Desertar
Moarã acordou com um som baixo de potes sendo arrastados e um cheiro doce se espalhando pela casa. Espreguiçou-se devagar, sentindo os músculos ainda cansados da véspera, e seguiu o aroma até a cozinha.
Naiovi estava ali, de costas, remexendo nas prateleiras, procurando alguma coisa.
– Bom dia, prefeita! – disse sem se virar, ao ouvir os passos se aproximando.
– Prefeita? – Moarã arqueou uma sobrancelha, parando à porta.
– Toda hora vocês inventam um título novo pra mim, achei que era justo retribuir. Você vive por aí resolvendo tudo, todo mundo te conhece... prefeita te cabe bem.
Moarã franziu o cenho, cruzando os braços.
– Valeã não é uma república.
– Assim como Kohr não é uma monarquia, mas já ouvi princesa, nobre, majestade... e devo estar esquecendo de algum.
– A organização aqui é horizontal. Não temos hierarquia.
– Ah, mas tem sim. Só que não do jeito tradicional. E você é a prefeita de Valeã.
Os olhos de Moarã se arregalaram, mais em incredulidade do que em raiva, fazendo Naiovi soltar uma risadinha satisfeita.
– O que você está procurando? – perguntou Moarã, tentando ignorar a risada.
– Citriomila. Tinha separado um pouco naquela última cesta que trouxe… – a voz de Naiovi falhou brevemente, acessando uma memória incômoda. – Devia estar por aqui... – Continuou, remexendo entre potes e vidros.
– É isso aqui? – Moarã puxou uma das gavetas mais altas e encontrou um maço seco da erva. Entregou a Naiovi, observando o forno de barro fechado, de onde vinha o aroma doce que tomava o ar.
– O que está fazendo?
– Fazendo algo doce e sem sangue. – respondeu, quase um suspiro.
Naiovi virou-se de volta ao fogo, abrindo a tampa de uma panela onde borbulhava uma calda âmbar. Começou a dissolver a citriomila na mistura com movimentos lentos, cuidadosos, como se aquilo fosse mais do que uma receita.
Moarã se encostou no batente da porta com o olhar fixado no vapor que subia da panela e no modo como Naiovi se movia: precisa, mas com uma suavidade rara nos gestos de alguém que viera de um mundo tão duro.
– Isso aí... é pra quê, exatamente? – perguntou por fim, sem conseguir disfarçar o tom curioso.
Naiovi deu de ombros, mexendo o conteúdo com uma colher de cabo comprido.
– Pra mudar o gosto do doce. Nem tudo precisa da intensidade do açúcar. Às vezes o que a gente precisa é só de um pouco de doçura… E de uma acidez para realçar os sabores.
– Nossa, mas quanta poesia de repente. – comentou Moarã, arqueando a sobrancelha, num tom entre cética e divertida.
Naiovi demorou alguns instantes para acessar o que Moarã queria dizer com isso, sem perceber o peso de suas palavras.
– Ah, não… Não falei nesse sentido. Não é poesia… é química. O ácido equilibra ou realça outros sabores, como o doce ou o amargo. Muitos também funcionam como conservantes naturais. – Enquanto mexia a calda, sua voz foi ganhando ritmo e convicção. – Ajuda a manter o pH adequado, melhora a textura, a vida útil... pode até facilitar a digestão de alimentos mais pesados e estimula as papilas gustativas.
Moarã a observava em silêncio com os braços cruzados, como se avaliasse algo mais profundo que as explicações. O cheiro se espalhava por toda a casa como um fio quente e adocicado. Quando Naiovi abriu o forno, uma leve fumaça escapou, revelando um pequeno bolo dourado, de topo rachado e perfumado.
– Bolo de cenoura? – Moarã perguntou, surpresa. – Com citriomila?
– Experiência sensorial, versão improvisada – respondeu Naiovi, com um meio sorriso. – A cenoura adoça, a citriomila limpa a língua no fim. Equilíbrio.
Ela desenformou com cuidado, despejou a calda, cortou dois pedaços desiguais e entregou o maior a Moarã. Sentaram-se frente a frente na mesa de madeira.
Moarã deu a primeira mordida com receio, depois ergueu as sobrancelhas.
– Isso tá... bom. Muito bom. – Um silêncio breve, e então emendou – Aquela cesta que você trouxe da última vez… Como conseguiu tudo aquilo?
