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Legado de Metal e Sangue por mtttm

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Palavras: 7083
Acessos: 241   |  Postado em: 21/07/2025

Crescer onde não se planta

Dia 8

O dia seguinte à lua nova começava tarde, como em dia de feriado. Naiovi acordou com a cabeça latejando ao ouvir burburinhos e sentir o cheiro de café forte invadindo o ar, seguido por um aroma de pão recém-assado. Sua boca estava seca, o corpo rígido, mas, de alguma forma, ela se sentia leve, sem aquele peso que vinha carregando há tanto tempo.

Levantou-se e encontrou Moarã e Ethel fofocando na cozinha. Moarã, apoiada na bancada com uma xícara de café nas mãos, escutava Ethel contar animada as fofocas que havia coletado na festa da noite anterior. Ambas exibiam olhares cansados e uma postura despojada.

– É mesmo?! Mas é oficial isso ou só boatos? – Moarã perguntava com atenção, arqueando a sobrancelha de vez em quando.

– São só boatos, mas eu acho que é oficial, tá?! Depois falei com a Claudinha, e ela confirmou que viu a Lis perto da banca naquela tarde – diziam em voz baixa para não perturbar Naiovi, que assistia à cena pela porta entreaberta de seu quarto.

Quando Naiovi se aproximou, a atenção das duas se voltou imediatamente para ela. Moarã afastou-se da bancada, e Ethel abriu um grande sorriso.

– Bom dia, princesa! – disse Ethel, aproximando-se para abraçar Naiovi com delicadeza. – Adorei te ver ontem! – completou, antes de se afastar em direção à porta de saída. – Bom, acho que essa é a minha deixa. Onde mesmo você disse que estava o potinho, Moarã?

– Aqui – respondeu Moarã, entregando uma caixinha de barro com tampa.

– Valeu! E chefa – virou-se para Naiovi – hoje vou folgar! Tô numa ressaca danada. A gente se vê amanhã.

– Se cuida, Ethel. Também gostei de te ver – respondeu Naiovi.

– Paz ao que te habita.

– E força ao que te move.

Ethel saiu e fechou a porta, deixando Moarã e Naiovi sozinhas novamente.

– Naiovi… como está se sentindo? – perguntou Moarã.

– Parece que lutei com uma onça… – Naiovi levou a mão à cabeça, massageando as têmporas.

– É assim mesmo nas primeiras vezes. Com o tempo, passa – disse Moarã, pegando uma xícara de café fumegante e entregando-a a Naiovi. – Toma, é daqueles que levantam até morto.

As duas deram goles lentos no café, sentindo o calor se espalhar pelo corpo.

– Ethel, então, é a sua espiã? – Naiovi perguntou com um toque de humor, caminhando até o centro da cozinha.

– Espiã?! – Moarã deixou escapar uma risada curta. – Nunca tinha pensado por esse lado. Ela é faladeira, e eu sou interessada no conteúdo.

– Ela está me espionando?!

– Ela fala bastante de você.

Naiovi corou. Pegou um pedaço de pão e molhou no café. Moarã franziu o cenho em discreta desaprovação ao ato, mas preferiu não comentar.

– Acho que precisamos conversar – Moarã foi a primeira a quebrar o silêncio.

Naiovi assentiu e sentou-se à mesa próxima à bancada onde Moarã permanecia.

Moarã apoiou os cotovelos na bancada, mas manteve certa distância, como se cada centímetro contasse. Seus olhos, escuros e atentos, buscavam em Naiovi sinais que pudessem decifrar suas intenções.

– Você dançou ontem. Não esperava que aceitasse o convite. – começou Moarã, sem rodeios, com a voz suave.

Naiovi ergueu o olhar, ainda com a mão segurando o pão embebido em café.

– Você me desafiou. – hesitou, como se ponderasse se valia a pena se abrir ali – E… eu consegui sentir. 

– Para sentir deve ter responsabilidade, Naiovi. Especialmente aqui. As pessoas lembram, e as lembranças moldam alianças ou destroem castelos.

– E você? Lembra muito? – Naiovi rebateu, mirando-a com uma franqueza que beirava à insolência, mas tinha curiosidade genuína.

– Eu lembro de tudo. Por isso ainda estou viva.

Naiovi deixou escapar um riso seco, balançando a cabeça.

– Em Kohr, lembrar é fraqueza. A disciplina exige esquecer rápido para produzir melhor.

– E o que você prefere? – Moarã inclinou-se um pouco.

– Ainda não sei. – Naiovi confessou, largando o pão sobre o pires. – Mas ontem… eu quis lembrar.

Moarã pareceu relaxar um pouco, como se aquela resposta tivesse desbloqueado uma possibilidade. Sentou-se de frente para Naiovi.

– Eu também. Então vamos conversar, Naiovi de Kohr. Sem máscaras. Sem títulos. Só você e eu. – Seus olhos se suavizaram.

Naiovi respirou fundo, sentindo a tensão em seus ombros diminuir um milímetro. Levou a xícara aos lábios, e o amargor do café pareceu menos agressivo do que o silêncio que as cercava.

– Moarã… me desculpe pelas anotações. Não fiz por mal, é a minha forma de pensar e me organizar… Aqui é tão diferente de Kohr, e lá tem tão pouca informação sobre aqui. Me senti um alienígena. Me sinto um alienígena. Mas depois do que você disse… eu entendi. Não via dessa forma. Estou tentando me encaixar.

– E por que quer se encaixar?

Naiovi não esperava por essa resposta. Ora, porque… porque sim! Porque precisa fazer a pesquisa, certo? Mas, pensando bem… para isso não precisaria exatamente se encaixar, apenas manter relações razoáveis para conseguir ir a campo e colher as amostras. Moarã notou como a pergunta atravessou Naiovi, que engoliu a seco.

– Esquece, depois me responde essa – disse Moarã, soltando um suspiro breve. – Agora, Naiovi, eu preciso fazer algumas perguntas. O que está fazendo aqui? Qual o seu objetivo em Valeã? Por que só você veio de Kohr?

Naiovi segurou a xícara com mais força do que percebia. A cerâmica quente esquentava seus dedos, mas não aquecia a hesitação que congelava em seu peito. O olhar de Moarã, firme e atento, parecia atravessar cada camada de silêncio.

Respirou fundo, buscando as palavras certas.

– Vim porque… – começou e passou a mão na testa, sentindo o calor e a leve pontada de dor que ainda restava da noite anterior. – Kohr quer entender como Valeã conseguiu manter uma comunidade viva, saudável… autossuficiente, mesmo depois do colapso. Vocês têm algo que nós não temos. Vim porque o Conselho precisa entender o que acontece aqui. O Red Drift, as mudanças nas tempestades, as alterações nas plantas… Há registros que indicam que Valeã é uma das poucas regiões que sobreviveu às piores ondas. Eu precisava ver com meus próprios olhos. Registrar. Aprender. E, se possível… encontrar soluções para proteger Kohr.

Seus olhos se ergueram, hesitantes, mas encontrando a força no escuro das íris de Moarã.

– Só eu vim porque… – hesitou, sentindo as palavras pesarem. – Porque ninguém mais aceitou. Disseram que Valeã era caótica, indomável, impossível de prever, primitiva. A viagem é longa, perigosa, e qualquer grupo maior chamaria atenção demais. Poderia ser visto como ameaça ou invasão. O Conselho decidiu que um diplomata-cientista seria menos… agressivo. Escolheram a mim.

– E por que você aceitou?

Essa pergunta pareceu mais pessoal do que as anteriores. Naiovi desviou o olhar para a janela, onde a luz da manhã começava a atravessar a poeira do ar.

– Porque… – inspirou profundamente – …porque eu não aguentava mais Kohr. Porque precisava ver algo diferente, algo que não fosse só metal, concreto e ordens. Precisava saber se ainda existia outro jeito de viver.

Moarã descruzou os braços lentamente, deixando escapar um suspiro. Seu olhar, antes duro, suavizou-se, mas havia ali ainda uma centelha de desconfiança.

– E você acha que Valeã é esse outro jeito?

– Eu não sei. É o que estou tentando descobrir também. 

Moarã mordeu levemente o lábio inferior, como se lutasse contra a vontade de sorrir ou de dizer algo que não deveria. Levantou-se, pegando a cafeteira para reabastecer as xícaras com os gestos lentos, pensativos.

– E pretende ficar até quando?

– Até ter dados suficientes para criar uma tecnologia que ajude Kohr na questão hídrica.

– Qual o problema da água de Kohr?

Naiovi pareceu se surpreender com a pergunta, que para ela era tão óbvia que sequer imaginara precisar explicar. Respirou fundo, como se organizar aquelas memórias em palavras exigisse esforço.

– Kohr tinha uma reserva grande de água – começou, a voz baixa, mas firme. – Foi construída antes do colapso, um sistema subterrâneo que se reabastecia com as chuvas e filtrava pela terra, como um lençol freático artificial. Durante décadas, isso nos manteve vivos. A água se infiltrava devagar, pura.

Fez uma pausa, olhando para além da janela.

– Mas as chuvas começaram a falhar. Vieram menos frequentes, menos intensas… e, quando vinham, traziam poeira vermelha, o Red Drift, que se infiltrava na terra e contaminava tudo. O lençol foi secando, as reservas diminuindo. Eu mesma desenvolvi um sistema para captar e filtrar melhor a água das raras chuvas, com aproveitamento máximo de cada gota… mas não é suficiente. Estamos à beira de perder tudo.

Moarã escutava em silêncio, observava a expressão de Naiovi endurecida pela compreensão que só quem conhece a sede poderia ter.

– Em Kohr, tudo é a seco. Banhos são coletivos e racionados. Cada copo de água é contabilizado. E, mesmo assim, os mais abastados têm privilégios: podem armazenar água para uso próprio, regar plantas ornamentais… até deixar o cabelo crescer – Naiovi disse, levando instintivamente a mão à cabeça raspada. – Já os menos privilegiados… precisam raspar o cabelo para economizar até a água que seria usada para lavar a cabeça. É sobrevivência.

Moarã desviou o olhar, tragada pela dureza daquilo que ouvia. 

– Valeã… – continuou Naiovi, retomando o olhar para Moarã – …é a última alternativa que temos. Se eu não encontrar aqui um jeito de tornar Kohr viável outra vez, não haverá Kohr para as próximas gerações.

– Mas você não é herdeira, coisa e tal? – Moarã perguntou, franzindo o cenho com curiosidade genuína. – Por que raspa a cabeça, então?

– Sou – Naiovi confirmou com a voz firme, mas carregada de um leve cansaço. – Vim de uma família influente. Sou filha de Ommar, trabalho com o bem mais precioso de Kohr: a água. É como se eu fizesse ouro – completou, levando a mão à cabeça raspada, gesto que misturava orgulho e resignação. – Em Kohr, raspar o cabelo não é apenas uma questão de economia de água. É também um símbolo de disciplina, de comprometimento com o coletivo.

