Surpresa Romântica
Hospital Sírio-Libanês – Corredor do 8º andar, 12h18
Silvia estava ali. A poucos metros. Braços cruzados, a expressão indecifrável — metade incredulidade, metade dor contida.
O sorriso de Verena morreu devagar, como uma vela engolida pelo vento. O corpo inteiro pareceu enrijecer. Engoliu em seco, o gosto amargo da culpa subindo pela garganta.
Por um instante, ninguém falou. O tempo se suspendeu entre as duas, feito uma ponte frágil prestes a ruir. O som distante do elevador, o bip compassado de algum monitor cardíaco, o murmúrio dos enfermeiros ao fundo — tudo existia, mas parecia longínquo, anestesiado.
Silvia foi quem quebrou o silêncio.
— Quem era? — perguntou, num tom baixo, quase calmo demais.
A calma que antecede o incêndio.
Verena tentou respirar, mas o ar parecia preso.
— A Rafaela.
Silvia riu — uma risada seca, curta, que mais doía do que qualquer grito.
— A Rafaela. — repetiu, saboreando cada sílaba como quem confirma uma sentença. — Desde quando você chama a Rafaela de meu anjo?
A frase cortou o ar. Verena sentiu o corpo inteiro gelar.
— Sil… — começou, mas a esposa ergueu a mão, pedindo silêncio.
Os olhos dela estavam marejados, mas firmes.
— Você tá mesmo mentindo pra mim? Aqui? — a voz tremia, mas não vacilava. — Dentro de um hospital? Vendo tudo o que eu tô passando?
— Eu não tô mentindo — Verena respondeu, a voz rouca. — Você entendeu errado.
— Entendi errado? — Silvia deu um passo à frente. — Eu entendi que a minha mulher, a deputada Verena Castilho, tá trocando palavras doces no telefone enquanto o sogro dela tá numa cama de UTI. É isso que eu entendi.
O peito de Verena subiu e desceu, pesado. Tentou se aproximar, mas Silvia recuou meio passo. O corredor parecia mais estreito, o ar rarefeito.
— Eu não tô… — a voz falhou. — Eu só tava tentando ajudar uma pessoa que não tava bem.
Silvia soltou uma risada amarga, os olhos brilhando de lágrimas contidas.
— Uma pessoa. — repetiu, num sussurro. — Você fala assim… com “pessoas”?
Pessoas que você chama de meu anjo?
Verena fechou os olhos por um segundo, como se isso pudesse apagar o momento. Mas quando abriu, o olhar de Silvia estava lá — firme, ferido, irredutível.
— Eu não sei o que tá acontecendo com você, Verena. Ou talvez eu só não queira enxergar. — disse, enfim, a voz cansada, quebrada em sinceridade. — Mas seja lá o que for, tá te levando pra um lugar onde eu não consigo te acompanhar.
Virou-se, respirou fundo, e caminhou pelo corredor. Os passos firmes, o corpo ainda ereto, mas o rosto… o rosto de quem segurava o mundo por dentro pra não desabar ali mesmo.
Verena ficou parada, o celular ainda na mão, o eco das palavras da esposa martelando na cabeça. Sentiu o estômago revirar, o corpo formigar, o suor frio escorrendo na nuca. Respirou fundo. O som dos passos da mulher se afastando pelo corredor era um soco ritmado no peito. Ela sabia que qualquer palavra agora era pólvora. Mas o silêncio… o silêncio também era.
— Sil… espera. — A voz saiu baixa, quase um pedido. — Por favor.
Silvia parou. Não se virou — ficou ali, de costas, o ombro levemente tenso, como quem ainda lutava contra o impulso de continuar andando.
Verena deu alguns passos, medidos, quase contidos, até ficar próxima o bastante para sentir o cheiro do perfume dela — o mesmo floral discreto que sempre ficava nas roupas, nas mãos, no travesseiro.
— Eu só quero que você me ouça. — disse, mais firme, tentando conter o tremor da própria voz. — Eu não tô traindo você. Eu juro.
Silvia virou-se devagar, o olhar cortante.
— Primeiro era a Rafaela. Agora é uma pessoa. Daqui a pouco vai ser o Papa, Verena. — Ela riu, um riso breve, de pura ironia. — Você não consegue sustentar nem a própria mentira.
Verena abaixou os olhos por um instante, o peso da culpa comprimindo o ar entre as duas.
— São, são coisas da Alesp. Eu só não queria te preocupar.
— Me preocupar? — Silvia cruzou os braços. — Você me faz ouvir você falando “meu anjo” com alguém no telefone, no meio de um hospital e acha que o problema é eu me preocupar?
Ela respirou fundo, tentando conter a voz. A mãe estava no quarto a poucos passos. Verena sentiu o rosto queimar.
— Meu amor… — murmurou. — Eu só… falei de uma forma errada. Eu perdi o conrole da conversa.
Silvia a olhou demoradamente. Havia raiva, sim, mas também uma dor que escorria pelos olhos antes de se disfarçar em frieza.
— Pois é. Ultimamente, você tem perdido o controle com bastante frequência, não é?
A frase caiu entre as duas com um som metálico. Verena respirou fundo, a garganta seca. Queria dizer algo — qualquer coisa que costurasse o estrago, mas não havia mais ponto de retorno.
— Silvia… eu te amo. — foi o que conseguiu.
A esposa riu sem humor, enxugando uma lágrima que teimava em escapar. — Eu também amava a mulher que você era. — respondeu, sem elevar o tom. — Só não sei onde ela foi parar.
E antes que Verena pudesse reagir, Silvia se virou novamente, caminhando na direção do quarto. Dessa vez, não foi atrás. Ficou parada, encostada na parede fria, o corpo trêmulo.
O corredor parecia girar ao redor dela. O som distante de um carrinho metálico passando, o farfalhar de papéis, o murmúrio de um enfermeiro — tudo misturado com o latejar do próprio coração.
Ela apoiou a testa na parede, os olhos fechados. A imagem de Silvia indo embora ainda queimava por dentro — e, ironicamente, era a única coisa que a mantinha de pé.
Hospital Sírio-Libanês – Quarto de acompanhante, 12h30
O corredor estava quase vazio, iluminado por uma luz fria que deixava tudo ainda mais cansado. O som distante de monitores cardíacos e o rangido de um carrinho de limpeza quebravam o silêncio, mas Verena só ouvia o próprio pulso, batendo descompassado.
Do outro lado da porta, Silvia não atendia. Nenhum som. Nenhuma resposta. Foi então que a maçaneta do quarto girou e dona Lúcia apareceu, ajeitando o xale sobre os ombros.
— Oi, minha filha. Vou ali pegar um café — disse, sem encarando a nora com zelo. — Quer alguma coisa?
— Não, obrigada, dona Lúcia.
A sogra assentiu, desviando o olhar e seguiu pelo corredor, com passos lentos.
Verena respirou fundo. Aquela era a brecha. Passou a mão no rosto, tentou ajeitar o cabelo, mas os dedos tremiam. O estômago queimava como se tivesse ingerido ácido. Deu duas batidinhas leves na porta.
— Sil… amor… — a voz saiu rouca, hesitante. — Posso entrar?
Silêncio. Nenhum ruído.
Ela esperou alguns segundos, o suficiente pra sentir a vergonha crescer. Empurrou a porta devagar. A claridade pálida do quarto vazou pelo vão, revelando Silvia sentada na poltrona ao lado da janela, o corpo curvado, as mãos entrelaçadas sobre o colo.
A TV ligada sem som exibia um noticiário qualquer.
Silvia cruzou os braços, cansada.
— Silvia… — a voz de Verena saiu baixa, rouca. — Precisamos conversar.
— Conversar o quê, Verena? O que sobrou pra conversar?
Verena deu um passo à frente, hesitante. — Eu sei que foi horrível o que aconteceu lá fora, mas eu posso explicar.
— Explicar o quê, Verena? — a voz de Silvia saiu firme, mas trincada. — Que você estava no telefone chamando alguém de “meu anjo”? Me colocando um par de chifres, aqui, dentro de um hospital?
— Eu não… — Verena tentou falar, mas a outra ergueu a mão.
— Não mente. Por favor, só dessa vez, não mente pra mim.
O silêncio que seguiu foi cruel. Verena apertou as mãos, o olhar vacilando entre o chão e o rosto da mulher que amava.
— Eu não queria que você tivesse ouvido daquela forma — disse Verena, fechando a porta atrás de si. Silvia não respondeu. Só virou o rosto, fixando o olhar em algum ponto fora do alcance da esposa.
— Eu… — Verena deu um passo à frente, cautelosa. — Era uma conversa de trabalho.
— Trabalho? — a voz dela saiu calma demais, quase fria. — Você sempre fala assim com os seus funcionários?
