Capitulo 35
O amanhecer trouxe apenas uma claridade cinzenta e pesada. O mar parecia se erguer contra o Queen Seas, com ondas que faziam o casco estremecer a cada impacto. O vento vinha cortante, levando consigo pequenas agulhas de gelo que batiam no rosto dos homens e os obrigavam a encolher os ombros dentro das jaquetas. A neblina tornava tudo mais hostil, como se o horizonte tivesse desaparecido.
Heather segurava firme o manete, os olhos fixos no balanço do barco. Cada movimento, cada correção, era vital para manter a estabilidade. Ela sentia a pressão da tripulação nas suas costas, todos confiavam que ela saberia segurar o Queen Seas contra a fúria do mar.
E por dentro, sua mente estava tão turbulenta quanto as ondas. As lembranças do orgasmo roubado, voltavam como um golpe, misturadas à frustração de ter magoado Mei mais uma vez. A vontade de tirar Mei do convés para que elas pudessem resolver as coisas ardia em seu peito, mas era engolido pelo medo de perdê-la para sempre. O mar gritava à sua volta, e Heather sentia como se cada onda fosse um reflexo do que se agitava dentro dela, violento, desordenado, incontrolável.
No convés, a tripulação já estava em ação, o frio arrancando resmungos e piadas rápidas que mal disfarçavam a tensão. Boris ergueu a voz, comandando:
— Vamos lá, pessoal! — o tom era firme, mas havia uma ponta de humor. — Esses covos não vão se puxar sozinhos.
Hans lançou o gancho e capturou a corda que estava presa na boia.
O guincho roncou quando o cabo veio pesado encharcado de gelo. Victor e Hans seguraram firme, tossindo com o vapor que saía de suas bocas.
— Parece que o Bering resolveu brincar com a gente hoje — comentou Hans, tentando sorrir.
— Brincar? — Victor resmungou, batendo os pés para espantar o frio. — Isso aqui é pancada de verdade.
Mei estava ao lado deles, atenta aos movimentos, ajudando a puxar a gaiola quando ela emergiu da água. O ferro vinha coberto de gelo, rangendo contra o convés.
— Cuidado com a mão, Victor — alertou ela, firme. — O gelo faz o cabo escorregar. Segura mais baixo.
— Já vi que você gosta de dar ordens, novata — Victor brincou, mas acatou a instrução. — Mas admito, você tem olho bom.
Boris bufou, puxando um amontoado de caranguejos da mesa, fazendo a conferência rápida.
— Bons bichos. Se o mar não nos derrubar, enchemos os tanques antes do previsto. — O chefe de convés fez sinal para a capitã, indicando que aquele corvo veio com 400 caranguejos-das-neves. Uma excelênte média.
Igor veio com uma caixa de iscas congeladas, jogando algumas para o lado de Mei.
— Toma, Mei. Vamos colocar no triturador, antes que minhas mãos virem pedra.
Ela pegou o peixe duro, os dedos já doloridos pelo frio.
— Pare de reclamar, Igor. Quanto mais rápido, mais cedo a gente volta a respirar.
Hans riu. Mei sabia colocar Igor no seu devido lugar.
— Respirar? Com esse vento aqui, só falta ele levar meu pulmão embora.
Mesmo em meio à dureza, havia algo bonito na cena: todos cuidando uns dos outros, atentos, ninguém deixava o outro sozinho.
Heather observava de cima, um nó apertado no peito. Cada vez que via Mei abaixar-se para amarrar as iscas, ou erguer a cabeça com o cabelo chicoteado pelo vento, ela tinha medo que a engenheira se machucasse.
Um lampejo de memória a atingiu. O convés sumiu por um instante, substituído por outra cena: ela mesma, aos dezoito anos, ao lado de seu pai, Andrew. Era um dia de tempestade tão forte quanto aquele, e ela ainda aprendia a assumir o leme. O mar tinha jogado o Queen Seas contra uma onda traiçoeira, e Heather foi lançada contra o balção, abrindo o supercílio. Andrew a ergueu, com a calma firme que sempre tivera, e disse: "O mar testa a gente, filha. Mas a gente precisa ser mais teimoso que ele. Nunca solta o leme. Nunca."
De volta ao presente, Heather respirou fundo e manteve as mãos firmes. O mar testava mais uma vez, e agora não era só a pesca que estava em jogo. Era a tripulação, o barco... e o coração que batia mais forte toda vez que seus olhos encontravam a engenheira no convés.
