Capitulo 39
A tarde fria de Dutch Harbor era quebrada pelo sol tímido que espreitava entre as nuvens, pintando o céu de tons laranja e rosa. Na loja de equipamentos marítimos, o cheiro de graxa, borracha e metal novo preenchia o ar, um aroma familiar e quase reconfortante. Heather e Mei caminhavam pelos corredores, os olhos fixos nas imponentes máquinas de guincho que se alinhavam, brilhando sob as luzes fluorescentes. A decisão estava tomada: o Queen Seas teria um guincho novo.
— Eu não me arrisco com aquele trambolho velho de novo, Mei. — Heather disse, sua voz carregada de um alívio palpável. Ela apertou a mão de Mei que estava entrelaçada à sua, os dedos se acariciando discretamente. — Aquele conserto foi uma gambiarra heroica, mas uma dor de cabeça que não quero ter de novo.
Mei sorriu, a cabeça inclinada para o ombro de Heather. A tipoia ainda estava lá, um lembrete físico do acidente, mas sua postura era relaxada, descontraída. O descanso e o carinho da capitã haviam restaurado sua energia. Mei ainda não sabia com Heather reagiria a demosntrações de afeto em lugares públicos, mas estava indo devagar e observando o que deixava a namorada confortável.
— Foi uma boa gambiarra, Hattie. Mas concordo. Melhor ter algo confiável. — ela respondeu, e seus olhos percorreram os modelos, o olhar técnico avaliando cada detalhe. — Esse aqui tem um sistema de vedação mais robusto, e o acesso à válvula de alívio é mais fácil. Se precisar de manutenção, a gente não vai ter que desmontar tudo no meio de uma tempestade.
Heather observou Mei com admiração, o coração aquecido. A competência da engenheira era um de seus muitos atributos que a encantavam. Ela se inclinou, beijando a testa de Mei.
— Sabia que você seria a melhor para me ajudar a escolher. Minha engenheira particular. — ela sussurrou, a voz carregada de ternura.
Mei ruborizou levemente, mas se aproveitou do momento, apoiando a cabeça no ombro de Heather. Era uma ótima oportunidade para testar até onde podia ir com a sua mulher.
— Ah, é? Então mereço um agrado, não mereço? — ela brincou, com um tom dengoso, os olhos pedindo por mais carinho.
Heather riu, um som suave e melodioso. Ela parou em frente a um modelo azul-escuro e virou-se para Mei, envolvendo-a em um abraço. O beijo foi lento, doce, um selo de intimidade que dizia muito mais do que palavras. Os lábios de Heather se demoraram nos de Mei, um carinho profundo que afastava o mundo exterior.
Era um momento perfeito, de cumplicidade e felicidade. Um momento que eles pensavam que era só delas. Mas não era.
Do outro lado do corredor, Connor, capitão do Killer Crab, estava parado, segurando uma peça de reposição. Ele tinha vindo à loja para um conserto rápido em um de seus refletores de luz, irritado com a falta de sorte na temporada. Seus olhos varreram o corredor, e então pararam. Sua mandíbula se fechou. Ele viu Heather, a mulher que o rejeitara, que ele tanto queria para si, beijando outra mulher. Era aquela engenheirazinha que vivia na cola de Heather e que fez ele e a sua tripulação se meter em uma briga na última vez que se encontraram.
A risada suave de Heather, o abraço e o beijo em Mei. A cena atingiu Connor como um soco no estômago. O sangue ferveu em suas veias. Não era apenas a raiva da rivalidade, mas algo mais profundo, posse. Uma fúria incontrolável se acendeu em seus olhos. A imagem do beijo era um insulto, uma afronta direta a sua masculinidade.
— Desgraçada! — Connor murmurou para si mesmo, as palavras saindo por entre os dentes cerrados. Seus punhos se fecharam, as unhas cravando na palma de suas mãos. A expressão de ódio em seu rosto era tão intensa que fez uma vendedora que passava por perto se encolher de medo. Ele jogou a peça de reposição no chão, com um estrondo, fazendo o metal ressoar. Aquilo não ficaria assim. Heather pagaria por isso.
O som da peça de metal caindo no chão ecoou pelo corredor da loja, chamando a atenção de Heather e Mei. Elas se viraram, e o sorriso de Heather se desfez ao ver Connor parado a poucos metros de distância, os olhos injetados de fúria.