O silêncio que seguiu pareceu um abismo. Verena sentiu o ar preso no peito, mas manteve o tom controlado:
— Você está distorcendo as coisas.
— Ah, então sou eu quem está distorcendo. — Silvia enfim a olhou. Os olhos marejados, firmes. — O que eu ouvi não foi carinho de chefe, Verena. Eu conheço o seu tom quando se importa com alguém.
Verena tentou se aproximar, mas Silvia levantou a mão, num gesto sutil de contenção.
— Não. Fica onde está.
Ela obedeceu. Pela primeira vez em muito tempo, não sabia o que dizer.
Verena ficou parada, sentindo o peso do silêncio se transformar em algo quase físico. A luz refletia no rosto da esposa, destacando as olheiras e o cansaço acumulado. Por um instante, parecia mais velha — ou apenas esgotada demais para sustentar a compostura habitual.
— Eu só quero que você me escute. — murmurou a deputada, tentando não soar autoritária. — Foi um mal-entendido.
— Mal-entendido? — Silvia deixou escapar um riso seco, incrédulo. — É isso o que você chama?
Levantou-se devagar, o corpo rígido, e foi até a janela. A cidade lá fora parecia tão distante quanto tudo que ainda as ligava.
— Eu fiquei ali parada, Verena… ouvindo você baixar a voz, rindo daquele jeito. E depois, aquele silêncio. Aquela pausa. — Ela fechou os olhos, a respiração acelerando. — Eu não sou idiota.
Verena deu um passo à frente.
— Não é o que você está pensando.
— Então me diz o que é. — cortou Silvia, virando-se de súbito. O olhar dela era um golpe direto. — Me diz, quem era a vagabunda com quem você tava falando?
A palavra caiu como um tapa. Verena recuou um passo, instintivamente.
Silvia nunca falava assim.
Nunca.
— O quê? — ela conseguiu dizer, num sussurro rouco.
— Eu perguntei quem era. — A voz da advogada vacilou, um misto de raiva e desespero. — Quem era a mulher que fazia você falar daquele jeito… do mesmo jeito que você falava comigo quando ainda me amava.
Verena fechou os olhos por um instante. O coração disparado. Queria mentir. Talvez até dizer um nome qualquer. Mas o nó na garganta a impediu.
— Sil… — começou, tentando respirar. — Não é o que você pensa.
— Então me convence — desafiou Silvia. — Porque, sinceramente, eu não sei mais se consigo dormir ao lado de alguém que não reconheço.
O silêncio que veio depois foi longo demais. Verena baixou os ombros, derrotada, e pela primeira vez em muito tempo não encontrou refúgio nem na própria voz. Hesitou. As palavras vinham e morriam na garganta.
— Eu te amo.
Silvia fechou os olhos por um segundo, e quando os abriu, havia algo quebrado ali.
— Você me ama? — sussurrou. — Então para de me destruir.
— Silvia… — Verena deu mais um passo à frente, quase num impulso. — Por favor, não fala assim.
— Assim como? — ela rebateu, sem erguer o tom. — Com raiva? Com medo?
A voz saiu embargada. Silvia respirou fundo, tentando se recompor, mas o ar parecia não caber mais dentro do peito.
— Eu não tô aguentando, Verena. — Ela levou a mão ao rosto, pressionando a testa. — Ver meu pai naquele estado, sem saber se vai sair daqui andando… e você faz isso comigo.
Verena se aproximou mais um pouco, num movimento quase involuntário.
— Eu errei. — A frase saiu trêmula. — Mas não desse jeito.
Silvia ergueu os olhos, úmidos, e deu um passo atrás.
— Então de que jeito foi?
— Eu só… — Verena respirou fundo, buscando fôlego onde não havia. — Eu só me confundi. É uma menina do gabinete, eu só tava tentando cuidar pra ela não…
Parou. Percebeu o que ia dizer. Sentiu a frase morrer antes de nascer.
Silvia piscou devagar, como se cada segundo pesasse uma vida inteira.
— Uma menina. — Repetiu, em tom baixo. — É isso que você tá me dizendo?
Verena tentou tocar-lhe o braço, mas ela recuou mais uma vez, encostando na beira da cama.
— Não me toca. — A voz agora era só um fio. — Eu não quero que você me toque.
Verena manteve a mão suspensa por um instante, sem coragem de recolhê-la.
— Eu não tô com ninguém, Silvia. Eu juro. — A sinceridade saía embriagada de culpa. — Eu só… perdi a noção das coisas, talvez.
— Perdeu a noção — repetiu Silvia, com um riso sem humor. — E eu perdi o chão.
Ela se sentou na beira da cama, cobrindo o rosto com as mãos. A respiração irregular denunciava o esforço que fazia pra não desabar.
Verena se aproximou um pouco mais, ajoelhando-se diante dela, quase sem pensar.
— Me olha, por favor. — A voz saía baixa, quebrada. — Eu tô aqui. Eu não tô fugindo.
Silvia afastou as mãos devagar, os olhos marejados e a boca trêmula.
— Uma menina — murmurou. — Verena, se eu souber que… que você me traiu com uma… uma…
Não conseguiu completar, o pensamento lhe causava uma ânsia forte.
Verena não soube responder. Ficou ali, ajoelhada no chão frio, olhando pra mulher que ainda amava — e que agora, pela primeira vez, olhava pra ela como se não a reconhecesse.
— Eu sei que você não acredita em mim agora… — disse baixo, os olhos presos no chão. — Mas eu não tô com ninguém. Eu só… me perdi no meio de tudo.
Silvia manteve o olhar distante por alguns segundos. Depois, inspirou fundo e soltou o ar devagar, como quem já decidiu o que precisa fazer, mesmo que doa.
— Verena, por favor… — a voz saiu calma, mas firme. — Eu quero ficar sozinha.
— Sil… não faz isso comigo, não agora.
— Agora é justamente o momento, Verena. — Ela se levantou, segurando o lenço que usava no pescoço. — Meu pai tá ali, cheio de fios, e eu tô aqui tentando entender se a mulher que dorme comigo ainda é a mesma que eu amei por todos esses anos.
Verena se ergueu devagar, a garganta ardendo.
— Eu tô aqui, do seu lado.
— Então me respeita. — cortou Silvia, sem elevar o tom. — Me deixa sozinha. Eu preciso respirar.
Por um instante, Verena pensou em insistir. Tinha medo do que o silêncio pudesse fazer se deixasse crescer. Mas o olhar da esposa era um muro intransponível — não de raiva, mas de exaustão.
Ela assentiu, em silêncio. Deu dois passos para trás, alcançou a maçaneta e hesitou um instante antes de abrir a porta.
— Eu volto mais tarde — murmurou.
Silvia não respondeu. Ficou ali, de costas, olhando pela janela, enquanto o reflexo da mulher que amava desaparecia lentamente na superfície do vidro.
Do lado de fora, o corredor seguia no mesmo ritmo moroso de hospital: enfermeiras apressadas, o som abafado de passos, e aquele cheiro misto de álcool e produtos de limpeza.
Verena caminhou sem rumo até o fim do corredor, encostando-se na parede fria. Passou as mãos no rosto, tentando conter a náusea e a culpa.Pela primeira vez em muito tempo, teve a sensação de estar realmente sozinha.
Hospital Sírio-Libanês – Estacionamento Subterrâneo, 12h52
O som das portas automáticas se fechou atrás dela, abafando o burburinho do saguão. O ar do estacionamento era pesado, denso de gasolina e concreto.
Verena caminhava devagar entre os carros, os sapatos batendo surdos no piso encerado. As chaves pendiam da mão, a respiração saía entrecortada — não pelo cansaço, mas por algo mais fundo, que ela ainda se recusava a nomear.
Apertou o botão da chave. O Audi piscou duas vezes. Abriu a porta, entrou, mas não ligou o motor. Ficou ali, imóvel, o rosto voltado pro volante.
O silêncio era ensurdecedor. Tirou os óculos e apoiou na perna. Depois as mãos foram pro rosto, cobrindo os olhos. Respirou fundo, uma, duas vezes. Mas o ar parecia não vir. O corpo tremia inteiro. A imagem de Silvia parada no corredor, os olhos marejados, voltava em looping — o tipo de lembrança que não dá espaço pra nada mais.
Tentou se conter, mordeu o lábio até sentir gosto de sangue. Mas bastou piscar.
Uma lágrima.
Depois outra.
E então o que vinha represado há meses finalmente rompeu.
Chorou em silêncio no começo, com a respiração curta, o corpo curvado para frente. Mas quando o primeiro soluço escapou, tudo ruiu. Os ombros começaram a sacudir, a garganta queimava, e o som que saiu dela não era bonito, nem digno — mas era humano.