Naiovi mastigou devagar antes de responder, limpando os dedos no guardanapo de pano.
– Estou trocando. Coisas simples. Fármacos que eu e Ethel estamos fazendo no laboratório.
Moarã parou no meio da segunda mordida.
– Fármacos? Você tá usando o povo de Valeã como cobaia?!
Naiovi ergueu os olhos devagar.
– Não. São compostos tradicionais. Receitas que vocês já conhecem. Só que... um pouco mais potentes. E mais puros.
Moarã apoiou o garfo no prato, olhando-a com seriedade.
– Tipo o quê?
– Pomadas anti inflamatórias, extratos de raiz para dor de cabeça, xaropes de ervas para tosse… – respondeu Naiovi, com um leve tom defensivo. – A única diferença é que isolamos os princípios ativos. Refinamos o preparo. As fórmulas são da terra de vocês, eu só estou usando o que aprendi em Kohr para aprimorar.
Moarã relaxou um pouco, mas não o bastante para parecer convencida. Pegou mais um pedaço do bolo.
– E o povo tá trocando por isso?
– Mais do que eu esperava. Tem gente aqui que trabalha com dor no corpo e não para porque acha que é normal viver com dor. Se um bálsamo pode aliviar, por que não?
– Porque alívio tem preço. Faz esquecer por que a dor veio. – murmurou Moarã.
Naiovi pousou o garfo no prato, encarando-a com os olhos calmos.
– Você acha que eu tô tentando enfraquecer Valeã com um bolo e um pote de unguento?
Moarã soltou um som entre uma risada breve e um suspiro.
– Não. Mas não sei se confio em quem entrega tanto... sem cobrar quase nada.
– Eu estou cobrando. Eu estou aqui.
A frase ficou no ar como uma batida fora do compasso. Por um instante, as duas ficaram em silêncio. O cheiro do bolo recém-assado preenchia o espaço entre elas. Lá fora, o dia começava a nascer entre as árvores.
– Esse bolo tá bom demais pra ter tanta conversa séria em volta. – disse Moarã, mudando de assunto.
– A culpa é da citriomila. Desbloqueia os centros emocionais.
– Você inventou isso agora.
– Não quer dizer que seja mentira.
Moarã riu. E Naiovi, do outro lado da mesa, apenas observou.
– Se for me envenenar, que seja assim – disse Moarã, erguendo o prato vazio.
– Não, imagina. – Naiovi recostou na cadeira, sorrindo de lado. – Seria muito imprudente da minha parte atentar contra a prefeita da cidade que está me acolhendo. Chamaria atenção demais.
Moarã bufou, sem conter um meio sorriso, mesmo tentando manter a postura.
– Valeã não tem prefeita.
– Não oficialmente.
Antes que Moarã respondesse, três batidas soaram à porta.
– É ela – disse Naiovi, levantando-se sem pressa. Moarã olhou de soslaio.
Ethel entrou com o sol nas costas, o cabelo preso de qualquer jeito e um pano cobrindo o nariz, típico da proteção contra o pó da manhã.
– Trouxe reforço? – perguntou Moarã, apoiando-se na bancada.
– Só vim buscar essa doutora antes que ela invente moda demais aqui – respondeu Ethel, tirando o pano do rosto e sentindo o cheiro que ainda pairava no ar. – Hmm... tem bolo? Vocês acordaram bem hoje.
– Eu fiz – disse Naiovi, casual. – Teste de forno, teste de calda, teste de limites.
– E ela sobreviveu? – Ethel apontou com o queixo para Moarã.
– Por enquanto. – Moarã cruzou os braços.
– Ainda bem. – Ethel riu. – Seria uma tragédia diplomática envenenar a chefona.
– Vocês duas vão acabar espalhando isso, e o povo vai mesmo começar a me chamar assim – disse Moarã, balançando a cabeça, mas o tom era leve.
– Não é culpa nossa se você age como tal – respondeu Naiovi. Voltou à bancada, cortou um pedaço generoso de bolo e o embrulhou num pano limpo. – Achou que eu ia esquecer de você? – disse, entregando discretamente a Ethel, antes de ir calçar as botas.
– Hm. Finalmente alguém que sabe o que é gratidão científica – Ethel pegou o embrulho com uma piscadela. – Não diga nada, Moarã. Isso é contrabando diplomático.
