente inteligente. — A capitã sorriu de leve, tentando trazer um pouco de leveza. — Se o seu pai não consegue enxergar isso, é porque está preso a um mundo que já não existe mais.
Mei mordeu o lábio, fechando os olhos.
— Dói pensar que ele nunca vai me ver de verdade.
— Então deixa ele lá, preso no mundo dele. — Heather disse com firmeza, puxando-a para um beijo na testa. — Você vai viver o seu. Comigo, com sua mãe, com Xiao, com sua família de verdade.
O peito de Mei arfou em um choro contido, mas ela finalmente se permitiu relaxar nos braços da capitã. Ficaram assim por longos minutos, até que a respiração dela se acalmou.
Heather então pegou a manta do encosto e a puxou sobre elas, ajeitando Mei deitada contra o colo.
— Descansa um pouco, amor. Você precisa.
Mei suspirou, a voz quase inaudível.
— Obrigada, Heather... Obrigada por segurar a minha mão e me amar.
Heather sorriu, acariciando os cabelos dela.
— Não agradeça, sou eu que tenho sorte em ter você. Te amo, minha menina doce.
A engenheira fechou os olhos, exausta, e adormeceu ali, embalada pelo calor e pela firmeza da capitã. Heather permaneceu acordada, em silêncio, sentindo o peso daquela noite ainda vibrar na pele de Mei.
Do lado de fora, a luz da casa dos Wang permanecia acesa. Havia silêncio, mas também uma tensão invisível pairando no ar, como se as paredes guardassem a fúria de Cheng e o choro contido de Yu.
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O sol ainda estava alto quando Mei abriu os olhos. O cheiro de café fresco vinha da cozinha, e por um instante ela pensou que sonhava, até ouvir Heather assobiando baixinho uma canção qualquer. O peito de Mei ainda doía, como se as palavras do pai ecoassem nela, mas havia algo diferente naquele entardecer. A engenheira sentia que finalmente poderia seguir em frente, mesmo que nem tudo tivesse saído como ela queria, pelo menos agora, todos os impasses tiveram o seu ponto final.
Ela levantou devagar, o cabelo desgrenhado caindo sobre o rosto. Encontrou Heather mexendo uma frigideira com destreza, as mangas da camiseta dobradas.
— Boa tarde, dorminhoca. — Heather sorriu, virando-se com uma expressão que misturava ternura e um certo alívio. — Café pronto, ovos quase prontos.
— Você tá muito doméstica hoje. — Mei tentou brincar, a voz ainda rouca.
— Tô tentando agradar a minha engenheira favorita. — Heather colocou um prato diante dela e piscou. — Mas na verdade, eu tenho um plano melhor.
Mei arqueou uma sobrancelha.
— Plano?
— Vamos sair. Nada de ficar aqui remoendo o que aconteceu. — Heather tocou na mão da mais nova. — Vamos até o quiosque da praia, comer caranguejo, peixe frito, o que você quiser.
Mei respirou fundo, um sorriso tímido surgindo.
— Tá tentando me comprar com comida?
— Sempre funcionou. — Heather falou lembrando da Mei adolescente que amava uma boa comida, o que não parecia ter mudado com o tempo. — O que me diz?
Mei fingiu pensar, mas o olhar denunciava a resposta.
— Tá... Eu topo.
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O quiosque ficava numa curva da praia, de frente para o mar aberto. Era simples, de madeira pintada de azul desbotado, mas o cheiro de frutos do mar frescos e o som das ondas batiam como música. As mesas de plástico estavam espalhadas na areia, algumas cobertas por guarda-sóis coloridos que dançavam com o vento.
Heather escolheu uma mesa próxima ao parapeito, onde podiam ver o horizonte. Mei respirou fundo, sentindo o sal no ar e, pela primeira vez em dias, não sentiu peso no peito. Ela achou que seria pior decidir se afastar completamente do pai, mas depois de chorar e dormir um pouco, estava aliviada. Agora poderia ser livre sem o peso de estar desagradando alguém.
— Sabe, Hattie... — ela começou, mexendo no cardápio — ...eu precisava mesmo disso.
— Eu entendo. — Heather sorriu, relaxando contra a cadeira. — Você precisava espairecer um pouco, meu amor.
Antes que Mei pudesse responder, uma voz familiar interrompeu:
— MEI!
Ela ergueu os olhos e quase engasgou.
— Lu?!
Lucy estava a poucos metros, sorridente, usando um vestido leve e óculos escuros apoiados no topo da cabeça. Ao lado dela, um rapaz alto, de cabelo castanho bagunçado e sorriso largo.
