Capitulo 38
O Queen Seas rasgava as ondas, seu casco firme e seguro, o som do motor, um zumbido constante que acalmava os nervos. Finalmente eles tinham conseguido puxar todos os covos e estavam voltando para o porto. Na cabine do leme, Heather estava no comando, sua expressão era uma máscara de determinação e preocupação. Seus olhos varriam os instrumentos, mas sua atenção se dividia a cada dois minutos, voando para o canto da cabine. Deitada na cama, Mei parecia uma criança adormecida, a manta grossa a cobrindo por completo, o rosto sereno sob a luz fraca dos monitores. A paz no rosto de Mei era um contraste para o coração turbulento de Heather, que lutava contra a preocupação.
"Quase lá, Mei. Quase lá. Aguenta firme."
Mei, em um estado de semiconsciência, sentia o movimento suave do barco e o calor que a envolvia. Ela sabia que Heather estava ali, atenta, velando por seu sono. A voz baixa da capitã chegava aos seus ouvidos como uma canção, as palavras simples, mas cheias de uma emoção profunda que Mei já reconhecia como cuidado.
— Victor, Boris, façam a sua ronda. Estamos com muito gelo no convés. — a voz de Heather soou pelo rádio, sua determinação um alívio para a tripulação cansada.
Lá embaixo, Igor estava sentado em um banco, o olhar fixo em suas mãos. Ele não conseguia se perdoar pela sua falta de atenção, que quase custou a vida da engenheira. A culpa era um peso físico que o impedia de descansar. Levantou-se, o corpo tenso, e caminhou em direção à cabine. Ele tinha que fazer isso. Tinha que pedir perdão.
A porta da cabine se abriu, e Igor recuou instintivamente. A expressão de Heather era a mesma, fria e distante.
— Capitã... — a voz de Igor saiu rouca. — Eu... eu sinto muito. Foi minha culpa. Eu me distrai. Eu... eu vou embora quando a gente chegar em Dutch Harbor. Não quero que a senhora se preocupe mais com isso.
Heather o encarou por um longo momento. A raiva que ela sentia se dissipou, substituída por uma compreensão silenciosa. Ela não o repreendeu; em vez disso, viu um homem que estava se afogando na culpa.
— Igor, levante a cabeça. — Heather falou, a voz mais suave do que o esperado. — O que aconteceu foi um acidente. Você sabe disso. Eu sei disso. Só estava com raiva e não pensei direito. O que importa é que você me ajudou e fez o que precisava ser feito para nos tirar do problema. Você provou sua lealdade à tripulação. O que aconteceu está no passado. Nós somos uma equipe.
O perdão de Heather foi um alívio para a alma de Igor. Ele sentiu as lágrimas se acumularem, mas assentiu.
— Obrigada capitã, prometo que vou ficar mais atento. — O peso em seus ombros diminuiu, e ele foi para o convés, renovado.
No horizonte, as primeiras luzes de Dutch Harbor começaram a brilhar. Eram pequenas e fracas, mas para a tripulação, pareciam faróis de salvação. Boris e os outros homens se preparavam para a atracação. O alívio era palpável.
Mei se remexeu na cama, sentindo um sopro de ar frio. Ela ergueu a cabeça, seus olhos encontrando as luzes distantes.
— Chegamos. — sua voz soou fraca, mas carregada de uma satisfação imensa.
Heather se virou, a expressão tensa se desfazendo em um sorriso. O corpo dela tremeu com o alívio. Ela se aproximou da cama e pegou as mãos de Mei.
— Eu não me perdoaria se algo acontecesse com você. Eu nunca senti tanto medo na minha vida. Eu prometi para mim mesma que nunca mais vou deixar isso acontecer.
A voz de Heather tremia, a confissão era um rio que transbordava. Mei se levantou, aproximando-se da capitã, o corpo ainda dolorido. Acariciou o rosto de Heather, as pontas de seus dedos tocando a pele fria.
— O que você quer dizer?
Heather permaneceu em silência e aquilo preocupou Mei.
— Vou ficar bem, Hattie. Não se preocupe. — ela respondeu, beijando-a suavemente.