Um gemido rouco, de quem enfim reconhece o próprio erro e não sabe como voltar.
Tentou ligar o carro. Falhou na primeira tentativa — a mão tremia demais. Na segunda, o motor respondeu, o painel iluminou-se, mas ela não saiu do lugar.
Olhou o retrovisor. O próprio rosto devolveu o que restava: olhos vermelhos, boca trêmula. “Olha pra você”, pensou, sem voz. “Deputada, esposa exemplar, e agora… isso.”
Abaixou a cabeça, as lágrimas caindo sem resistência. O volante frio sob a testa. O som abafado do choro preenchendo o espaço que antes era só controle e vaidade.
Quando conseguiu erguer o rosto, respirou fundo e passou as mãos pelos cabelos. Tentou recobrar o ar, mas o vazio parecia maior do que o pulmão. Ligou o limpador do para-brisa — um reflexo inútil, já que o vidro estava seco. E então riu, um riso breve, sem alegria.
No banco ao lado, o celular vibrou. Por um segundo, o coração disparou — o reflexo automático de quem espera ouvir um nome específico. Mas era só uma notificação qualquer.
Nem Silvia, nem Valentina.
Ninguém.
Verena deixou o aparelho cair no banco e encostou a cabeça no apoio. Fechou os olhos. O barulho distante da cidade subia pela rampa do estacionamento, um zumbido constante de motores e buzinas. E, no meio dele, o som baixo da respiração dela — trêmula, desordenada, viva.
Pela primeira vez em muito tempo, Verena Castilho chorava sem plateia, sem discurso, sem controle. Só ela, o volante e a culpa, respirando o mesmo ar.
Hospital Sírio-Libanês – Quarto 449, 12h55
Silvia esperou a porta fechar por completo antes de deixar o corpo ceder. Sentou-se devagar na cama, o lenço ainda nas mãos, e quando ouviu o clique suave da fechadura, a tensão desabou.
As lágrimas vieram sem aviso. Não eram choros altos nem soluços desesperados — era o choro contido de quem já segurou demais. O tipo que começa nos olhos e termina no peito, onde tudo dói.
Tentou conter o som, respirando fundo, mas o ar vinha em soluços curtos. O rosto da esposa ainda estava ali, impresso na memória: os olhos suplicando, a voz trêmula, a hesitação culpada.
“Uma menina do gabinete.”
As palavras ecoavam como um espinho.
Silvia se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. As lágrimas escorriam entre os dedos. Por um instante, pensou em gritar. Depois, apenas ficou ali, em silêncio, sentindo o coração pulsar como um tambor surdo.
A maçaneta girou.
Ela se recompôs num reflexo. Passou as mãos pelo rosto, engoliu o choro, ajeitou o lenço no pescoço.
A mãe entrou com dois copinhos de café nas mãos.
— Trouxe pra você também, filha. — Ela sorriu levemente, até notar os olhos vermelhos da filha. — O que foi, meu Deus? Aconteceu alguma coisa com o seu pai?
Silvia virou o rosto, disfarçando
— Não, mãe. Tá tudo bem. — A voz saiu baixa, um pouco rouca. — É só tensão acumulada, é só isso.
— Você tá chorando. — A mãe se aproximou devagar, pousando o café na mesinha. — O que aconteceu, meu amor?
Silvia tentou manter o controle. Ficou alguns segundos em silêncio, encarando o café fumegante na mesa, mas o peso da presença da mãe tão perto parecia desmontar o pouco que ainda segurava.
Dona Lúcia se aproximou, e sem dizer nada, tomou a filha em um abraço terno e maternal.
— Vem cá, filha. — A voz saiu baixa, doce.
Silvia hesitou, os olhos marejando de novo, até que o toque da mãe bastou. Se deixou levar, encostando o rosto no ombro dela. O cheiro familiar — sabonete simples e tecido limpo — abriu uma represa inteira.
O choro veio com força, sem aviso. Soluços curtos, fundos, daqueles que o corpo tenta conter, mas não consegue. Lúcia a envolveu com os braços, apertando sem entender, apenas reagindo ao instinto mais antigo do mundo.
— Ei, calma… calma, minha filha. — Sussurrava, acariciando-lhe o cabelo. — Tá tudo bem, vai passar.
Mas Silvia não conseguia responder. Só chorava, o som abafado contra o ombro da mãe, os dedos se agarrando à blusa como se o tecido pudesse segurá-la no lugar.
A mãe, sem saber o que fazer, ficou um tempo em silêncio, sentindo a respiração da filha entrecortada.
— O que aconteceu, meu amor? — murmurou, mais para si. — Antes de eu sair, tava tudo bem…
Silvia levantou o rosto por um instante, as lágrimas misturadas ao rímel, o olhar perdido. Tentou dizer algo, mas só conseguiu um som rouco.
— É a Verena? — perguntou a mãe, num tom cuidadoso, quase adivinhando.
Silvia apertou os lábios, incapaz de responder. O silêncio bastou.
Lúcia a olhou por um instante mais longo, e a expressão de espanto se transformou em uma mistura de dor e ternura.
— Vocês brigaram?
Silvia assentiu devagar, entre soluços.
— Eu nem sei direito o que aconteceu, mãe… — murmurou, a voz embargada. — Foi tudo tão rápido.
Lúcia afagou-lhe o cabelo, mantendo-a entre os braços.
— Todo casal passa por altos e baixos, minha filha. — Tentou soar segura, mesmo sem entender o tamanho daquilo. — Mas vocês se amam. Isso dá pra ver de longe.
Silvia não respondeu. Fechou os olhos e chorou em silêncio, como quem sabe que o amor às vezes não é suficiente.
Até que o pranto foi se acalmando aos poucos, mas ainda vinha em ondas pequenas, curtas, que ela disfarçava com respirações longas. A mãe permanecia ali, sentada ao lado da filha, passando a mão por seus cabelos como fazia quando ela era menina — o mesmo gesto lento, compassado, que parecia dizer “tô aqui”.
— Quer que eu vá buscar uma água? — perguntou, num tom suave. Silvia balançou a cabeça.
— Não, mãe. Tô melhor.
A mulher a observou com atenção, os olhos miúdos e ternos.
— Vocês brigaram feio assim?
Silvia respirou fundo, mirando o chão. — Foi só um desentendimento. Coisa boba.
— Boba não foi, pelo jeito. — A mãe tentou sorrir, mas o olhar denunciava a preocupação. — Te conheço, Silvia.
Silvia apertou o lenço nas mãos, desviando o olhar.
— Só estamos cansadas, mãe. É muita coisa acontecendo. O trabalho, o pai doente, os problemas do gabinete dela…
— E você sozinha, segurando tudo. — Dona Lúcia completou com doçura. — Às vezes é isso que pesa mais.
Silvia assentiu, em silêncio. O sol entrava em feixes tímidos pela cortina, iluminando o perfil delicado da mãe — e por um instante, ela quis poder acreditar na simplicidade daquela explicação.
— Vocês vão se acertar, filha — disse a mais velha, com a serenidade de quem acredita no que diz. — Sempre se acertaram.
— Eu espero que sim. — A voz de Silvia quase sumiu. — Mas tem coisas que… são mais complicadas.
A mãe suspirou.
— Então deixa o tempo trabalhar. O tempo sempre arruma o que a gente não consegue.
Silvia sorriu com tristeza, aquele sorriso educado de quem agradece por um consolo que não sabe se merece.
— Eu sei, mãe. Obrigada.
Lúcia apertou-lhe a mão. — Se quiser conversar, eu tô aqui. Mas se quiser só ficar quieta, também tô.
Silvia soltou um riso leve, rouco.
— Então fica quietinha comigo um pouquinho.
As duas ficaram ali, lado a lado, olhando para a janela, o céu azul e sem nuvens. Lá embaixo, a cidade seguia, indiferente, enquanto Silvia tentava costurar o silêncio dentro de um coração rasgado.
Hospital Sírio-Libanês – Estacionamento Subterrâneo, 13h20
O calor da tarde filtrava-se pelo concreto, abafado, misturado ao cheiro de combustível e de asfalto quente. O carro de Verena continuava parado, entre dois sedãs, o motor ainda ligado, o ar-condicionado lançando uma brisa fria sobre o rosto dela — um rosto exausto, ainda tenso, como se o corpo inteiro resistisse à ideia de respirar.
Ela mantinha as mãos no volante, os dedos imóveis, o olhar perdido no reflexo do espelho retrovisor. A própria imagem a incomodava: os cabelos ligeiramente fora de lugar, o colarinho amassado. Uma mulher de controle absoluto, agora reduzida ao silêncio de quem não sabe por onde começar a recompor os cacos.
