Pontos
Dia 10
O som dos cascos na terra úmida vinha de longe, mas Naiovi já o reconhecia. Ainda de roupa larga e com os cabelos desalinhados, espiou pela janela. Moarã estava lá fora, de cócoras, limpando os cascos de Lança com movimentos quase meditativos. A égua mantinha-se serena, mastigando algo que escapara do bornal de couro. O céu estava claro, mas ainda sem calor – aquele tipo de manhã em que o tempo parece não decidir se abre ou se fecha.
Naiovi vestiu-se, prendeu as mangas e desceu sem fazer barulho. Ao abrir a porta, o cheiro da terra se misturava ao suor fresco do lombo da égua. Moarã não levantou os olhos quando ela se aproximou, mas falou:
– Dormiu?
– Tecnicamente, sim. – Naiovi se abaixou ao lado dela. – Seu chá de folhas amargas funcionou. Meu estômago não agradece, mas o resto do corpo sim.
– Melhor que ficar ouvindo minhocas conversando na sua cabeça a noite toda. – Moarã deu um leve puxão no estribo para testá-lo.
Naiovi observou a sela com atenção, os nós, os fechos. Cada detalhe era rústico, mas bem cuidado. Ela passou os dedos por uma marca na lateral de couro: uma letra M, seguida de um traço longo, gravado à faca.
– Essa marca é sua?
– É dela. – Moarã levantou o olhar para Naiovi pela primeira vez. – Lança nasceu no primeiro ciclo de chuva depois da reforma da vila. Me deram ela quando entrei na guarda, ainda era aprendiz. A gente se criou juntas, de certo modo.
– E por que Lança?
– Porque quando corre, fura o vento. – respondeu como se fosse óbvio. Naiovi assentiu devagar, tentando ocultar o sorriso que ameaçava subir.
– Bonito.
– É literal. – Moarã levantou-se, passou o pano de flanela no flanco da égua e apontou com o queixo – Sobe.
– Agora?
– Antes que ela mude de ideia.
Naiovi hesitou. A sela parecia instável, alta, feita para corpos que já nasciam sabendo onde colocar o peso. Ela levantou um pé e tentou se lançar, mas escorregou na primeira tentativa.
– É como montar uma torre hidráulica que respira. – resmungou entre os dentes.
Moarã não riu – mas o canto da boca traiu o impulso.
– Confia no ritmo e solta o quadril. Você tá subindo como quem opera uma alavanca.
– Porque é o que sei operar. – Naiovi tentou de novo, agora com mais impulso. Conseguiu se ajeitar na sela, mas tensa, com os ombros erguidos como se esperasse uma pancada iminente.
Moarã montou atrás dela com facilidade e ajustou seu corpo ao de Naiovi por alguns segundos.
– Relaxa. Você tá respirando como se fosse explodir. – disse, perto demais do ouvido de Naiovi a sua frente, que inspirou fundo, tentando ignorar o calor da proximidade.
– E você tá muito confortável aí.
– É a sela da minha égua. – respondeu, prática. – A confortável aqui sou eu.
Lança bufou levemente, impaciente, e Moarã puxou as rédeas com cuidado.
– Vamos dar a volta pelo campo seco. É plano. Não corre risco.
– Plano, mas com você guiando, duvido que seja seguro.
– Já tá reclamando antes de cair?
– Eu só me adianto à estatística.
Moarã deu um leve toque com os calcanhares e Lança começou a caminhar em passo lento. Naiovi se agarrou à sela no impulso, mas logo soltou um pouco a tensão, tentando seguir o ritmo.
À medida que avançavam rumo ao campo seco, o som do mato sendo afastado pelos cascos se somava ao ritmo da respiração contida de Naiovi. O corpo dela parecia dividido: parte tentando assimilar o movimento do animal, parte tentando ignorar – sem sucesso – a presença de Moarã logo atrás, sólida e silenciosa.
O calor que vinha do corpo da caçadora se espalhava em ondas discretas, mas constantes. O joelho de Moarã tocava o dela a cada movimento mais brusco. As mãos de Naiovi, que antes estavam tensas no couro da sela, começaram a tremer, não de medo, mas de excesso de estímulo. O cheiro da terra misturava-se ao perfume discreto da pele de Moarã – vivo, levemente cítrico.
Quando Lança enfim emergiu da trilha estreita para o campo aberto ao sul, Naiovi respirou mais fundo, como se precisasse de mais ar para suportar o que não sabia nomear.
O campo seco se estendia diante delas com terra avermelhada e solo duro. O espaço era amplo e sem árvores próximas, apenas com alguns arbustos secos em volta. Lança pisava reconhecendo o terreno com familiaridade.
Moarã então soltou as rédeas por um instante, deixando que a égua seguisse por si só, e passou uma das mãos pela lateral da barriga de Naiovi para ajustar o centro de gravidade.
– Você tá presa demais. – disse em voz baixa, perto. – Montar não é segurar. Precisa ceder.
O toque das palavras ricocheteou direto na espinha de Naiovi. Ela engoliu em seco, ciente demais do contato da mão na sua cintura, da perna pressionando levemente a dela, da voz grave que parecia vibrar dentro de seu próprio peito.
– Se eu ceder demais, posso cair. – tentou retrucar, mas a voz saiu falha, abafada por algo entre adrenalina e vertigem.
– Só vai cair se travar. Solta esse quadril, deixa a bacia acompanhar o passo.
Naiovi fechou os olhos por um breve instante, tentando obedecer. O corpo resistia.
– Melhor. – disse Moarã, percebendo a leve mudança na postura dela. – Agora afasta um pouco os joelhos, não precisa prender ela como se o bicho fosse desmontar. Deixa espaço pra sentir o impulso. Ela avisa antes de mudar o ritmo.
O passo de Lança ganhou leveza. O corpo de Naiovi, ainda rígido, começava a obedecer a outra lógica, mais fluida. A sela deixava de ser um obstáculo e se tornava ponte, mas era difícil manter a concentração com a respiração de Moarã tão próxima. A vigilante empunhou novamente as rédeas com as mãos firmes, mas o corpo dela, moldado à sela, também guiava os movimentos. A cada oscilação, Naiovi sentia a perna de Moarã roçar a sua e o tronco tocar suas costas.
– Agora tenta virar um pouco pro lado esquerdo. Assim, leve, só o peso do corpo. – Moarã guiou com um toque no ombro. – Boa.
O campo parecia rodar em câmera lenta. O sol subia aos poucos, lançando manchas douradas na vegetação ressecada. A sensação de perigo iminente ainda rondava Naiovi, mas não vinha de fora. Vinha de dentro, de um ponto entre o estômago e a garganta.
Lança ganhou ritmo em um trote leve. A poeira baixa se ergueu do solo seco, desenhando um caminho poeirento por onde passava. Moarã manteve o olhar atento, controlando o movimento com destreza, sentindo cada mudança de peso vinda do corpo à frente.
Naiovi havia afrouxado um pouco a postura, mas ainda carregava uma rigidez na lombar. E Moarã reconhecia aquilo: não era medo. Era resistência. O tipo de tensão que vem de quem está acostumada a controlar, do tipo de pessoa que prefere tentar domar a própria vertigem a admitir que foi tocada por ela.
– Deixa a perna escorregar um pouco mais. Não precisa empurrar, só acompanha. – murmurou, como se domasse a própria voz também.
A resposta de Naiovi foi sutil: um leve ajuste do quadril, uma mudança no ritmo da respiração. Moarã sentiu. Era como escutar um tambor por dentro: o batimento do outro ecoando pelo seu próprio corpo. Cada movimento dela reverberava em Naiovi e vice-versa. Aquilo exigia precisão, mas também confiança – e, para elas, isso era mais perigoso que qualquer trote acelerado.
Moarã tentou concentrar-se na égua, nas pistas do terreno, na cadência das passadas. Mas a percepção de Naiovi ali à frente, o calor que emanava dela, o cheiro doce da pele que misturava citriomila e suor recente, tudo isso criava um campo gravitacional difícil de contornar.
– Você segura como quem acha que vai cair o tempo todo. – comentou, tentando manter o tom neutro.
– E não é?! – retrucou Naiovi, o tom entre desafiador e honesto.
– Não é só porque balança que vai te derrubar.
Moarã mordeu a própria língua depois de escutar o que falou.
Fizeram mais uma volta pelo campo. Lança obedecia sem pressa. Os músculos de Naiovi se soltavam aos poucos, mas o centro de gravidade ainda pendia para o controle. Moarã afrouxou um pouco a pressão dos joelhos e aproximou o peito das costas de Naiovi, diminuindo a distância entre seus corpos. O gesto foi quase imperceptível, mas Naiovi sentiu. O ar entre elas ficou mais denso. A vigilante sabia que, naquela altura, não estava mais só ensinando – estava também decifrando.
Naiovi oscilava entre duas linguagens: a da razão, que lhe dava chão, e a do corpo, que agora ameaçava soltar as rédeas da lógica. Estava concentrada, sim, mas o esforço era para não tremer.
Moarã sentia o suor subir pelas costas. Sua respiração acelerava e teve que engolir seco quando Naiovi mexeu-se levemente, encostando sem querer o ombro no seu. O cheiro da cientista bem abaixo de si fazia esquentar seu peito mais que o sol em suas costas. Passou as rédeas para Naiovi.
– Agora relaxa as mãos, não precisa agarrar como se fosse uma arma. Deixa as rédeas um pouco mais soltas. Confia nela, ela te avisa.
– Mas e se ela não avisar?
– Confia em mim, então. Eu aviso.
Silêncio. Só os cascos batendo no chão duro. A resposta de Naiovi não veio em palavras, veio em um gesto: soltou um pouco a mão esquerda e a rédea escorregou entre seus dedos.
Moarã fez um gesto sutil com os calcanhares, e Lança mudou o giro, agora no sentido contrário. Naiovi acompanhou com o quadril, ainda um pouco atrasada. Moarã sorriu por trás dela. A mulher de Kohr estava aprendendo – com relutância, mas também com fome.
Na próxima volta, Moarã encostou os lábios quase sem querer na nuca descoberta de Naiovi.
