Ecos, Sangue e Telefonemas
Amanhecia devagar. Uma luz acinzentada atravessava as frestas da cortina do quarto de Lia. O mundo lá fora já seguia seu curso, mas dentro da casa, o tempo parecia suspenso entre dor, cansaço e silêncio.
Lia despertou com uma leve ardência nas mãos. Quando tentou movimentá-las, percebeu, a pele estava marcada com linhas irregulares, como rachaduras avermelhadas, que começavam nas palmas e seguiam até os pulsos, feito pequenas fendas queimadas.
A cada movimento, uma sensação estranha percorria suas veias. Um calor incômodo, como se o sangue quisesse se mexer sozinho, pulsando com uma energia que não era dela.
Ela sabia o motivo.
Sabia que mexer com a divindade do sangue de Elisa deixaria marcas, mas não imaginava que a contaminação fosse se espalhar tão rápido.
Sentia a magia dela, misturada com algo que era, ao mesmo tempo, sagrado e profano.
Lia ficou parada por um tempo, não tinha coragem de acordar Elisa, então apenas a observou dormindo.
O contraste da pele com os curativos nas feridas deixava tudo ainda mais doloroso de olhar. Havia cortes por toda parte, palavras rasgadas com crueldade no corpo que Lia conhecia tão bem. Mais abaixo, na virilha, um amontoado de traços retorcidos que Ariel não conseguira decifrar, mas que agora, sob um olhar mais atento, Lia percebeu serem os dizeres: "Propriedade da deusa", riscado como se quisesse ser apagado, mas profundamente marcado.
****
Ao descer as escadas, a cena foi de um pós-batalha silencioso.
Petúnia dormia no quarto de hóspedes, o rosto inchado, mas um pouco mais sereno.
Lia passou pelo corredor, viu o notebook ainda aberto no sofá. Os potes de ervas organizados sobre a mesa. Tudo naquele momento estava calmo e silencioso.
Por um segundo, pensou em simplesmente tomar outro banho e deitar de novo, mas havia coisas a fazer.
Foi até a cozinha. Bebeu um copo d’água grande, como se tentasse limpar o gosto metálico que ainda sentia na boca desde o feitiço.
Pegou o celular. Primeiro, discou para a irmã de Petúnia.
A mulher atendeu na terceira chamada, a voz carregada de choro e noites mal dormidas.
— Alô? Quem é? — A mulher parecia desesperada.
Lia respirou fundo, adotando o tom mais calmo que conseguiu.
— Bom dia, aqui é Liana. Amiga da Petúnia. Eu só queria te tranquilizar… ela está bem agora. Teve um… um acidente, mas está segura. Está na minha casa, sendo cuidada.
Do outro lado da linha, um soluço de alívio veio imediato.
— Ela… meu Deus… ela… ela tá viva…?
— Está sim. Ela precisa de descanso, mas em breve pode falar com você. Se quiser, posso buscar você… ou você pode vir quando quiser.
A irmã agradeceu mil vezes, ainda em prantos.
Encerrada a ligação, Lia foi direto para a próxima.
Pegou o número da família de Patrícia, que constava nos antigos registros de emergência da Wicca Enterprise, salvos ainda em um backup esquecido no notebook.
Ela hesitou por longos segundos antes de apertar o botão verde.
Quando a ligação foi atendida, a voz masculina do outro lado era cansada, rouca, provavelmente o irmão mais velho ou o pai.
Lia se apresentou de forma breve, objetiva, usando o tom de quem já fez ligações assim antes. Explicou que Patrícia havia falecido e que a empresa estava se responsabilizando pelos custos de traslado e velório.
Reforçou que Patrícia não estava em serviço quando aconteceu, mas que, em respeito à dedicação que ela sempre teve, a Wicca Enterprise cuidaria de tudo. Não entrou em detalhes, sabia que nem conseguiria. Só o bastante para soar sólida, controlada, como Elisa seria.