Por alguns minutos, pensou em subir de novo. Pedir desculpas de outra forma. Dizer algo mais verdadeiro — embora já nem soubesse o que isso significava. Mas o medo de um novo olhar de Silvia, vazio e frio, a prendeu ali.
O celular vibrou no console. Um som breve, suave. Desviou o olhar, hesitante, até a tela.
Era ela. Uma mensagem dela. Valentina.
O coração falhou um compasso. Ela demorou um instante antes de abrir.
“Tô melhor.
Obrigada por se preocupar comigo.”
Simples. Quase banal. Mas as palavras tinham um peso que nenhuma explicação racional comportava.
Verena encostou a cabeça no encosto do banco e fechou os olhos. Sentiu algo quente subir pela garganta — não exatamente culpa, nem ternura, mas uma mistura impossível dos dois. Lá fora, um carro buzinou. O som ecoou pelo estacionamento e se dissipou, como se o mundo continuasse indiferente à colisão íntima que se formava dentro dela.
Silvia, o hospital, o sogro doente, o casamento ruindo. E agora aquelas duas linhas na tela — suaves, inocentes, mas capazes de perfurar tudo o que restava de lucidez.
Verena respirou fundo, os olhos marejados, sem lágrimas. Apagou a tela, largou o celular no banco do passageiro e ficou ali, imóvel, escutando o som distante da cidade Era o tipo de silêncio que não pedia resposta, apenas a coragem de permanecer.
Casa da Família Moraes – Quarto da Valentina, 14h21
O quarto estava mergulhado num meio-tom de fim de tarde: a luz amarelada atravessava a cortina fina, riscando o piso com faixas de poeira suspensa.
Valentina sentava na beira da cama, o celular nas mãos, o olhar fixo na tela acesa.
A conversa com Verena ainda aberta.
Leu a própria mensagem mais uma vez. Simples. Inofensiva. Mas agora parecia boba, infantil, humilhante. A mensagem estava ali, intacta, sem resposta — como uma porta aberta para alguém que não volta. Pensou em apagar. Pensou em mandar outra. Pensou em tudo, menos em aceitar o silêncio.
E o silêncio da casa aumentava tudo. Isadora ainda estava na escola. O rádio da vizinha tocava baixo um samba antigo, e o barulho de panela vinha da cozinha. Fora isso, nada.
Deixou o celular cair no colo. A cabeça encostou na parede. Os olhos se fecharam, mas bastou o escuro para que o rosto de Verena surgisse de novo — nítido, próximo demais.
A voz baixa.
Os toques no rosto.
O beijo.
Abriu os olhos rápido, como se tivesse sido pega em flagrante. O coração batia descompassado, o corpo inteiro quente e frio ao mesmo tempo. Passou as mãos pelos cabelos, tentando afastar o pensamento, mas ele voltava em ondas: a boca, o perfume, o olhar.
E junto com isso, veio outro pensamento — o que doía.
A cabeça girava. A imagem vinha automática: Verena em casa, com a esposa — uma mulher linda, adulta, sofisticada — talvez preparando café, talvez abraçando, talvez rindo.
Talvez… beijando.
E o pensamento a atravessou como uma faca.
O coração apertou de um jeito quase físico. A ponta dos dedos formigou. A raiva veio junto com o ciúme, e o ciúme com a vergonha.
“Você é uma idiota”, pensou, com os olhos marejando. “Ela tem uma vida, uma mulher, uma casa. E você tá aqui, esperando uma mensagem.”
Mas o pensamento não bastava. Porque, no fundo, havia uma parte dela que ainda esperava — teimava em acreditar que o celular voltaria a vibrar, que a voz de Verena atravessaria o silêncio de novo, dizendo qualquer coisa.
Qualquer coisa.
A imagem era uma tortura. Um nó se formou na garganta. Quis jogar o celular longe, mas só conseguiu apertá-lo com mais força nas mãos. A tela reacendeu. A foto de Verena no perfil: o blazer claro, o sorriso político, o olhar firme. Era quase uma ironia.
Valentina sentiu o estômago afundar. Deixou o corpo escorregar devagar sobre o colchão, até deitar. Ficou de lado, olhando pro nada. O sol começava a virar a direção, tingindo o quarto de um laranja triste.
As lágrimas vieram sem som. Não era um choro de desespero — era um choro cansado, resignado, de quem percebe que não sabe mais voltar pro que era antes. O lençol embolado entre os dedos, o peito apertado.
Por mais que tentasse se convencer do contrário, tudo dentro dela gritava o mesmo nome.
Verena.
E, a sensação era uma só: que estava apaixonada por alguém que não podia — e que, pior ainda, não queria mais tentar resistir.
Centro de São Paulo — Bar do Gil — 14h59
O bar era um quadrado escuro encravado entre duas fachadas decrépitas, com uma porta de metal meio empenada e um cheiro persistente de fritura velha. Uma televisão antiga pendurada no canto exibia um jogo qualquer, sem som. No balcão, copos grossos, riscados de tempo, e um frasco de cachaça sem rótulo. O tipo de lugar em que ninguém pergunta nome, profissão ou motivo — o paraíso dos que só querem desaparecer um pouco.
Verena estava no quinto copo. A gola aberta, a camisa amassada, a expressão de quem não sabia mais se queria esquecer ou lembrar. O barman a observava com aquela neutralidade treinada de quem já viu de tudo — e talvez por isso mesmo, não se impressionava com a deputada estadual sentada ali, sozinha, bebendo uma aguardente de procedência duvidosa, o gosto, sugerindo um parentesco próximo com álcool combustível, num bar que nem wi-fi tinha.
— Mais uma doutora? — perguntou o homem, limpando um copo. Verena fez que sim, com um gesto curto.
— Mas coloca pouca. — Fez uma pausa e ergueu o copo, séria. — Preciso continuar lúcida o suficiente pra me arrepender amanhã.
O homem sorriu de canto, serviu até a metade e se afastou.
Verena girou o copo entre os dedos, olhando o líquido translúcido à luz amarelada da lâmpada.
— Que fase, Castilho — murmurou pra si, a voz rouca, arrastada. — Briga com a esposa no hospital do sogro e termina num bar que cheira a graxa. Parabéns.
Bebeu num único gole. Fez careta.
— É… definitivamente artesanal. Deve ter sido feita num tanque de lavar roupa. — E riu sozinha, o riso escapando alto, sincero, meio desastrado.
Pegou o celular. Abriu o aplicativo de mensagens. O nome Valentina Moraes brilhava na tela, e o coração bateu num compasso torto.
Verena recostou-se no banco, apoiando o cotovelo no balcão.
— Olha só quem tá aqui — disse, num tom de descoberta. — A ruína da minha reputação.
Encostou o queixo na mão, pensativa.
— Acho que eu devia levar um presente, né? Ninguém chega assim do nada de mãos vazias. — Fez um gesto vago pro ar. — Mas o quê? Chocolate? Será que ela gosta de chocolate?
Silêncio.
— Ah, imbecil, ela é uma menina, claro que gosta de chocolate! — e riu de novo, balançando a cabeça. — E você? Você gosta de cadeia? Porque é pra lá que você vai com essa ideia.
Não percebeu quando o corpo fora enchido, apenas agradeceu por ver mais do líquido transparente ali. Deu mais um gole, rindo sozinha, a risada saindo meio torta, meio triste.
— Olha o nível, Verena… — balançou a cabeça. — Uma mulher da minha idade, deputada, discutindo com o próprio fígado sobre presente pra uma adolescente.
O barman lançou um olhar curioso. Ela percebeu e ergueu o copo pra ele num brinde solene e irônico.
— Saúde, Gil. — Não sabia se esse era o nome dele, mas parecia combinar.
O celular vibrou. Um reflexo a fez olhar. Nada dela. Apenas uma notificação qualquer. Suspirou. Depois ficou um tempo quieta, olhando o líquido que restava no fundo do copo, como se esperasse uma resposta filosófica dele.
— Mas eu vou. — Disse, convencida, batendo o copo no balcão. — Vou, sim. Porque o problema da vida é esse: a gente pensa demais.
Simples assim.
De repente, parecia óbvio — o álcool, a culpa, o impulso. Tudo conspirava para que aquela ideia absurda parecesse sensata. Pegou o celular, a bolsa, deixou uma nota amassada no balcão e levantou com certa solenidade, como quem acaba de aprovar uma lei.
— Gil, se eu não voltar, é porque deu certo.
E saiu, tropeçando levemente no batente da porta, rindo sozinha.
— Ai, Castilho… você é um gênio. Um gênio trágico. Mas gênio.
Do lado de fora, o céu de São Paulo começava a desbotar. A deputada sumiu no beco, com cheiro de cachaça, coragem líquida e uma ideia péssima a caminho.