– Tá pronta pra trotar de verdade?
– Já?! E se eu cair?
– Se cair, cai todo mundo junto.
Naiovi olhou por cima do ombro, e por um segundo, os olhos se cruzaram, próximos. Não havia mais didatismo ali.
Moarã ajeitou o corpo e deu o comando. Lança entendeu o sinal e começou a acelerar. O chão seco fazia as batidas dos cascos reverberarem pelas pernas das duas.
Naiovi arregalou os olhos e trancou o maxilar: o corpo ainda tentando decidir se confiava ou se se preparava para o impacto, mas não havia mais tempo para hesitar. A égua disparou num trote firme, não rápido o suficiente para ser galope, mas veloz o bastante para roubar o fôlego. Naiovi segurou firme as rédeas, mas não o suficiente para interromper a cadência. O corpo dela oscilava para frente e para trás, até começar a encontrar um ritmo no movimento de Lança. Havia medo, sim – mas havia também um riso preso, algo entre vertigem e prazer. A adrenalina tomava conta. Moarã sentia a vibração nos músculos dela.
– Tá indo bem. – gritou com a boca próxima da orelha de Naiovi, tentando se manter audível no vento.
– Isso é loucura! – Naiovi respondeu, com um fio de voz que parecia mistura de riso e pânico.
O trote diminuiu aos poucos, como um coração voltando ao ritmo normal após uma corrida. Moarã puxou levemente as rédeas e Lança obedeceu. O campo seco voltou ao silêncio, salvo pelo som do vento e das respirações ofegantes.
Naiovi arfava, seu peito subia e descia rápido. O rosto levemente suado, olhos arregalados com algo entre desespero e euforia.
– Tá vendo? – Moarã falou – Sobreviveu.
Naiovi ainda estava presa à sela, com as pernas tremendo.
– Sobrevivi…
– Agora é sua vez sozinha. – disse Moarã, lançando-lhe um olhar desafiador e descendo da sela. – Confia em mim: só guia o impulso com o quadril. Ela vai te entender.
Naiovi hesitou, mas assentiu. Moarã deu dois passos para trás, observando, atenta. Lança bufou, impaciente com a demora. A engenheira ajeitou o corpo, firme na sela, e tentou reproduzir o gesto anterior – sutil, com os calcanhares.
Só que, dessa vez, Naiovi empurrou demais.
Lança reagiu de imediato. Com um sacolejo do pescoço e uma resfolegada impaciente, partiu num trote brusco, que em segundos virou quase um disparo. Naiovi gritou uma palavra sem forma e puxou as rédeas com força, tentando controlar como se fosse uma alavanca.
– Não! Não assim! – gritou Moarã, correndo atrás, mas Lança já ganhava velocidade.
Naiovi puxava para o lado errado, o corpo desalinhado. A sela balançava perigosamente. Moarã correu pela lateral, afundando o pé na terra seca, gritando ordens que Naiovi mal ouvia. A visão tremia. O mundo girava com a velocidade e a queda parecia inevitável.
Num impulso que nem ela entendeu, Naiovi tentou virar o corpo, mas desequilibrou. Foi quando Moarã a alcançou. Num único salto, agarrou Naiovi pela cintura, tentando tirá-la da sela, e a puxou contra o próprio peito para evitar que ela batesse direto no chão. O movimento foi rápido, instintivo, mas o peso das duas desequilibrou Moarã.
Lança se desvencilhou com agilidade, trotando alguns metros adiante. O chão veio rápido. Naiovi e Moarã caíram juntas, numa nuvem de poeira seca. Naiovi bateu com as costas em um tufo de capim seco e sentiu sua respiração ser arrancada do peito. Moarã caiu um pouco à frente, ao lado de um arbusto baixo e espinhoso. Naiovi se moveu primeiro, tossindo, com o rosto sujo de terra e os olhos arregalados:
– Moarã! – Naiovi se arrastou até ela, ofegante. A vigilante estava imóvel por um instante longo demais. – Você tá...? – começou a dizer, mas interrompeu-se ao notar a expressão de dor no rosto de Moarã, que apertava a lateral do abdômen com os dentes cerrados.
Então um gemido. Moarã se virou com esforço.
– Merda... – sussurrou. – Tá tudo bem – disse Moarã entre dentes. – Sem fratura. Eu acho.
Naiovi se ergueu de joelhos, tremendo.
– Damn, você me ajudou. Por que fez isso?
– Claro. – Moarã arfava. – Eu sou a... “prefeita”.
Um riso nervoso escapou de Naiovi. Mas a expressão mudou ao ver sangue no canto da camisa da outra.
– Isso não é “tá tudo bem”! – a voz dela subiu, o pânico já brotando. – Me mostra. Agora.
Moarã tentou resistir, mas Naiovi puxou a camisa com firmeza. Um arranhão profundo na lateral, sangrando. Um galho pontudo rasgou o tecido da blusa e cortou a lateral de seu abdômen, abrindo um filete de sangue.
Moarã cerrou os dentes, apertando o ferimento com a mão.
– Não é muito fundo. Mas arde como o inferno.
Lança trotou em círculos, inquieta, como se percebesse que algo estava errado. Naiovi ajoelhou-se ao lado de Moarã, tentando afastar o tecido rasgado para ver melhor o corte.
– Fica quieta. – sussurrou. – Eu preciso limpar isso aqui.
– Você… – Moarã engoliu seco, seu rosto estava pálido. – Você puxou ela como se fosse um motor!
– Eu sei. – Naiovi prendeu a respiração, focada no ferimento. – Eu sei. Me desculpa.
– Se você cair assim, vai cair feio. – murmurou Moarã com dor atravessando a voz.
– Se eu cair de novo, você não precisa se jogar no chão comigo! – Naiovi tirou um pano do bolso, um lenço limpo de laboratório, e pressionou o corte. – Vai precisar fazer uns pontos…
O sangue manchava rápido o lenço. O ferimento parecia controlável, mas, ainda assim, era o suficiente para se preocupar. Naiovi olhou para Moarã, e, por um segundo, algo oscilou em sua expressão: uma mistura de pânico, culpa e uma determinação silenciosa.
– Vou te levar de volta.
Moarã soltou um riso fraco. Lança se aproximava devagar, como se sentisse a gravidade da cena.
Moarã fechou os olhos por um momento e murmurou:
– Me promete uma coisa?
– O quê?
– Nunca mais puxa a rédea daquele jeito.
Naiovi concordou, e mesmo tentando manter o controle, sua mão ainda tremia com a adrenalina.
O lenço encharcado de sangue já não bastava. Sem perder tempo, Naiovi tirou a pequena bolsa presa à cintura e pegou um pequeno frasco âmbar com tampa de cera, com um líquido viscoso de coloração esverdeada dentro. Não pensou duas vezes.
– Vou usar o composto novo. Só um pouco. Ainda é teste, mas você não vai sair andando por aí assim.
Moarã entreabriu os olhos, franzindo o cenho.
– É o da citriomila com a coisa da... da Gresilha?
– É. – Naiovi quebrou o lacre com o polegar. – Não é o ideal, não foi testado ainda… mas é o que temos.
– Não sei se é uma boa ideia… Vamos voltar, me leve para Dona Manturã, ela vai saber o que fazer.
– Levo, sim. Mas até lá são uns bons minutos de corte sangrando e sujo. Se deixar isso aberto muito tempo, pode infeccionar feio e se tornar algo muito pior.
– E você sempre tão criteriosa com seus protocolos…
– Não agora.
Molhou um pedaço de gaze com o composto e pressionou suavemente o corte. Moarã mordeu o lábio para não reagir – o ardor era agudo, estranho. O líquido parecia vibrar, como se se espalhasse com vida própria pela pele ferida.
– Tá sentindo… alguma coisa?
Moarã soltou o ar devagar.
– Formiga. Depois gela. Depois esquenta. – fez uma careta. – E agora... parece que tá ficando dormente.
Naiovi observou os vasos em volta do ferimento: o sangramento já começava a diminuir. O composto estava agindo rápido. Mais rápido do que deveriam ser capazes. Aquilo era… um bom sinal? Fechou o frasco e respirou fundo. O coração ainda martelava nas costelas. As duas ficaram ali por alguns instantes, sentadas na poeira, com a respiração descompassada. O campo seco ao redor parecia suspenso no tempo.
– Isso vai te custar com Ethel.
– Ethel vai entender.
O silêncio se instalou. O som do vento voltou, arrastando folhas secas pelo chão do campo. Naiovi sentou-se ao lado dela, ainda ofegante, a testa suada, o corpo coberto de poeira. As mãos repousavam sobre os joelhos, tensas.
Lança, ao longe, trotava de volta lentamente. Quando chegou perto, parou e baixou a cabeça, oferecendo o focinho para Naiovi.
– Vamos voltar. Se você conseguir subir, Lança te leva devagar.
– Ela sabe que você não é ameaça – disse Moarã, recuperando o fôlego. – Só um pouco... desastrada.
Moarã tentou erguer-se sozinha, mas cambaleou. O corte doía como se os músculos tivessem sido rasgados com sal grosso.
– Não. Espera. – Naiovi posicionou-se ao lado dela. – Apoiando em mim.
Moarã hesitou. O rosto duro exibia o orgulho mais ferido que a pele, mas cedeu. Aceitou a mão de Naiovi, passou o braço sobre os ombros dela, e juntas, com cuidado e alguma desajeitada cumplicidade, conseguiram levantá-la. Naiovi a olhou, suja, sangrando, mas de pé. Forte como sempre. E ainda assim… tão vulnerável quanto ela nunca imaginou que veria.
– Já pensei em mil maneiras mais interessantes de morrer… – resmungou Moarã, meio rindo.
– Não vai ser hoje, pelo menos.
Com esforço e o apoio de Naiovi, Moarã subiu na sela. Gem*u baixinho quando o corte se esticou no movimento.
– Você vai na frente. Eu guio do lado.
– Você… – Moarã a olhou com os olhos semicerrados e suor escorrendo pela testa. – Você é melhor nisso do que pensa.