Ela ouviu o choro do outro lado, a revolta, a dor, mas nenhuma palavra de ofensa veio. Ouve um longo silêncio antes da ligação ser encerrada, deixando Lia com o coração mais pesado do que antes. Com os olhos já ardendo, ela respirou fundo, mas antes que pudesse largar o celular, lembrou-se de Hope.
Buscou o contato da mais nova e ligou.
Demorou alguns segundos para a chamada ser atendida.
— Oi? — A voz de Hope veio ainda sonolenta.
— Hope… é a Lia. Eu só queria te agradecer… pela visão, pelas informações. Só conseguimos chegar até elas devido a sua ajuda.
Houve uma pausa.
— Não precisa agradecer, Lia. Sabe que se eu pudesse faria mais… Mas elas estão bem? A Elisa… a Petúnia? — Hope não mencionou Patricia
Lia sorriu, com um cansaço genuíno escorrendo pela voz.
— Vivas. Feridas, mas vivas. — Lia fez um silêncio, antes de continuar. — Mas a Patricia…
— Eu sei. Eu sinto muito.
— Eu também sinto. Mas de verdade… obrigada.
— Imagina, qualquer coisa… se precisarem de mais visões… eu tô aqui.
— Eu sei. — Lia respondeu, sincera. — Hope… Sei que só apareço atrás de você pedindo ajuda e que não tenho sido a melhor amiga que eu poderia ser. Mas… Você sabe que também pode contar comigo, não sabe?
— Eu sei, Lia e eu entendo, não se preocupe. Você tem muito mais com o que se preocupar.
— Hope…
— Sei que posso contar com você, ok? — O tom leve da mais nova atravessava a linha com suavidade. — Se precisar novamente, eu realmente estou aqui.
— Obrigada! Descansa também, tá? A gente se fala.
Ao encerrar a ligação, Lia percebeu que a mão direita tremia levemente.
A veia no antebraço estava um pouco mais escura, como se o sangue estivesse mais espesso, lento, carregado.
Ela precisaria resolver isso, mas não agora.
****
O relógio marcava pouco depois das 8h da manhã.
Lia apoiou os braços na bancada da cozinha, fechando os olhos por um instante e tentando organizar mentalmente os próximos passos.
Os corpos feridos estavam a salvo, mas emocionalmente, tudo estava um caos; Elisa dormindo como se o próprio corpo tentasse se apagar pra não sentir; Petúnia quebrada por dentro; Ariel magoada.
Com a respiração trêmula, Lia pegou uma toalha limpa e passou nas mãos, escondendo por um momento as marcas avermelhadas.
Sabia que o preço daquela noite ainda estava longe de ser pago.
Mas por enquanto, sobreviver era o suficiente.
****
Enquanto Lia estava na cozinha, mexendo distraidamente em uma caneca de café frio quando ouviu a campainha tocar.
Mesmo sem olhar, ela soube quem era.
Foi até a porta e abriu.
Ariel estava ali, encostada no batente, com o rosto abatido, os olhos fundos de quem não dormiu direito.
— Bom dia… — Lia disse, com um cuidado quase clínico.
Ariel não respondeu de imediato. Apenas entrou direto, passando por Lia como se não quisesse dar espaço para qualquer conversa de boas-vindas.
Seguiu até a sala, largou a bolsa no sofá e ficou ali, de pé, com os braços cruzados.
— Bom dia. Eu só vim ver como a Petúnia está. — Disse, seca.
Lia assentiu.
— Ela ainda dorme… A noite foi difícil pra ela.
Ariel respirou fundo e passou as mãos no rosto, como quem tentava se livrar da mágoa por um instante.
— E a Elisa? — Perguntou.
— Também. Dormindo. — Lia respondeu. — O corpo dela tá tentando se recuperar… e eu também tô cuidando das coisas com a família da Patrícia.
Ariel ficou em silêncio, mordendo o canto do lábio, como se lutasse com as próprias emoções.
Lia se aproximou devagar.
— Ariel… eu sei que a gente tem muita coisa pra resolver. Inclusive… o que aconteceu entre mim e a Ísis. Eu não vou fugir disso. Só… só me dá um tempo pra cuidar de tudo aqui.