(---)
O Queen Seas atracou no porto, e a tripulação, exausta, mas aliviada, começou a descarregar os caranguejos. A ambulância já estava esperando no cais.
— Boris, cuide de tudo. — Heather disse, a voz cheia de urgência. — Eu vou com ela.
— Pode deixar, Capitã. A gente cuida de tudo. — Boris respondeu, um sorriso de aprovação em seu rosto.
Heather pegou Mei no colo, um ato de cuidado que mostrava a profundidade do que ela sentia. Elas foram para a ambulância e seguiram para o único hospital da Ilha de Unalaska, deixando a tripulação para trás.
No hospital, um médico as atendeu com pressa e gentileza. Ele examinou o ombro de Mei, a cabeça dela, onde o curativo já estava.
— O ombro de sua amiga foi muito bem realocado. O trabalho foi muito bem-feito. — o médico disse, olhando para Heather. — Foi você?
O fato do médico ter se referido a elas como amigas, fez Heather pensar em um contexto que ela nunca tinha vivenciado antes. A fala do Doutor a incomodou, mesmo que não fosse intencional, era desconfortável levar a sua namorada ao hospital e não saber se o profissional seria receptivo ao fato delas serem um casal ou se ele seria preconceituoso. A capitã não corrigiu o médico, mas a fala dele serviu para que ela entendesse como Mei se sentiu quando ela tentou esconder a relação das duas.
— Fomos eu e um tripulante. — Heather respondeu, sem dar muitos detalhes.
— Ele fez um bom trabalho. Mas ainda assim, precisamos de um raio-x para ter certeza. — o médico falou, e em seguida, direcionou a fala para Mei. — Fique tranquila. O raio-x apenas confirmará que não houve dano aos tecidos e ossos. Depois, darei os remédios e farei a orientação para fisioterapia. Você precisará de muito repouso por pelo menos duas semanas.
Depois de todas as recomendações e quase duas horas de atendimento, elas saíram do hospital. Do lado de fora, o carro de Heather já estava esperando, Victor tinha levado. Elas seguiram em direção à casa da capitã. O sol já estava nascendo.
— Quando vamos voltar para o Queen Seas? — a voz de Mei foi a primeira a quebrar o silêncio.
— O quê? — Heather perguntou, assustada.— Você precisa de repouso, amor. O médico foi claro. — Heather respondeu, segurando o volante com força. — Eu não vou permitir que você suba no barco de novo antes de estar 100%.
— Mas a temporada... e a tripulação... — Mei começou, mas foi interrompida pela capitã.
— Nós vamos para a minha casa e você vai ficar descansando! — Heather exclamou, sua voz cheia de convicção.
— Eu não sou só uma pescadora, Hattie. Eu sou uma engenheira. — Mei respondeu, sua voz firme. — O barco precisa de mim. Se tiver um problema, eu posso ajudar. A gente pode entrar em um acordo. Eu fico na cabine com você. Eu te ajudo com os motores, com o guincho... eu só não desço ao convés. Eu prometo. Por favor, Hattie.
A súplica de Mei era sincera. Heather olhou para ela, o coração dividido. O medo a empurrava para o "não", mas os olhos de Mei a empurrava para o "sim". Ela via a determinação no olhar da sua garoata, e sabia que ter a engenheira no barco seria de grande ajuda. Como ela iria lidar com essa preocupação, era um assunto seu, mas Mei merecia terminar a temporada e se sentir realizada profissionalmente.
— Está bem. — Heather cedeu, a voz carregada de resignação. — Mas você vai ficar comigo, na minha cabine. E não vai descer ao convés por nada, me prometa que vai me ouvir.
— Combinado, eu prometo. — Mei disse, um sorriso de satisfação em seus lábios.
A capitã estava com medo, mas sabia que estaria mais tranquila com Mei ao seu lado do que a tantos quilomentos de distância. Elas iriam seguir as recomendações médicas, mas não se afastariam e terminariam a temporada. Mas antes, Heather percisava consertar o guincho para voltar ao mar o mais rápido possível.