Naiovi evitou encarar diretamente, mas seu rosto corou até a raiz dos cabelos curtos. Fez um gesto para Lança, que começou a andar devagar.
Seguiram em silêncio pelo caminho de volta, Naiovi com uma das mãos sobre a perna da sela, guiando e vigiando cada respiração de Moarã, sentindo o peso da responsabilidade e uma pontada de culpa.
O composto funcionava. Mas o que mais ele ativava, Naiovi ainda não sabia e isso a preocupava mais do que o corte.
O caminho de volta foi lento.
Seguiam com passos curtos, Moarã com o braço direito pressionando a lateral do corpo onde a camisa estava manchada, mas o sangramento havia estancado. O composto havia coagulado a ferida com rapidez incomum – Naiovi notava isso com um misto de alívio e apreensão. Ainda era cedo para entender todos os efeitos.
A pele ao redor da ferida se aquecia, não com febre, mas com algo mais sutil. E havia também outro tipo de calor no rosto de Moarã, com o olhar mais solto do que de costume, quase distraído. Um traço de abertura onde antes só havia muralha. Naiovi seguia ao lado dela, sem tocá-la mais do que o necessário, mas atenta a cada respiração.
Quando chegaram em casa, Naiovi abriu a porta e ajudou Moarã a se sentar no batente, os ombros estavam tensos de cansaço e poeira. A casa ainda cheirava a bolo, laranja, citriomila e calor humano. Dentro da casa, Naiovi colocou água para ferver.
– Traz água? – pediu Moarã, a voz rouca.
Naiovi desapareceu por um instante e voltou com uma jarra fria. Moarã bebeu devagar, encostou a cabeça na parede e fechou os olhos.
– A dor diminuiu? – perguntou Naiovi, sentando-se ao lado, sem encostar.
Moarã abriu os olhos lentamente. Havia algo de diferente ali. O rosto estava corado. Os olhos úmidos, não de dor, mas de… algo mais fundo.
– Tá… estranho. Não arde. Não lateja. Mas sinto... demais. – ela passou os dedos pelo braço, como se o próprio tato estivesse aguçado.
Naiovi franziu o cenho. Puxou o caderno pequeno do bolso e anotou algumas palavras soltas: hipersensibilidade? alteração sensorial? resposta neurovascular acima do previsto?
– Sua pupila tá dilatada – murmurou, quase para si mesma. – Respiração irregular... humor instável...
Moarã virou o rosto para ela, formando um sorriso torto nos lábios.
– Tá me diagnosticando ou flertando?
Naiovi arqueou a sobrancelha, surpresa com a pergunta direta. Moarã parecia séria. Séria e diferente. O olhar estava despido de cinismo.
– Você não costuma fazer esse tipo de piada.
– Não costumo, não – respondeu Moarã, e então piscou devagar, encostando a cabeça de novo. – Talvez porque não costumava ter vontade.
Silêncio. Naiovi engoliu seco.
Ela conhecia esses sintomas. Já os vira antes – não com esse composto, mas com outros, em ambientes controlados. Sabia o que podia significar: possivelmente a citriomila, combinada à Gresilha-do-Véu, havia ativado zonas do cérebro ligadas à memória, à sensibilidade, à emoção profunda. Como um desbloqueio.
E então, sem aviso, a lembrança voltou. A piada do dia anterior. Naiovi, depois de comer, com o cheiro de bolo no ar, dizendo: – “A culpa é da citriomila. Desbloqueia os centros emocionais.”
Ela havia rido e Moarã também. Era só uma brincadeira. Ou parecia.
Mas agora...
Olhou para Moarã, ainda encostada, a respiração mais lenta, mas os olhos... os olhos viam. E viam tudo.
Ela não está mais se protegendo, pensou Naiovi. O composto não só curou a carne. Ele baixou as defesas.
– Eu devia monitorar seus sinais vitais – disse Naiovi, quase como um alerta.
– Pode fazer isso depois. Agora... só senta aqui. Aquieta um pouco.
E assim ficaram. Naiovi não respondeu, apenas se sentou ao lado, com a coluna ereta e olhar fixo na parede oposta. O silêncio voltou, mas não era o mesmo de antes. Era um silêncio quase perigoso, porque agora ela sabia: o composto funcionava muito além do que esperavam. E o problema não era o que ele fechava, mas o que ele poderia abrir.
Tentava não olhar para Moarã. O ar entre elas parecia denso.
– Preciso limpar e suturar o corte. Você aguenta?
– Está sensível… mas parece que não sinto dor. Aguento sim.
Naiovi levantou-se, foi ao seu quarto pegar alguns materiais e voltou ajoelhando-se ao lado de Moarã. Deitou-a no sofá da sala e preparou uma bancada improvisada.
– Por favor, tente não se mexer muito… Vai ser uns sete pontos.
Moarã assentiu. Naiovi pegou um pano limpo e um frasco de solução destilada com óleos antimicrobianos que ela mesma havia preparado no laboratório. Foi até a pequena bacia de água morna sobre a bancada, mergulhou o pano e espremeu com cuidado.
– Preciso higienizar melhor o local da ferida antes de fechar – disse, voltando a se curvar ao lado de Moarã. Seu tom estava firme, mas havia uma oscilação discreta ali, se ancorando na tarefa.
Naiovi vestiu as luvas e, com movimentos precisos, começou a limpar ao redor do corte, afastando os tecidos já limpos e expostos. O toque, embora técnico, carregava um cuidado quase reverente.
– E desde quando a química também é médica? – Disse Moarã com um semblante de dor, mas uma dor suportável, meio anestesiada.
– Já conheci bastante gente. Aprendi muito com elas, como aprendo com Ethel… Com você… Sei muito sobre minha área, mas também sei um pouco de quase tudo… Pronto. – Deitou o pano na bancada e preparou o material para a sutura – Não garanto que vai ser a melhor sutura do mundo, mas também garanto que não vai ser a pior.
Começou o primeiro ponto. Moarã virou lentamente o rosto, e sua voz veio baixa, direta:
– Você tem alguém?
– Já me fez essa pergunta.
– Sim, mas… você não respondeu.
– Alguém como?
– Família. Amigos. Amores.
Naiovi pensou por um segundo.
– Família… não exatamente. Só sobras. Kohr não é um lugar que cultiva raízes – disse, num tom quase sarcástico. – Amizades, algumas. Raras. Geralmente duravam enquanto o projeto rolava.
Moarã virou levemente o rosto, analisando o contorno rígido do perfil de Naiovi à meia-luz.
– E amores?
– Tive alguns. – respondeu, com um meio-sorriso. – Experiências. Parcerias práticas, às vezes cordiais. Sempre com data pra acabar.
– Nunca se interessou por alguém de verdade?
– O trabalho sempre veio primeiro. A lógica era simples: ou eu me dedicava inteira, ou virava peso morto lá embaixo. Bem… – deixou escapar um riso nervoso – enterrada eu já estaria. Meu amor era por isso. Pela tarefa. Pela criação.
Moarã fez um ruído baixo com a garganta, algo entre ceticismo e curiosidade.
– Então nunca sentiu vontade de… sei lá. Ficar.
Naiovi olhou pela janela. A luz dourada da tarde invadia o ambiente.
– Nunca tive espaço e nem tempo pra isso.
– Você acha que eu… Ethel, Valeã… Acha que temos prazo de validade também?
– Moarã… – Moarã parecia ter acertado em cheio um pensamento que Naiovi evitava ter.
Moarã virou lentamente o rosto e sua voz veio baixa, firme, carregada de algo que talvez vinha de antes do susto:
– Se eu te beijasse agora… você deixaria?
Naiovi congelou.
O tempo parou ali – entre a pergunta e a pulsação disparada em sua garganta. Não havia ironia na voz de Moarã. Nenhum truque, nem armadura. Apenas a verdade crua, nua, atravessando a sala como uma flecha lançada sem volta.
Naiovi piscou devagar, sem saber se havia ouvido certo.
– Moarã… Você não está em si. É o composto. Ele afeta os receptores. O julgamento…
– Eu sei bem o que quero. – interrompeu Moarã, sem levantar a voz. – E se for efeito do composto… então ele só tirou o que estava no caminho.
Naiovi fechou os olhos por um instante, buscando forças e medindo as palavras para responder. Quando abriu, o olhar era firme:
– Não. Claro que não. Não é certo. Você não está em posição de consentir agora. E eu não…
A frase pairou entre elas como fumaça quente. Moarã não retrucou. Só ficou ali, respirando fundo, como se tentasse encontrar a própria âncora. Sua respiração estava pesada, irregular – como se o corpo quisesse seguir adiante, mas algo no fundo ainda segurasse.
Naiovi desviou o olhar e falou:
– Se você souber o que quer, quando o efeito passar... aí a gente conversa. – Cortou a linha do último ponto – Pronto, terminei.
Moarã virou o rosto. Não de raiva, nem de vergonha – mas como quem precisava respirar antes de mergulhar. O silêncio voltou tenso, feroz.
Os olhos de Naiovi se fixaram na curva do maxilar de Moarã, depois nos ombros, na respiração que começava a perder ritmo de novo.
E foi nesse segundo que a batida na porta veio. Três batidas leves, impacientes, e em seguida a voz:
– Moarã? Tô entrando. Ouvi boatos que tu caiu feito um saco de batata e desmaiou no colo da nossa cientista. Vim ver se sobrou dignidade.
A porta rangeu.
Ethel entrou com o rosto suado, o pano no pescoço, e um ar de quem vinha pronta para rir, mas a tensão que preenchia a sala era notável o suficiente para cortar seu clima. O olhar de Ethel oscilou entre uma e outra, e ela soube na hora que havia chegado num momento inadequado. Analisou rapidamente a cena em silêncio – um silêncio que viu mais do que deveria.
– Interrompi alguma coisa? – perguntou, com o típico tom de deboche, mas mais suave do que o usual.
– Sim. – respondeu Naiovi, com frieza ensaiada. – Uma possível catástrofe emocional e diplomática. – Passou a mão pela cabeça, como se quisesse reorganizar os pensamentos com o toque.
Moarã soltou uma risada curta, sem humor.