– Não me meto nos seus esquemas.
– Bora? Quero terminar o teste com a resina antes do meio-dia. – disse Ethel, já na porta.
– Tô pronta – disse Naiovi, pegando também um frasco com Citriomila e guardando-o no bolso.
Antes de sair, virou-se para Moarã:
– Tem mais ali, se quiser depois.
– Depois penso no veneno – retrucou Moarã, sem perder o humor seco.
Ethel lançou um olhar enviesado para as duas, mas nada disse. Apenas abriu a porta e deixou que Naiovi passasse primeiro. Antes de sair, Naiovi virou-se uma última vez:
– Se quiser ver o que a gente tá fazendo, dá uma passada lá. Talvez tenha algo que te interesse.
Moarã assentiu, sem prometer nada, mantendo o olhar fixo na porta mesmo depois que ela se fechou.
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As duas caminharam em silêncio, ouvindo apenas o farfalhar da mata e o som dos próprios passos. O cheiro doce do bolo, agora amortecido pelo pano, ainda escapava levemente da bolsa de Ethel.
Chegaram ao contêiner adaptado, parcialmente camuflado entre arbustos e cipós, com painéis solares já gastos e uma fina camada de poeira avermelhada cobrindo o topo. Naiovi digitou o código de segurança e empurrou a porta estreita da lateral. O ar lá dentro era mais fresco, tomado pelo aroma sutil de ervas secas, álcool e vidro esterilizado.
– Tudo ainda onde deixamos – disse Ethel.
Naiovi se aproximou da bancada e tirou o casaco, revelando uma camisa fina de mangas arregaçadas. Retirou do bolso o frasco com Citriomila e o colocou ao lado de uma série de ampolas etiquetadas à mão. Depois pegou um dos pequenos cadernos de anotações e folheou até a página marcada com uma tira de tecido.
– Fiquei pensando no extrato de Gresilha-do-Véu. A modulação da resposta inflamatória pode ser ainda mais eficaz se combinada com a base de Citriomila. Talvez duas gotas, só. – Ela girou o frasco com precisão, quase afetuosa. – Mas a dosagem precisa ser ajustada.
– Da última vez que você falou “só duas gotas”, o Jorge ficou duas horas com a mão tremendo – respondeu Ethel, puxando uma cadeira e sentando-se com o pedaço de bolo no colo. – Quer?
– Depois. Me distraio fácil com açúcar.
– Uhum. Com açúcar e com certas autoridades locais – provocou Ethel, dando uma garfada no pedaço ainda morno.
Naiovi lançou um olhar breve, mas não respondeu.
Ethel engoliu a primeira garfada antes de mudar o tom:
– A verdade, Naiovi. Você tá mesmo fazendo isso tudo só pela pesquisa?
Naiovi pousou a pipeta na bandeja de metal e pensou por um momento antes de responder.
– No início, sim. A pesquisa era o que me mantinha firme. Agora… – olhou para as prateleiras improvisadas, os vidros com rótulos rústicos, os papéis colados com sementes prensadas. – Agora, acho que para que as coisas possam acontecer, preciso… descentralizar.
Ethel ficou em silêncio, mastigando lentamente.
– É por isso que você quer tanto entender esse solo? Essa flora? Porque não dá pra dominar Valeã com precisão?
– Talvez. – Naiovi deu de ombros. – Ou porque comecei a me perguntar se quero mesmo controlar algo.
– Isso é perigoso. – murmurou Ethel. – Se Kohr sentir que você se perdeu aqui, que você deixou de ser “instrumento útil”, eles te recolhem. Ou te silenciam.
– É por isso que não escrevo mais tudo. E nem envio tudo. – O olhar de Naiovi estava frio agora, pragmático. – Algumas descobertas ficam aqui. Com você. Com Moarã. Com Valeã.
– Tá jogando alto, pesquisadora. – Ethel recostou-se na cadeira, agora mais séria.
Um bip discreto avisou que a centrífuga havia concluído o processo. Naiovi se moveu até ela, colhendo cuidadosamente o líquido esverdeado que sobrara nas ampolas menores.
– Se der certo... isso pode substituir três tipos de anti-inflamatórios que Kohr considera escassos.
– E se der errado?
– Vamos saber primeiro. – Naiovi estendeu uma das ampolas a Ethel. – Mas eu não vou testar em ninguém sem ter certeza.