(---)
A porta da casa de Heather rangeu suavemente ao se abrir, revelando um oásis de calor e luz. O cheiro de café fresco e a umidade de madeira aquecida contrastavam violentamente com o ar gelado do exterior. Andrew, sentado no sofá com um livro, levantou a cabeça. Seu sorriso de boas-vindas se desfez instantaneamente ao ver a cena: sua filha carregando Mei, a tipoia e o curativo escuros em contraste com a pele pálida da engenheira.
— Meu Deus do céu, o que aconteceu, filha? — a voz de Andrew era um misto de alarme e preocupação profunda. Ele se levantou, caminhando em direção a eles, os olhos fixos em Mei.
— Está tudo bem, pai. Ela está bem agora. — Heather murmurou, tentando tranquilizá-lo, mas seu próprio tom de voz ainda estava tenso. Ela carregou Mei até o sofá e a sentou delicadamente. — Foi um acidente no convés. Ela deslocou o ombro, mas o médico já colocou no lugar.
— Um acidente? Como assim? — Andrew insistiu, sua voz ainda cheia de pânico. Ele se ajoelhou na frente de Mei, examinando seu curativo com cuidado, o toque de um pai. — Você está bem, querida? Aconteceu mais alguma coisa?
Mei sorriu fracamente, sentindo a gentileza no toque dele.
— Eu estou bem, Andrew. Não se preocupe. O ombro está no lugar. — a voz dela era suave e calma, um contraste com a inquietação de pai e filha.
Heather sentou-se ao lado de Mei e, com um suspiro, começou a explicar o que havia acontecido. Ela contou sobre o guincho quebrado, a corrida contra o tempo e o trabalho em equipe para consertá-lo. Mei, ao lado dela, acrescentou os detalhes técnicos com uma calma que impressionou Andrew, descrevendo a "gambiarra" heroica que salvou a pescaria. Andrew ouvia, chocado e admirado, percebendo a seriedade do que haviam enfrentado e a bravura das duas.
— Vocês são loucas. As duas — ele disse, com uma ponta de incredulidade e admiração na voz. — Fico feliz que vocês estejam bem. Descassem.
— Eu vou dar um banho nela — Heather murmurou, virando-se para Mei. — Você precisa se aquecer. Depois você come algo e descansa de verdade.
Mei assentiu, grata pela preocupação. Com cuidado, Heather a ajudou a se levantar. No banheiro, a água morna preencheu a banheira, e o vapor se espalhou, tornando o ar aconchegante. Heather ajudou Mei a tirar as roupas molhadas, os movimentos gentis, carregados de um cuidado que falava mais do que qualquer palavra. Ela lavou os cabelos de Mei com delicadeza, o toque suave em seu couro cabeludo a fazendo suspirar de alívio.
— Você sabe que posso andar, né? — Mei brincou.
— Me deixe cuidar de você, meu amor. Pelo menos em casa, posso me dedicar somente a você.
Mei se entregou ao cuidado de Heather, o silêncio preenchido pela intimidade do momento. O curativo foi retirado, e Heather examinou a pequena cicatriz na testa de Mei, beijando-a suavemente. Era um gesto de devoção, uma preocupação silenciosa.
Depois do banho, com Mei vestindo roupas secas e confortáveis, Heather a ajudou a deitar na cama. O corpo da engenheira ainda estava dolorido, mas a tensão havia se dissipado. Heather se deitou ao seu lado, puxando a manta sobre os dois, com cuidado para não mover o braço de Mei. O calor do corpo de da mais nova era um abraço suave, e a capitã sentiu o seu próprio corpo relaxar pela primeira vez em dias.
Mei se aninhou no peito de Heather, sentindo o ritmo calmo de seu coração. O mundo exterior parecia distante. A turbulência do mar, o frio do vento, o medo... tudo havia ficado para trás. Aqui, naquele quarto aquecido, elas estavam seguras. Mei ergueu a cabeça e beijou a ponta do nariz de Heather. A capitã sorriu e a puxou para mais perto, fechando os olhos. O sono as alcançou em poucos segundos, um descanso merecido, lado a lado, em seu porto seguro.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: