Capitulo 36
Heather estava de pé, uma das mãos firme no manete de controle, a outra apoiada no console. Mas, mesmo com os olhos fixos nos instrumentos, sua atenção voltava sempre para o canto da cabine. Ela deixou a porta aberta, para que pudesse verificar Mei a cada minuto, encolhida sob uma manta grossa de lã, em um sono profundo.
O contraste entre o barulho do mar e a serenidade de Mei quase parecia irreal. O peito dela subia e descia devagar, os lábios entreabertos no descanso. O frio do Bering parecia não a alcançar, porque Heather havia deixado o aquecedor no máximo.
Um alívio quente percorreu o corpo de Heather ao vê-la ali. Nos últimos dias, tudo tinha sido tempestade, no mar, no convés, mas principalmente dentro dela. Assumir seus sentimentos parecia ter arrancado um peso enorme de suas costas. Pela primeira vez em anos, ela não sentia que precisava ser forte e durona o tempo todo. Mas o alívio vinha acompanhado de outro peso: o da responsabilidade. Não apenas como capitã, mas como alguém que agora tinha muito mais a perder. Ela precisava fazer aquela relação funcionar, pois não queria perder Mei de novo.
Heather largou o manete por alguns instantes, deixando o piloto automático assumir. Com passos silenciosos, pegou a manta que havia escorregado um pouco do corpo de Mei e a ajeitou com cuidado. Seus dedos tocaram de leve os cabelos pretos, frios pela umidade do ar.
Mei se mexeu um pouco, murmurando algo incompreensível no sono, e Heather conteve o impulso de se inclinar mais. O coração dela se apertou. Por um instante, quis deixar o mundo lá fora sumir e apenas permanecer ali, vigiando-a.
Mas a responsabilidade chamou de volta. Ela respirou fundo, retornou ao leme e fixou os olhos novamente na linha escura e instável do horizonte. O mar ainda não tinha dado trégua, e Heather sabia que não podia falhar. Não quando tinha uma tripulação inteira dependendo dela.
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Mei acordou com uma sensação estranha de conforto, algo incomum no mar. O primeiro impacto foi o contraste entre o frio que rondava o barco e o calor que a envolvia por baixo da manta. Virou-se lentamente e percebeu o tecido grosso bem ajustado sobre seu corpo. Não lembrava de ter se coberto sozinha.
Os olhos ainda pesados de sono demoraram alguns segundos para se ajustar à penumbra iluminada apenas pelos painéis de controle e pelas luzes esparsas do convés refletidas no vidro. Então a viu.
Heather estava no leme, ereta, firme, os ombros tensos como se sustentassem não apenas o peso da embarcação, mas também o de todos que estavam a bordo. O brilho da tela dos monitores iluminava seus traços marcados pela vigília. Havia cansaço, sim, mas também algo sereno na maneira como ela mantinha os olhos no horizonte.
Mei ficou alguns instantes só observando. Uma parte dela se surpreendia em perceber a ternura escondida nos pequenos gestos da capitã. O modo como ajeitava os controles com cuidado, como respirava fundo antes de mudar o rumo, como voltava os olhos discretamente para a cama, certificando-se de que ela ainda estava ali.
— Você ficou de guarda a noite toda... — murmurou, a voz rouca de sono.
Heather se virou devagar, como se já esperasse que Mei fosse acordar. Um sorriso suave, cansado mas verdadeiro, formou-se em seus lábios.
— E ficaria outras tantas, se fosse preciso.
Mei sentou-se devagar, abraçando os próprios joelhos por alguns segundos. O calor da cabine a envolveu, mas junto dele veio a estranha sensação de segurança.
— Você não precisava se preocupar tanto comigo... — disse, tentando quebrar o peso da atmosfera, mas a frase soou mais tímida do que pretendia.
Heather soltou um riso baixo, negando com a cabeça.
— Você ainda não entendeu, Mei... não é só preocupação, se você estiver bem, pode ter certeza que fico mais tranquila. Se tenho você aqui, é porque quero, porque preciso. — Fez uma pausa, o olhar firme, sem desviar. — Quero que durma aqui comigo todas as noites, que volte a usar o meu banheiro. Que faça desse lugar o seu também até o fim da temporada. E que não trabalhe em outro barco além deste.
As palavras acertaram Mei de um jeito inesperado. O peito dela se apertou, mas era um aperto doce, como se algo que ela temia finalmente fosse dito em voz alta. Sem pensar muito, inclinou-se para frente e se aproximou, os pés descalços tocando o piso gelado da cabine até estar diante da cadeira de Heather.