Moarã a observou em silêncio, como se cada palavra desenhasse novas linhas em seu rosto. O leve estremecer de seus lábios denunciava que estava prestes a dizer algo importante – ou perigoso. Antes que Moarã pudesse abrir a boca, Naiovi continuou, com a voz mais firme, como se algo dentro dela tivesse se soltado:

– E… – respirou fundo, sentindo o calor subir do peito ao rosto – …eu sempre discordei do uso supérfluo da água por parte dos que têm poder. As famílias mais ricas desperdiçam, ornamentam seus jardins secos, ostentam fontes decorativas em seus pátios… enquanto do outro lado das muralhas as pessoas contam cada gota para sobreviver.

Seus olhos acobreados brilhavam com uma chama que Moarã ainda não tinha visto.

– É injusto. Absurdo. Não faz sentido – Naiovi prosseguiu, os dedos tamborilando sobre a borda da xícara. – Como podemos querer salvar Kohr se não mudarmos primeiro aquilo que nos trouxe até essa escassez? Como… – fez uma pausa, buscando fôlego para segurar a emoção – …como podemos esperar que a água dure se tratamos o privilégio como direito?

Moarã sentiu um arrepio percorrer a espinha ao ouvir a intensidade na voz de Naiovi. Havia ali mais do que simples disciplina de uma enviada: havia alguém que ousava enxergar além do que lhe ensinaram.

– Então você quer salvar Kohr… mas não do jeito que eles esperam – concluiu Moarã. As palavras saíram baixas, como se saboreasse a revelação.

Naiovi ergueu o queixo, firme, mesmo com a vulnerabilidade em seus olhos.

– Quero salvar Kohr… mas também quero que Kohr mereça ser salvo.

O silêncio que se instalou depois foi profundo, denso – mas já não era mais um silêncio de desconfiança. Era o espaço onde algo novo começava a germinar.

Moarã apoiou as mãos na bancada com força. Seu olhar, antes duro como pedra, estava agora tempestuoso, mas não de raiva – havia ali reconhecimento, talvez até respeito.

– Você fala como alguém que carrega a própria prisão nas costas.

Naiovi soltou um riso breve, exausto, quase sem humor.

– Talvez – respondeu, passando a mão pelo rosto, como se quisesse afastar o peso de tudo aquilo. – Mas se não tentar… se não houver ao menos uma chance de mudar, tudo o que Kohr construiu vai virar pó. E eu não posso aceitar que nossa única herança para o mundo seja a morte.

Moarã inclinou-se um pouco mais, diminuindo o espaço entre elas. Seus olhos, agora tão próximos dos de Naiovi, tinham um brilho que misturava curiosidade, cautela e algo mais difícil de nomear.

– Você é perigosa, Naiovi de Kohr – disse, em um tom que beirava o sussurro. 

As palavras ficaram suspensas no ar, carregadas de algo que nem a poeira do Sopra-Sangue poderia abafar. Naiovi respirou fundo, sentindo o coração bater mais rápido do que gostaria.

Foi quando um baque seco ecoou do lado de fora, como algo pesado caindo sobre o solo duro. Ambas se sobressaltaram, rompendo a bolha de silêncio que as envolvia. O som foi seguido por um rangido baixo, vindo da direção do portão.

Foi então que três batidas secas ecoaram na porta, firmes e compassadas, como se cada uma quisesse lembrar que o tempo delas não pertencia apenas a elas mesmas. O som reverberou pela casa, rompendo o frágil momento de intimidade.

Moarã ergueu-se num salto, levando a mão automaticamente até a faca sobre a bancada. Naiovi, por sua vez, sentiu o corpo inteiro enrijecer. Seu nome veio logo em seguida, alto e imperativo:

– Naiovi de Kohr! – a voz masculina atravessou a porta como um trovão abafado, carregada de autoridade. – Chegou a hora. O Conselho de Valeã aguarda você para o início do acordo.

O ar pareceu congelar por um instante. Naiovi desviou o olhar para Moarã, que mantinha a postura firme, mas o olhar revelava preocupação. As palavras trocadas momentos antes ainda pairavam entre elas como um fio tênue, prestes a se romper.

– Você precisa ir – disse Moarã com a voz baixa, mas cheia de uma força silenciosa.

Naiovi respirou fundo, passando a mão pela nuca raspada como se buscasse coragem. Ajustou as roupas, tentando esconder a tensão que tremia em seus dedos.

– Eu vou – respondeu e se virou para a porta, mas, antes de tocar a maçaneta, Moarã segurou seu braço, e cravou seus olhos nos de Naiovi.

– Lembre-se do que disse. E de que você não está mais sozinha – falou Moarã, cada palavra soava como promessa.

Um leve aceno foi tudo que Naiovi conseguiu antes de abrir a porta. Do outro lado, dois homens corpulentos, com as roupas marcadas pela poeira do Red Drift, esperavam impacientes. Eram os mesmos brigões da tarde anterior: Samuel, de barba cerrada e olhar que parecia sempre à beira da provocação, e Antônio, mais baixo e largo, com um ar soturno e cicatriz antiga no queixo.

Samuel foi o primeiro a falar com a voz grave e carregada de impaciência:

– Até que enfim, princesa de Kohr – disse, arqueando uma sobrancelha em tom de deboche. – O Conselho não gosta de atrasos.

Antônio manteve-se em silêncio, mas seus olhos avaliavam cada movimento de Naiovi, como se procurassem um motivo para desconfiar dela ainda mais.

Naiovi respirou fundo, ajustando as roupas e retomando a postura. Por dentro, o coração disparava, mas do lado de fora, seu rosto estava sereno como a superfície de um lago.

– Vamos. Conduzam-me até o Conselho.