– A ferida fechou rápido demais – Continuou, tentando mudar de assunto. – A combinação com a Citriomila... está fazendo mais do que devíamos esperar.
Ethel arqueou as sobrancelhas.
– Ah, então testou o composto novo. A vila inteira já sabe da queda. E também... que você correu atrás dela igual uma desesperada – olhou para Naiovi com um meio sorriso – Que teve sangue, desmaio. Alguns juram que ela acordou falando em rimas.
Moarã bufou, abrindo um sorriso torto.
– Sempre fui ruim com rimas, pelo menos nisso continuo igual.
Ethel soltou uma risada curta, mas observava as duas com atenção.
– Bom. Vim saber se alguém precisa de curativo, água... ou se preciso esfriar o ambiente com bom senso.
Moarã sacudiu a cabeça, mas o sorriso agora era quase grato.
– Pode deixar a água. O bom senso é que talvez demore, ainda mais vindo de você.
– Tá muito engraçadinha pra essa conjuntura, chefinha. Bora, levanta essa camisa ai que quero ver o estrago.
Moarã levantou a camiseta, exibindo seu ferimento. A mancha que era vermelha já começava a tomar tons amarronzados, ainda havia vestígios de poeira e sangue seco. O sangramento tinha sido estancado e apresentava uma vermelhidão em volta.
– Nossa, isso aqui foi feio, heim. Vai dar uma bela duma cicatriz. – Ethel aproximou-se para olhar mais de perto. – Até que esses pontos ficaram bons… pra uma diplomata. – Desviou o olhar para encarar Moarã – O que aconteceu?
Silêncio. Moarã olhou baixo para Naiovi, que olhou para Moarã e, então, para Ethel.
– Ah, acho que entendi. Então matou o trabalho hoje pra passear a cavalo e testar o composto novo, doutora? – Ethel direcionou um olhar cortante para Naiovi, que sentiu um frio subir pela sua espinha, recheado de culpa.
Ethel passou as mãos no rosto, como se espantasse o peso da atmosfera, e se levantou devagar.
– Certo. – disse, num tom mais sóbrio. – Eu vou ficar com vocês hoje.
Naiovi ergueu os olhos, surpresa. Moarã permaneceu em silêncio, ainda deitada no sofá.
– Tem chance de efeitos colaterais mais intensos. Alucinações, febre emocional, alterações cognitivas. A combinação com Gresilha-do-Véu ainda não foi testada num quadro de exaustão física e descarga adrenal… – Ethel falava mais para si agora, em modo de análise. – Melhor garantir que ela não resolva sair por aí achando que a Lança é um deus ancestral ou que a gente tá tramando um golpe.
– Eu tô ouvindo. – disse Moarã, com olhos semicerrados.
– Ainda bem. Isso significa que ainda não tá em delírio. – retrucou Ethel, com um leve sorriso. Pegou o pano que havia deixado no banco, já se virando para a porta.
– Vou fechar o laboratório, pegar alguns compostos e misturar um chá que pode estabilizar o sistema se as coisas saírem da curva. Também quero deixar tudo trancado… não confio em todo mundo que passa por ali. Alguns já devem estar bisbilhotando, achando que temos um arsenal escondido.
– Ethel… – Naiovi a chamou, em voz baixa. – Obrigada.
– Não agradece ainda. Se essa sua fórmula causar uma revolução hormonal na nossa chefe, você vai me dever uma semana de serviço. – respondeu ela, já no batente, se preparando para sair. – Já ouvi três versões diferentes da história só no caminho até aqui. Em uma delas, Moarã desmaiou porque você atropelou ela. Em outra, vocês caíram do cavalo abraçadas. E a melhor: que o remédio novo é afrodisíaco e tá deixando todo mundo com a cabeça quente.
– E agora? – perguntou Naiovi. – Droga… não era pra nada disso ter acontecido.
– Eu vou fazer a parte mais ingrata do meu ofício: apartar fofoca e fingir que é ciência – respondeu Ethel, com ironia. – E também coletar dados discretamente. Vai que a gente inventou uma verdade sem querer. Você fica quieta aqui e fica de olho na dama acidentada. Tentem não chamar mais atenção. Daqui a pouco eu volto. Paz ao que te habita.
Ela deu dois toques rápidos na madeira da porta com os dedos, como quem sela um pacto informal, e desapareceu do outro lado, já pisando firme no caminho de volta ao laboratório.
O silêncio voltou a crescer entre ela e Moarã, mas agora era outro tipo de silêncio: vigilante, suspenso.
Moarã fechou os olhos por alguns instantes. Seu rosto suava e o corpo oscilava entre cansaço e estranha euforia. Quando voltou a falar, foi num tom quase sonâmbulo:
– Ela acha que eu vou delirar?
– Acho que ela não quer correr o risco de descobrir.
– E você? O que acha?
Naiovi se aproximou, abaixando-se ao lado dela com um pano úmido na mão.
– Acho que você já está, de certo modo.
Passou o pano pela nuca de Moarã com cuidado. O toque era suave, mas preciso, como quem conhece as zonas de acalmar sem invadir.
– E se eu estiver vendo tudo mais claro agora? – murmurou Moarã.
– Então vamos esperar ver o que continua quando passar.
Moarã repousou a cabeça no sofá com os olhos fechados. A respiração estava mais estável agora, mas o corpo ainda quente.
– Se eu disser de novo, depois? – murmurou.
Naiovi encarou-a e não respondeu.
O calor do corpo de Moarã parecia irradiar como brasa. A tensão da queda, o pedido insinuado, a proximidade inegável – tudo ainda pairava no ambiente, mas havia agora também um pacto de cuidado, quase clínico.
Naiovi sabia que aquele momento era delicado. Ethel voltaria logo. Os olhos do povoado estavam por perto, mesmo que por trás das cortinas, e o composto ainda corria recente pelas veias de Moarã. Poderia ser o começo de um desastre diplomático, científico e pessoal. A missão daquela noite estava clara: vigiar o corpo, conter a febre, acalmar os boatos.
Mas Moarã não se importava com nada disso agora. Nem com os boatos que Ethel tentaria abafar, nem com a possibilidade de delírio, nem com o protocolo de acompanhamento de compostos experimentais. Estava ali, inteira na queda e na febre, o olhar turvo, mas firme, como se gritasse não preciso ser poupada daquilo que me atravessa. Encostou a cabeça no encosto de madeira, com os olhos semicerrados e a pele levemente úmida. Estava perceptível na expressão de Naiovi as preocupações as quais Moarã sabia muito bem das quais se tratavam.
– Você tá preocupada demais com coisas que nem chegaram ainda. – murmurou Moarã, num fio de voz. – e que nem sabe se vai chegar.
Naiovi permaneceu sentada perto, sem tocar. Queria responder que não era assim. Que aquilo podia ser perigoso. Que o composto era novo, que estavam lidando com variáveis demais. Mas não disse nada.
Moarã virou o rosto para ela, os olhos ardendo com um brilho indefinido entre febre e desafio.
– Você não vai me dizer pra ter cuidado?
– Eu acho que você já decidiu que não vai ter. – respondeu Naiovi, tentando manter a voz neutra, mas havia uma faísca ali. Quase ternura, quase medo.
Moarã riu de leve.
– E você? Vai continuar fugindo?
A pergunta caiu como um estalo no ar, e Naiovi desviou os olhos.
Fugir era o que ela fazia melhor. Dos afetos, das perguntas fora do protocolo, da chance de ser vista além do crachá. Mas ali… com Moarã febril, suada, deitada e sem máscaras… ali não tinha como fugir.
– É a citriomila – disse ela, quase num sussurro, tentando usar o humor como escudo. – Desbloqueia os centros emocionais.
– Você já disse isso.
– Eu não sabia que era verdade.
Moarã não respondeu. Fechou os olhos, como se confiasse que, mesmo em silêncio, Naiovi ainda estaria ali. E estava. Mas não como cientista, nem como diplomata. Estava com o corpo, como presença. E era isso que desestruturava Naiovi: não ter mais certeza de qual parte sua estava agindo. Não saber se cuidava de Moarã porque era o certo, por culpa… ou porque queria.
***************
O contêiner ainda cheirava a vapor de ervas e álcool evaporado. Ethel entrou rápido, trancando a porta atrás de si, varrendo os olhos nas bancadas como quem procura pistas numa cena de crime.
Tirou o pano do rosto, amarrou o cabelo no alto e vestiu os óculos de proteção. A luz filtrada pelos painéis solares tremia um pouco, sinal de carga baixa. Mais uma coisa pra resolver depois, pensou.
Começou pelos cadernos.
Por fim, foi até o armário da estufa e retirou dois frascos escuros com extratos que poderiam ajudar no equilíbrio neurosensorial. Um deles era um dos poucos compostos testados para contenção de surtos psicóticos provocados por intoxicação. Guardou no bolso do casaco “Só por segurança”. Havia pelo menos quatro com anotações com a letra de Naiovi, cada um marcado com fitas diferentes: compostos com base em plantas locais, testes de conservação, misturas com potencial sistêmico. Pegou um a um e passou os olhos pelas páginas. Substituiu nomes técnicos por apelidos populares, arrancou algumas folhas, queimou outras com isqueiro no tambor de metal da ventilação.
Depois foi aos frascos.
Reorganizou os que estavam etiquetados com nomes de compostos que soavam técnicos demais. Gresilha virou "erva-xarope". Citriomila passou a ser "ácido verdino". Nas ampolas experimentais que Naiovi preparara com base em protocolos de Kohr, colou etiquetas novas por cima, escritas com a letra torta de algum aprendiz local, “chá de raiz anciã”.
Apagou todo e qualquer vestígio que ligasse as fórmulas a algo que pudesse ser interpretado como “intervenção estrangeira”.
Suspirou.
Olhou o espaço por inteiro: as folhas secando nas redes, a centrífuga com a tampa de pano amarrada, os frascos com cera de abelha nos gargalos, tudo com cara de improvisado… mas funcional. Quase parecia um lar. Parecia Valeã. E era por isso mesmo que tinham que proteger.