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O som dos aparelhos havia parado há algum tempo e o silêncio do laboratório era agora preenchido apenas pelo leve tilintar de frascos sendo organizados, rótulos corrigidos e anotações rabiscadas à mão. Ethel havia saído minutos antes para buscar mais raízes frescas na estufa. Naiovi estava sozinha, concentrada em medir volumes minúsculos de um extrato avermelhado.
Moarã apareceu à porta com o corpo ainda coberto de poeira do caminho. Encostou no batente, observando a cientista se mover com uma destreza sem igual.
– Parece que vocês andaram ocupadas. – disse, deixando o olhar passear pelas bancadas cheias, etiquetas penduradas, folhas secando em redes e até uma pequena coluna de destilação improvisada.
– Ocupadas é pouco – respondeu Naiovi, sem tirar os olhos do conta-gotas. – Isso aqui está virando meio laboratório, meio confissão. Doidera.
– Confissão?
– As plantas falam. – explicou, com um meio sorriso. – Elas contam como resistem, onde guardam seus venenos, quando liberam cura. Ethel ouve melhor do que eu, ainda estou aprendendo a traduzir.
Moarã entrou devagar, passando os olhos por um quadro cheio de esquemas, setas e nomes locais de ervas que ela reconhecia desde criança.
– E tudo isso... vai pra onde?
– Vai para onde precisa ir. – disse, e então respirou fundo, ajustando o tom. – Uma parte vai para a população, para aliviar o que está pesado. Outra parte vai pra Kohr, nos relatórios. Outras... só ficam aqui. – Naiovi respondeu, fechando um frasco e selando a tampa com cera de abelha.
Moarã assentiu, pensativa. O silêncio se alongou entre elas, até que Naiovi acrescentou:
– Não dá pra entregar tudo de um lugar sem esvaziá-lo. Nem sempre quem te mandou é quem sabe o que fazer com o que você achou. E… pra ser sincera, acho que tem descobertas que devem nascer aqui, com quem sempre usou e cresceu junto. Não em um deserto, a partir de um relatório enviado por pulsos codificados.
Moarã se aproximou, apoiando as mãos na bancada.
– Eu gosto mais de você quando para de tentar parecer imparcial.
– E acho que eu gosto mais de mim quando esqueço um pouco quem devo ser.
Moarã segurou o olhar por um tempo a mais.
– Vem. Quero te mostrar uma coisa.
– Agora?
– Agora. Antes que o sol caia e ela volte pro mato.
– Ela?
– Você vai ver. – disse, sem maiores explicações.
Naiovi franziu o cenho, mas tirou as luvas e guardou os frascos com o cuidado habitual antes de seguir a vigilante. O caminho foi silencioso, serpenteando pela subida da mata norte, onde as folhas pendiam como cortinas e o ar começava a esfriar.
Moarã parou numa grande clareira e assobiou – um som agudo, longo, que se dissolveu entre os galhos. Por alguns instantes, nada. E então, ao longe, um som inconfundível: trotes.
O chão parecia vibrar sob os cascos. Quando a silhueta apareceu entre os troncos, Naiovi prendeu a respiração.
Era um animal forte, de pelos castanhos escuros com reflexos dourados e um grande olhar atento e sereno. A crina negra balançava com leveza e a aproximação vinha sem pressa.
Os olhos de Naiovi brilharam de emoção e sua respiração ficou descompassada. O corpo congelou no lugar onde estava, incapaz de dar o passo seguinte. Moarã franziu a testa, percebendo o súbito silêncio e rigidez no corpo de Naiovi.
– Tá tudo bem?
Naiovi inspirou fundo, como quem busca oxigênio depois de muito tempo submersa, com os olhos ainda fixos na figura que se aproximava entre as árvores.
– É um cavalo??!!! – a voz saiu aguda, num misto de desespero e maravilhamento.
Moarã soltou uma risada, surpresa com a reação exagerada.
– É… sim. Uma égua, na verdade. O nome dela é Lança. – disse Moarã, lentamente. Tirou uma cenoura da bolsa lateral e estendeu para Naiovi, ainda sem entender completamente o motivo do espanto. – Toma. Dá pra ela. Assim ela se acostuma com o seu cheiro.
Naiovi não se moveu. Apenas olhou a cenoura, depois para o animal, depois para Moarã, como se estivesse checando se aquilo era real.