Samuel soltou um grunhido que poderia ser um riso contido ou apenas irritação, e girou nos calcanhares, começando a caminhar pela estrada de terra batida que levava ao centro de Valeã. Antônio foi logo atrás, lançando olhares rápidos sobre os ombros, como quem vigia tanto a retaguarda quanto a própria consciência.

Enquanto caminhava ao lado de Samuel e Antônio, Naiovi sentia cada passo pesar como se as palavras trocadas minutos antes ainda latejassem em seus ossos. A poeira fina do Red Drift rodopiava em torno deles, tingindo o ar de tons alaranjados que começavam a se dissipar com a luz crescente do dia.

No impulso de um pensamento que não conseguiu conter, Naiovi virou-se para trás. Seus olhos encontraram Moarã parada na soleira da casa, a figura alta e firme recortada contra a bruma avermelhada. O vento balançava levemente as dobras do manto que Moarã vestira.

– Você não vem? – perguntou Naiovi.

Moarã ergueu o queixo e começou a caminhar na direção do trio com passos seguros.

– É claro que vou – respondeu com a voz carregada de seriedade e determinação. – Sou responsável pela fronteira e pela segurança de Valeã. Participar desses encontros é parte do meu dever – completou com o olhar focado, mas com um calor discreto que Naiovi não pôde deixar de perceber.

Samuel soltou um resmungo, sem ousar retrucar, enquanto Antônio apenas assentiu com um leve movimento de cabeça – a presença de Moarã parecia, de repente, reorganizar o ar em volta deles, como se cada grão de poeira soubesse que nada aconteceria sem que ela permitisse.

Assim, juntos, seguiram pela estrada empoeirada, a figura de Moarã agora ao lado de Naiovi, como promessa silenciosa de proteção – e como lembrete de que, em Valeã, alianças se constroem tanto em ritos quanto em batalhas.


********


A negociação foi breve e terminou justo quando o sol alcançava o topo do céu, lançando uma luz quente sobre o centro comercial de Valeã. Uma boa quantidade de pessoas circulava pela praça, o burburinho das vozes misturando-se ao cheiro convidativo de comida fresca, anunciando o horário do almoço.

– Venha comigo, quero te mostrar uma coisa! – disse Moarã, já caminhando a passos largos em direção a uma barraquinha simples, situada num canto da praça. Naiovi a acompanhava, ainda processando as informações do acordo.

– Mas eu ainda preciso ir ao laboratório! – protestou Naiovi, tentando acompanhar o ritmo acelerado.

– Laboratório? Ethel me disse que hoje não tinha mais nada para fazer por lá. Sossega, CDF! – Moarã bateu palmas animadamente em frente à barraquinha.

Aproximou-se uma senhora simpática dos fundos, surgindo com um largo sorriso que iluminou o rosto enrugado.

– Dona Lene! – chamou Moarã.

– Querida, não te vi por aqui semana passada! – respondeu Lene, enquanto se aproximava.

– Tive uns imprevistos, mas estava por aqui pertinho agora. E o que temos para hoje?

– Menina, a carne acabou toda no festival ontem, mas tem moqueca de banana com arroz e farofa – explicou Lene, enquanto o aroma da moqueca invadia o ar, despertando a fome imediata de Naiovi – e está uma delícia!

– Maravilha! Vou querer dois, por favor – disse Moarã, sorrindo pela primeira vez em horas.

Naiovi não estava acostumada a ver esse tipo de sorriso de Moarã, só os contidos, firmes ou debochados. Observava, fascinada, aquele tipo de sorriso aberto e genuíno que jamais vira nos rígidos corredores de Kohr.

Sentaram-se num banco rústico de madeira no centro da praça. Comiam com gosto, Naiovi deliciava-se com o sabor doce e encorpado da banana na moqueca, uma experiência totalmente nova para ela.

Enquanto isso, Moarã trocava algumas palavras rápidas com Lene antes de se levantar.

– Vou indo para casa – avisou.

– Hoje à tarde vamos caçar para a Dona Lene – disse Moarã, olhando para Naiovi com um meio sorriso. – Você vem comigo.

Naiovi assentiu, com o olhar se iluminando com uma mistura de ansiedade e curiosidade.


********


Em casa, pegaram o arco de Naiovi, algumas flechas e suprimentos básicos. Moarã trouxe uma bacia com um chá ralo de cor terrosa, que exalava um cheiro intenso de mato fresco.

– Tome banho com isso – disse, entregando a bacia a Naiovi.

– O que tem aqui? – perguntou ela, reconhecendo um cheiro familiar.

– O suficiente pra camuflar nosso cheiro e purificar a água – respondeu Moarã, sem perder tempo.

– Citriomila! – exclamou Naiovi, surpresa.

– É... deve ser assim que chamam lá em Kohr. Vamos, já está ficando tarde.

Após o breve banho com a infusão, seguiram para a parte sul de Valeã. Diferente da trilha norte, ali a terra era mais seca, mas repleta de hortas que se espalhavam em canteiros improvisados. Aos poucos, os sons da vila foram sumindo, substituídos pelo canto dos insetos e pelo farfalhar suave das folhas, até chegarem a uma área de mata nativa mais densa.

Antes de entrarem, Moarã parou, ajeitou o facão na cintura e montou o arco de Naiovi, entregando-o em seguida.

– Fique aí, não se mexa... e, por favor, não me mate pelas costas – disse, com um sorriso torto que fez Naiovi prender a respiração, antes de caminhar alguns metros adiante.

Se afastou alguns metros, sob o olhar atento de Naiovi, e arrancou uma folha gigante de jibóia.