Voltou para a porta, deu uma última checada no painel de segurança, e antes de sair, gravou mentalmente a nova disposição dos frascos. Se alguém invadir isso aqui, que pense que é só um lugar velho cheio de curandeiras. E sorriu. Porque ela sabia o quanto as curandeiras podiam ser poderosas.
Do lado de fora, o sol permanecia firme, alto no céu, mas o calor ainda era ameno. Ethel ajeitou o pano sobre o rosto e começou a descer em direção à casa de Moarã, onde Naiovi deveria estar ainda de prontidão – e Moarã, se tudo estivesse como deixara, provavelmente roncando como uma criança depois de noite com febre.
O próximo passo seria encontrar Dona Lene. Não podia deixar que o Conselho ouvisse primeiro pela boca de Dona Maruja ou pelos murmúrios da olaria. Mas, antes, precisava ver o rosto de Naiovi. Saber o que ela estava pensando. Saber se ela aguentaria o peso de ser metade da lenda que criaram sem querer.
Porque, querendo ou não… já estava feito.
***************
Dentro de casa, Naiovi permanecia sentada ao lado de Moarã, vigiando a temperatura, os sinais vitais. Do lado de fora, a tarde se alongava em tons quase crepusculares. A porta rangeu e Ethel entrou trazendo uma sacola com frascos e folhas e outra com marmitas e frutinhas.
– O que eu perdi? – perguntou, o olhar indo de Naiovi sentada ao lado até Moarã semi-deitada, suada e de olhos fechados.
– O básico – disse Naiovi, se levantando com calma. – Febre controlada. Delírios em avaliação. E um caso grave de desobediência emocional.
– Hm. Típico. – Ethel largou a sacola sobre a bancada e começou a tirar os frascos. – Trouxe algumas coisas que podem ajudar caso a febre volte ou se aparecerem efeitos colaterais. Trouxe comida, também. Pelo que vi, não comeram nada até agora, então comam. Vou ficar por aqui essa noite. As medicações estão aqui. Seu trabalho vai ser continuar monitorando Moarã. Toma, trouxe seu caderno e uns instrumentos de medição. O meu trabalho agora vai ser apartar fofocas e garantir que ninguém ache que isso aqui virou uma casa de enfeitiçamento.
Naiovi abriu a boca para responder, mas hesitou.
– Casa de enfeitiçamento… ótimo, era só o que faltava. – murmurou Naiovi, passando a mão no rosto, exausta. Pegou o termômetro da bancada. – Se alguém começar a dizer que eu ando invocando espírito por Moarã, por favor, me avise com antecedência. Preciso de tempo pra redigir minha defesa.
Naiovi ajeitou o caderno no colo. Seus dedos corriam inquietos folheando as páginas já lidas.
– E obrigada pelos equipamentos. Você cuida do caos lá fora… eu tento cuidar do caos aqui dentro. Mais um dia normal em Valeã.
– Um dia normal em Valeã não costuma envolver quedas de cavalo, fármacos experimentais e guardiãs suando feito porco no deserto por causa de uma cientista maluca que do nada perdeu a noção do limite. – Ethel cruzou os braços e lançou um olhar duro. – Mas tudo bem, acontece. Só não esquece que, se der ruim, quem vai ter que limpar tudo sou eu.
– Entendo sua raiva, Ethel. Corri o risco, mas não pude deixar Moarã sangrando até voltarmos. Fiz a aposta e espero não me arrepender. Vou cuidar dela, assumo minha culpa.
– Olha… se você realmente quiser cuidar dela, Naiovi, começa aprendendo a diferença entre querer entender alguém e querer desmontar. O problema quase nunca é aplicar o composto. É lidar com a teimosia de quem tá usando ele. E a sua cobaia, no caso, é a mulher mais cabeça-dura desse lugar. Moarã tem o péssimo hábito de fingir que está tudo bem até cair dura de pé. Se esse composto bater mal e ela esconder os sintomas, complica nosso lado.
Ethel soltou o ar devagar, ainda de braços cruzados. Observou Naiovi por alguns instantes. O olhar duro não sumiu, mas perdeu parte da força. Suspirou fundo e continuou:
– Tá. Vi sua cara quando entrou carregando ela. Vejo agora também. Você tá esgotada.
Descruzou os braços, pegou um pano limpo e começou a reorganizar os frascos sobre a bancada.
– Só não esquece que cuidar de alguém não é só dosar composto e medir febre. É segurar na marra quando a pessoa resolve ser mais orgulhosa do que sensata. – Fez uma pausa, olhando de canto para Naiovi. – E você também tá no seu limite. Ou quase, não finge que não. Fica aí o aviso com antecedência para poder redigir sua defesa: quando esse incêndio apagar, vai me explicar tudo isso.
– Pode deixar. Quando o incêndio apagar, eu preparo uma apresentação com gráficos, autocrítica e talvez um pedido de desculpas embutido, dependendo do resultado. Mas agora... preciso garantir que ela se recupere.
– Eu cobro. – Andou até o batente da porta e ajeitou o seu casaco – E se não tiver autocrítica, eu mesma acrescento nos slides. Agora vai, vai cuidar dela. Você escolheu, agora termina o que começou. E se começar a pegar fogo de novo... eu trago o balde. – E então saiu, deixando o silêncio e o calor suspenso atrás de si, como fumaça densa que se recusa a dissipar.
*************
O sol já passava do alto quando Ethel apertou o passo. O casaco leve batia nos quadris, o pano que antes cobria o nariz agora pendia do pescoço. Ela não precisava de mapa para saber onde ir, nem de permissão. Havia outras leis circulando em Valeã além das assembleias formais e dos conselhos: leis de convivência, de confiança antiga, de escuta. E Ethel era uma espécie de encruzilhada entre essas camadas: sabia de tudo um pouco, falava com todos e, principalmente, sabia quando calar e o que escutar – Mesmo que não parecesse.
Dobrou uma curva de terra batida e viu, ao longe, Dona Lene sentada à sombra do galpão da estufa, abanando-se com uma folha de palmeira e de olho em dois meninos que corriam com vasilhas de barro. Ao avistá-la, Lene franziu os olhos.
– Então é verdade que afundaram a montaria? – disse antes mesmo que Ethel dissesse qualquer coisa.
Ethel sorriu, sem parar de andar.
– Se tivesse afundado mesmo, a senhora já estaria lá em cima do Conselho convocando reunião extraordinária.
– Tô velha, mas não tô surda. A égua apareceu sozinha mais cedo. Acordou mais gente do que os berrantes do sopra-sangue.
Ethel parou a alguns passos. A sombra da árvore tornava o calor suportável.
– Aconteceu uma queda. Moarã se machucou.
– E como tá?
– Em casa. Tá bem. Foi tratada na hora com uma fórmula nova.
Lene levantou uma sobrancelha, como se sentisse o cheiro do problema chegando.
– Fórmula nova?
– Nova dentro do que já era conhecido. Gresilha-do-Véu, Citriomila, base de resina. Refinada. Dosagem justa, eu mesma acompanhei.
Dona Lene a olhou com atenção. Avaliava. Não só as palavras, mas o modo como eram ditas. A escolha da sequência. O tom.
– E quem mais sabe?
– Quem viu a égua, quem viu Naiovi voltando coberta de poeira, quem me viu fechando o laboratório. Ou seja: metade da vila até o fim do dia.
– E o Conselho?
– Ainda não. Mas se a senhora quiser ser a primeira a avisar...
Lene bufou. Não gostava de ser usada, mas gostava menos ainda de ser deixada fora.
– Você tá aqui pedindo ou informando?
– Nenhum dos dois. Tô fazendo o que faço melhor: antecipando. Se disserem que foi uma tentativa de experimento em gente, a coisa vai feder. Se disserem que Moarã tá bem, concordou e que a fórmula salvou a situação... aí temos um milagre e uma nova pomada.
Lene mastigou o silêncio por uns segundos, antes de perguntar:
– E funcionou mesmo?
– A ferida fechou bem e o corpo não rejeitou. Ela tá com a pele quente, mas sem febre e sem dor aparente. Está dormindo agora. E o humor... bom, o humor é o de sempre.
Dona Lene assentiu devagar.
– A menina de Kohr mexeu em coisa demais. Mas você é teimosa. Se tá aqui falando isso, é porque viu com os próprios olhos.
– Vi mais do que isso.
A mais velha não respondeu de imediato. Balançava a folha de palmeira no ar, como se espantasse as palavras antes de engoli-las.
– Tá bom. Vou soltar umas verdades por aí. Que Moarã tá bem. Que o composto era conhecido. Que você tava junto nessa história. Mas não me peça pra defender demais. Se explodir, você vem comigo e explica.
– Fechado.
– E... Ethel?
– Sim?
– Não te esquece que Valeã tem memória. Se errar feio, não é só Naiovi que vai pagar.
Ethel engoliu seco. Não respondeu. Já estava voltando pelo caminho, olhos estreitos, calculando o próximo passo. Ainda precisava falar com o menino Guto que entregava as marmitas – o epicentro das fofocas – e com o senhor Thales, que jurava nunca ouvir ninguém mas adorava repetir o que escutava.
A história já corria solta. Mas agora, podia correr na direção que Ethel escolheu.
************
A noite caiu densa sobre Valeã, silenciosa exceto pelo canto distante dos grilos e o leve estalo da madeira secando na fogueira. O pequeno casebre estava mergulhado em uma penumbra cálida, apenas com a lamparina lançando sombras nas paredes.
Já no quarto, Naiovi ficou sentada na beirada da cama com os dedos entrelaçados, olhando para Moarã que repousava semi-deitada, com o olhar inquieto e a respiração irregular.
O composto se revelava: leves tremores, os olhos piscando em desalinho, o calor que subia e descia como ondas.
Moarã virou a cabeça devagar, encarando Naiovi.
– Você sente isso também? – a voz era baixa, carregada de um cansaço estranho, quase uma súplica. Moarã piscou mais rápido, com o olhar se perdendo no nada, e murmurou:
– Parece que minha mente quer fugir… para longe daqui, para qualquer lugar que não seja aqui.