– Você... lembrou?
Moarã franziu o cenho, depois entendeu.
– Daquele dia em que você estava entre febre, tremores e delírios… e implorava pra ver os cavalos?
Naiovi assentiu, sem dizer nada. Segurava a cenoura, agora com as mãos firmes e os olhos marejados.
– Eu disse que traria quando a terra deixasse.
– Eu... nunca tinha visto um de perto. Só em projeções antigas. Ou livros. E eram sempre... estáticos. Eu sabia que eram grandes, mas não assim. Isso aqui é... – ela engoliu em seco – é muito mais do que eu imaginava.
Naiovi deu um passo hesitante para a frente, depois outro, como se estivesse diante de um artefato sagrado. Estendeu a mão com a cenoura, tremendo. Lança se aproximou com calma, farejando a mão de Naiovi antes de abocanhar a cenoura. O toque quente do focinho na pele dela arrancou um pequeno som da cientista, algo entre um riso nervoso e um soluço contido.
Moarã cruzou os braços, observando com um meio sorriso no canto dos lábios.
– Ela é mansa. E esperta. Vai saber se você tá fingindo ou se tá com medo de verdade.
– Não estou fingindo. – respondeu Naiovi, ainda sem tirar os olhos do animal.
– Achei que você fosse do tipo difícil de impressionar. – provocou Moarã, divertida.
– Não com isso. Isso aqui… é incrível, Moarã.
A frase pairou entre elas. Lança mastigava devagar a cenoura, e Naiovi afagava-lhe o pescoço com os dedos ainda trêmulos.
Moarã se aproximou, apoiando a mão no lombo do animal.
– Amanhã posso te ensinar a montar.
– Você... tá falando sério? – perguntou Naiovi, ainda ofegante.
– Nunca brinco com sela e nem com sabedoria da terra. Mas só se você prometer não desmaiar de emoção no caminho.
Naiovi soltou uma risada, verdadeira, com o rosto levemente ruborizado.
– Prometo tentar.
Lança se afastou depois de um tempo, pastando mata adentro. Naiovi ainda a observava como se tivesse presenciado algo sobrenatural.
– Vem. Já tá escurecendo. Se ficarmos muito tempo aqui, vamos virar banquete de inseto.
Naiovi concordou e começaram a caminhar de volta pelo mesmo trilho, agora mergulhado em tons ocres e sombras que se estendiam longas entre as árvores. Quando chegaram de volta à parte mais habitada, algumas lanternas já se acendiam entre os casebres. O ar carregava o cheiro de lenha, comida aquecida e chá de erva grossa.
Na entrada da casa, Moarã parou e virou-se para Naiovi com um gesto breve.
– Vai dormir com a cabeça cheia hoje?
– Nem sei se vou dormir. – Naiovi respondeu, com uma honestidade incomum.
– Ótimo.
Subiram os degraus. A lamparina foi acesa com um estalo, lançando sombras pelas paredes. Moarã pegou uma laranja do cesto e sentou-se no batente da janela, de onde se via Valeã dissolvendo na escuridão enquanto descascava a fruta. Lá fora, o céu se enchia devagar de estrelas.
Naiovi permaneceu de pé, estática, ainda com a mochila nas costas e o coração levemente agitado. Olhou a sala pequena, o calor suave da madeira, o silêncio cortado só por insetos e algum grilo insistente… Um silêncio vivo – coisa que Kohr nunca soube fabricar. E sentiu que tudo estava onde deveria estar.
Lança, pastando solta em algum canto da mata, livre.
Moarã, firme como Valeã: densa, enigmática, inteira. Guardiã de tudo que não se dobra fácil.
Ethel, provavelmente falando alto em alguma casa acesa, livre para estar onde quer e bem-vinda onde chega – como a própria Lança, como Moarã com sua terra.
E Naiovi… ali.
Sim, Naiovi também estava ali porque alguém quis. Kohr a enviou. Ela é uma extensão de uma máquina. Precisa, funcional e, sem dúvidas, gostava disso. Gostava de acertar, de resolver, de ser chamada porque sabiam que ela entregava. Era viciante ver as projeções baterem com a realidade e ser convocada com urgência porque precisavam dela. Os elogios, sempre constantes. Tinha prazer nisso. Orgulho.