Heather ergueu a mão, tocando de leve o queixo de Mei, guiando seu olhar para o dela. Não houve pressa. Apenas a respiração das duas se encontrando no ar frio. O beijo aconteceu lento, macio, carregado de um calor que parecia desmentir a manhã gelada do Bering. Mei relaxou os ombros, sentindo a tensão que havia carregado nos últimos dias se dissolver mais ainda.
Quando se afastaram, Heather manteve a testa colada à dela, respirando fundo.
— Fica comigo, sempre. — Não foi uma ordem, nem um pedido. Foi quase uma confissão.
Mei fechou os olhos, deixando escapar um sorriso pequeno, mas sincero.
— Eu não vou a lugar nenhum. — Sua voz saiu baixa, mas havia firmeza. — Só não esquece de me deixar cuidar de você também.
Heather inclinou-se mais uma vez e roubou um beijo rápido, mas cheio de ternura. Depois soltou a mão de Mei com relutância, permitindo que ela se afastasse.
Mei ajeitou a manta de volta sobre a cama, como se guardasse aquele lugar para quando retornasse. Antes de sair, olhou uma última vez para Heather, que já voltava as mãos ao leme, mas com um sorriso suave ainda preso nos lábios.
— Eu volto — disse Mei, já na porta.
Heather respondeu sem olhar, mas sua voz carregava uma certeza tranquila.
— Eu sei.
O vento ainda soprava forte, mas o mar estava mais calmo que no dia anterior. O convés estava encharcado, brilhando sob a luz cinzenta da manhã, e blocos de gelo ainda se acumulavam nos cabos e corrimões. O Queen Seas balançava firme, exigindo atenção em cada movimento.
— Vamos, rapazes! — a voz de Boris ecoou acima do som do guincho, enérgica como sempre. — Hoje o mar não espera ninguém!
Os homens se alinharam em suas duplas. Hans, sempre de bom humor, deu um tapa no ombro de Igor.
— Hora de pescar, parceiro. E vê se não faz corpo mole.
Igor lançou um olhar de soslaio, mas não retrucou. Apenas ajeitou as luvas, concentrado.
Mei ficou ao lado de Victor, que a cumprimentou com um aceno discreto.
— Pronta? — perguntou, sua voz grave quase se perdendo no barulho das correntes.
— Sempre. — Mei puxou o gorro mais para baixo e sorriu, sentindo o frio morder seu rosto.
O primeiro cesto emergiu da água, pesado e coberto de algas e gelo. Mei e Victor trabalharam em sincronia, os movimentos quase automáticos: Victor segurou a gaiola e Mei o ajudou . O esforço fazia o corpo esquentar, e a engenheira sentia os músculos responderem, firmes.
Hans aproveitava para brincar enquanto trabalhava, como se a dureza do mar fosse só mais uma desculpa para soltar piadas. Normalmente era Igor que fazia o papel da engraçadinho, mas ele estava calado desde que notou que Mei não tinha dormido na cabine junto com eles naquela noite.
— Ei, Mei, se você continuar assim vai nos deixar mal. Nem parece que é sua primeira temporada de neve com a gente.
Ela riu, sem se ofender.
— E você, Hans, vai acabar se cansando mais de falar do que de separar os caranguejos.
— Touché! — ele respondeu, arrancando gargalhadas até de Boris, que observava tudo de perto.
O respeito dos homens não vinha apenas do esforço físico de Mei, mas da maneira como ela se mantinha firme, sem reclamar, sem pedir favores. Com cada covo puxado, cada movimento preciso, ela mostrava que era parte da equipe.
Victor inclinou-se um pouco para falar baixo, apenas para ela ouvir
— Eles confiam em você. Dá pra ver.
Mei não respondeu de imediato. Apenas assentiu, concentrada em cortar uma corda congelada que prendia a rede. Dentro dela, uma pontada de orgulho se misturava ao frio do vento.
Quando o guincho ergueu outra gaiola, a corrente repuxou de maneira brusca. O convés tremeu, as botas escorregaram no gelo. Mei quase perdeu o equilíbrio, mas Victor estendeu o braço, firme, segurando-a antes que caísse.
— Cuidado. — Ele disse, com seriedade.
— Obrigada. — Mei respondeu, recuperando o fôlego. O coração batia acelerado, mas ela manteve a compostura.
No ritmo da manhã, as piadas de Hans, os resmungos silenciosos de Igor e as ordens de Boris criavam uma cadência própria. A cada covo cheio erguido, a tripulação se movia como engrenagens de uma mesma máquina, e Mei fazia parte desse todo, sem ressalvas.
Quando uma breve pausa foi chamada, Boris reuniu o grupo.
— Bom trabalho. Mas o mar não dá trégua. Vamos manter o foco. Vamos esperar e depois trabalhar sem descanso, essa pode ser a fileira que vai nos levar para o primeiro descarregamento em Dutch Harbo.