Ariel cruzou os braços com mais força.
— Sabe qual o problema, Lia? — Ela perguntou com os olhos brilhando, mas o tom ainda ríspido. — Não é nem o que aconteceu… É o fato de eu sempre ser a última a saber de tudo. Sempre. Mesmo quando eu tô dentro de tudo… parece que tem sempre um pedaço que vocês me deixam de fora.
Ela virou o rosto, evitando olhar para Lia.
Lia abaixou a cabeça.
— Eu prometo… Que dessa vez… depois que tudo acalmar… a gente vai conversar. De verdade.
Ariel riu, uma risada curta e amarga, voltando a olhar para ela.
— Você sempre promete.
Sem esperar resposta, Ariel se virou em direção ao corredor.
— Vou ficar com a Petúnia… — Disse, antes de desaparecer porta adentro.
****
Minutos depois, Ísis apareceu.
Ela usava roupas simples, moletom e cabelo preso de qualquer jeito, com um cansaço visível nas expressões.
Lia já estava preparando café fresco.
— Ariel tá aqui? — Ísis perguntou, como quem não quer nada, apontando para o corredor.
— Tá… mas não tá exatamente de bom humor. — Lia respondeu.
— Nem deveria… — Ísis murmurou, servindo-se de café. — A gente estragou tudo.
As duas beberam em silêncio por alguns instantes.
— Conseguiu falar com a família da Patrícia? — Ísis perguntou, quebrando o silêncio.
— Sim. Vai ser difícil… Mas fiz o que pude. — Lia respondeu. — Também falei com a irmã da Petúnia… e com a Hope.
Ísis assentiu, como quem fazia um checklist mental.
— E você? Tá bem? — Ísis perguntou, encarando as rachaduras nas mãos de Lia.
Lia hesitou antes de responder.
— Não sei. Ainda tô sentindo… como se algo dentro de mim estivesse... pulsando diferente. Meu sangue não tá normal.
— Vai ter consequência, Lia. Você sabe disso. Mexer com o que é divino… ainda mais desse jeito… — Ísis falou com um tom baixo.
— Eu sei. — Lia respondeu, firme.
Enquanto o café da manhã se desenrolava de forma lenta, Lia abriu um grimório e começou a revisar os feitiços de localização.
Ela precisava fazer um novo rastreio, agora para encontrar o corpo da Patrícia.
Ísis a ajudou, enquanto Ariel permanecia no quarto com Petúnia.
A tensão entre as três era palpável, mas, por ora, todas pareciam cientes de que havia coisas mais urgentes do que discutir sentimentos.
Antes do meio-dia, Lia decidiu que precisavam de uma reunião breve.
Chamou Ariel, que apareceu na sala com olheiras e o rosto ainda inchado após chorar ouvindo os relatos da Petúnia, mas parecia também mais determinada.
— A gente precisa decidir o que fazer a seguir. — Lia começou. — Meu feitiço anterior conseguiu localizar o lugar onde o corpo da Patrícia está. Fica a alguns planos de distância daqui e é um território perigoso.
Ariel respirou fundo, mas concordou.
— Eu vou com vocês. — Disse.
Ísis ergueu uma sobrancelha.
— Tem certeza?
— Tenho. Eu não vou ficar parada novamente enquanto vocês enfrentam tudo sozinhas.
Por um instante, o olhar de Ariel cruzou com o de Ísis, havia ainda uma mágoa latente, mas também uma determinação nova.
Lia percebeu.
Ela sabia que ainda teriam muito o que consertar, mas, por enquanto, havia um objetivo maior.
Lia fechou o grimório. As rachaduras nas mãos ardiam, mas ela ignorou e para não chamar atenção para sua situação, fingiu não sentir nada.
Tinham coisas mais importantes para tratar no momento. O tempo delas estava acabando e Calíope ainda estava lá fora, observando.
Esperando sorrateiramente o próximo movimento.
Fim do capítulo
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