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Depois que todos os covos foram puxados e jogados novamente, Boris organizou a tripulação em duplas para quebrar o gelo que se acumula em cabos, corrimões e guinchos. O frio estava castigando, e o convés já escorregadio exigindo atenção. Eles precisavam fazer esta última tarefa para em fim, descasarem.
Mei trabalhava com Victor. A parceria entre eles fluia com naturalidade, já que na temporada passada ele sempre havia sido gentil com ela. Enquanto os dois golpeiavam o gelo com marretas, Victor puxou conversa para aliviar o peso da rotina.
— Esse vento vai congelar até os pensamentos da gente. — Victor sopra o ar.
— Talvez seja bom... assim a gente esquece que ainda tem semanas pela frente.
Eles riem. O clima é leve, mas Mei não consegue relaxar totalmente.
— Você parece carregando mais peso que só o gelo. Tá tudo bem? — A engenheira sabia que Victor era observador, será que ela podia confiar nele para se abrir?
— Com você eu posso ser sincera... não é fácil lidar com a Heather.
V A Capitã é exigente, né?
Mei riu de leve, mas havia amargura na sua voz.
— Não é só sobre o trabalho, — Mei admitiu. — Ela... é confusa. Às vezes parece que me puxa pra perto. Outras, me afasta com medo da opinião dos outros. Não sei. Parece que nada do que eu faço é suficiente pra ela me assumir.
Victor apoiou a marreta, descansando por um instante, e olhou para ela com seriedade.
— Eu conheço a Heather faz anos. Ela não é simples, nunca foi. Mas vou te dizer uma coisa, Mei: eu nunca vi ela olhar pra ninguém como olha pra você.
Mei arregalou levemente os olhos, surpresa com a observação, e tentou disfarçar voltando ao trabalho.
— Deve ser impressão sua.
— Eu não acho que seja, no dia em que saímos do cais, ela foi bem clara em dizer que vocês estavam juntas e que ninguém tinha permissão para se meter na vida de vocês.
Mei ficou embasbacada. Aquilo era novidade, Heather assumiu a relação delas para a tripulação?
Mei respirou fundo, voltou a levantar a marreta e recomeçou a bater no gelo com mais força, como se descarregasse ali a tensão que carregava.
Victor sorriu, discreto.
— Isso aí. Põe o estresse pra fora. Melhor quebrar gelo do que quebrar a cabeça.
Mei riu, desta vez de verdade, deixando escapar uma fração de leveza. Por alguns segundos, o frio pareceu menos cortante.
Sem que eles percebessem, o rádio próximo à estação de trabalho deles estava aberto, a frequência interna ligada. Na casa do leme, Heather, de pé diante do painel, congelou ao ouvir toda a conversa. Mas uma frase não saiu da sua cabeça.
"Nada do que eu faço é suficiente pra ela me assumir."
As palavras bateram em Heather mais forte do que o vento lá fora. Por alguns segundos, ela segurou o leme sem piscar, o coração disparado. Para ela, Mei era mais do que suficiente, era seu tudo. O orgulho que sentia sempre que via a engenheira resolver algo, o calor que ainda queimava no peito... todas as vezes em que Mei estava próxima. Os toques íntimos que trocaram nas poucas noites de amor, era como um tesouro para a capitã. Em um momento de vunerabilidade deixou Mei pensar que ela não tinha coragem de assumir um compromisso e em um momento de ciúmes, confundiu ainda mais a cabeça da mulher, fazendo ela acreditar que Heather só a queria para satisfazer os seus próprios desejos físicos.
Heather respira fundo, lutando contra a própria angústia. Ela tinha que conversar com Mei, esclarecer tudo. Mas como faria isso com a temporada sendo implacável e cheia de contratempos? Não importava, Mei se tornou a pessoa mais importante na sua vida e ela não podia deixar com que a engenheira pensasse que não era suficiente. Porque a única que tinha sido insuficiente na relação, desde o início, foi ela mesma.
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O vento ainda soprava com força, assobiando pelas frestas da casa do leme, mas a tempestade havia passado, deixando a noite clara e fria. A tripulação dormia, cada um em seu canto, exausta, e o barco parecia suspenso em uma calma quase sobrenatural.
Mei estava acordada, ela tomou um banho quente e estava se preparando para dormir quando recebeu as ordens da capitã.
