Capitulo 37
O praguejar de Heather ecoou pela cabine do leme, uma exclamação de pura frustração que rasgou a tensão já pesada no ar. O silêncio do guincho, que antes parecia um som contínuo e reconfortante, agora era uma ausência assustadora. A capitã socou o painel de controle, a raiva fervendo em suas veias.
Seu olhar voou para a cama, onde Mei dormia, o rosto sereno sob a manta. A imagem da engenheira ferida, os gritos de dor ainda ecoando em sua memória, fez a raiva de Heather se transformar em desespero. Voltar para Dutch Harbor era uma necessidade, não uma opção. Mas como? O guincho era o coração da pesca. Sem ele, os covos continuariam no fundo do mar e o prejuízo seria enorme.
— Droga, droga, droga! — ela murmurou, passando as mãos pelo rosto, sentindo o suor frio e o tremor nas pontas dos dedos. A voz de Mei, pouco antes de adormecer, ecoou em sua mente: Eles precisam de você. A tripulação confiava nela para levá-los para casa, para mantê-los seguros. E agora, ela estava sozinha com o problema.
A solução, no entanto, veio tão rapidamente quanto a frustração. Não, ela não estava sozinha. Ela tinha Mei. A engenheira, o gênio que havia resolvido todos os problemas do Queen Seas até então. Mas Heather havia prometido que Mei descansaria. Ela prometeu protegê-la. E agora, teria que acordá-la e pedir que ela consertasse a máquina que causou seu ferimento.
A culpa a invadiu, mas foi rapidamente substituída pela necessidade. Não havia outra forma. Heather se aproximou da cama, o coração martelando no peito, cada passo um peso de arrependimento. Ela ajeitou a manta de Mei, observando a leveza de sua respiração. Por um segundo, quis deixá-la dormir, lidar com o problema sozinha, tentar encontrar uma solução alternativa. Mas ela sabia, no fundo, que não existia. Apenas Mei, com seu conhecimento e sua habilidade, poderia tirá-los dessa situação.
Ela tocou de leve o ombro de Mei, a voz saindo mais baixa do que o pretendido.
— Mei... Mei, meu amor.
A engenheira se mexeu, os olhos se abrindo devagar, piscando contra a luz. A dor na sua expressão era evidente.
— Hattie? — ela murmurou, a voz grogue de sono.
— Me desculpa por te acordar. — Heather sussurrou, a voz embargada. Ela se ajoelhou, segurando a mão de Mei. — O guincho... ele parou de funcionar, o cabo não se move.
Os olhos de Mei se arregalaram. Ela sabia o que isso significava. Eles estavam presos no meio do mar sem poder recolher as gaiolas. Ela se sentou, soltando um gemido de dor, o ombro ferido protestando contra o movimento.
— O quê? Mas... eu tinha verificado o sistema.
— Eu sei. Me desculpa, eu devia ter te escutado antes, devia ter trocado aquele guincho. Eu fui estúpida. Mas agora precisamos de você. Eu não sei o que fazer.
A confissão de impotência de Heather era a coisa mais honesta que Mei já havia escutado. A capitã, a mulher que parecia ser capaz de qualquer coisa, estava pedindo ajuda. A dor no ombro ainda latej*v*, mas a necessidade da tripulação era mais forte.
— Eu... eu consigo. Me explica o que aconteceu. — ela disse, se esforçando para se concentrar.
Heather suspirou de alívio, a gratidão enchendo seus olhos. Ela se levantou e pegou um tablet, mostrando a Mei o diagrama do guincho, o mapa de cabos e as informações sobre o que poderia estar acontecendo. Mei, apesar do cansaço, estava totalmente focada.
— O óleo... ele vazou e congelou. O pistão deve ter travado. Ou a válvula de alívio de pressão. — ela murmurou, analisando o diagrama com uma velocidade impressionante. — A gente precisa desobstruir e limpar o sistema para ver se o guincho volta a funcionar.
— E como fazemos isso? — Heather perguntou, a voz cheia de esperança.
— Eu... eu não sei se consigo ir lá fora. — Mei admitiu, com um gemido de dor ao tentar mover o braço imobilizado. — O frio... eu não tenho como me mover bem.
— Você não precisa ir lá fora. Você fica aqui, no calor, e me diz o que fazer. Eu vou ser suas mãos.
Mei olhou para ela, surpresa. Heather, a capitã do barco, com toda a sua experiência, estava se oferecendo para ser guiada por ela, a engenheira. Ela estava demonstrando a total confiança que tinha em Mei.
— Mas... você tem certeza? É perigoso.
— O que é perigoso é ficar aqui. Você me diz o que fazer, e eu faço. Eu confio em você, Mei. Mais do que em qualquer um.
Aquelas palavras fizeram o coração de Mei se aquecer. A confiança de Heather era um remédio para sua dor. Ela sabia que precisava fazer isso.
— Ok. — ela disse, sentando-se com dificuldade. — Eu vou te guiar pelo rádio. Você pega a caixa de ferramentas e vai para o convés. Eu vou te dizendo o que precisa ser feito. Vamos precisar de um maçarico, um desengraxante e um pano.
— Eu pego. — Heather disse, aliviada, indo pegar os equipamentos.
— E Igor... ele já me ajudou antes, ele pode te ajudar. — a voz de Mei era firme.
A menção de Igor fez a mandíbula de Heather se tensionar. A fúria que sentira momentos antes voltou, azeda e crua. O rosto de Igor, pálido e chocado, não saía de sua mente, mas a culpa por ter colocado Mei em perigo ainda era avassaladora. Ele estava tão perturbado que não servia para nada, só para piorar tudo.
— Não. — Heather respondeu, sua voz seca. — Ele não vai ajudar.
— Hattie, por favor. — Mei falou, com um tom de voz que não admitia discussão. — Você precisa de ajuda lá fora. Ele é esperto, e já me ajudou antes. Eu sei que ele errou, mas ele precisa de uma chance de consertar. E nós precisamos de um par de mãos extras.
A capitã parou por um instante, a razão lutando contra o orgulho e a raiva. Mei estava certa. A situação era urgente, a segurança de todos dependia disso. E a confiança que Mei depositava em Igor, mesmo depois do que aconteceu, era uma prova de sua generosidade. Era um lembrete cruel de que, embora Heather quisesse proteger Mei do mundo, a engenheira era uma mulher forte, capaz de lidar com as suas próprias decisões.
Heather suspirou, engolindo o orgulho e o medo.
— Está bem. Mas se ele não fizer exatamente o que eu mandar, essa vai ser a última temporada dele no Queen Seas.
— Ele vai fazer. Não se esqueça que tudo não passou de um acidente. — Mei murmurou, fechando os olhos novamente, o rosto contraído pela dor.
Heather assentiu, embora Mei não pudesse ver. Ela se preparou para o trabalho, vestindo o casaco mais pesado e as luvas. Pegou a caixa de ferramentas, verificando se tinha tudo o que Mei havia pedido. Antes de sair, se ajoelhou novamente ao lado da cama e beijou a testa da engenheira com a ponta dos lábios.
— Eu já volto, meu amor. Fique na minha cadeira na casa do leme.
O vento cortava o rosto de Heather no convés, o som alto e ensurdecedor. Ela se aproximou do guincho, onde Boris e Victor já estavam tentando, em vão, fazer com que ele voltasse a funcionar. O metal estava coberto de uma camada grossa de gelo e óleo.
— O que você acha que aconteceu, capitã? — Boris perguntou, sua voz séria.
— O guincho travou. O óleo vazou e congelou. — Heather explicou, sua voz saindo rouca. — A Mei vai nos guiar.
Boris olhou para o rádio na mão de Heather e depois para a casa do leme, mas não disse nada. Apenas assentiu e se afastou. A presença de Igor não demorou para aparecer. Ele parecia um fantasma, sua cabeça baixa, as mãos enfiadas nos bolsos do macacão.
— Igor... — Heather começou, a voz ainda dura. — A Mei disse que você pode nos ajudar. Mas se você não fizer exatamente o que eu mandar, você vai ser demitido. Entendeu?
Igor levantou a cabeça. Seu olhar estava cheio de arrependimento e um medo que Heather reconheceu de imediato. Era o medo de perder a confiança de alguém que ele admirava. Ele assentiu com a cabeça, os olhos fixos na capitã.
— Eu entendi. Eu vou fazer tudo que você mandar.
Heather ligou o rádio.
— Mei, estamos prontos.
A voz de Mei soou pelo rádio, calma e concisa.
— Ok, Hattie. Estou com o diagrama aqui. O problema é no sistema de pistão hidráulico, como suspeitamos. O vazamento fez o óleo congelar e travou a válvula. Precisamos liberar essa pressão. — A engenheira tentava ver o que estava acontecendo no convés através do vidro, mas a neblina era densa.
— Certo. — Heather respondeu, analisando o guincho.
— Primeiro, precisamos isolar o circuito. Veja o grupo de válvulas de segurança, na base do guincho, à direita. — Mei instruiu, sua voz carregada de uma autoridade técnica. — São três, com as porcas de travamento azuis. Igor, preciso que você segure firme a mangueira hidráulica principal, a mais grossa, enquanto a capitã trabalha. Se ela começar a ceder, me avise imediatamente. Há muita pressão.
Igor correu para a mangueira indicada, seus olhos fixos e concentrados.