Marginal Tietê — Sentido Ipiranga — 15h30
O trânsito rastejava como um animal cansado. As luzes vermelhas dos freios formavam uma linha contínua até perder de vista, e dentro de um sedã preto, Verena Castilho tentava, com toda a dignidade possível, parecer sóbria.
O rádio estava desligado. O Waze, aberto, repetia com paciência robótica:
“Vire à direita em trezentos metros.”
Verena apertou os olhos, tentando focar na tela.
— Três… trezentos metros pra onde, imbecil? — murmurou, encostando o queixo no volante. — Eu tô na Marginal, não tem direita aqui, só o inferno.
O carro à frente buzinou. Ela respondeu com um gesto impaciente, sem convicção.
— Ah, sim, buzina mesmo, idiota do caralh**, isso resolve tudo. O trânsito se emociona e anda.
Suspirou, recostando-se no banco.
— Castilho, você perdeu completamente a noção — disse a si mesma, em tom grave, como se estivesse no plenário. — Isso é o que dá misturar ética pública com cachaça de procedência duvidosa.
Pegou o celular do suporte e clicou no microfone.
— Ok, Google… — falou, arrastando as palavras. — Onde consigo comprar chocolate bom, romântico, urgente, perto do Ipiranga?
O assistente respondeu com uma calma quase zen:
“Aqui estão alguns resultados próximos: Cacau Show, Kopenhagen, Padaria do Juca.”
— Padaria do Juca… — repetiu, pensativa. — Romântico. O nome já inspira confiança.
Fez uma curva meio brusca, o Waze recalculou a rota com resignação.
“Recalculando…”
— É, recalcula mesmo, porque a minha vida já recalculou faz tempo.
Deu uma risada sozinha, alta, sincera.
— Eu devia estar num bar em Brasília discutindo pauta orçamentária e tô aqui… comprando chocolate pra menor de idade. — Fez uma pausa, piscando. — Parabéns, deputada! Que ótimo título pra minha biografia.
O celular vibrou com uma notificação qualquer. Verena ignorou.Estava concentrada demais na própria tragédia para lidar com alertas de bateria.
— Porr* Castilho, sua idiota, você vai se arrepender disso por uns trinta anos — murmurou, séria, e em seguida completou, num tom filosófico: — Mas o que são trinta anos diante de um minuto de ilusão bem vivido?
A frase pareceu genial.
— Nossa… isso foi bom. Preciso anotar essa merd*, pra usar depois num discurso.
Virou a próxima esquina, errada, obviamente, e o Waze se irritou:
“Faça o retorno quando possível.”
— Você também, filho da pu**— respondeu. — Faça o seu.
Riu sozinha, batendo levemente no volante, um riso meio infantil, meio desesperado. O carro seguiu entre as ruas estreitas do Ipiranga, as luzes das padarias acesas, o fim de tarde se dissolvendo em azul.
— Chocolate… — murmurou, decidida. — É isso. Ela vai me odiar, mas vai odiar com açúcar.
E acelerou, como se a convicção fosse o último resquício de sobriedade que ainda lhe restava.
Padaria do Juca — Ipiranga — 15h50
O sino da porta tocou com um trin abafado. O ar cheirava a pão quente e desespero. Atrás do balcão, um rapaz de avental e expressão entediada olhou para a mulher de camisa amarrotada e cabelo um pouco desgrenhado que acabava de entrar — ela exalava poder, perfume caro e álcool em proporções indefiníveis.
Verena endireitou os ombros, tentando disfarçar o leve desequilíbrio ao dar o primeiro passo.
— Boa tarde. — A voz saiu quase normal, só um pouco arrastada. — Vocês vendem chocolate?
O rapaz assentiu. — Temos barra, bombom, trufa…
— Certo. — Ela apoiou o celular no balcão com a solenidade de quem assina uma PEC. — Preciso de um chocolate… especial.
— Especial como? — perguntou o atendente, meio curioso.
Verena pensou por dois segundos.
— Tipo… um chocolate que diga desculpa por ser uma completa idiota, mas ainda assim pensei em você.
O rapaz piscou, confuso. — Ahn… tem Sonho de Valsa?
Ela encarou a prateleira, como se o destino tivesse falado por ele.
— Sonho de Valsa. É quase poético. — Pegou um pacote. — Dois. Não. Três.
Depois olhou pro atendente e completou:
— Isso combina com arrependimento, né?
— Acho que… sim? — respondeu ele, sem saber se devia rir.
Verena abriu um sorriso satisfeito. — Ótimo. Vou confiar em você, Juca.
— Eu me chamo Rodrigo.
— Claro que se chama. — Ela pegou o pacote, impassível. — Mas pra mim, hoje, você é o Juca.
O rapaz assentiu, com aquele olhar de quem já entendeu que é melhor não discutir com bêbados bem-vestidos.
Enquanto passava os chocolates no caixa, Verena tamborilava os dedos no balcão, pensando alto:
— Será que eu devia levar um cartão também? Um bilhete? — fez uma careta. — Não, melhor não. Cartão é coisa de covarde. Chocolate é mais honesto.
Rodrigo entregou a sacolinha e estendeu a maquininha.
Verena, num gesto firme, abriu a carteira e tirou uma nota de cinquenta… e outra de dez reais, amassada.
— Aqui. — entregou com solenidade. — Fica o troco pra reforma moral do estabelecimento.
Rodrigo arregalou os olhos. — Senhora, tá pagando a mais… O chocolate é só…
— Eu sei. — Ela ergueu o dedo. — É pra garantir que esse chocolate seja inesquecível.
Sem saber como discutir com alguém que claramente não está em seu estado normal de consciência, o rapaz apenas assentiu. No fundo, feliz pela bela gorjeta.
— Quer nota fiscal?
Verena ergueu o olhar, séria. — Se eu quiser, você acha que existe código pra “autodestruição”?
O rapaz piscou. — Acho que não.
— Então deixa sem.
Ela pagou, pegou a sacolinha e deu um passo em falso antes de se recompor, ajeitando os óculos com uma elegância quase teatral.
— Obrigada, Juca. Você foi… fundamental na ruína de uma parlamentar.
— Disponha. — disse o rapaz, ainda sem saber se aquilo era piada.
Verena saiu, o trin da porta soando novamente. Lá fora, o ar da tarde estava mais frio, o céu já escurecendo sobre os postes. Ela olhou pra sacolinha e murmurou, satisfeita:
— Pronto. Missão cumprida. Chocolate comprado, dignidade perdida. Agora é só cometer o erro completo.
E seguiu pela calçada, tropeçando de leve, com o sorriso descompassado de quem acabou de convencer a própria consciência a se calar por um dia.
Rua Visconde de Pirajá — Ipiranga — 16h00
O carro deslizou lentamente pela rua residencial, estreita, ladeada por casas antigas e muros descascados. O céu começava a mudar de cor, o azul lavando-se em tons de laranja e cinza.
Verena estacionou a uma distância prudente — ou o que, em seu estado, ela considerava prudente. Desligou o motor e ficou um instante imóvel, com as mãos no volante, olhando o portão verde da casa à frente. O coração batia num ritmo que parecia beber junto com ela.
— Pronto… — murmurou, ajeitando o cabelo pelo reflexo do retrovisor. — Agora é só agir com naturalidade. Naturalidade Verena.
Apoiou o queixo na mão, observando o portão.
— E se ela estiver com os pais? — pensou em voz alta. — Melhor, aí eu já confesso tudo e eles me matam. Problema resolvido.
Riu sozinha, baixinho. Pegou o pacote de Sonhos de Valsa no banco do passageiro, levantou-o como um troféu.
— Olha só, Castilho… uma mulher feita, com um diploma pendurado e um pacote de bombom no colo. Isso é o quê? Amor, insanidade ou marketing de desastre?
Abriu o pacote — ou tentou. O plástico resistiu heroicamente. Verena, impaciente, mordeu a borda.
— Abre, caralh*, é pro bem da diplomacia. — E quando o pacote finalmente cedeu, um bombom voou direto pro assoalho. — Ah, ótimo, um desertor.
Ela se abaixou, pegou o bombom, limpou na calça e soltou um riso breve.
— Pronto. Agora sim. Tudo sob controle.
O celular vibrou no painel. Ela o pegou, apertando os olhos para focar. Abriu a conversa com o nome Valentina Moraes. Ficou olhando o número por um instante, depois levou o aparelho ao ouvido.
— Vamos lá, Castilho. Comunicação direta. Nada de mensagem.
O telefone chamou uma, duas, três vezes. Quando a ligação atendeu, Verena sorriu largo, como se a própria confusão fosse encantadora.
— Alô… Valentina… — disse, arrastando as palavras, mas com uma doçura que não combinava com a voz embriagada. — Eu… tô passando aqui perto da sua casa.