— Eu não acredito! — Mei levantou de um pulo, abraçando a amiga com força. — O que você tá fazendo aqui?
— Eu que pergunto! — Lucy riu. — Vim com ele. — E apontou para o rapaz. — Mei, esse é o Evan. Evan, essa é a famosa Mei que eu vivo falando.
Evan estendeu a mão, simpático.
— Prazer finalmente conhecer. A Lucy fala de você como se fosse uma super-heroína.
— Ela é exagerada . — Mei riu, apertando a mão dele. — Mas o prazer é meu.
Heather se levantou também, curiosa. Mei virou-se para ela com um brilho no olhar que misturava orgulho e carinho.
— Hattie, essa é a Lucy. Minha melhor amiga da faculdade, irmã de coração. — Depois virou-se para Lucy. — Lucy, essa é a Heather. Minha namorada.
Heather sorriu e estendeu a mão, firme, mas gentil. O rosto de Lucy era familiar. Foi então que ela ligou os fatos, Lucy era filha de Morgan. A capitã tinha visto algumas fotos da mulher. Quando ela se formou, Morgan fez questão de mostrar as fotos para a tripulação toda.
— O Morgan falava muito da filha. É um prazer te conhecer, Lucy.
Lucy gargalhou.
— Pois é, o mundo é pequeno. Meu pai já tinha falado da tal Heather, a capitã durona que fazia os engenheiros suarem. Nunca pensei que seria a Heather da Mei.
Mei riu, meio corada. Precisava marcar um dia para contar para a amiga tudo o que tinha acontecido.
— Surpresas da vida.
Os quatro acabaram juntando as mesas. Logo chegaram porções de caranguejo, camarão frito e cervejas geladas. O clima ficou leve, descontraído.
Evan se mostrou engraçado, contando histórias da viagem dele e de Lucy no mês passado. Heather ouvia com interesse, mas a cada vez que Mei ria das piadas do casal, seu olhar se suavizava. Era bom ver a engenheira livre, leve, sem o peso da última noite.
— Então, Heather... — Lucy disse entre um gole de cerveja. — Eu preciso te agradecer. Você manteve essa maluca viva no meio do mar de Bering. Porque, se dependesse dela, já teria tentado consertar a hélice com um clipe de papel.
Mei fingiu indignação.
— Ei! Eu sou engenheira de verdade.
— Engenheira que acredita que uma gabiarra resolve tudo. — Lucy rebateu, arrancando gargalhadas de Evan e Heather.
— Ah, mas resolve mesmo. — Heather piscou para Mei, entrando na brincadeira. — No Queen Seas, gabiarra é quase lei.
As duas riram juntas, e Lucy observou com carinho.
— Você tá feliz, né, Mei? — perguntou de repente, num tom mais suave.
Mei parou, olhou para Heather, depois para Lucy, e assentiu.
— Tô. Muito.
Lucy sorriu satisfeita, e Evan a abraçou de lado.
— Bom, então eu também tô feliz por vocês. — ela disse. — Vamos combinar de sair mais vezes, quero saber cada detalhe de como se reconciliaram.
Heather olhou para Mei sem entender.
— Antes da temporada, eu passei a noite na casa da Lucy. E ela me deu alguns conselhos importantes. — A engenheira tocou na mão da namorada.
— Então, eu devo agradecer a você Lucy por ter mandado a Mei de volta para mim. As vezes sou muito teimosa e preciso dela para me colocar na linha.
Todos riram e Mei ficou surpresa com o comentário da mais velha. Realmente Heather estava mais descontraída e ela amava ver a sua capitã assim.
A conversa continuou leve: sobre a época da faculdade, sobre as aventuras de Evan surfando e sobre as loucuras da vida no mar. Heather até contou uma história engraçada da tripulação, arrancando gargalhadas até da própria Mei.
A noite já estava avançada quando o grupo se levantou, preguiçoso e satisfeito. Mei caminhava de mãos dadas com Heather, o coração mais leve. Apesar do confronto com o pai, ela sentia que o futuro podia ser bonito.
E Heather, observando a cumplicidade entre Mei e Lucy, sabia: aquela amizade era parte fundamental de quem a engenheira havia se tornado. Era bom saber que Mei não esteve sozinha enquanto estudava na Califórnia.
Evan resumiu tudo quando, antes de se despedirem, disse com um sorriso largo:
— Nós quatro formam um time e tanto. Adorei a noite.
Mei riu, encostando-se em Heather
— É. Acho que formamos mesmo.
Eles se despediram com a promessa de se encontrarem mais vezes. Aquele dia tinha sido uma verdadeira montanha-russa de emoções, mas no fim, tudo deu certo.
Fim do capítulo
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