— Hattie, com a chave inglesa maior, a de dezoito milímetros, você vai desatarraxar a porca do meio, a da válvula de alívio de pressão. Vá com cuidado, o óleo pode estar sob pressão e congelado.
Heather pegou a chave, os dedos já dormentes. Ela se inclinou, sentindo o frio do metal queimar a luva. O som do vento uivava, mas a voz de Mei era cristalina em seu ouvido. Ela começou a girar, sentindo a porca ceder lentamente. Um pequeno chiado se fez ouvir, e uma névoa fina de óleo e vapor escapou.
— É isso! Está liberando. Deixe sair a pressão, mas não remova a porca completamente ainda. — Mei comandou. — Igor, está tudo bem com a mangueira?
— Firme, Mei! — Igor respondeu, o rosto tenso.
— Agora, Hattie, com o maçarico, vamos aquecer a base do pistão principal. O gelo está impedindo o movimento. Igor, fique de olho nos fragmentos de gelo caindo e avise se algo grande cair no convés.
Heather ligou o maçarico, o fogo crepitando no ar. Ela aqueceu o metal lentamente, sentindo o gelo se liquefazer e o óleo começar a escorrer. O cheiro de diesel queimado se misturou ao ar salgado. Era um trabalho delicado, o metal não podia superaquecer.
— Perfeito. O aquecimento está liberando o travamento. Agora, com o desengraxante e o pano, limpe toda a área do pistão e da válvula que você abriu. Igor, ajude a passar os panos e as ferramentas.
Igor se aproximou, auxiliando Heather com uma eficiência que ela não esperava. As mãos dele, apesar de pesadas, eram ágeis.
— Agora a parte mais delicada. A válvula de retenção, que está logo acima. Ela deve ter alguma obstrução interna por causa do congelamento. Você vai precisar do seu canivete multiuso, a lâmina mais fina. Insera-a com cuidado na fresta da válvula e tente soltar qualquer gelo ou sujeira solidificada. É uma 'gambiarra', eu sei, mas pode nos dar o movimento que precisamos para as últimas gaiolas. — A voz de Mei fez uma pausa. — Mas preciso que você entenda, Heather. Isso é uma solução temporária. Essa peça, o conjunto do pistão e essa válvula, precisarão ser substituídos em Dutch Harbor. O sistema está comprometido e não vai aguentar a temporada inteira.
O coração de Heather se apertou. Ela já esperava por isso, mas ouvir de Mei, tão direta e técnica, tornava a realidade mais dura. Eles teriam que ficar uns dias em Dutch Harbo até voltar para concluir a temporada. Isso atrasaria um pouco a pesca e permitiria que os outros barcos tomassem o seu lugar no mar.
— Eu entendi, Mei. — ela respondeu, a voz rouca. — Nós vamos para o porto assim que terminarmos aqui. Não se preocupe.
Com o canivete, Heather seguiu as instruções de Mei, inserindo a lâmina na fresta e sentindo pequenos estalos enquanto fragmentos de gelo e resíduos se desprendiam. A cada movimento, a esperança crescia. Igor observava, silencioso, sua respiração pesada.
— Tenta agora, capitã. Tenta ligar o guincho. — a voz de Mei veio, cheia de expectativa.
Heather posicionou-se, o corpo tenso de expectativa, e ligou o guincho. A máquina gem*u, rangendo com o esforço, e por um segundo, Heather pensou que havia falhado. Mas então, com um ronco grave e um novo chiado, o guincho voltou a se mover, puxando a gaiola de volta à superfície. Era um som mais áspero do que o normal, mas funcionava.
A tripulação soltou um grito coletivo de alívio. Igor deu um soco no ar, um sorriso quase irreal em seu rosto. Heather desabou no chão, ofegante, sentindo o suor frio escorrer pela espinha. Ela não conseguia acreditar que havia conseguido. O trabalho estava feito. Eles iriam conseguir recolher os covos e voltar para o porto.
Heather correu para a cabine, o coração disparado de alívio e gratidão. Ela encontrou Mei já deitada novamente, o rosto pálido, mas um sorriso fraco em seus lábios. A capitã se ajoelhou ao seu lado, segurando a mão da engenheira com a ponta dos dedos.
— Nós conseguimos. Você é incrível.— Heather sussurrou, a voz trêmula de emoção.
— Não teria conseguido sem você Hattie. — Mei respondeu, fechando os olhos. — Agora vai lá. Termina de puxar os covos para que possamos ir para casa.
Heather assentiu, beijando a testa de Mei. Ela sabia que a engenheira precisava descansar. A capitã voltou ao leme, a determinação renovada. A voz dela soou pelo rádio, clara e firme.
— Atenção, tripulação! Finalizem o trabalho e preparem a carga. No porto, vamos fazer a descarga mais rápida que já fizemos. A Mei precisa de um hospital e temos que consertar o guincho.
Fim do capítulo
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