— Connor. — Heather murmurou, a voz tensa. De forma instintiva, ela colocou seu corpo na frente de Mei, como um escudo, e a puxou para trás.
— Que cena patética é essa, Heather? — Connor cuspiu, avançando com passos largos e ameaçadores. — Não demorou para você ficar com alguém, não é? Me trocou por essa... essa engenheirazinha de merd* da sua tripulação?
A voz dele era um rosnado, e suas palavras perfuraram o ar como punhais. A raiva de Heather ferveu, mas ela manteve a calma, não queria causar uma cena na loja. Seu corpo permanecendo como uma barreira entre ele e Mei.
— Não ouse falar assim da minha namorada! — Heather retrucou, a voz baixa, mas perigosa. — A minha vida não é da sua conta, Connor. E o que eu faço, ou com quem eu estou, não lhe diz respeito. Você sabe muito bem o quanto me arrependo do que aconteceu entre nós.
Connor soltou uma risada amarga e cruel.
— Arrependimento? Você diz isso agora, mas na minha cama você não parecia arrependida. E agora me aparece com essa... mulher. Que piada! — O capitão queria provocar, tirar a paz e a alegria que tinha presenciado há poucos segundos.
— Cala a boca, Connor! Você só está com dor de cotovelo. Sabe muito bem que eu nunca quis nada com você. Você insistiu tanto que cedi, mas esse foi o pior erro da minha vida. — Mei, por trás de Heather estava com raiva daquele homem repugnante. Ela estava pronta para defender a sua mulher, mas Heather segurou na sua mão, já conhecendo o gênio da namorada.
— Eu esperava tudo de você Heather, mas não isso. Agora você fica com mulheres? Você são duas vagabundas. — O homem fingiu que não ouviu nada do que Heather disse. Ele queria tirar a sua postura controlada, estava fervendo de raiva e ressentimento.
Heather estava prestes a falar, mas foi Mei quem falou primeiro.
— Não ouse falar da Heather ou de mim, seu verme! — Mei disse, sua voz alterada, mas com uma autoridade que surpreendeu Connor. — Você não tem o direito de falar essas merd*s e muito menos de se meter na nossa relação. Ningué aqui ta preocupado com a sua opinião.
— A engenheirazinha resolveu mostrar as garras. Pelo visto, não consegue nem fazer o seu trabalho direito e acha que pode me enfrentar. — Ele fala olhando para o braço de Mei. — Hoje vocês não tem a sua tripulação para te defender.
— O que aconteceu foi um acidente, e eu fiz o que ninguém mais faria. Arrisquei minha vida para consertar o que você, seu incompetente, não seria capaz de sequer entender. Eu faço meu trabalho no mar, ao invés de me preocupar com o barco alheio. — A cada fala de Mei, Connor se inflamava mais ainda e Heather estava chocada com a coragem da mai nova. — Nós no Queen Seas temos sucesso no que fazemos, já você, depende de armações para conseguir pescar. E para completar, fica correndo atrás de uma mulher que te despreza.
A surpresa de Connor se transformou em uma raiva ainda mais selvagem. Ele nunca imaginou que a "mulherzinha" se atreveria a falar com ele daquela maneira. Ele se aproximou de Mei, estendendo a mão como se fosse tocá-la.
— Você devia ter ficado quieta, sua puta de quinta.
Antes que ele pudesse encostar um dedo nela, Heather o empurrou com toda a força que tinha. Connor cambaleou para trás, chocado, e bateu as costas em uma prateleira de ganchos.
— Não chegue perto dela! — Heather gritou, sua voz ecoando pela loja, atraindo a atenção de alguns clientes e funcionários. — Já estou farta das suas inconveniências, Connor. Quero que nunca mais apareça na minha frente seu filho da puta! Fique longe de mim, da Mei e do meu barco, se não vou te denunciar.
A discussão tomou proporções maiores, com Connor gritando de raiva. Um segurança se aproximou rapidamente, a mão no rádio.
— Cavalheiro, peço que se acalme. Se houver mais confusão, terei que pedir que se retire. — o segurança disse, sua voz autoritária.
— Essa desgraçada que começou! — Connor rosnou, apontando para Heather. — Essa sapatão de merd* e a vagabunda dela me agrediram!