Ele lançou um olhar rápido para Mei, e pela primeira vez ela notou algo além da disciplina habitual nos olhos dele. Era aprovação. Respeito conquistado. Boris tinha sido o mais difícil de conquistar. Com seu jeito bruto e suas falas machistas, ele demorou para aceitar que Mei era uma parte essencial da tripulação. Mas agora, depois de ter o barco e sua vida salvas pela engenheira, os seus conceitos e crenças começavam a vacilar.
Enquanto ajustava as luvas novamente, Mei ergueu os olhos para a casa do leme. Lá em cima, Heather observava, atenta. Por um instante, seus olhares se encontraram através do vidro. Mei sorriu e Heather correspondeu.
Mesmo com a pescaria indo bem, Heather se preocupava com a segurança de todos, porque tudo poderia piorar em poucos minutos. E como uma intuição, o mar começou a se agitar de forma traiçoeira. O frio cortava como lâminas, e o vento gelado arrastava pequenas agulhas de gelo que se chocavam contra os rostos da tripulação. As cordas das gaiolas estalavam a cada puxada do guincho, e o balanço constante do barco exigia atenção máxima.
Mei ajustava as luvas, o gorro puxado firme sobre os cabelos molhados de suor e sal. Victor estava ao seu lado, observando cada movimento, pronto para intervir se necessário. A parceria entre os dois já era natural: cada comando silencioso, cada gesto, se entendiam sem precisar falar.
— Covo na linha cinco! — gritou Boris, levantando a voz acima do rugido do mar. — Vamos puxar com cuidado, pessoal!
Hans já segurava a corda da gaiola colocando-a no guincho, com Igor do outro lado, ambos inclinando o corpo contra o peso gelado que emergia da água. Mei respirou fundo, posicionando-se para ajudar a guiar a gaiola para o convés.
Tudo parecia correr normalmente até que, em um movimento brusco, Igor escorregou no convés coberto de gelo. A gaiola escapou de suas mãos e balançou perigosamente sobre Mei. Heather tentou controlar o cabo do guindaste, mas o impulso que Igor deu, foi muito forte.
— Cuidado! — gritou Hans, avançando, mas não a tempo de segurá-la completamente.
Mei tentou recuar, mas o gelo sob os pés não colaborava. A gaiola bateu no seu ombro, desequilibrando-a, e o metal frio raspou contra o convés fazendo um som que fez todos congelarem por um segundo. Ela caiu, a cabeça girando com o impacto, e um fio de sangue começou a escorrer do canto da testa.
— MEI! — Heather gritou, sua voz atravessando o convés como um trovão.
O grito de Heather ecoou, cortando o ar gélido e paralisando a todos no convés. O coração da capitã martelava no peito, cada batida uma punhalada de medo. A imagem de Mei caída, com a mão no ombro e o sangue escorrendo pela testa, a atingiu como uma onda. Por um segundo, a razão a abandonou. O medo que ela havia tentado enterrar, de que algo acontecesse a Mei, veio à tona com uma força avassaladora.
O tempo pareceu congelar. Igor, de pé, estava pálido. Seus olhos vidrados na gaiola pendurada, como se não pudesse acreditar no que havia acontecido. Victor e Boris, no entanto, reagiram de imediato. Victor correu para o lado de Mei, ajoelhando-se e falando com ela em voz baixa. Boris estava ao lado de Igor, afastando-o do centro da confusão, mas sem tirar os olhos da engenheira.
— Hans, assume o leme! — Heather gritou, sua voz ainda trêmula, mas carregada de uma autoridade que não admitia contestação. — Agora!
Ela jogou o rádio no painel e disparou para fora da casa do leme, descendo a escada de metal com a agilidade de um felino. O vento e o frio pareciam não existir. Seus olhos estavam fixos apenas em Mei.
— Mei! Mei, você consegue se mexer? — Heather ajoelhou-se ao lado dela, ignorando o gelo que queimava os joelhos. A mão dela voou para o rosto de Mei, afastando os fios de cabelo grudados na testa ensanguentada.
Mei tentou se levantar, mas soltou um gemido de dor, voltando a cair.
— Não... meu ombro... ele dói... — sua voz era fraca, e ela tremia. O impacto fez a cabeça dela rodar, a náusea subindo à garganta.
Victor a segurava gentilmente, tentando mantê-la estável.
— O ombro... — Heather murmurou para si mesma, seu olhar varrendo a engenheira, percebendo a desarticulação de imediato. A raiva a invadiu. Por um segundo, esqueceu-se de Mei, e virou o rosto para Igor, que estava petrificado, sem saber o que fazer.