Mei subiu a escada, a caixa de ferramentas em mãos. Estava exausta, os músculos tensos do longo turno de trabalho, e o coração batia mais rápido do que o normal. Heather precisava dela para verificar o manete do Leme. Ela imaginou algo simples, mecânico, assim que entrou na sala, encontrou a capitã sentada, firme na cadeira, o barco em piloto automático, olhando-a com intensidade.
— Obrigada por subir, Mei — disse Heather, a voz baixa, carregada de emoção.
Mei olhou ao redor e entendeu que não tinha problema nenhum. Ela estava pronta para sair sem dizer nada, quando Heather disse:
— Por favor Mei, fique. Preciso falar com você.
Mei respirou fundo, hesitando por um momento, sentindo o coração apertar. Heather não pedia por favor com frequência. Mei deixou a caixa de ferramentas no chão, aproximando-se lentamente. Parou na frente de Heather, sentindo a presença da capitã preencher o espaço ao seu redor, como se cada gesto, cada movimento tivesse um significado silencioso e profundo.
Heather a olhava com intensidade. O que fez Mei vacilar por alguns segundos. O que ela viu a surpreendeu. Era medo, Heather estava com medo. Mas porque?
— Tudo bem, mas não tenho muito tempo. — Mei sentou na cadeira ao lado da capitã.
— Mei... eu preciso que você me escute. — Sua voz estava embargada, mas firme. Heather tocou na mão de Mei. O toque foi receoso, mas a engenheira não se moveu, o que deu mais confiança para a capitão continuar. — Eu fui covarde. Me desculpa por estragar tudo. Eu não disse nada quando Xiao revelou nosso relacionamento na frente da tripulação, eu não protegi você dos olhares e dos comentários, e depois, quando tivemos a chance de conversar... eu fiquei calada. Eu te deixei magoada. Sei que nada do que eu diga agora pode apagar isso. Mas não vou mais ser covarde. Só preciso que me dê uma chance de consertar tudo.
Mei engoliu em seco, sentindo um nó no peito. Cada palavra da capitã atingia diretamente o que havia ficado suspenso entre elas nos últimos dias: raiva, mágoa, frustração, mas também um desejo profundo de acreditar novamente.
— Eu não sei se consigo acreditar. — Mei murmurou, quase inaudível.
— Eu sei, e você tem todo o direito — Heather respondeu, aproximando o rosto, os olhos fixos nos da mulher ao seu lado. — Mei, desculpa ter demorado tanto para dizer, mas eu te amo e esse sentimento me deixou assustada. Por isso fiquei sem reação quando tudo explodiu ao nosso redor. Não me sentia preparada para encarar as consequência do nosso amor.
O peito de Mei se apertou, a emoção subindo como ondas que ameaçavam transbordar. O silêncio preencheu a sala, interrompido apenas pelo ranger distante do Queen Seas, lembrando que o mundo lá fora ainda existia.
— Eu sinto sua falta em cada segundo que não estamos juntas — continuou Heather, a voz rouca, quase um sussurro - esses dias foram uma tortura sem você.
Mei fechou os olhos, absorvendo cada palavra, sentindo a tensão e a saudade acumuladas se dissolverem aos poucos. A mão dela deslizou pelo braço de Heather, sentindo o calor, a segurança, o toque que prometia cuidado de novo.
— Você não foi a única que errou. — A confissão deixou Heather surpresa. Do que Mei estava falando?
— Não é fácil se aceitar, eu mesmo levei um tempo. Só que eu te enxergava como uma mulher imponente, forte e que não se abalava com nada. Quer dizer, você sempre foi um modelo pra mim. Só que eu esqueci que você também precisa de cuidados, de acolhimento. Eu devia ter sido mais paciente. Me desculpa. — Ver Heather tão frágil, fez com que Mei entendesse que ela era apenas um ser humano, com inseguranças e falhas. Uma mulher que precisava de carinho e compreensão. E isso só se confirmou quando lágrimas solitárias caíram pelo rosto da mais velha. Mei ficou em pé e se colocou entre as pernas de Heather, permitindo que a capitão repousasse a cabeça no seu peito e envolvesse o seu corpo em um abraço cheio de saudade.
— Me desculpa, Mei. Eu devia ter sido mais forte.
— Está tudo bem Hattie, você está pronta para enfrentar isso juntas, agora? — Mei acariciou os fios loiros que escapavam do boné de Heather
Heather se afastou apenas para olhar nos olhos de Mei. Um olhar que tinha todas as respostas.