Fez uma pausa curta, olhando o portão fixamente, como se falasse com ele. — E eu… tenho uma surpresa pra você. — Levantou o pacote de bombons com orgulho. — Um presente.
Enquanto falava, tentava abrir outro bombom com os dentes, o celular equilibrado entre o ombro e a bochecha.
— Porque você é… especial. — Um estalo da embalagem ecoou, seguido de um leve gemido de esforço. — E, sinceramente, eu achei que você merecia um gesto bonito… sabe? Diplomático.
Ela mordeu o doce de uma vez e falou de boca cheia. O papel do bombom caiu no colo. Verena limpou o canto da boca, ainda equilibrando o aparelho.
— Desce um minutinho? Eu tô no carro, aqui na esquina. — Sorriu para o retrovisor, tentando parecer convincente até pra si mesma. — Juro que é rápido. Só quero te entregar e… pronto.
Mas do outro lado da linha, só o som de respiração. Verena esperou, o olhar preso no portão.
— Alô? Valentina?
O silêncio do outro lado foi mais sóbrio que qualquer sermão.
Verena encostou a cabeça no banco, os olhos semicerrados, o sorriso murchando devagar.
— Tá… — murmurou, baixinho. — Foi só a primeira tentativa Verena.
Ficou ali, o papel amassado entre os dedos. Lá fora, o céu já começava a escurecer — e a rua, silenciosa, parecia observá-la com o mesmo constrangimento que o mundo reserva aos que amam errado.
Casa da Família Moraes — Quarto da Valentina — 16h00
O som do celular vibrou sobre a colcha florida. Valentina olhou sem acreditar. O nome Verena Castilho aceso na tela — e o coração dela parou. Por um instante, o mundo pareceu em suspenso: o rádio da vizinha, o ruído da torneira na cozinha, até o canto do passarinho lá fora sumiu.
Atendeu num reflexo, a voz saindo trêmula:
— Alô?
A primeira coisa que ouviu foi aquele timbre. A voz rouca, arrastada, doce demais.
“Alô… Valentina… eu… tô passando aqui perto da sua casa.”
Valentina endireitou o corpo num sobressalto, sentada na beira da cama, os dedos apertando o celular. O rosto inteiro esquentou.
— Perto da minha casa? — sussurrou pra si mesma, o coração descompassado.
“E eu… tenho uma surpresa pra você.”
A frase veio atravessando o ar, meio risonha, meio confusa. O sorriso de Verena soava bêbado e lindo — uma mistura que dava medo e vontade ao mesmo tempo.
— Ela tá aqui — murmurou, em choque. — Ela tá aqui.
Pulou da cama, o corpo inteiro em alerta. Procurou os chinelos, calçando o pé errado, depois trocando às pressas. A mente fervia: o que dizer, o que fazer, como respirar.
Foi até a porta do quarto e parou, tensa. Do quintal, o barulho de roupa sendo torcida. A voz da mãe, distraída, cantando baixinho Valentina pensou rápido. Olhou o relógio pendurado na parede — 16h06. O horário perfeito.
Correu até o tanque, tentando disfarçar a agitação na voz:
— Mãe! — gritou, alto o suficiente para cobrir o barulho da torneira. — Eu vou buscar a Isa, tá?
Ana Paula levantou o rosto, enxugando as mãos na barra da blusa desbotada.
— Agora, filha? Falta um pouquinho ainda.
— É que… eu quero ir devagar. Deu vontade de ficar esperando lá. — A mentira saiu tropeçada, mas convincente o bastante pra uma mãe distraída.
— Ah… tá bom. Leva o guarda-chuva, que o tempo tá virando.
— Tá! — respondeu já no corredor, o coração batendo descompassado.
Pegou o celular e o enfiou no bolso da calça, sem nem desligar a ligação direito — o som do clique foi seco, e o silêncio se instalou. Correu até o portão, sentindo o chão frio sob os pés nos chinelos finos pelo uso, o peito subindo e descendo rápido.
Lá fora, o vento de fim de tarde trouxe um cheiro forte de fumaça de um caminhão barulhento que havia acabado de passar. Valentina olhou para a esquina mais abaixo e viu o carro parado — preto, discreto, faróis baixos. O coração, já descompassado, esqueceu completamente o compasso.
Rua Visconde de Pirajá — Ipiranga — 16h06
Verena ainda estava ali, no banco do motorista, tentando decidir se engolia o último pedaço de chocolate ou a própria vergonha, quando a grade verde começou a se mover.
O portão se abriu devagar — e ela viu.
Primeiro, os dedos finos empurrando o ferro. Depois, o corpo franzino saindo à luz pálida do dia. O cabelo solto, claro, um pouco despenteado, o celular na mão, os chinelos calçando os pés delicados. A rua inteira pareceu parar.
— Porr*… — escapou, quase sem voz.
O chocolate derreteu entre os dedos, esquecido. Ela piscou uma vez, duas, tentando se convencer de que aquela imagem era real.
Valentina fechou o portão atrás de si, distraída, e começou a caminhar. O sol da tarde se filtrava pelas casas, desenhando reflexos dourados na pele dela. Verena sentiu o ar encurtar. O coração acelerou num ritmo imprudente.
“Como pode ser tão linda?”
A pergunta veio como um sussurro, sem dono.
“Por que diabos você tem que ser tão linda, menina?”
A cada passo, Valentina parecia se aproximar em câmera lenta — uma aparição, uma imprudência. Aquela mesma voz tímida no telefone, agora viva, ali, andando na direção dela, e nada fazia sentido.
Verena se endireitou no banco, o corpo inteiro tenso, tentando disfarçar o torpor. Mas os olhos não conseguiam se mover. Estavam presos nela — na curva do rosto, no brilho dos olhos, na inocência perigosa do gesto de prender uma mecha atrás da orelha.
O coração batia forte demais, rápido demais. Ela engoliu em seco.
— Que merd* é essa, Verena — murmurou, a respiração irregular.
Mas olhou de novo. E perdeu o fôlego pela segunda vez.
Valentina atravessou a rua, devagar, hesitante, os olhos baixos, como se também soubesse que havia algo naquele instante que não devia acontecer — e mesmo assim acontecia. Um arrepio correu pela espinha de Verena.
Um bombom escorregou da mão e caiu no tapete do carro, esquecido entre os cacos invisíveis de tudo o que ainda restava de juízo.
Rua Visconde de Pirajá — Ipiranga — 16h06
Valentina saiu do portão devagar, com o coração disparado. O ar da rua era mais frio do que imaginara, e o vento levantava mechas soltas do cabelo. Olhou para os dois lados, como quem teme o flagrante de uma vizinha curiosa ou o som da voz da mãe chamando seu nome. Nenhum movimento. Só o farol do carro preto aceso, discreto, e a silhueta de Verena no banco do motorista.
Deu alguns passos hesitantes. Cada um parecia mais alto do que devia. A poucos metros, o clique sutil da trava do carro que se destravava, como um convite mudo.
Valentina segurou o celular com força, engoliu seco e abriu a porta do carona. O cheiro quente de perfume e álcool veio de imediato. No banco, um pacote aberto de Sonhos de Valsa derramava bombons sobre o couro creme.
Verena virou o rosto e sorriu — um sorriso aberto, bonito, descompassado. O cabelo, antes sempre perfeito, caía rebelde sobre a testa, a camisa social amassada, um botão fora do lugar; os olhos brilhando demais.
— Cuidado… — murmurou, rindo. — Não senta em cima do presente.
Valentina olhou os bombons espalhados, sem saber se ria ou se pedia desculpa.
— Desculpa — disse baixinho, ajeitando o pacote com cuidado antes de sentar.
— Imagina — respondeu Verena, a voz arrastada, melodiosa. — São pra você mesmo. — E riu outra vez, um riso leve, tonto.
Valentina prendeu o cabelo atrás da orelha, olhando de canto. A Verena à sua frente parecia outra — o mesmo rosto, mas com um brilho novo, perigoso, que misturava ternura e descontrole.
Ela percebeu o olhar da mulher sobre si e desviou rápido, apertando o celular no colo. O coração batia tão forte que parecia vibrar no ar. Do lado de fora, o som de uma moto passando a fez sobressaltar.
Verena apoiou o braço na janela, os dedos batendo de leve no volante. — Calma, ninguém tá olhando — disse com aquele tom baixo que era quase um sussurro. — Eu só queria te ver. Só isso.
Valentina respirou fundo, os olhos fixos no para-brisa.
A voz dela saiu tímida, trêmula.
— A senhora… tá bem?
Verena deu uma risada curta, meio rouca.
— “Senhora” é ótimo. — Passou a mão pelo cabelo, fingindo arrumar, mas só bagunçando mais. — Eu tô… tô bem sim.