Naiovi inclinou-se, tocando a testa quente da outra com a mão. Sentiu o pulso acelerado, irregular.
– Não vai fugir sozinha.
Naquele momento, a porta se abriu devagar e Ethel entrou, carregando um pequeno pote com pomada.
– Achei que vocês iam tentar uma sessão noturna de dança psicodélica – brincou, tentando aliviar o clima.
Moarã sorriu fraco, quase inaudível.
– Se tiver, quero convite especial.
Ethel se aproximou, aplicando a pomada nas têmporas de Moarã, que fechou os olhos com um suspiro.
– Essa vai ajudar a acalmar a tempestade cerebral – explicou Ethel. – Mas vocês duas têm que me prometer que qualquer coisa estranha, qualquer sinal, é para me avisar na hora. Sem medo.
Naiovi assentiu, com os olhos ainda fixos em Moarã.
Moarã ficou em silêncio por alguns minutos com os olhos fixos no teto de madeira, o corpo menos tenso sob os lençóis leves. A pomada de Ethel e o calor do composto pareciam ter domado um pouco a agitação. O rosto ainda estava suado, mas a expressão se suavizava.
– Ethel… – murmurou, com a voz arrastada, sonolenta. – Lembra quando a gente se perdeu da tropa no brejo do Riacho Santo?
Ethel, sentada próxima à cabeceira, fez que sim com um riso breve.
– Você vomitou em cima da minha mochila.
– E você me carregou por meio quilômetro... com febre e tudo. – Moarã sorriu de canto. – Fiquei três dias sem saber se ia morrer ou se ia virar planta d’água. E você ficou. Só você.
Ethel desviou o olhar, desconcertada por um instante.
– Eu devia ter deixado você lá. Ia ter poupado umas boas dores de cabeça.
– Mas não deixou. – Moarã virou o rosto em direção a ela. – Eu sei que você fala muito, Ethel, mas é você quem escuta melhor. Todo mundo acha que é o contrário.
Ethel não respondeu. Apenas respirou fundo.
Moarã prosseguiu, mais baixo agora, como se falasse só para o ar entre elas:
– Quando perdi minha mãe, foi você quem fez o canto da semente. Ninguém teve coragem de cantar, mas você cantou.
Naiovi observava em silêncio, como se estivesse testemunhando algo que não devia – mas não conseguia se afastar. Aquela versão de Moarã era nua demais, solta demais. Vulnerável.
– Às vezes – continuou Moarã, já com a fala entrecortada – acho que nunca mais deixei ninguém chegar tão perto. Só você. Agora... talvez... talvez você também. – Ela virou o rosto na direção de Naiovi, mas os olhos já começavam a pesar. – Talvez.
Em poucos minutos, os olhos se fecharam de vez. A respiração ficou mais ritmada, embora ainda irregular. Moarã adormeceu.
Naiovi permaneceu em silêncio, por respeito e por espanto.
Ethel se levantou devagar, pegou o pano da testa da amiga e o molhou novamente na bacia ao lado.
– Nunca fala desse dia do Riacho com ninguém – disse, sentando-se ao lado de Naiovi, agora mais baixa e calma. – Nem quando está sóbria. Nem comigo, direito.
– Ela confia muito em você – murmurou Naiovi. – Isso… transborda.
Ethel deu de ombros, mas sem desviar o olhar da amiga adormecida.
– É recíproco. Mesmo quando me irrita. Mesmo quando desaparece por semanas e volta com um ferimento novo e um discurso mais fechado que cofre de ferro.
– E comigo? – perguntou Naiovi, com cuidado. – Você acha que ela...?
– Não sei – respondeu Ethel, cruzando os braços. – Mas se eu tivesse que apostar... diria que você deixa ela confusa. De um jeito que não é comum por aqui.
Naiovi mordeu o lábio inferior, como quem segura algo que não pode nomear.
– Eu não posso me dar ao luxo de errar.
Ethel virou o rosto para encará-la.
– Então seria bom você decidir logo o que quer. Porque ela é feita de terra, sim, mas tem veios de fogo por dentro. Se você vacilar, vai queimar os dois lados, inclusive você.
Naiovi assentiu em silêncio.
Moarã resmungou algo baixinho, ainda adormecida, virando-se de leve. As duas ficaram ali, em vigília.
Por enquanto, o fogo dormia.
A brisa da madrugada entrava fria pela fresta da janela, carregando o cheiro da terra úmida e de folhas distantes. Lá fora, o povoado dormia sob um céu limpo, e dentro da casa, só se ouvia o som regular da respiração de Moarã. Ethel e Naiovi continuavam sentadas ao lado da cama, falando baixo, como se estivessem à beira de um segredo.
– Ela nunca falou de perda assim – disse Naiovi, quase num sussurro. – A mãe dela… eu nem sabia que ainda doía tanto.
– Não é sobre o quanto dói. É sobre quem pode ver. – Ethel olhava para Naiovi com uma expressão mais branda do que de costume. – Moarã carrega tudo por dentro. Quando resolve mostrar, é porque a represa está cheia demais.
Naiovi assentiu, mas a inquietação não deixava o corpo. O olhar voltava sempre para Moarã, como se esperasse que ela dissesse algo mais ou voltasse a se perder em alguma memória estranha.
– O composto está agindo – murmurou ela, comedida. – Mas acho que de formas que não prevíamos. Essa abertura emocional... pode estar associada à ação sobre o sistema límbico. A Gresilha pode ter interagido com a Citriomila de forma mais profunda do que o esperado.
– E você, doutora? – Ethel apoiou o queixo na mão. – Vai fingir que não te afetou também?
Naiovi desviou o olhar. Por um instante, parecia que ia negar. Mas apenas soltou um suspiro longo, exausto.
– Não é fingimento. É contenção. Sentir é um risco.
– Valeã tem um jeito cruel de arrancar máscaras. A terra aqui reconhece quem disfarça. Eu aprendi na marra. – disse Ethel, séria.
– Não quero me desfazer dela. Só quero entender o que estou sentindo antes de virar mais um estilhaço na vida de alguém que parece que já sangrou demais.
Ethel ia responder, mas um som abafado interrompeu. Moarã se remexeu nos lençóis, virando-se de lado, os cabelos colados na testa suada. Os olhos se entreabriram, pesados. E então, num meio murmúrio, com a voz rouca e arrastada, soltou:
– Ethel... pergunta pra Naiovi se ela... se ela já te contou como ela olha quando tá tentando fingir que não quer morder teu cangote.
Ethel arregalou os olhos, surpresa.
– Moarã?! – sussurrou, entre indignada e divertidíssima.
– Tô só dizendo… a cientista gosta de experimento, mas o que ela quer mesmo é... é... – Moarã riu sozinha, depois virou de novo para o outro lado e voltou a roncar quase de imediato.
O silêncio que se seguiu foi sepulcral – até Ethel se virar para Naiovi, que estava absolutamente paralisada.
– Bom… acho que não precisa nem me responder mais nada – disse Ethel, com um ar satisfeito. – O composto liberou o filtro do juízo, com certeza.
– Isso é mais do que um filtro – murmurou Naiovi, escondendo o rosto entre as mãos.
– E ainda pode piorar – disse Ethel, já se levantando. – Vou preparar outro extrato para modular os efeitos neurológicos. Ela não pode sair por aí dizendo que quer montar em alguém no meio da assembleia.
Mas antes que ela pudesse se afastar da cama, um som seco cortou o ar. Moarã estremeceu. Um tremor leve percorreu seu braço direito, depois a perna – e então, um espasmo breve, mas visível, tomou o lado esquerdo do corpo.
– Moarã? – Naiovi se aproximou imediatamente.
Os espasmos cessaram tão rápido quanto surgiram. Os olhos dela se abriram, confusos.
– O que… foi isso? – murmurou, com a respiração curta. – Minhas mãos… formigaram.
Naiovi segurou seu pulso, checando o batimento, enquanto Ethel já estava ao lado, abrindo a bolsa com alguns compostos preparados de emergência.
– Provavelmente uma reação extrapiramidal. – diagnosticou Ethel, rápida. – A interação cruzada entre os extratos pode ter causado uma sobrecarga no eixo neuroinflamatório.
– Isso... não é comum. – Completou Naiovi.
– Foi uma sacudida só – disse Moarã, tentando se levantar. – Já passou.
– Não. Agora é sério. – Naiovi a empurrou de volta com gentileza, mas firmeza. – Pode parecer pequeno, mas é o tipo de sintoma que pode escalar se não for contido.
– Te avisei. – murmurou Ethel, pegando um frasco âmbar. – Isso aqui é mais do que um bálsamo. É meio caminho pro transe se errar a dosagem.
– Vou estabilizar com infusão de Casca-de-Fogo e raiz de Endril. Reduz a excitabilidade neural, estabilizando o sistema motor. – disse Naiovi, já reunindo o que precisava.
Moarã as observava com o olhar turvo, tentando entender se aquilo era preocupação demais ou exatamente a preocupação certa.
– Ainda tão dramáticas… – murmurou.
– Se comporta, Moarã. – Ethel já fervia água numa chaleira. – Tá todo mundo aqui porque te quer bem. Aproveita.
Moarã fechou os olhos de novo. O corpo cedeu à exaustão. Ethel e Naiovi se entreolharam com feições preocupadas.
– Será que vai demorar para passar os efeitos?
– Na receita original, dura em média cinco horas. Agora esse concentrado…
– Sabemos muito pouco.
Moarã esticou o corpo como um gato preguiçoso.
– Vocês tão cochichando feito duas corujas na madrugada. – resmungou. – Deixem uma mulher dormir em paz depois de ser quase esmagada por uma égua.
– Como você se sente? – perguntou Naiovi, rapidamente.
– Como se tivesse dormido seis dias e sonhado com monstros. – Moarã bocejou. – E com você, Ethel, pelada numa plantação de cenoura.
Ethel ergueu as sobrancelhas.
– Você nem imagina o que eu fiz com as cenouras. – disse Moarã, antes de virar de lado – Agora me deixem quieta.
As duas trocaram um olhar.
– Efeito colateral? – arriscou Ethel, em voz baixa.