— Estou pronta. E Mei, você é mais do que suficiente para mim. Nunca mais diga que não é.
A capitã aproxinou os lábios lentamente, esperando que Mei completasse a pequena distância. A engenheira entendeu que Heather tinha escutado a sua conversa com Victor e sorriu. Ela tocou no queixo de Heather.
— Sempre tão controladora. — Falou docemente.
Por um instante, tudo pareceu suspenso: o barulho constante das ondas contra o casco, o ranger metálico dos cabos, até o vento parecia conter a respiração. Então, suavemente, ela puxou Mei para mais perto, e seus lábios se encontraram.
O choque inicial foi como um clarão de calor contra o frio cortante do mar. A pele gelada de Mei começou a aquecer sob a intensidade do toque, e Heather sentiu a rigidez dos ombros dela aos poucos ceder, como se cada segundo dissolvesse a resistência que restava. Mei soltou um suspiro breve, que Heather engoliu no beijo, e o corpo dela finalmente relaxou entre as pernas da capitã.
Heather a segurava com firmeza, mas sem pressa, como se tivesse medo de que Mei escapasse se fosse muito brusca. Os dedos roçaram levemente o quadril dela, ancorando-a ali, e quando Mei respondeu com um beijo mais profundo, Heather quase tremeu de alívio. Era doce, mas também carregado da urgência de tudo o que haviam reprimido.
Quando se afastaram apenas o suficiente para respirar, as testas ainda unidas, o hálito quente de Mei se misturou ao ar frio da casa do leme. Heather sorriu de leve, como se finalmente pudesse descansar, segurou o rosto de Mei com delicadeza, os olhos brilhando.
— Fica comigo esta noite? — pediu, a voz baixa, carregada de desejo e cuidado. — Dorme na minha cama, sob o meu olhar. Eu posso manobrar o barco a noite toda, mas quero ter certeza de que você está descansando, segura, comigo.
— Você não está preocupada que o rapazes possam falar? — Mei precisava perguntar.
— Você é a minha mulher, eles precisam se acostumar.
Mei sentiu uma onda de emoção percorrer o corpo, misturando ternura, amor e alívio. Aproximou-se mais, deixando outro beijo suave e prolongado, cheio de confiança e carinho. O que Heather disse era muito mais do que ela esperava escutar.
— Eu fico. — murmurou Mei, sorrindo.
Heather sorriu radiante, como se o mundo inteiro tivesse se acomodado naquele instante. Com cuidado, ergueu-se levemente segurando na mão de Mei, ajudando-a a se deitar na sua cama. Mei se acomodou, sentindo o corpo relaxar, finalmente seguro e protegido. Heather sentou-se ao lado, dedos deslizando delicadamente pelos cabelos de Mei, garantindo que estivesse confortável, observando cada respiração, cada leve movimento do corpo da engenheira.
— Então quer dizer que já posso te chamar de namorada? — Mei sussurrou. Heather sorriu.
— Eu iria adorar. — Heather deu um selinho na mais nova. — Mas quando a temporada acabar, vamos sair para oficializar. Quero fazer as coisas direito.
— Você voltou a ser a Heather de antes. — Mei murmurou, ela já estava quase dormindo.
— O que você quer dizer? — A capitã aproveitou a vulnerabilidade do sono de Mei para ver o que ela diria.
— A minha Hattie. A que eu sempre amei. — Se a mais velha não estivesse tão perto, provavelmente não teria escutado.
Heather sorriu bobo. Beijou a testa de Mei e disse.
— Boa noite, minha Mei — a voz carregada de carinho. — Durma tranquila, estou aqui.
Mei sorriu, apoiando a cabeça no travesseiro e inclinando-se para dar um último beijo, suave e cheio de amor, nos lábios de Heather.
— Boa noite. Eu te amo, Hattie.
Alívio tomou conta da capitã, ela estava finalmente em paz de novo. Com a mulher que amava em seus braços.
— Eu também te amo, minha doce e linda menina.
O Queen Seas continuou seu caminho silencioso pelo Bering, implacável e majestoso, mas na pequena cabine, o mundo inteiro se reduzia à respiração tranquila de Mei e ao olhar atento de Heather, finalmente em paz com o que sentiam e com a certeza de que, dali em diante, não haveria mais medo ou distância entre elas.
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Fim do capítulo
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