Valentina esboçou um sorriso pequeno, nervoso. O cheiro de chocolate agora ganhava força e o silêncio que se seguiu pareceu mais íntimo do que qualquer palavra.
Verena se virou devagar, apoiando o braço por trás do encosto do banco da jovem. O gesto não era ameaça — era descuido. O tipo de movimento de quem esqueceu que o próprio corpo fala mais do que devia.
— Você não devia me ver assim — murmurou, o olhar baixo, a voz levemente rouca. — Eu sou um desastre quando deixo cair o verniz.
Valentina sentiu o corpo travar. O cheiro de perfume e álcool era forte, mas havia algo doce ali, familiar.
Ela tentou sorrir, mas só conseguiu um murmúrio:
— A senhora... não devia estar dirigindo.
Verena riu baixinho, encostando a cabeça no banco.
— Não devia estar aqui, ponto. — Voltou o rosto na direção dela, os olhos fundos, luminosos. — Mas tem horas que o “não devia” perde a força, sabe?
A proximidade era quase palpável. Valentina prendeu a respiração, sem saber onde pôr as mãos. A deputada falava num tom baixo, desarmado, cada palavra soando verdadeira demais.
— Eu tentei te esquecer. — Um meio sorriso, torto, cansado. — Fiz discursos mentais inteiros sobre foco, carreira, ética… e no meio de tudo, era a sua voz que eu lembrava.
Valentina o olhou, assustada e tocada ao mesmo tempo. As pupilas dilatadas, o coração batendo alto demais. Verena abaixou um pouco o tom, como quem confessa um segredo pra si mesma:
— E o pior é que você nem fez nada. Só existiu. E isso foi suficiente pra me desmoronar.
O silêncio entre elas se estendeu. Valentina virou o rosto, tentando respirar, o coração descompassado.
— Você tem ideia do que faz comigo? — perguntou de repente, a voz rouca, arrastada.
Valentina piscou, surpresa.
— Eu… não.
Verena riu, um riso baixo, bonito, sem pressa.
— Claro que não. — inclinou um pouco o corpo, os olhos fixos nela. — É esse o problema. Você chega com esse jeito calmo, me olha como quem não quer nada… e pronto. Eu esqueço o resto.
A fala saiu suave, sincera demais. O sorriso não era o habitual, que aprendera a dar mesmo nos piores momentos, era outro — torto, cansado e perigoso.
Valentina apertou as mãos no colo, tentando se convencer de que o coração não estava batendo tão forte quanto parecia. A sensação era a de estar sentada perto de uma fogueira — o calor confortava e queimava ao mesmo tempo.
Verena manteve o olhar.
— E você ainda me pergunta se eu tô bem… — disse, num tom quase divertido. — Olha pra mim, Valentina. — Pausou, deixando o nome escapar devagar, como se saboreasse o som. — Eu tô completamente ferrada.
Valentina engoliu seco. O som do próprio nome na boca dela soou íntimo, indevido. Tentou se recompor, mas a voz saiu pequena.
— A senhora tá diferente hoje.
Verena riu outra vez, baixinho.
— Talvez eu tenha bebido um pouquinho. Só um pouquinho. — Fez um gesto vago com a mão, e o relógio de pulso brilhou sob a luz.
Por um instante, inclinou-se mais, e o rosto ficou perto o bastante para que Valentina sentisse o hálito alcoólico e o cheiro do perfume — aquele mesmo que a acompanhava desde o primeiro dia no gabinete. A diferença é que agora havia algo descomposto, quase humano, naquela mulher sempre impecável.
— Eu devia ir pra casa — disse Verena, mas sem se mover. — Mas olha só… eu parei aqui.
Valentina sorriu de leve, nervosa.
— Eu… não sei o que dizer.
— Não diz nada. — A voz dela veio baixa, morna. — Fica assim. Você quietinha já diz tudo.
Verena, num impulso, se inclinou mais. O braço passou pelo encosto do banco do carona, quase tocando o ombro de Valentina. Um gesto distraído, mas cheio de intenção. A mecha do cabelo de Valentina escorregou para a frente, e, sem pensar, Verena a afastou — os dedos frios roçando de leve a pele da jovem.
Valentina prendeu o ar. O toque foi rápido, mas deixou um rastro quente, elétrico.
Verena manteve os olhos nela, demorados demais.
— Você devia parar de me olhar desse jeito. — sussurrou. — É injusto.
Valentina não sabia o que responder. O rosto dela estava próximo demais, o perfume familiar parecia outro, mais intenso, mais íntimo. A respiração das duas já se misturava.
— D-desculpa… — balbuciou Valentina.
— Não pede desculpa. — O tom dela ficou quente, sem ironia. — Eu é que devia me controlar. Mas olha pra mim, Valentina… — o nome saiu devagar, saboreado. — Eu não consigo.
O olhar dela era firme, intenso demais. Valentina tentou desviar, mas Verena acompanhou o movimento, os rostos cada vez mais próximos e os dedos dela tocaram de leve uma mecha do cabelo da garota, afastando-a do rosto.
— Assim. — murmurou. — Agora consigo te ver direito.
Valentina prendeu o ar. O toque foi rápido, mas ficou.
— Eu devia ir pra casa — continuou a mulher, mas não se moveu. — Só que toda vez que penso em ir, acontece isso. — Sorriu, cansada. — E eu desisto.
O silêncio entre elas era denso, quase vivo. Valentina abaixou o olhar, as mãos firmes no colo.
— A senhora tá… — hesitou. — Tá me deixando nervosa.
Verena riu outra vez, mas dessa vez o riso veio mais baixo, mais perto.
— Então estamos quites.
O tempo pareceu se esticar. Verena passou a língua pelos lábios, como se buscasse algo a dizer, mas o que saiu foi só um sussurro:
— Você é o tipo de problema que a gente não procura… e quando encontra, reza pra não perder.
Valentina sentiu o corpo inteiro vibrar com aquelas palavras. Não sabia o que fazer com a voz, com o olhar, com o coração batendo alto demais. Quis sair, mas ficou. Quis falar, mas se perdeu no silêncio.
Verena observou, um meio sorriso se formando, cansado e encantado ao mesmo tempo.
— Sabe o que é? — disse, a voz arrastada. — Eu passo o dia inteiro ouvindo gente mentir, se exibir, brigar… e aí você aparece. Com esse olhar limpo, essa calma irritante, e pronto. Me desmonta.
Valentina sentiu o rosto queimar.
— Eu não faço nada.
— Faz. — respondeu, firme. — Faz e nem percebe.
A respiração de Verena estava quente, próxima. Ela apoiou o cotovelo no encosto, inclinando-se até que as bocas ficassem a poucos centímetros.
— Tô com uma vontade louca de te beijar. — disse, sem disfarce.
Valentina piscou, o corpo inteiro paralisado. O coração batia como se quisesse fugir.
— N-não fala isso…
Verena riu baixinho, o som grave vibrando entre elas.
— Tá vendo? — sussurrou. — Até sua voz me desmonta.
O silêncio que veio depois era espesso, vivo. Valentina respirava rápido, sem saber se devia sair, responder ou simplesmente fechar os olhos. Verena continuou ali, perto demais, olhando-a como quem luta entre o desejo e a consciência — e estava perdendo a batalha.
Rua Visconde de Pirajá — Ipiranga — 16h25
Do lado de fora, o fim de tarde caía devagar — mas ali dentro, o tempo parecia contido em um espaço estreito demais para tanto desejo e medo.
Verena ainda estava inclinada, o braço apoiado no encosto, o rosto a poucos centímetros do de Valentina. O perfume, o álcool, o ar quente — tudo misturado, confuso.
— Eu não tô aguentando ficar assim… tão perto de você sem…eu preciso te beijar. — murmurou, a voz rouca, embargada.
Valentina piscou, assustada. O corpo reagiu antes da razão. Tentou dizer “não”, mas o som não veio. Só o ar preso no peito e o coração disparado.
Verena a observou em silêncio, o olhar percorrendo o rosto dela — a boca trêmula, o medo, o brilho inocente.
— Fala alguma coisa… — pediu, quase num sussurro.
As respirações se encontraram, curtas, desiguais.
Narizes se tocaram de leve — um roçar quase imperceptível, mas suficiente para incendiar o ar.
— Se eu encostar em você agora… — a voz falhou — …não sei se consigo parar.
Valentina fechou os olhos. O gesto foi involuntário, e Verena se inclinou mais, vencida. Mas, no último instante, a garota virou o rosto — um desvio breve, confuso, que a fez respirar contra a bochecha dela.
Verena percebeu o movimento hesitante. Em vez de forçar ou recuar frustrada, a sofisticação assumiu o controle, redirecionando a intensidade e a potência do desejo que a consumia por dentro.