A palavra dele fez o ar congelar. O segurança olhou para os três, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, Connor foi agarrado por dois funcionários do Killer Crab que o esperavam.
— Não perca seu tempo com essas duas, Connor. — o primeiro tripulante do Killer Crab disse. — Vamos embora, a gente resolve isso depois.
O segundo tripulante concordou e eles arrastaram Connor para longe. A cara de Connor era de puro ódio. Ele continuou a gritar impropérios até que o grupo desapareceu por trás da prateleira. Heather e Mei ficaram paradas, lado a lado, o coração batendo forte no peito. O silêncio que se seguiu à saída de Connor foi mais pesado do que qualquer gritaria. O som da respiração ofegante de Heather e de Mei parecia alto demais no vasto espaço da loja. O segurança se aproximou, sua expressão era de um homem que via de tudo na ilha.
— Estão bem? — ele perguntou, sua voz neutra.
— Estamos, obrigada. — Heather respondeu, a voz rouca, ainda tremendo de adrenalina e raiva.
Ela se virou, e seus olhos encontraram os de Mei. O rosto de Mei estava pálido, e seus lábios tremiam, mas seus olhos, apesar de cheios de medo, brilhavam com uma determinação feroz. A tipoia que ela usava no braço parecia um símbolo de sua vulnerabilidade, mas sua postura, naquele momento, era de uma força inabalável.
— Você está bem? Ele... ele te machucou? — Heather perguntou, as mãos subindo para o rosto de Mei, verificando-a em busca de qualquer ferimento.
— Estou. — Mei sussurrou, a mão boa segurando a mão de Heather. — Ele não me tocou. Você o impediu.
Heather a puxou para um abraço apertado, o corpo dela tremendo. O cheiro de Mei era o único cheiro familiar que poderia acalmá-la naquele momento.
— Meu Deus, Mei. As coisas que ele disse... me perdoe por isso. Eu devia ter te protegido melhor. — Heather murmurou contra o cabelo da namorada.
Mei se afastou um pouco para poder olhar nos olhos de Heather.
— Você me protegeu, Hattie. Você se colocou entre ele e eu. E você me defendeu. E eu defendi você. Nós o enfrentamos juntas. Você não percebeu? Ele não estava apenas furioso por me ver com você. Ele estava com inveja de nós. Da nossa lealdade. Da nossa conexão. Ele nunca terá isso, com ninguém.
Aquelas palavras trouxeram clareza para Heather. Era a verdade. Connor, com todo o seu ódio e arrogância, era no fundo um homem sozinho e vazio. Ele via o que elas tinham,uma conexão inquebrável, e não podia suportar.
— Você foi incrível. — Heather sussurrou, passando o polegar pela bochecha de Mei. — As coisas que você disse... eu... eu nunca vi alguém enfrentá-lo daquela forma.
— Eu não podia ficar quieta e ver ele te insultar. Ele me chamou de "engenheirazinha" ... mas você, Hattie... ele te tratou como se você fosse um objeto que ele perdeu. Como se não tivesse valor. Como se você tivesse que ser dele. Isso me deu nojo. — Mei respondeu, sua voz firme.
— Não pense mais nisso. Estamos bem agora, mas temos que ficar alerta caso ele decida voltar. Vamos para o barco. Temos que instalar o Guincho novo e partir o quanto antes.
O momento de vulnerabilidade passou, e a expectativa e o desafio voltaram. Elas se olharam nos olhos e, sem a necessidade de palavras, sabiam que a decisão era unânime. Elas não iriam mais permitir que ninguém as afastassem.
— Vamos levar esse guincho. — Heather disse, com a voz recuperando a sua autoridade habitual.
Mei assentiu com a cabeça, um sorriso suave no rosto. A capitã soltou a mão de Mei e, juntas, elas se aproximaram de um dos funcionários. Elas compraram um guincho novo, de última geração.
Quando elas saíram da loja, as mãos de Heather e Mei estavam entrelaçadas novamente, mais firmes do que nunca. O frio do final da tarde já não as incomodava. Do lado de fora, a brisa do oceano parecia uma promessa silenciosa, um lembrete de que o mar, com todas as suas tempestades, também seria um lar para elas, juntas. E, desta vez, elas enfrentariam qualquer tempestade, seja ela do mar, da família ou de qualquer pessoa, de cabeça erguida.
Fim do capítulo
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