— Seu filho da puta! — Heather gritou, levantando-se e agarrando a jaqueta de Igor pela gola com uma força que o fez cambalear. — Olhe o que você fez! Porr*, Igor, olhe para ela! Você não consegue nem prestar atenção no que faz?
— Capitã, por favor, se acalme! — Boris interveio, segurando o braço de Heather com firmeza, mas seus olhos estavam fixos em Igor com uma censura gelada. — Ele sabe o que fez. A Mei precisa de ajuda agora.
As palavras de Boris a atingiram como um balde de água fria. Ele tinha razão. Sua fúria não ia ajudar Mei. Heather soltou a gola de Igor com um empurrão e correu para a cozinha. Victor já havia carregado Mei para dentro, e a sentou em um banquinho, sua cabeça apoiada na mesa de metal.
— Meu Deus... — Heather murmurou, sentindo as lágrimas se acumularem. Ela correu para a caixa de primeiros socorros, puxando gazes e desinfetante. — Victor, ela está lúcida?
— Sim, capitã. Ela respondeu todas as minhas perguntas. — Victor disse, segurando a mão de Mei.
Heather limpou a ferida na testa de Mei com cuidado, o sangue se misturando ao desinfetante. Mei estremeceu, mas não protestou. Os olhos da engenheira estavam fixos nos de Heather, cheios de uma dor que ia além da física.
— Eu sinto muito, Mei. — Heather sussurrou, a voz trêmula.
Ela examinou o ombro de Mei, a palpação confirmando o que ela já suspeitava.
— Seu ombro está deslocado. Victor, você precisa colocar no lugar. — Heather sabia que o marinheiro era o mais forte e o mais experiente em primeiros socorros.
Victor assentiu, pegando a mão de Mei.
— Vai doer, Mei. Mas vai ficar tudo bem. — Heather segurou a mão de Mei com força, garantindo que ela não se movesse, e se inclinou, beijando a testa dela, confortando-a.
Mei soltou um grito abafado, mas o som foi estrondoso. O rosto dela ficou pálido e ela se jogou para frente, a cabeça contra o peito de Heather. O ombro estava no lugar.
Heather a abraçou, sentindo o corpo da engenheira tremer. As lágrimas desciam pelo rosto de Heather sem controle. Ela a segurou com força, consolando-a. Quando Mei se acalmou, Heather pegou analgésicos e a fez tomar com um copo de água. Depois procurou por uma tipóia e imobilizando o braço de Mei.
— Vamos para o leme, você precisa descansar. — Heather murmurou, pegando Mei no colo com cuidado e subindo a escada.
Hans se virou, assustado, quando viu Heather com Mei no colo.
— Capitã... Ela vai ficar bem?
— Sim, Hans. Volte para o seu posto. Eu estou assumindo. — Heather respondeu, com a voz séria. Ela se certificou de que Mei estava segura em seus braços, e entrou na cabine, fechando a porta atrás de si.
Ela a deitou em sua cama, tirando os sapatos e as roupas molhadas com cuidado, cobrindo o corpo trêmulo com a manta mais grossa que encontrou.
— Você precisa descansar, meu amor. Logo vamos para o hospital.
— Hattie, não podemos voltar agora. Temos que recolher os covos restantes. — Mei sussurrou.
— Não Mei, sua saúde vem em primeiro lugar. — Heather sentou ao seu lado.
— Eu estou bem agora. Juro que consigo aguentar. O que os médicos podem fazer? Já colocamos o ombro no lugar. Por favor, termine de puxar as gaiolas. E depois voltamos.
— Promete que está bem mesmo? — A capitã segurou o rosto da mais nova.
— Sim, agora me deixe aqui e vai comandar o barco. Eles precisam de você.
— Tá bom, mas prometo que vamos chegar logo.
Mei não respondeu, apenas fechou os olhos e se entregou ao sono, a dor, o trauma e o alívio que sentia.
A capitã se levantou, ajeitou a manta e, com um último olhar, voltou ao leme. O mar de Bering ainda era uma ameaça, mas agora ela tinha um novo objetivo. Ela pegou o rádio.
— Atenção, tripulação. Finalizem o trabalho e preparem a carga. Vamos fazer a descarga mais rápida que já fizemos. A Mei precisa de um hospital. É uma corrida contra o tempo, e não podemos falhar.
Ela olhou para o horizonte, o coração apertado, mas a determinação renovada. A temporada era secundária. A segurança de Mei era o que importava. Ela iria levá-la de volta para o porto, custasse o que custasse. Só que nem tudo saiu como ela esperava. Depois de alguns minutos, o guincho parou de funcionar e Hather soltou um palavrão. E agora, como eles iriam terminar de puxar os covos?
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Quantas emoções! Como eles vão sair desse problema agora que a engenheira está machucada?
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Fim do capítulo
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