– Talvez. – sussurrou Naiovi. – Ou só sinceridade aguda. Vamos precisar de uma escala nova pra isso.
Moarã já voltava ao sono, com o rosto afundado no travesseiro.
– O que importa é que Moarã está viva e, apesar de tudo, tem tido boas respostas… Vou preparar mais extrato pros nervos, pra se precisar. Fica de olho aqui, já volto. – Ethel levantou-se e foi para o balcão da cozinha com alguns pequenos frascos.
Naiovi observava Moarã quando ouviu um “bip” vindo de sua pulseira que fora colocada no antebraço da paciente, medindo e registrando as informações vitais. Apertou na notificação que apareceu na tela, abrindo uma carta de notificação oficial:
Assunto: Pendência de relatório técnico – URGENTE
Remetente: Diretoria de Cooperação Científica e Logística – Núcleo de Missões Periféricas
Excelentíssima Naiovi Sareth de Kohr,
Identificamos lacunas nos relatórios enviados nos dias anteriores, especialmente nos dados biométricos referentes aos compostos experimentais testados em campo.
A ocultação de informações viola os protocolos estabelecidos no Acordo de Colaboração Transfronteiriça e será reavaliada na próxima assembleia ordinária, caso a pendência não seja resolvida nas próximas 72 horas.
Lembramos que, conforme estabelecido, os compostos desenvolvidos sob jurisdição conjunta devem ser integralmente catalogados, incluindo efeitos colaterais, reações cruzadas, e registros clínicos em humanos ou outros seres.
Ressaltamos que omissões deliberadas ou retenção de dados serão interpretadas como obstrução ao esforço científico conjunto.
Aguardamos o envio completo do relatório. Componha também anexo com as informações do composto administrado em “caso experimental nº 01”.
– Núcleo de Monitoramento e Convergência de Dados, Kohr.
Naiovi paralisou. O visor apagou sozinho com o tempo. A luz do ambiente parecia mais opaca. No fundo da cozinha, Ethel mexia a infusão como quem adivinha pensamentos.
– Dá pra ver tua cara daqui – disse Ethel. – Kohr mandou lembrança?
Naiovi não respondeu de imediato. Reconfigurou a pulseira para monitorar Moarã e respirou fundo. Caminhou até a pia, encostando-se ao lado de Ethel, quase num gesto inconsciente de dividir o peso da mensagem.
– Eles querem tudo. Detalhado. Inclusive disso que acabou de acontecer.
– Ah, óbvio que ficaram sabendo.
– Ficaram. De alguma forma.
Ethel parou de mexer a infusão. O cheiro amargo da casca-de-fogo subia com o vapor. Ela não se virou de imediato. Só depois de alguns segundos é que largou a colher de madeira e olhou para Naiovi de lado.
– Às vezes não precisa grampear uma conversa. É só prestar atenção no que falta num relatório.
– Ou pode ter alguém daqui que manda informações para Kohr.
Ethel arqueou uma sobrancelha, sem surpresa – mas com algo entre ironia e cautela.
– Sempre tem. – disse, simples, quase com tédio. – Todo lugar que tem algo interessante tem alguém disposto a vender.
Ela voltou a mexer a infusão com calma, como se aquilo fosse tão banal quanto os ingredientes.
– Você tem suspeitas? – perguntou, ainda de costas.
Naiovi hesitou. O som distante de Moarã respirando mais profundamente enchia os intervalos entre uma frase e outra.
– Não faço ideia. Sabe quem foi o último a chegar por aqui?
– Acho que foi a Lis. Tem uns dois anos. Mas eu duvido que seja ela, Lis pode ter seus segredos, mas não tem paciência pra espionagem. E menos ainda pra bajular Kohr. – Pegou uma concha, verteu o líquido quente na caneca e a entregou para Naiovi – Toma, acalma seus nervos também.
Naiovi assentiu com leveza, levando a caneca até o rosto, inalando o vapor com cuidado. O cheiro queimava as narinas, mas era eficaz – o tipo de preparo que não alivia o paladar, mas entrega o que promete.
– Então talvez seja alguém que já estava antes dela. – disse, mais para si mesma. – Alguém que aprendeu a ficar quieto. Ou alguém que finge demais que não se importa.
– Isso afunila bastante. – ironizou Ethel.
Um ruído leve no quarto chamou a atenção das duas – Moarã se remexia, murmurando algo ininteligível no torpor da recuperação.
Ethel olhou, atenta, e então voltou o olhar para Naiovi.
– Vai mesmo seguir com isso? Achar o dedo de Kohr por aqui?
Naiovi demorou para responder. Soprou a superfície do chá antes de levar um gole à boca. Fez uma careta involuntária. E depois disse, seca:
– Acho que por agora isso seria uma perda de tempo valioso. Preciso resolver muita coisa primeiro, depois me preocupo com isso. Tem a pesquisa do musgo, agora esse composto e Moarã… No fim, não estou fazendo nada de errado.
Ethel arqueou uma sobrancelha, meio surpresa pela resposta mais pragmática.
– Olha só. Prioridades. Já tava começando a achar que você queria sair montando um inquérito com triangulação e interrogatório.
Naiovi não respondeu de imediato, apenas girou a caneca entre as mãos. Quando falou, foi num tom mais baixo:
– Já fiz isso antes, em Kohr. Descobri o culpado e perdi três aliados no processo.
Ethel ergueu os olhos, como quem foca melhor para ouvir. Naiovi deixou a frase pairar.
– Por enquanto, só quero que ela melhore. – disse por fim. – Depois eu vejo se tem mesmo um passarinho de Kohr por aqui, ou se é só a minha própria sombra.
Silêncio. Depois, quase num sussurro:
– Era espionagem?
– Contrabando. Um dos meus… da minha equipe desviava um dos insumos mais usados na purificação da água que era destinada aos trabalhadores da periferia industrial. Vendia tudo por fora.
– E deixou rastro?
– Um monte. Muitos, forjados contra a gente. Ele deixou pegada de cada um de nós. Se fosse pego, ninguém sairia ileso. Um escudo de culpa coletiva.
– Uma bomba-relógio. – murmurou Ethel, agora de braços cruzados, recostada à pia.
– Eu fui a primeira a suspeitar: as margens de eficiência começaram a cair, e os trabalhadores relatavam sintomas antigos que a fórmula atual já deveria ter resolvido. Eu consegui provar minha inocência. – A voz de Naiovi endureceu. – Mas o Conselho preferiu cortar o galho inteiro. Mandaram todos embora.
– Mesmo depois da tua prova?
Naiovi assentiu devagar. O silêncio retornou, mas agora tinha outra textura. Ethel não se apressou em responder. Só depois disse, num tom mais baixo:
– E ainda assim você ficou em Kohr.
– Não por muito tempo.
O silêncio se estabeleceu por alguns instantes. A resposta ficou suspensa nas entrelinhas, até o momento ser interrompido por bips da pulseira de Naiovi: Moarã estava tendo outra crise.
Correram para o leito e o rosto de Naiovi mudou na hora – o foco voltou quase que instantaneamente. Moarã se remexia, seus músculos das pernas estavam enrijecidos e o maxilar travado. A respiração estava irregular, entrecortada por pequenos espasmos.
– Ela está queimando de dentro pra fora… – murmurou Ethel, estendendo a mão mas sem tocar. – Esse composto…
– Eu sei. – Naiovi interrompeu, já conectando a pulseira ao monitor improvisado com os sensores da bancada. – O pico é rápido, mas não está pior que antes. Só... mais visível. Isso é um efeito adverso?
– Não necessariamente.
Moarã murmurou algo incompreensível. Franzia a testa, como se revivesse uma cena antiga ou sonhasse com algo. Quando a crise passou, Naiovi e Ethel deram-na a infusão recém-preparada.
Ethel olhou de lado para Naiovi. Silêncio, de novo. Depois de algum tempo, falou baixo, quase como um pensamento que escapou:
– Essa história que você me contou... não foi só pra justificar por que você não vai atrás do passarinho de Kohr, né?
Naiovi não respondeu de imediato. Seus olhos não se moveram de Moarã.
– A gente aprende também com os nossos acertos. Ou apesar deles.
Ethel colocou sua mão sobre a mão de Naiovi, que repousava em cima de seu caderno no colo.
– E você, Ethel? Como sabe de tudo isso? – apontou para os reagentes e equipamentos. – não venha me dizer que aprendeu tudo sozinha, ou aqui em Valeã.
Ethel deu um sorrisinho cansado e reuniu forças para tocar em um assunto delicado.
– Não, realmente não aprendi aqui e nem sozinha… – repetiu Ethel, o seu olhar se perdeu por um instante na luz trêmula do monitor da pulseira em Moarã. – Tive um professor. Já ouviu falar dos passantes?
– Os ciganos?
– Poucos são ciganos hoje em dia. Somos um povo nômade.
– Então você é passante?! – Naiovi olhou surpresa para Ethel.
– Por que a surpresa? O que sabe dos passantes?
– Tanto quanto sabia sobre Valeã, aparentemente… Você não parece passante.
– Não pareço? – Etheu soltou uma risadinha entre os dentes – E como é que se parece com um passante, pra você?
Naiovi mastigou as palavras antes de usá-las, não queria atrapalhar o momento de intimidade que estava se abrindo.
– Não são muito bem falados em Kohr. Dizem que são sem lei, delinquentes, rudes, indisciplinados… Não costumamos ter contato. É raro de se ver, mesmo nas expedições externas.
– Evitamos terras com muita contaminação, zonas mortas, ou com mil olhos vigiando. Andamos sempre em grupos pequenos, justamente para passar despercebidos. E sim… eu sou passante. Ou era. Já andei muito, conheci muitos lugares, boa parte pelo mundo antigo em ruínas.
Ela olhou novamente para o pulso de Moarã, como se aquele monitor frio também lembrasse algo que ficou para trás.