Mas agora, ali, com o cheiro da mata ainda no corpo e o calor da madeira sob os pés, o cheiro da laranja que Moarã descascava… Naiovi se perguntava: Aquilo em Kohr era pertencimento? O brilho nos olhos dos outros, os convites para compor comitês, os sorrisos discretos do alto escalão… Sentia-se parte ou era o reflexo de uma engrenagem satisfeita por funcionar impecavelmente? Ser o braço de uma máquina não é o mesmo que ser parte de um corpo.
Se essa tal liberdade existir, por acaso devesse não se tratar de ser reconhecida, mas de ser vista, mesmo quando vacilasse. De ter mais a ver com imperfeição do que com o desempenho. E, se isso não era liberdade, deveria ser.
Desertar não era tão simples quanto parecia – A palavra veio como uma falha de cálculo – Desertar?! Não basta simplesmente virar as costas e chamar isso de escolha! Não era só sobre ela. Muita gente em Kohr contava com Naiovi. Não como linha de frente, mas como freio, como alguém que ainda podia atrasar o avanço do controle oligárquico. Haviam crianças, trabalhadores, famílias inteiras que resistiam. Se ela sumisse… o que ou quem viria em seu lugar?
Não seria só uma ruptura com Kohr, mas também um risco para Valeã. Cedo ou tarde Kohr viria atrás dela e colocaria Valeã na mira. Poderiam declarar a missão comprometida e invocar protocolos de controle, mandar outra pessoa – provavelmente alguém menos flexível, menos disposto a ouvir.
Se parasse de enviar os relatórios e de responder aos sinais, Kohr não assumiria que ela desertou por vontade própria. Assumiria que Valeã a capturou, a seduziu ou a manipulou. Ou pior: que a reteve contra a própria vontade. Poderiam acusar o povoado de sequestro e, com isso, justificar intervenção e forçar presença. Mandar outro emissário – ou um pelotão.
Kohr não deixa pontas soltas e ela é uma ponta valiosa demais para ser esquecida.
Desertar poderia inicialmente parecer um ato de liberdade… Mas seria, na verdade, uma sentença para quem ficou – e a última coisa que queria era ver Kohr e Valeã pagando o preço por uma escolha que, no fim, era só sua. E ela… ela seria só mais um nome apagado dos registros.
A pergunta não era se ela queria ficar – mas quanto de Valeã ela conseguiria levar consigo sem que Kohr percebesse.
Todos esses pensamentos surgiram em questão de poucos segundos, enquanto passeava com a mão pela cabeça. Os fios raspados, que ainda carregavam o toque do último corte, traziam uma renúncia e um protesto: abdicar dos fios era protestar contra privilégios supérfluos e escancarar a desigualdade a partir de uma figura de poder. Mas, por outro lado, era também submeter-se ao sistema. Era pobre... marginal. E uma bela jogada de marketing, parando para pensar: conseguira a simpatia de boa parte dos trabalhadores da cúpula com esse gesto.
Naiovi respirou fundo, voltando para si. Afrouxou os ombros, tirou a mochila com um movimento leve e a apoiou ao lado da parede. Os olhos cruzaram os de Moarã. Havia um mundo inteiro ali. Moarã observava em silêncio, mas não era o tipo de silêncio indiferente. Era o silêncio de quem vê.
Sem quebrar o contato, Moarã separou um gomo da laranja e estendeu na direção dela.
– Toma. Ainda tá doce.
Naiovi hesitou por um segundo, mas aceitou. O suco cítrico estourou na boca com uma acidez inesperada.
– Você parece... pesada. – disse Moarã, sem cerimônia.
– Estou pensando.
– Pensar demais, às vezes, é adiar o que já sabe.
A frase ficou entre elas por alguns segundos.
– E às vezes é o único jeito de não ferrar tudo. – retrucou Naiovi, sem raiva, mas com frustração em sua voz.
Moarã não respondeu. Mordeu outro pedaço da laranja e voltou a olhar a vila escurecendo do lado de fora.
Naiovi seguiu seu olhar. O céu estava mais carregado de estrelas agora. A mata havia engolido o último traço de luz, e lá fora – ela sabia – Lança caminhava livre.
Mas aqui, neste instante, havia alguém partindo uma laranja ao seu lado, sem cobrar nada. Apenas dividindo silêncio e fruta. E isso – mesmo que pequeno – era um dado novo no seu sistema.
*****************
Fim do capítulo
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