– Esse vai ser seu alvo – cravou a folha em uma grande árvore logo a frente e caminhou em direção a Naiovi. – Tente acertar no meio dessa folha. A mata não perdoa quem não sabe o que faz.

Naiovi segurou o arco, sentindo o peso, a textura rugosa da madeira e a tensão da corda. Moarã parou atrás de Naiovi, tão perto que Naiovi podia sentir o calor do corpo dela, ajustando levemente seus ombros e guiando seus braços com mãos firmes. 

– Postura reta. Ombros relaxados. Olhe para onde quer que a flecha vá, não para o arco. – A voz de Moarã era calma, mas cheia de autoridade.

Naiovi respirou fundo e soltou a primeira flecha. O disparo saiu tremido e a flecha caiu longe do alvo, fincando-se com um baque surdo em um arbusto.

– De novo – ordenou Moarã, entregando outra flecha. – Caçar é prática. É paciência. E, principalmente, silêncio.

Naiovi ajeitou os pés no chão poeirento, sentindo o coração acelerar. O arco parecia mais pesado agora que o momento chegara de verdade. Moarã parou ao lado dela com os braços cruzados e olhos atentos como os de um falcão.

– Concentre-se – disse Moarã, pacientemente – Respire fundo. Não puxe a corda com força bruta, mas com intenção.

Naiovi ergueu o arco, tentando lembrar cada instrução. A respiração saiu tremida. Ela puxou a corda, mirou o centro verde escuro da folha cravada na árvore e soltou.

A flecha voou rápida, mas desviou para a direita, raspando a borda da folha antes de se perder em meio às folhagens atrás do alvo. 

– De novo – disse Moarã, sem levantar a voz. Pegou outra flecha da aljava presa à cintura e entregou a Naiovi. – Se quer viver aqui, precisa aprender a ouvir a floresta, não só seus próprios pensamentos.

Ficaram assim por um tempo. Cada correção, cada toque de Moarã, parecia queimar na pele de Naiovi, que errava mais do que acertava. O suor escorria pela testa de Naiovi, mas, a cada tentativa, ela sentia seus movimentos se tornarem mais naturais. Um vento suave balançava as folhas do entorno, carregando o cheiro terroso da mata. Naiovi respirou mais uma vez, sentindo a adrenalina pulsar em cada batida do coração. Dessa vez, o arco parecia uma extensão de seu braço. Quando Naiovi mirou novamente, Moarã inclinou-se tão perto que seus rostos quase se tocaram. O cheiro de mato, suor e algo mais indefinido pairava no ar entre elas.

– Concentre-se – sussurrou Moarã com a voz grave, carregada de algo mais que apenas autoridade.

Ela mirou, puxou a corda, soltou.

A flecha voou reta, fincando-se na metade inferior da folha com um som seco.

Moarã soltou uma risada baixa, com orgulho em seu olhar.

– Melhor – disse Moarã, permitindo-se um pequeno sorriso de canto. – Mas ainda não o suficiente para levar o jantar.

Naiovi deixou escapar um riso nervoso, mas sentiu um orgulho discreto inflar o peito.

– Agora, vamos caçar de verdade – anunciou Moarã, pegando seu próprio arco enquanto se embrenhava na mata. – E lembre-se: na floresta, a pressa faz barulho, e o barulho espanta a presa.

Naiovi seguiu Moarã mata adentro, a cada passo mais confiante, embora a tensão ainda latejasse em suas mãos. O som de seus passos eram abafados pelo solo úmido coberto de folhas. O sol começava a se inclinar, projetando feixes dourados que atravessavam a copa alta, criando danças de luz e sombra que envolviam as duas em um cenário quase onírico. Cada ruído – um galho estalando, o canto de um pássaro distante – parecia amplificado pelo silêncio do ambiente.

Moarã parou de repente, levantando a mão para sinalizar que Naiovi ficasse imóvel. Ela se agachou, tomando uma postura tão felina que Naiovi teve que conter a vontade de observá-la mais do que o necessário. Moarã apontou para um arbusto à frente, onde um par de orelhas pequenas surgia entre as folhas, balançando levemente.

Entre as sombras, uma capivara surgia, farejando o chão, alheia à presença delas. Naiovi sentiu o coração disparar e suas mãos suavam enquanto posicionava o arco. Quando puxou a corda, seus ombros tremeram. Ela lançou um olhar de relance para Moarã, que retribuiu com olhos seguros – e algo mais, como se enxergasse dentro dela.

– Vai – sussurrou Moarã, a palavra quase inaudível, mas carregada de eletricidade.

Naiovi puxou a corda mais uma vez. O mundo pareceu parar por um segundo.

E então soltou.

A flecha voou rápida, mas pegou no flanco do animal, que guinchou alto e tentou cambalear para longe. Num movimento tão fluido que parecia parte da mata, Moarã avançou, sacando o facão num arco certeiro. O golpe foi limpo, silencioso, preciso. O animal tombou sem sofrimento.

Por alguns segundos, o mundo ficou em suspenso. O som do vento balançando as árvores parecia vir de muito longe. Moarã se ajoelhou junto ao corpo do animal, pousando a mão sobre ele com um cuidado quase reverente. Seus lábios se moveram em palavras baixas, e Naiovi reconheceu apenas a cadência: uma prece, uma gratidão. Quando ergueu o rosto, seus olhos encontraram os de Naiovi. Havia suor em suas têmporas, uma respiração pesada, mas também uma centelha intensa. Sem dizer nada, Moarã limpou o facão em um lenço e começou a amarrar o animal.

– Não foi perfeito. Mas você quase conseguiu. E isso já é mais do que esperava.

– Você… sempre faz isso? – Naiovi perguntou, a voz vacilando entre curiosidade e o tremor da adrenalina que ainda pulsava em seu peito.

– Agradecer? Sempre – respondeu Moarã, fitando-a com uma intensidade que pareceu prender Naiovi no lugar. – Não se mata sem lembrar do valor da vida.

Elas ficaram ali, lado a lado, enquanto o cheiro do sangue fresco se misturava ao aroma profundo da mata. O sol começava a sumir atrás das copas. Quando Moarã terminou de amarrar a presa, ergueu-se e estendeu a mão para Naiovi.

– Vamos. A noite desce rápido por aqui, e o caminho de volta é mais difícil no escuro.

Dessa vez, Naiovi segurou a mão estendida sem receio. O calor do toque delas pareceu acender algo no ar, um fio de tensão silenciosa que as acompanhou enquanto começavam a caminhar pela trilha de volta, com a mata ficando cada vez mais escura – e o som distante dos grilos marcando o ritmo da noite que chegava.

Naiovi teve a sensação de ter feito parte de algo maior. Ver a morte, assim, perto, crua, ao vivo, era estranho. O cheiro metálico do sangue ainda pairava no ar, pesado e impossível de ignorar, nauseante, enquanto o som do último guincho do animal reverberava em sua mente como um eco.

Ela sentia uma mistura contraditória: repulsa pelo sangue fresco em suas narinas e, ao mesmo tempo, uma estranha gratidão por testemunhar algo tão essencial. O choque a sacudia, mas a lembrança do modo como Moarã agradeceu à floresta dava àquele momento um sentido que transcendia a brutalidade do ato.

O caminho de volta pareceu mais curto, mas cada passo ecoava pesado na mente de Naiovi. O cheiro de sangue ainda pairava em suas narinas, impregnado em suas roupas. A mata escurecia rápido, e pequenos pontos de luz começavam a brilhar entre as folhas – vagalumes que piscavam como pequenos olhos atentos.

Naiovi seguia em silêncio atrás de Moarã, mas dentro dela o tumulto era ensurdecedor. As imagens do animal guinchando, do facão descendo, do corpo imóvel depois – tudo se repetia em ciclos vívidos. Ela tentou lembrar por que viera a Valeã, por que estava ali com um arco na mão, por que sentia que precisava provar algo a si mesma. As respostas vinham fragmentadas, como se o choque tivesse rachado suas certezas.

Quando as primeiras luzes da vila surgiram entre as árvores, a sensação de estar em outro mundo começou a se dissipar, mas algo nela tinha mudado. O sangue, o silêncio, o respeito de Moarã pela morte – tudo contrastava com as lições de Kohr, onde vida e morte se contavam em relatórios. Ali, a morte tinha cheiro, calor e significado.

No portão de casa, Moarã amarrou o animal em um gancho para prepará-lo. Naiovi, ainda imóvel, encarava o chão. A cabeça latej*v* de confusão e adrenalina mal processada.

Moarã virou-se para ela com os olhos mais suaves do que Naiovi esperava.

– A primeira vez é a pior. Não tenha vergonha de sentir. Só quem sente entende o peso da vida.

As palavras a atravessaram como uma brisa quente em noite fria. Naiovi não respondeu, mas encontrou o olhar de Moarã. E, nesse silêncio cheio de tensão e compreensão, algo se assentou em seu peito: não era mais a mesma pessoa que saíra para a mata algumas horas antes. Quando Moarã entrou em casa, Naiovi ficou do lado de fora por alguns minutos, respirando fundo. Ela sabia que carregaria para sempre a memória daquela primeira caçada – e do momento em que começou a enxergar a vida e a morte de um jeito que Kohr jamais permitiria.

Moarã se ajoelhou sobre o chão de terra batida do quintal, iluminada apenas pela luz suave que escapava pela janela da cozinha. A capivara estava estendida diante dela, e o facão refletia os últimos tons alaranjados do entardecer. Naiovi parou à porta, indecisa, mas não conseguiu desviar o olhar.

Moarã passou a lâmina com precisão, fazendo um corte firme na pele do animal. Suas mãos se moviam com segurança, descolando a carne, puxando tendões, separando partes com a calma de quem já repetira aquilo dezenas de vezes. Não havia pressa, mas também não havia hesitação. Cada gesto era direto, limpo – quase bonito em sua eficiência brutal.

O cheiro forte de sangue misturava-se ao da terra úmida. Naiovi engoliu em seco, sentindo um nó apertar em sua garganta. Ainda assim, estava fascinada. Observava como Moarã franzia levemente a testa ao encontrar resistência, ou como limpava a lâmina em um pano antes de continuar. O som úmido da faca cortando a carne se misturava ao canto distante dos grilos, compondo uma trilha que parecia fora do tempo.

Em certo momento, Moarã ergueu os olhos e percebeu Naiovi parada na soleira. Seus olhares se encontraram, e Naiovi teve a sensação de ser tragada pela intensidade daquele momento. Moarã não sorriu, mas seus olhos suavizaram.

– Vai ficar aí parada a noite toda? Ou vai me ajudar?

Naiovi respirou fundo, deu um passo hesitante para fora da casa e se ajoelhou ao lado dela. O cheiro do sangue pareceu ainda mais forte de perto, metálico, mas a presença de Moarã tornava aquilo suportável.

– Como eu ajudo? – perguntou, tentando manter a voz firme.

Moarã entregou-lhe um pano limpo e apontou para as vísceras já separadas num canto. 

– Seque a carne enquanto eu termino. Assim não estraga tão rápido. 

Naiovi pegou o pano, começando a limpar os cortes como Moarã indicara. A textura morna e úmida da carne fazia seu estômago revirar, mas ela não deixou transparecer. Quando o serviço terminou, Moarã amontoou as partes devidamente limpas em um cesto e amarrou-o com uma corda resistente. Limpou as mãos no pano já manchado de vermelho e virou-se para Naiovi.

– Pronto. Vou levar para a Dona Lene antes que esfrie mais – disse, erguendo o cesto com um movimento decidido. – Tente tomar um banho e descansar.

Naiovi assentiu em silêncio, observando Moarã desaparecer pela trilha iluminada apenas pela luz suave das lamparinas penduradas em frente às casas. O peso do dia ainda latej*v* em suas têmporas, misturando exaustão e um estranho sentimento de conquista.


*********


Moarã entregou a caça à Dona Lene e encontrou Ethel na taberna à distância tagarelando e gargalhando com Jorge e Tina. Aproximou-se, cumprimentando a todos, e jorge e tina depois de um tempo de interação (escrever diálogo) se retiraram, falando que já estavam de saída. Ethel e Moarã ficam sozinhas e fofocam. Ethel insinua naiovi para moarã, moarã fica constrangida e se abre um pouco para ethel. Moarã fala da caça, do uso do arco, da conversa de mais cedo e de kohr. Ethel diz para tomarem cuidado com Kohr, é uma faca de dois gumes: pode ser a solução ou a maldição de Valeã.


Moarã entregou a caça à Dona Lene, que a recebeu com um sorriso cansado, mas genuíno.

– Ah, minha querida, isso aqui vai salvar o jantar de amanhã – disse Dona Lene, passando a mão carinhosa no braço de Moarã antes de desaparecer para os fundos da barraca.

Ao se virar, Moarã avistou Ethel na taberna mais adiante, iluminada pelas tochas no beiral. A cientista conversava animadamente com Jorge e Tina, soltando gargalhadas tão altas que ecoavam pela rua estreita. Moarã caminhou até lá, erguendo a mão em cumprimento.

– Olha quem resolveu dar as caras! – exclamou Jorge, abrindo um sorriso largo. – A heroína da fronteira!

– Heroína é exagero – disse Moarã, dando um leve soquinho no braço dele. – Só fiz o que qualquer um faria.

– Qualquer um que saiba empunhar um facão, né? – provocou Tina, rindo.

– E como foi a caçada? – perguntou Ethel, com os olhos brilhando de curiosidade.

– Tensa, mas... instrutiva. E a comida? Melhor que ontem?

– Melhorando! – Jorge fez um brinde imaginário com a caneca de barro. – Mas agora temos que ir. – Ele deu uma cotovelada leve em Tina, que assentiu com um sorriso.

– É, temos que acordar cedo amanhã – disse Tina, se levantando. – Moarã, Ethel, boa noite! Paz ao que te habita.

– E força ao que os move. – responderam as duas em uníssono, vendo-os se afastarem pela rua.

O silêncio entre Moarã e Ethel se instalou por um instante, confortável, embalado pelo som distante de música e pelas vozes da taberna.

– Então... – Ethel inclinou-se na mesa, apoiando o queixo na mão com um sorriso travesso. – E a nossa convidada de Kohr? Vai me dizer que não ficou... intrigada?

Moarã sentiu o calor subir pelas orelhas, desviando o olhar.

– Intrigada? – perguntou, a voz um tom mais baixa do que gostaria. – Ela é... diferente. É só isso.

– Diferente? – Ethel soltou uma risadinha. – Vai, Moarã, poupe-me. Você fica toda dura quando fala dela. Nem tenta esconder. Ela mexe contigo.

Moarã suspirou, cedendo à confiança que só tinha com Ethel.

– Ela... me faz pensar. Falar com ela sobre Kohr, sobre como eles vivem... treinar com o arco, ver como ela se esforça mesmo sem saber nada do mato... 

Ethel assentiu.

– Só toma cuidado, Moarã – disse, séria de repente. – Kohr é como uma faca de dois gumes. Pode ser uma salvação para Valeã, mas também pode ser a nossa ruína, se eles enxergarem mais valor aqui do que estamos dispostos a ceder.

Moarã ficou em silêncio, olhando para as lamparinas que balançavam levemente com o vento. As palavras de Ethel pesavam.

– Eu sei. É por isso que não posso baixar a guarda. Nem com ela.

Ethel estendeu a mão por cima da mesa, tocando a de Moarã de leve.

– Confio em você. Mas também confio que vai saber a hora de confiar nela... ou não.

A música ao fundo subiu de tom, envolvendo as duas num momento breve de cumplicidade, enquanto Moarã deixava escapar um sorriso cansado. Alguns moradores começaram a improvisar passos no espaço entre as mesas e o cheiro de pão assando em algum forno próximo misturava-se com o perfume agridoce da bebida fermentada que escorria das canecas.

Ethel puxou a caneca dela para mais perto e tomou um gole, olhando para Moarã com um brilho curioso nos olhos.

– Sabe, quando vocês estavam caçando, eu estava na colheita lá perto… Você viu como ela ficou quando terminou a caçada? – perguntou, baixando o tom, como se falasse de um segredo. – O jeito que tremia, mas tentava manter a pose... Quase senti pena dela.

– Quase? 

– É, quase. – Ethel riu, jogando a cabeça para trás. – Porque depois vi você segurando a mão dela na volta. – O sorriso de Ethel se alargou, felino. – E aquilo não parecia só preocupação.

Moarã bufou, passando a mão pelo cabelo.

– Você tira conclusões demais, Ethel – disse com a voz carregada de exasperação, mas sem conseguir esconder a pontada de constrangimento.

– Eu te conheço, Moarã. Você não faz nada sem pensar dez vezes antes – provocou Ethel, apoiando o cotovelo na mesa. – Então, se fez, é porque quis.

O calor que subiu pelo pescoço de Moarã a fez baixar o olhar, focando numa rachadura na madeira da mesa.

– Talvez eu tenha... me deixado levar. Mas não sei se é certo. Ela é de Kohr.  – confessou, em voz baixa, quase um sussurro.

Ethel suspirou, apoiando a mão no ombro da amiga.

– Nada que vale a pena é fácil, Moarã. E às vezes, a gente precisa correr riscos pra descobrir se está vivendo ou só sobrevivendo.

Elas ficaram em silêncio, apenas observando as pessoas dançando, rindo e celebrando a vida simples e frágil de Valeã. Um violão começou a dedilhar acordes suaves, trazendo uma melancolia que parecia pairar sobre o salão.

– Vai falar com ela? – perguntou Ethel, sem tirar os olhos do movimento suave das dançarinas.

Moarã balançou a cabeça.

– Não hoje. Ela precisa de tempo para entender o que viu, o que sentiu. E eu... – A voz dela falhou um instante. – Eu também.

– Então vamos beber mais um pouco – propôs Ethel, erguendo a caneca. – Porque amanhã o mundo continua duro, mas hoje ainda temos a noite.

Moarã ergueu a caneca dela, brindando com Ethel. 

Ethel inclinou-se sobre a mesa e disse com a voz mais baixa, quase confidencial:

– Sabe o que eu vi nela? – os olhos faiscavam como quem já juntara mais peças do quebra-cabeça do que deixava transparecer. – Naiovi parece toda certinha, disciplinada, cheia de regras. Mas por trás daquela arrogância e daquele olhar que tenta controlar tudo… tem alguém quebrada.

Moarã franziu a testa, mas não interrompeu.

– Alguém que carrega um medo enorme de fracassar, de ser insuficiente – continuou Ethel. – E isso faz dela perigosa, sim. Mas também faz dela… verdadeira. Ela não finge que não liga. Ela liga demais. Isso é raro, Moarã. Gente que ainda se importa de verdade.

Moarã respirou fundo, as palavras de Ethel latejando em sua mente como marteladas suaves.

– E você acha que dá pra confiar? – perguntou, com surpresa.

– Confiar? – Ethel riu, sem humor. – Em alguém de Kohr?! Nunca cem por cento. Mas… Talvez ela seja o tipo de pessoa que, se decidir ficar do nosso lado, vai lutar até o fim. E se decidir ir contra… bom, aí a gente vai ter problemas de verdade.

Moarã permaneceu em silêncio. O som do violão se misturava às risadas ao fundo. Ethel terminou o gole de sua caneca e olhou para a amiga, séria.

– Só te digo uma coisa, Moarã. Tome cuidado com Kohr, sim. Mas não perca quem Naiovi pode ser… por medo de quem ela foi ensinada a ser.

Moarã ficou alguns segundos em silêncio, absorvendo as palavras de Ethel, antes de desviar o olhar para o fundo da taberna, onde alguns moradores jogavam cartas sob a luz fraca.

– E a pesquisa? – perguntou com a voz baixa, como se temesse ser ouvida pelas paredes. – Como está indo? Você… acha certo termos acesso a informações tão privilegiadas?

Ethel recostou-se na cadeira como se estivesse organizando os pensamentos.

– Certo? – repetiu, soltando um suspiro. – Não sei se existe um “certo” nisso, Moarã. O que estamos descobrindo sobre o Véu, sobre as plantas que resistem, sobre as mutações do solo… é o tipo de coisa que pode salvar ou destruir tudo.

Ela brincou com o pingente de pedra pendurado no pescoço, olhando Moarã diretamente nos olhos.

– Mas eu não me arrependo nem por um segundo de estar nisso. Se não formos nós a entender como Valeã sobreviveu, vai ser Kohr. E se for Kohr, vão transformar em arma ou moeda de troca. Pelo menos conosco… há uma chance de isso servir para proteger o que temos.

Moarã assentiu devagar, sentia seu maxilar tenso.

– E Naiovi? Você acha que ela vai usar o que descobrir pra ajudar ou pra… vender pra Kohr?

Ethel respirou fundo, com uma pontinha de cansaço.

– Acho que nem ela sabe ainda. Mas se você quer minha opinião… – Ethel se inclinou para a frente, a voz quase um sussurro. – Você vai ser a diferença nisso, Moarã. O que ela sente por você, mesmo que ela mesma não admita, pode mudar tudo. Não acho que os anciãos te escolheram a toa.

Moarã desviou o olhar para a porta da taberna, onde a brisa noturna balançava suavemente as cortinas gastas. As vozes, a música, o cheiro de pão e fumaça – tudo parecia distante, abafado pela enxurrada de pensamentos que martelava em sua mente.

Ethel, percebendo o silêncio prolongado, colocou a mão sobre a dela de forma firme, calorosa.

– Descanse um pouco. Amanhã vai ser um novo dia. E você vai precisar estar forte. – disse, num tom que misturava carinho e urgência.

Moarã inspirou fundo, deixando o ar noturno preencher os pulmões.

– Amanhã… – repetiu Moarã, num sussurro quase inaudível, como se prometesse algo a si mesma. – Vai ser outro dia. –

 

***********

Fim do capítulo


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