Seus lábios deslizaram pela bochecha, pressionando-a com um calor intenso, depois roçaram a pele sensível atrás da orelha, sugando levemente o lóbulo num gesto rápido e surpreendente.
Valentina estremeceu violentamente com o toque inesperado, um ponto de vulnerabilidade que Verena já conhecia. Era uma carícia íntima, transmitindo desejo com uma precisão que desarmava qualquer raciocínio lógico. O corpo da menina, já em vertigem, reagiu antes que a mente pudesse ordenar resistência.
Verena sentiu a mudança – a rigidez se transformando em um arqueamento suave contra ela e não deu tempo para outra hesitação. Ela não buscou os lábios, os ignorou momentaneamente, avançando com uma ousadia que beirava a necessidade física. Com precisão surpreendente, ela pressionou a boca na pele sensível sob a mandíbula de Valentina.
O toque foi um choque térmico. A língua de Verena, quente e experiente, traçou a curva do pescoço da jovem, um beijo profundo e exploratório naquela área tão vulnerável. Não era uma carícia, era uma afirmação intensa de posse.
Para Valentina, a sensação foi um divisor de águas. Um calor súbito e vertiginoso irrompeu em seu corpo. O mundo exterior — a rua, a casa, as regras — dissolveu-se. Seus olhos, antes arregalados de apreensão, fecharam-se involuntariamente.
O corpo, traindo sua mente confusa, cedeu ao peso da outra mulher, curvando-se e deslizando ligeiramente contra o banco de couro enquanto ela lutava para processar a intensidade daquela sensação nova.
Com um sorriso satisfeito e ainda carregado de urgência, Verena voltou ao ponto inicial. Ela guiou o rosto de Valentina gentilmente de volta à posição correta. As bocas se encontraram. A pressão era firme, quente, mas a língua não avançou para uma invasão total.
Neste ápice de foco absoluto, Verena percebeu um pequeno obstáculo. Os óculos agora escorregavam, ameaçando cair ou simplesmente distraindo seu campo de visão da expressão de Valentina.
Com um movimento rápido, mas ainda carregado de sensualidade, usou a mão livre para afastá-los. Ela os tirou com um gesto quase violento de necessidade, jogando-os de lado no painel sem se preocupar com o estrago. Não havia mais espaço para acessórios ou filtros.
Seus olhos, agora totalmente livres, fixaram-se nos de Valentina, que estavam entreabertos, testemunhando a cena. A visão daquela mulher que controlava multidões, perdendo o controle por um simples par de óculos, fez o encanto de Valentina atingir o auge.
Com a visão desobstruída, Verena voltou aos lábios rosados. E a paciência acabou.
Ela pressionou a boca contra a de Valentina com mais força. O lábio inferior foi capturado e puxado suavemente, apenas o suficiente para que Verena pudesse introduzir a ponta da língua na fenda úmida. Não foi um avanço total, mas um assalto inicial, um reconhecimento de território.
Valentina soltou um som engasgado, a mistura de prazer e susto sendo demais para processar. Seu corpo estremeceu violentamente contra a porta. Verena aproveitou a abertura, pressionando ainda mais a boca contra pequena, aprofundando o contato lentamente, permitindo que Valentina sentisse o calor e a textura da boca dela. A mão que estava na nuca agora deslizou para a mandíbula, firmando o rosto de Valentina, garantindo que ela não pudesse desviar novamente.
O ar no carro ficou pesado, denso com a promessa não cumprida de um beijo profundo, mas com a certeza absoluta da paixão que estava prestes a eclodir.
Fim do capítulo
Oieee! Boa noite, bom dia ou boa tarde! rssrs
Espero que esteja bem e que tenha gostado. Não pretendo demorar a voltar não viu.
Bom... agora são exatamente 22:46 rsrs e eu quase não tô conseguindo escrever. Mil perdões se vc achou algum errinho. Acredite, eu tento não deixar passar nada, mas... é como diz o ditado né, o que os olhos não vêem as mãos não conseguem apagar rsrs.
Abraço viu. Fique com Deus! E, espero te ver aqui na próxima" :)
Comentar este capítulo:
Sem cadastro
Em: 03/11/2025
Que misto de emoções
Tanto aqui, quanto ali..
O final foi quente
Querida autora, obrigada por compartilhar com nós essa obra prima
Sua escrita me cativa!
Abraços e fique bem
Sem cadastro
Em: 03/11/2025
Que misto de emoções
Tanto aqui, quanto ali..
O final foi quente
Querida autora, obrigada por compartilhar com nós essa obra prima
Sua escrita me cativa!
Abraços e fique bem
[Faça o login para poder comentar]
HelOliveira
Em: 29/10/2025
Verena perdeu totalmente a noção do perigo..
Valentina dessa vez não chorou ainda...RS
Silvia não merece passar por tudo isso...
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Magnífico, Autora! As cenas protagonizadas por Verena bêbada foram um show a parte. - Esse senso de humor dela melhor ainda. - Admiro muito esse jeito dela. Apesar de concordar com algumas atitudes dela, porém a mulher tem um poder de convencimento absurdo. - Fico viajando nessa mulher. - Só não gostei nada dela ter enchido a cara para ir ver Valen. - No entanto, esse final aí foi muito gostoso.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Essa deputada é uma bandidinha, sabe com derrubar as defesas de outra pessoa, esse leve roçar dos lábios atrás da orelha de Valen e a sugada do lóbulo, desmontaram a menina por completo. - E ruiu o castelo por completo quando avançou sobre ela com a certeza da vitória. - Esse beijo foi insidioso. Fique na expectativa para o que vai rolar no próximo capítulo.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Esse contraste da mulher madura, direita, cheia de desejos, com a menina inocente, cheia de pudores. Deixam a relação das duas mais eexcutante. Quando Verena fala " estou com uma vontade louca de te beijar na boca". Enquanto a outra diz " Na-ao ... fala isso".
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Verena está muito doidona para ir até perto da casa de Valentina. - E, queria ver o estado dela, com as mãos lambuzadas de chocolate. - E essa surpresa que ela está preparando para Valen. - Queria saber que tanto ela abre esses chocolates. - Ela como bêbada, está um espetáculo que só.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Essa mulher é uma verdadeira bomba - relógio, Valentina que se segure. - Porque ela tinha que encher a cara desse jeito antes de procurar a menina. - Está usando a cachaça como subterfúgio para não ter que encarar as situações de maneira sóbria.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Eita, que Valentina sofre pelo que não pode ter e também por não mais querer resistir. E há o silêncio em meio a mensagem que faz com que ela se angústia imaginando a vida de Verena junto a esposa.
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Pois é, tadinha. Esse ciúmes dela, deve ser um sofrimento, pelo sentimento em si e pelo fato de estar sentindo.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Costurar o silêncio dentro um coração rasgado
Essa passagem acima me deixou tão reflexiva. - É um vocabulário tão rico e cheios de significados. Quando Silvia fala em costurar, ela quer dizer reconstruir? Porque não pode ser negar o que se está sentindo.
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Siim. É tentar juntar os pedaços, mesmo com a dor, pq apesar de tudo, o amor não é uma coisa que acaba do dia pra noite.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Minha nossa! Silvia até que tentou disfarçar para a mãe que estava tudo bem, mas não deu pra segurar. - Ela tinha que colocar pra fora a dor que ia no peito dela. - Afinal, um ser humano.- Que sente - E não pode costurar a dor no silêncio, tem que liberar.
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Não tem como. Com que tá passando, mais do que compreensível.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Essa deputada é queixudinha, ela é capaz de dizer que Silvia está vendo onde não tem. Mas quando viu que não consiguua convencer, ela resolveu soltar que era uma menina do gabinete. - É o último recurso dela, se abrir com a esposa.
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Pois é. Muito cara de pau né. Sabe que tá errada mas não admite.
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Amei as notas, principalmente essa parte "o que os olhos não vêem as mãos não conseguem apagar rsrs. "
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Kkkkkkkkkk, eu tava bem assim, quase sem enxergar nada rsrs. Mas consegui!
Abraço!
[Faça o login para poder comentar]
Zanja45
Em: 29/10/2025
Oi, bom dia!
Já comecei a ler e estou adorando!
A tentativa de Verena se justificar para Silvia que o alguém que ela chamou de " meu anjo" era Rafaella, não colou para cima da advogada. - Como disse Silvia, ela não estava conseguindo sustentar a própria mentira. " Estava tentando ajudar "uma pessoa" e acabei perdendo o controle". Eu quero saber se ela vai conseguir dobrar Silvia de algumas maneiras. Kkkk!
anonimo2405
Em: 10/11/2025
Autora da história
Oiiii!
Boa tarde!
Siim, aparentemente não colou não kkkkk
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]