– Tínhamos um sistema de comunicação por rádio e íamos avisando grupo a grupo as condições do terreno, clima, ameaças, pontos de água, locais seguros… – Fez uma pausa breve, e a voz amaciou. – O meu pai… Ele me ensinou a escutar. Era o tipo de pessoa que acreditava que dava pra fazer um motor rodar com chuva ácida e fé. – Ela deu um sorriso breve, mas não havia humor ali. – Um combustível que tirasse força da própria tempestade. Ele era… genial.
Os olhos perdidos de Ethel, iluminados apenas pela luz tremulante fria da pulseira, encheram-se de água. Inevitável.
– Aprendi com ele. Com os outros grupos, com os laboratórios que já acampamos, com os povos que nos acolhiam ou que acolhíamos pelo caminho. Você se surpreenderia com o tanto de coisa que ainda presta nesse mundo, apesar das ruínas.
Naiovi não disse nada. Só ficou ali, com o caderno esquecendo a ciência no colo, e os olhos parados em Moarã – que respirava mais tranquila, embora a testa ainda guardasse um vinco leve, como quem sonha coisas que não se quer lembrar.
O silêncio não era desconfortável. Ethel secou o olho com as costas da mão, disfarçando.
Foi então que Moarã se mexeu. Um murmúrio rouco escapou de seus lábios – inaudível, talvez uma palavra, talvez só um som quebrado vindo do fundo da garganta. A mão dela, repousada ao lado do corpo, se estendeu vagarosamente, como quem busca algo no escuro. Encostou, sem querer, no canto da perna de Naiovi.
Naiovi prendeu a respiração. O toque era leve, quase nada. Ethel observou. Seus olhos desceram para a mão de Naiovi, que, hesitante, cobriu com gentileza a de Moarã.
– Sinto muito que você tenha passado por tudo isso, Ethel.
Ethel respirou fundo, com o rosto ainda meio úmido e a voz embargada, mas firme.
– Foi triste, sim. Não tem como dizer que não foi. Mas… virou parte de mim. Não podemos controlar as surpresas da vida, só podemos nos render a elas. A mudança é inevitável. Sem aquilo tudo, talvez eu nem tivesse vindo parar aqui. Nem teria conhecido Moarã.
Ela olhou para o rosto adormecido da amiga, onde a tensão começava a ceder, como se o próprio corpo, aos poucos, estivesse aceitando repousar.
– Moarã é… diferente de todo mundo que já conheci. Parece feita de pedra, fica escondendo o cuidado dela como quem guarda uma arma. E às vezes, sem querer, deixa escapar. E quando escapa, a gente entende por que ela assusta tanto e por que faz tanta falta quando some.
O silêncio voltou a cair, mas dessa vez era quente, não oco. Naiovi acompanhava o traço da mandíbula de Moarã com os olhos, como se ali também morasse alguma explicação para o mundo.
– Ela me deu abrigo quando eu mais precisava. Mesmo do jeito dela… desconfiada, toda travada. Mas eu entendi. E eu fico aqui porque quero entender mais.
Naiovi sorriu de leve, apenas com a curvatura do canto dos lábios.
– Ela assusta mesmo.
Ethel riu baixinho.
– E você não é muito diferente, sabe?
As duas se olharam. A luz trêmula da pulseira oscilou de novo, e um apito suave indicou a estabilização dos batimentos de Moarã. A tensão desapareceu por completo de sua expressão.
– Ela vai ficar bem. – disse Ethel, com uma certeza que talvez só quem conhecesse as rachaduras da rocha fosse capaz de ter.
Naiovi apenas assentiu. Mas, por um instante, deixou a mão ali – entrelaçada com a de Moarã – como quem também começava a aceitar algo.
O silêncio foi rompido por um suspiro mais profundo.
Moarã mexeu os dedos primeiro – um tique involuntário, como se testasse a realidade com cuidado. Depois, a mão entrelaçada à de Naiovi se moveu com mais intenção. Seus olhos ainda fechados franziram por instinto, como quem emerge de um sonho denso demais para deixar para trás.
Ethel se inclinou ligeiramente, observando.
– Moarã…? – chamou, num tom baixo, como se fosse proibido falar alto demais naquele instante.
A pálpebra de Moarã tremulou. Abriu os olhos aos poucos, como quem estranha a luz, mesmo fraca. O olhar demorou a encontrar foco. Primeiro vagou pelo teto. Depois pela pulseira no pulso. Por fim, pousou em Naiovi.
Ficou ali.
Quieto.
Fundo.
Como se não soubesse ao certo se ainda sonhava ou se aquilo era mesmo verdade.
– Eu… – Moarã tentou falar, mas a voz saiu seca, um fiapo de som, pigarreou.
Ethel pegou o copo com chá que tinha preparado horas antes e o estendeu, apoiando o fundo na outra mão de Naiovi, para que ela servisse.
– Devagar. Tá com o corpo ainda meio entorpecido – murmurou.
Moarã aceitou o líquido sem desviar os olhos de Naiovi, que, agora, baixava o olhar por um instante, talvez surpresa por aquele olhar inteiro só para ela.
Depois que bebeu, Moarã respirou mais fundo, e seus ombros se acomodaram no colchão. Ainda parecia processar o que acontecia – e o que havia acontecido.
– Vocês ficaram aqui… o tempo todo? – perguntou, com a voz já mais audível, mas rouca.
– Você queria que a gente fosse embora? – rebateu Ethel com um meio sorriso.
Moarã desviou o olhar, um rubor sutil subindo-lhe ao rosto, e apoiou a cabeça de lado.
– Não. Só… não tô acostumada.
Naiovi segurou a mão dela mais firme, só por um segundo.
– A gente também não.
Moarã fechou os olhos de novo. Mas dessa vez não para fugir. Era só um descanso, um recolhimento. Como quem aceita, por fim, que está segura.
E, por um breve instante, naquela casa de janelas vedadas, reagentes adormecidos e memórias dispersas, o tempo pareceu suspenso – como se todo o mundo lá fora estivesse em silêncio, esperando que aquelas três respirassem juntas.
Naiovi permaneceu quieta por alguns segundos, observando os contornos da mão de Moarã sob a sua. A respiração da caçadora era regular agora, o peito subia e descia com lentidão, como se navegasse em alguma correnteza interna.
– E quanto à mensagem de Kohr? – murmurou Ethel, quase como quem não queria quebrar o silêncio. – Vai responder?
– Vou responder. Mas... com cuidado.
– Com cuidado?
– Eles querem um relatório completo. Receitas, dosagens, efeitos. Querem que eu envie tudo. Mas se eu entregar tudo... perco o controle.
Naiovi levou um tempo antes de continuar. Seu polegar acariciou de leve a pele de Moarã, quase sem perceber.
– Vou mandar o suficiente. – disse por fim. – O bastante pra que fiquem tranquilos. Pra que se sintam no controle.
Ethel assentiu com um leve movimento de cabeça.
– Eles vão acreditar?
– Por um tempo, sim. – Naiovi olhou para Ethel, os olhos mais escuros à meia-luz. – E às vezes… um tempo é tudo o que a gente precisa.
Ethel deixou o corpo recostar na cadeira, aliviada.
– Só não faz nada de surpresa de novo, por favor. Eu tô metida nessa contigo.
– Vou tentar, mas não posso garantir nada. – Disse, virando-se para Moarã. Ethel observou Naiovi. Seus olhos cansados, baixos, avermelhados, eliminavam aquela postura soberba da diplomata, agora totalmente desfeita, desarmada, frágil.
– Não foi só Moarã que beijou o chão, né?
Naiovi soltou um suspiro cansado, permitindo-se sentir as dores que vinha ignorando o dia inteiro – ou que nem tivera tempo ainda para serem sentidas. Soltou um gemido fraco de dor quando aprumou sua postura na cadeira, encostando a cabeça na parede atrás.
– Cavalos são tão altos…
– Está inteira?
– Acho que só algumas escoriações. Caí de costas num monte de capim seco. Vou sobreviver.
– Levanta essa camisa aí, me deixa ver essas costas.
Naiovi hesitou e respirou fundo, com uma dificuldade que a fez ceder. Gentilmente soltou a mão de Moarã em cima da cama e levantou-se. Olhou Ethel nos olhos antes de virar-se e subir sua regata, ainda suja de terra seca.
Ethel compadeceu quando viu as costas da amiga, ainda suja com terra vermelha, ainda marcada pela terra vermelha, com arranhões salpicados de sangue seco e uns hematomas de extensão considerável. Levantou-se e caminhou em direção à Naiovi.
Ethel passou a ponta dos dedos nas costas de Naiovi, com cuidado, e pressionou de leve as áreas ao redor dos hematomas, em cima das costelas e da coluna, avaliando. Naiovi se contraiu com o toque e deixou escapar um som dolorido. Ethel suspirou, pegou um pano limpo e um pequeno frasco âmbar que estava na mesa. Molhou o pano com o líquido e começou a limpar, com gestos delicados.
– Não vou fingir que não tô brava com você. – disse baixinho. – Mas vendo isso aqui... também não dá pra fingir que não me importo.
– Você pode sentir os dois. É o que eu faço o tempo todo. – Naiovi fechou os olhos enquanto o líquido ardia e o pano removia o pó fino da pele.
Ethel permaneceu em silêncio, atenta ao gesto. Depois de alguns segundos, falou:
– Pronto. Não tá bonito, mas vai sarar. Vai tomar um banho, descansar. Eu fico aqui vigiando Moarã. Antes de deitar, volta aqui que vou fazer um curativo em algumas partes.
Naiovi puxou a regata devagar, cobrindo as marcas. Voltou o olhar para Moarã, que dormia profundamente. Silêncio. Só o som das respirações, e o sutil ranger da cadeira sob Ethel.
Naiovi se virou em direção à porta, mas antes de dar o primeiro passo para fora do quarto, parou. A voz saiu baixa, rouca, ainda embebida pelo cansaço:
– Obrigada, Ethel.
Ethel não respondeu de imediato. Apenas assentiu com a cabeça, como quem recebe algo valioso e entende seu peso. Naiovi cruzou a porta em silêncio. Seus passos ecoaram curtos no corredor até sumirem. O quarto voltou a se aquietar, com Moarã dormindo e Ethel – firme – ao seu lado.
********
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: