Lua Nova
Dia 7
O dia ainda acordava quando Naiovi abriu os olhos, sentindo a brisa fria que passava pela fresta da janela. O canto dos pássaros ecoava distante, misturado ao som de tambores leves que vinham do vilarejo. O cheiro de café ralo e fumaça de lenha flutuava no ar – mas Moarã não estava em casa. A pequena esteira ao lado da porta, onde às vezes ela sentava para calçar as botas, estava vazia.
Naiovi se levantou devagar com o corpo cansado como se não tivesse dormido nada. A casa parecia maior, mais vazia sem a presença de Moarã. Caminhou em silêncio pelo espaço, cada passo soando alto demais nas tábuas do chão. Os olhos paravam nos objetos espalhados: o arco pendurado perto da porta, as facas cuidadosamente alinhadas em suportes rústicos, as cordas de escalada enroladas em nós perfeitos. Sobre a mesa, pequenos talismãs de madeira com desenhos minuciosos: corujas, cobras, flores, cada um revelando a paciência de quem os talhou.
Não havia nada a fazer no laboratório. As amostras da última coleta estavam em análise e só teriam novos dados depois da próxima tempestade, que sabe-se lá quando seria. Então Naiovi se viu ali, presa num espaço que não era seu, rodeada pelos vestígios de uma vida construída com firmeza, carinho e dedicação. Pela primeira vez, sem querer, olhava tudo sem análise, sem converter em notas ou variáveis. Só via. E aquilo apertava seu peito.
Queria não sentir. Queria que fosse apenas um abrigo temporário. Queria que as mãos de Moarã – as mesmas que esculpiam bonecos e entalhavam madeira – não a lembrassem, a cada detalhe da casa, que havia algo entre elas que não conseguia entender. Era pesado, como se cada arma, cada panela, cada escultura lhe dissesse que estava invadindo algo.
Sentou-se na beira da mesa e deixou o olhar se perder nas linhas tortas do teto. Um pensamento martelava sem parar: e se Moarã estiver certa? E se realmente as tratasse como peças de museu, como insetos para serem dissecados? Tentou afastar essa ideia, irritada. Não. Era besteira. Exagero de Moarã. Diplomacia é método. Ciência é precisão. É questionar. Coletar evidências, analisar, sintetizar e enumerar. Penso, logo existo. Desde criança aprendera que, para a razão funcionar, era preciso limpar a mente de preconceitos, duvidar de tudo, encontrar verdades elementares, claras e distintas. Se algo se mantivesse firme depois de toda dúvida, então aquilo era uma verdade confiável. Estava fazendo tudo certo. Então por que tudo sempre terminava em atrito? Por que cada passo parecia um erro?
A casa a envolvia como um lembrete incômodo. Se a insegurança já era a sua companheira diária, agora também eram as dúvidas. Seu coração, que tanto insistia em se fechar, parecia começar a amolecer – e isso a deixava ainda mais furiosa consigo mesma. Sentiu o gosto amargo do arrependimento: por ter deixado seu caderno ali na noite anterior, por ter exposto suas anotações a Moarã. Sentiu-se despida, desarmada, exposta. Envergonhada.
Do lado de fora, os sons na vila acordando: pessoas apressadas andando pra lá e pra cá carregando cestos, fios, ervas, luzes, afinando instrumentos. Hoje era noite de lua nova. E em Valeã, isso não significava apenas uma fase lunar – era o rito do recomeço. A noite de expurgar velhas mágoas, gritar, cantar, chorar. Limpar o peito, como diziam.
Debruçou-se na janela, olhou em direção da praça e avistou Moarã na esquina a algumas quadras dalí, trajando seu manto negro da vigília. Veio a lembrança da voz de Moarã ordenando: “Então prove!”. Tomou essa frase, agora, como um desafio – e Naiovi não gostava de perder. “Preciso agir”, decidiu. E foi se preparar.
*********
As luzes do dia esquentavam quando os gritos começaram a ecoar na praça principal de Valeã. Duas vozes masculinas se atropelavam, carregadas de raiva: Samuel, o tecelão, e Antônio, o curtidor. Ambos estavam com os rostos vermelhos, tão próximos que seus narizes quase se tocavam.
– Você roubou meu estoque de cascas! – berrava Samuel, a saliva espirrando no ar. – Sem isso, não consigo tingir nem metade dos tecidos pra troca da lua nova!
– Roubou? – Antônio devolveu, tão alto que as crianças próximas se afastaram correndo – Eu que perdi tudo quando seu filho quebrou meu defumador! Você me deve!
Um pequeno círculo de moradores começava a se formar em volta, sussurros se espalhando como fogo em palha seca. Moarã, que coordenava grupos que erguiam tendas, virou-se ao ouvir a balbúrdia. Seus olhos endureceram como pedra ao ver a multidão crescendo. A cada segundo, as vozes aumentavam, arrastando outros na confusão. Ela marchou até o centro da roda, com passos rápidos e firmes.
– Já chega! – sua voz cortou o ar como chicote, mas os homens nem pareceram notar, ocupados demais se empurrando.
Ethel surgiu pela lateral, saltitando com um sorriso nervoso.
– Opa, opa! Calma, senhores! – começou a dizer, abrindo os braços como se fosse apartar uma briga de gatos – Vamos conversar! A lua nova é pra gente se limpar, não pra se esfolar, não é?
Mas a tentativa de humor saiu torta: Samuel e Antônio pareceram ainda mais inflamados, ambos voltando seus xingamentos para Ethel.
– Não se mete, forasteira! – Antônio rosnou.
– Vai cuidar das tuas plantinhas, Ethel! – esbravejou Samuel.
– Ótimo trabalho, Ethel… – Moarã sussurrou entre os dentes, passando a mão pela testa, como quem decide se vai separar os dois na força bruta.
Os dois, sujos de terra e com respiração ofegante, trocavam insultos que se acumulavam como nuvens antes do trovão. Moarã segurou firme o braço de um dos homens, com o olhar sólido como rocha. A pequena roda de curiosos em volta aumentava, enquanto Ethel, ofegante por ter chegado correndo, olhava de um para o outro com as mãos na cintura.
Nesse momento, Naiovi apareceu descendo a ladeira com uma caixa cheia de gravetos, tentando equilibrá-la contra o quadril. Seu olhar saltou de Ethel para Moarã, depois para os dois homens quase se socando. Ela largou a caixa no chão com um baque e avançou sem hesitar, surgindo no meio da confusão. Seu tom era calmo, mas a voz cortava o burburinho como lâmina, com uma autoridade segura:
– O que está acontecendo aqui?
Moarã respondeu sem tirar os olhos dos brigões:
– Roubo de recursos, diz ele – apontou com o queixo para um –, mas esse jura que foi um engano – virou para o outro.
Os dois homens se calaram, atordoados pela interrupção da figura tão estrangeira. Naiovi respirou fundo. Olhou para o céu, onde o sol já caminhava para o topo, e depois para o povo que começava a se aglomerar. Disse, com uma voz clara e firme ecoando pelo espaço silencioso.
– Valeã não é lugar para resolver briga com socos. Hoje é véspera de lua nova. Um dia para expurgar ressentimentos. Tem como pelo menos respeitarem isso? Então proponho: vocês dois vão trabalhar juntos para preparar as oferendas para a festa. Precisamos de flores, raízes, enfeites e pequenos arranjos para a cerimônia.
Os dois homens abriram a boca ao mesmo tempo, atônitos, mas Naiovi ergueu a mão, cortando qualquer protesto.
– Se vocês não conseguem cooperar – disse Naiovi, o olhar sério, a voz baixa mas cortante –, então não podem provar que merecem a confiança de Valeã. E quem não tem a confiança da comunidade, não tem direito a usufruir dos recursos dela.
O silêncio caiu como uma bigorna. As pessoas em volta se entreolharam; sabiam o que isso significava. Em Valeã, água potável, alimentos armazenados e proteção coletiva eram bens partilhados, mas apenas para quem demonstrava respeito pelo equilíbrio da convivência. Qualquer um que rompesse esse pacto não poderia simplesmente bater à porta para pedir ajuda ou firmar acordo quando precisasse – seria lançado à própria sorte.
– Vocês querem ser abraçados por Valeã? Querem ter água limpa, comida, teto quando as tempestades vierem? – Naiovi prosseguiu, seu tom ganhando peso a cada palavra, dando alguns passos em direção aos homens. – Então trabalhem juntos. Façam as oferendas para a lua nova, lado a lado. Mostrem que entendem o que significa depender um do outro. Se falharem ou se recusarem… – fez uma pausa, deixando o silêncio dizer o que vinha depois – terão que viver fora da proteção que Valeã oferece.
– Mas aí eu fico no prejuízo e ainda sou punido? – o primeiro homem exclamou, a voz aguda de indignação, olhando Naiovi como se esperasse que ela cedesse.
– Que prejuízo o que, rapaz! Não te roubei nada! Quem fez confusão aqui foi você! – rebateu o segundo, dando um passo à frente com o peito inflado.
O burburinho em volta cresceu, algumas pessoas se aproximavam curiosas. O clima parecia prestes a explodir outra vez, mas Naiovi ergueu a mão, cortando o ar com autoridade.
– Chega! – disse, com voz clara. – Se continuarem se acusando, só provarão que não sabem escutar. E quem não escuta não tem lugar em Valeã.
Ela se virou, encarando cada um com frieza calculada.
– Vocês querem resolver isso ou preferem dormir do lado de fora do muro esta noite, sem comida e sem abrigo?
Os dois homens trocaram olhares tensos, a bravata anterior se esvaia como fumaça. O primeiro coçou a nuca, desconfortável; o segundo chutou o chão com a ponta da bota, sem saber onde enfiar as mãos.
– E então? – pressionou Naiovi, com a paciência se esgotando. – Trabalham juntos agora ou preferem arriscar a próxima tempestade sozinhos?
Os dois homens ficaram pálidos. O segundo passou os olhos pela multidão e, ao ver os semblantes sérios de quem não hesitaria em cumprir a palavra de Naiovi, engoliu em seco e assentiu, derrotado.
– Em Kohr, quando não se chega a um acordo, faz-se um registro: cada um apresenta suas perdas diante de testemunhas, e então todos decidem juntos como compensar – ela indicou os curiosos que se acumulavam – Aqui, não precisam do meu sistema. Mas precisam de algo: se não confiarem um no outro, que confiem na comunidade.
O primeiro homem suspirou, desviando o olhar.
– Tragam amanhã o que restou dos seus materiais – Naiovi ordenou, sem elevar a voz, mas de um jeito que não permitia recusa – Vamos analisar juntos. Cada um será ouvido. E se um mentir, todos saberão. Mas hoje, por terem juntos perturbado o momento, que tenham a oportunidade de corrigir isso também juntos. Vocês escutam a comunidade hoje para serem escutados por ela amanhã.
Samuel e Antônio se entreolharam, respirando pesadamente, mas acabaram assentindo com um aperto de mão alegórico. O círculo de moradores se abriu para deixá-los passar.
Moarã soltou o ar devagar, quase imperceptível, mas seus ombros relaxaram um pouco. Ethel, que assistia tudo com os braços cruzados, estalou a língua e abriu um sorriso de canto.
– Pois olha só… a estrangeira sabe domar cabras bravas – comentou, com o humor de sempre.
– Ainda não acabou – disse Naiovi, virando-se para Moarã. – Eles precisam que alguém os guie para terminarem isso sem matar um ao outro.
Moarã ergueu uma sobrancelha, mas, em vez de retrucar, assentiu com um movimento curto de cabeça.
– Venham comigo – ordenou ela com o tom seco, mas já sem a faísca de violência que incendiara o ar minutos antes.
E assim, aos poucos, a tensão se desfez, a praça voltou a respirar, e Valeã seguiu em frente, como sempre fazia – mas agora com olhos atentos para quem precisava provar que merecia fazer parte dela. Quando Naiovi se virou para recolher a caixa de gravetos que deixara no chão, sentiu o peso do olhar de Moarã. Havia algo ali – um respeito relutante, mas impossível de negar.
– Bem-vinda a Valeã… – murmurou Ethel ao seu lado, com um sorriso genuíno.
***********
O burburinho da multidão ainda ecoava enquanto as pessoas se dispersavam pela praça, comentando entre si sobre a cena que haviam presenciado. Alguns lançavam olhares curiosos para Naiovi; outros, para Moarã, que seguia à frente com passos firmes, guiando os dois brigões para longe dali.
Ethel, caminhando ao lado de Naiovi, mantinha o sorriso aberto, mas seus olhos examinavam a amiga com atenção. Quando se afastaram do centro, Ethel cutucou o braço de Naiovi com o cotovelo.
– Foi impressionante – disse em tom baixo – Mas também… você quase provocou um motim, sabia?
Naiovi soltou o ar, tensa.
– Não iria acontecer um motim. – rebateu, com mais calma na voz do que sentia por dentro.
– Vai ter gente que não vai gostar de você depois disso. – Ethel piscou um olho, não via nisso exatamente um problema. – Mas também vai ter quem passe a te respeitar. É assim aqui.
Nesse momento, Moarã se aproximou com os olhos ainda duros, mas o corpo mais relaxado do que antes. Ela parou na frente de Naiovi por um instante longo, em que as palavras pareciam querer nascer, mas não encontravam caminho.
– Eles vão cumprir – disse Moarã, finalmente, sem rodeios. – Mas se não cumprirem, será responsabilidade minha.
– Não – Naiovi corrigiu, sua voz saindo mais suave que esperava. – Vai ser nossa responsabilidade.
O silêncio que se instalou entre elas era denso, mas diferente do de antes: não era mais feito de desconfiança, mas de algo próximo a um reconhecimento mútuo – duro, incômodo, mas real. Um entendimento, ainda que incipiente, de que precisariam uma da outra para atravessar o que vinha pela frente.
Moarã desviou o olhar primeiro, passando a mão pelo dread que caía sobre o rosto.
– A noite vai cair logo. Preciso me preparar. – disse, como quem queria encerrar ali qualquer conversa mais profunda.
– Eu também preciso me arrumar – respondeu Naiovi, com um tom quase provocador. – É minha primeira lua nova completa em Valeã. Quero ver como vocês limpam as mágoas.
Ethel abriu um sorriso largo, passando os braços pelos ombros de Naiovi, a arrastando em direção ao centro comercial de Valeã.
– Roupas novas, agora! Essas suas de Kohr são péssimas!
*************
Moarã seguiu pela rua principal, as lanternas começavam a serem acendidas à medida que o céu mergulhava em tons de azul profundo. Passava de grupo em grupo, conferindo os preparativos para a festa: checava se as cordas estavam firmes nos pavilhões, se os bancos improvisados estavam estáveis, se as tochas tinham óleo suficiente para iluminar a noite toda.
Enquanto andava, ouvia pedaços de conversa: mulheres reunidas enrolando flores em guirlandas falavam sobre a briga que Naiovi apartara; dois anciãos, sentados em um tronco, discutiam se a estrangeira sabia mesmo o que estava fazendo ou se acabaria trazendo problemas; crianças repetiam, em brincadeira, as falas que haviam ouvido da diplomata, imitando sua voz grave como se fosse uma personagem de fábula.
E Moarã escutava tudo em silêncio, cada palavra se entranhando sob sua pele. Não conseguia impedir o misto de orgulho e irritação que surgia ao ver como Naiovi já começava a deixar marcas em Valeã – marcas que podiam ser rachaduras ou fundações, ainda era cedo para dizer.
Ela não entende nada daqui… mas também não foge, pensou, ajustando uma corda de sustentação de uma tenda enquanto ouvia mais comentários. Não aceita o que não faz sentido pra ela, não baixa a cabeça. A voz de uma mulher próxima, concentrada em lustrar talheres de madeira, interrompeu o fluxo de pensamentos:
– Foi corajosa, essa forasteira – disse em voz baixa, mas alta o bastante para chegar aos ouvidos de Moarã. – Talvez seja doida também. Mas coragem às vezes vem disfarçada.
Moarã ergueu os olhos e encontrou o olhar firme da mulher, que logo voltou ao trabalho. Deixou escapar um suspiro que não percebeu estar prendendo. Coragem disfarçada… ou arrogância? questionou-se em silêncio. Mas, no fundo, uma pequena parte de si – a mesma que resistia em admitir qualquer fraqueza – reconhecia: Naiovi já não era apenas uma estrangeira qualquer.
Encontrou um grupo de jovens aprendizes da guarda agachados sob a sombra de uma grande figueira, revisando mapas desenhados em peles curtidas e trocando informações sobre rotas seguras até as nascentes. Ao perceberem sua aproximação, os rapazes e moças se levantaram, batendo as mãos contra os peitos em sinal de respeito.
– Moarã! – chamou Lúcio, um dos mais atentos, ainda com o rosto pintado com os sinais da vigia. – É verdade que você tá acompanhando a gringa? A que botou ordem na praça hoje?
– É verdade – respondeu Moarã, firme, mas levemente desconfortável com a atenção repentina.
– Ela é dura, hein? – comentou Diana, com olhos brilhando de curiosidade. – Nunca vi alguém falar com Samuel e Antônio daquele jeito sem sair correndo depois.
– Fez mais do que muita gente faria – completou Lúcio, com um tom de respeito que Moarã não soube como receber.
O burburinho cresceu. Perguntas pipocaram:
– Até quando ela fica?
– O que ela tá procurando por aqui, Moarã?
– E Kohr… o que eles querem com Valeã?
As palavras dos jovens caíram sobre Moarã como pedras atiradas de surpresa. Até então, não se permitira refletir naqueles termos. Sempre focara em manter Naiovi em linha, controlar o presente – mas o futuro, esse território brumoso, parecia agora abrir-se diante dela como um abismo.
E não tinha resposta.
O silêncio pesado que se seguiu foi interrompido apenas pelo som distante de tambores começando a ressoar no centro da vila, anunciando que a noite da lua nova se aproximava.
*************
As tochas já queimavam alto quando Naiovi, vestindo a túnica escura que Ethel lhe emprestara, ajeitava as dobras do tecido em frente ao espelho rachado. O cheiro de óleos de ervas e fumaça de lenha pairava no ar.
Ethel apareceu carregando duas pulseiras feitas de fibras trançadas com contas de pedra.
– Pra te dar sorte. E pra te lembrar de não morder ninguém hoje. – disse, entregando uma delas a Naiovi.
– Eu não mordo – rebateu Naiovi, mas seus ombros relaxaram quando prendeu a pulseira no pulso.
Ethel aproximou-se, ajustando um último detalhe na gola da túnica.
– Tá pronta pra gritar, cantar, talvez chorar? – perguntou, os olhos faiscando com a empolgação que só Ethel parecia carregar.
Naiovi inspirou fundo, olhando o próprio reflexo: alguém que não reconhecia, mas que precisava aprender a ser.
– Pronta.
E, lado a lado, saíram em direção ao centro de Valeã, onde a noite prometia mais do que apenas expurgar mágoas – prometia revelar quem cada um realmente era.
O som dos tambores já reverberava pelas ruas enquanto Naiovi e Ethel caminhavam pelas vielas iluminadas por lanternas penduradas em arcos de corda. O cheiro de frutas maduras e fermentados recém-preparados invadia o ar, misturado ao aroma terroso das folhas queimadas em fogareiros.
– Descalça sempre – explicou Ethel, erguendo o pé nu. – Sapato só fora da praça. E fica tranquila, ninguém rouba nada por aqui. Tudo tem dono, e ladrão não dura.
Naiovi assentiu, soltando a tira das sandálias e sentindo a textura fria do solo sob os pés.
– Primeiro, o clima vai estar tranquilo – continuou Ethel, em tom confidencial. – Beba um fermentado! Os fermentados de lua nova são deliciosos, com um sabor que você não encontra em nenhum outro dia. Mas não exagere – fez um gesto com o dedo, rindo – Deixe para se acabar na lua cheia. Hoje é pra limpar a garganta, não pra entupir.
As luzes das casas e cabanas tornavam-se cada vez mais espaçadas enquanto se aproximavam do centro da praça. Pelas frestas, Naiovi via grupos de pessoas preparando cestas de frutas, tecidos coloridos, arranjos de folhas.
– O defumador vai passar por você – avisou Ethel, inclinando-se até quase roçar o ombro de Naiovi. – Ele vai te deixar mais… relaxada. Deixe acontecer. Aceita. É parte do rito.
Ela pegou um cacho de uvas de uma banca e entregou a Naiovi.
– Come. Vai precisar de força.
A cada passo, as vozes, tambores e o cheiro do defumador se intensificavam, envolvendo tudo num abraço pesado. Quando chegaram à beira da praça, o chão de terra parecia respirar junto à multidão.
Ethel indicou com o queixo a plataforma decorada com fitas e galhos retorcidos.
– Ali abre a roda de linhas. Quem quiser, sobe e cospe palavras: poesia, música, insulto, desabafo. Não é ego. É pra expurgar.
Seu tom ficou mais grave.
– É a noite pra falar, Naiovi, cuspir fogo. E pra quem tem coragem, pra sangrar. Porque só quem separa é que depois constrói pontes.
Ethel sorriu com um brilho maroto nos olhos.
– Depois, começa a roda de samba. Qualquer um com instrumento pode entrar. Eles tocam o que quiserem ou o que for pedido, mas sempre com um propósito: expurgar. Nada de música vazia. Aqui, a noite é feita pra falar.
A música marcava o compasso do coração de Naiovi, que batia tão alto que parecia se misturar aos tambores. Então viu Moarã surgir entre a multidão – como se o mundo inteiro se movesse em câmera lenta só para destacá-la.
Moarã usava uma túnica negra bordada em vermelho e dourado, que brilhava sob a luz das tochas. O cabelo, preso em um coque alto, ostentava pequenos anéis dourados que balançavam a cada passo.
– Você tá ouvindo? – Ethel perguntou, mas Naiovi já não a escutava. Seu olhar estava cravado em Moarã, que vinha em sua direção.
De repente, Ethel seguiu a direção dos olhos de Naiovi e, ao perceber Moarã, soltou um gritinho animado. Disparou em sua direção, deixando Naiovi para trás, imóvel como uma pedra.
– Moarã! – exclamou Ethel, jogando os braços ao redor da guerreira com uma intimidade que fez alguns dos presentes sorrirem. – Olha pra você! Tá linda demais! – afastou-se apenas o bastante para olhar Moarã dos pés à cabeça, estalando a língua – Nem parece a muralha durona que vi mais cedo, separando aqueles dois quase se matando!
Moarã riu baixo, um som breve que só quem estava muito perto poderia ouvir. Mas ao encontrar Naiovi parada ali, ainda um pouco distante, seu sorriso vacilou, os olhos fugiram por um instante, carregando um brilho incômodo de quem se sentia exposta. Soltou Ethel devagar e encarou Naiovi, parada a poucos metros, ainda imóvel. O ritmo dos tambores parecia marcar cada passo quando Moarã começou a andar em sua direção. Sua túnica balançava suavemente ao redor do corpo forte.
A multidão abriu caminho sem perceber, criando um corredor silencioso entre Moarã e Naiovi. Quando parou diante dela, Moarã estava tão próxima que a brisa carregava o cheiro de fumaça, ervas e flor de tangerina que vinha de sua pele. Seu olhar era tão escuro quanto a noite, profundo como um rio prestes a transbordar e afogar Naiovi.
– Você entendeu o que essa noite significa? – perguntou Moarã com a voz baixa, suave… como uma lâmina.
Naiovi sentiu a garganta secar. Buscou nos olhos de Moarã qualquer pista – raiva, desprezo – mas o que encontrou a desarmou: vulnerabilidade bruta, como se por trás da muralha houvesse alguém que também temia ser muito vista.
– Eu… – começou, mas as palavras ficaram presas. O som dos tambores parecia vir de dentro do peito.
Moarã não recuou. A voz dela soou como uma promessa – ou uma ameaça:
– Aqui, Naiovi, ninguém mente pra si mesmo. Nem pra quem está ao lado. Se ficar, vai ter que sangrar com a gente. – Seus olhos correram pelas lanternas, pelas pessoas reunidas, e depois voltaram para Naiovi – Está pronta pra isso?
A música ganhava força, ecoando pelas pedras e fazendo o chão vibrar. Naiovi respirou fundo, o cheiro de fumaça misturando-se à tensão. O coração parecia querer rasgar o peito. Com a voz rouca, quase engolida pelos tambores, disse:
– Eu… não sei. Mas… quero tentar. Quero entender. – Seu olhar, antes duro, tremulava como a chama das tochas, tomando tons de um dourado quente e denso. – Não sei se sei sangrar como vocês, mas estou aqui. Não vou fugir.
Algo brilhou no olhar de Moarã – tão rápido que poderia ser miragem. Ela inclinou a cabeça, aceitando a resposta imperfeita.
– Então… prove.
Naiovi ergueu o queixo, encontrando os olhos dela.
– Eu entendo o que essa noite significa – repetiu, com a voz mais firme, quase desafiadora. – Mas, se é pra sangrar, vai ser do meu jeito.
Nesse instante, os tambores explodiram num crescendo, gritos ecoaram pela praça, e as tochas brilharam como se incendiassem a noite. Mas entre as duas, havia apenas o silêncio denso de quem encara um abismo – e se pergunta se terá coragem de saltar. Entre elas, Naiovi e Moarã permaneciam paradas, tão próximas que quase podiam sentir a respiração uma da outra.
Então Ethel surgiu, rompendo o feitiço com um sorriso largo e três cuias fumegantes nas mãos.
– Primeiro gole da noite! – disse, entregando uma para cada. – Vai esquentar até o que vocês estão tentando esconder.
Ela piscou, com olhos que prometiam caos.
– A noite só começou!
*******
As primeiras notas de um canto ecoaram entre as batidas dos tambores, misturando vozes graves e agudas em harmonias que pareciam arrancadas do ventre da terra. O som subia como fumaça, envolvendo a praça numa atmosfera densa, quase elétrica. Lanternas balançavam suavemente, projetando sombras que se contorciam nas paredes de pedra.
Ethel puxou Naiovi pela mão com a empolgação de quem apresentava um tesouro.
– Vem, a primeira parte é a roda de linhas – explicou com os olhos faiscando. – É aqui que a gente expurga: com palavras, rimas, gritos, confissões. Quem tiver coragem, sobe no palco.
A roda se abriu em meia-lua diante do tablado improvisado. Um homem idoso subiu primeiro, brandindo uma bengala entalhada com símbolos antigos, entoando versos sobre perdas e reconciliação. Sua voz vibrava como trovão contido; cada palavra era como machado que partia silêncios. Quando terminou, ergueu a bengala para o céu e foi saudado por aplausos ritmados, que soaram como trovão.
Outros vieram depois: uma jovem que confessou medo de perder o irmão para o Sopra-Sangue; um rapaz que gritava contra a vergonha de ter fugido; um ancião que ria enquanto cantava os amores que perdera. Cada fala era crua, desconfortável, mas profundamente exaltada.
A batida do tambor marcava o tempo. A multidão esperava, silenciosa, o próximo a subir no palco. Então, inesperadamente, Ethel subiu. Seu sorriso habitual desaparecera: o rosto iluminado pelas tochas parecia esculpido em pedra. A multidão se aquietou num silêncio pesado. Ethel ergueu o queixo para o céu sem lua e, quando começou a falar, sua voz veio como lâmina:
– Carrego risos como quem coleciona grandes maravilhas,
Há noites em que ainda escuto o ranger de engrenagens,
pequenos ecos de marés sem mais ilhas
que nunca nos permitem passagem,
memórias que sopram fumaça sobre o que ainda tento acender.
Uma pausa – o silêncio pulsava.
– Sonhos antigos repousam sob minha pele,
como sementes que esperam a chuva
essas, não sei se brotam ou apodrecem.
Mas caminho, porque o horizonte me chamusca
com a mesma voz que um dia me ensinou
a transformar aço em abrigo, e medo em amigo.
Seu tom subia e descia como o balançar de um galho na ventania. As palavras se costuravam como retalhos de uma história que ninguém ali conhecia inteira.
– E, se parece demais,
é para que o eco do passado, caso me encontre;
me veja dançando com outro informais
e, entre meus passos, se desconcentre
Pois quem carrega o riso como facão
aprende cedo que sangrar sem sofrer
também é uma forma de honrar quem já faz parte do chão.
Quando o último verso morreu, o silêncio ficou denso como Véu Cinzento. Nem o tambor ousava soar. Então um grito rompeu o vácuo:
– Vai, Ethel! – ecoou uma voz feminina do fundo, e logo outras se uniram em aplausos fortes, batidas de palmas ritmadas que recomeçaram o pulso da noite. O batuque voltou, mais grave, como se o coração coletivo de Valeã tivesse se alinhado àquele desabafo.
Ethel desceu do palco com mãos trêmulas, mas o sorriso que surgiu era tão sincero que iluminava seu rosto como a lua que se escondia. Algumas crianças a abraçaram pelas pernas, admiradas pela força daquelas palavras. Jovens bateram em seus ombros, orgulhosos.
Naiovi sentiu algo se mover dentro dela – não sabia se era inveja, gratidão ou espanto, mas queria saber mais sobre Ethel. Não para colher dados, mas uma curiosidade genuína de conhecer a história daquela mulher.
Ethel, agora a poucos passos, olhou Naiovi de canto, e disse com a voz rouca:
– Viu? É assim que se purga por aqui.
Moarã surgiu logo em seguida, e sem hesitar envolveu Ethel em um abraço firme, como quem segura algo precioso que poderia se despedaçar a qualquer momento. Os cabelos de Ethel se espalharam pelo peito de Moarã como um véu desarrumado. Trouxe o rosto dela para perto, as mãos fortes pousando com delicadeza sobre seus ombros.
– Foi linda a sua declaração hoje – disse Moarã, em um tom tão suave que parecia rouco de emoção. – Imagino que não esteja sendo fácil. – E então encostou os lábios na testa de Ethel em um beijo demorado, carregado de cuidado e carinho.
Naiovi, parada a poucos passos dali, testemunhava o contato das duas como quem observa um quadro vívido demais para caber em qualquer moldura. O que não estava sendo fácil? Tudo em Ethel parecia tão simples, tão espontâneo, tão luminoso… Seria possível que houvesse abismos atrás daquele sorriso?
Ao redor, as conversas ressurgiam em ondas baixas. Alguns comentavam em sussurros sobre a força das palavras de Ethel; outros se ajeitavam nas esteiras e bancos para a continuação da noite. O som do violão, dedilhado com suavidade, começava a costurar o silêncio com acordes que prometiam ditar o ritmo da noite. O samba se insinuava, envolvente, e a pulsação de Valeã parecia retomar seu compasso coletivo.
– Agora é a minha vez – disse Moarã com a voz surgindo grave e decidida.
A roda aquietou-se de imediato, as cabeças se voltando para ela. Moarã pegou uma cuíca e se apoiou na ponta da mesa onde a roda de samba se instalara. Jovens, crianças, adultos e anciãos se aproximaram, cada um trazendo seu tamborim, chocalho ou pandeiro – em Valeã, todos eram bem-vindos à roda, bastava ter coragem de se somar ao ritmo.
O primeiro som de Moarã foi um grito de guerra rasgado, um chamado que se espalhou como raio pela noite:
– Amanhã…
O coro respondeu, sussurrante, mas ganhando força a cada repetição:
– Vai ser outro dia…
A voz coletiva crescia, ondulando pelo ar:
– Amanhã vai ser outro dia…
– Amanhã vai ser outro dia…
Alguns reconheceram a canção antiga; outros apenas sentiram a força crua do momento. Naiovi arrepiou-se; o ritmo lento fazia o coração bater junto à cuíca. Moarã começou a cantar – cada palavra cuspida como faca:
– Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão, não / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu
A canção parecia pulsar na própria terra de Valeã. Cada nota carregava ressentimento e promessa. Moarã passeava os olhos pelo povo, mas sempre voltava para Naiovi – e o olhar dizia: “Prove.”
– Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu-se de inventar / O perdão
Moarã interpretava cada verso com expressões marcadas e a multidão preparou-se para explodir no refrão:
– Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia
Moarã cantava como se gritasse contra um mundo inteiro – ou contra Naiovi, que parecia enraizada no chão. Alguns na roda erguiam os punhos; outros batiam palmas, embalados por uma força coletiva impossível de conter.
– Eu pergunto a você / Onde vai se esconder / Da enorme euforia / Como vai proibir / Quando o galo insistir / Em cantar / Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar
As sobrancelhas de Naiovi se ergueram. A letra estava tão clara que parecia um deboche pessoal. Naiovi sentia-se ofendida, humilhada, mas, também, de alguma forma atraída pela petulância de Moarã. Prove.
– Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido / Esse grito contido / Este samba no escuro
Moarã tocava a cuíca com indelicadeza, parecendo descontar uma raiva, ora com os olhos fixos ora no chão, ora, brevemente, em Naiovi.
– Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza / De desinventar / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar
A voz de Moarã rouquejou, saindo quase quebrada, como se arrancasse a letra do fundo do peito. Os olhares que lançou para Naiovi, ainda que rápidos, diziam mais do que qualquer ameaça. Em volta, ao público estava contagiante como nunca, e então gritaram junto no refrão, a plenos pulmões:
– Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / ‘Inda pago pra ver / O jardim florescer / Qual você não queria / Você vai se amargar / Vendo o dia raiar / Sem lhe pedir licença / E eu vou morrer de rir / Que esse dia há de vir / Antes do que você pensa
Não era só uma música: era um aviso, escuro como a lua que, por isso, fazia a noite brilhar.
– Você vai ter que ver / A manhã renascer / E esbanjar poesia / Como vai se explicar / Vendo o céu clarear / De repente, impunemente / Como vai abafar / Nosso coro a cantar / Na sua frente!
O último verso foi arrematado com um golpe seco do atabaque que ecoou como trovão. A praça explodiu em aplausos e gritos, como se cada um tivesse sentido a lâmina daquela canção.
Ofegante, Moarã ergueu a cuíca como quem fincava uma bandeira. Seus olhos, por um instante, buscaram os de Naiovi – intensos, desafiadores – antes de se perderem na multidão que a envolvia em abraços.
Quando o coro de aplausos eufóricos ainda ecoava, Naiovi permaneceu imóvel. O ar ao redor parecia mais denso; cada som, mais distante; cada movimento, mais lento. O coração martelava no peito, mas era como se algo – uma chama que começava a arder – pedisse para não recuar.
– É… forte, né? – disse Ethel, aproximando-se com cuidado, como quem tenta não assustar um animal ferido. Ela estava suada também, a respiração rápida, mas com um sorriso que misturava orgulho e ternura.
– O que… o que foi isso? – Naiovi perguntou,com a voz rouca e os olhos ainda grudados em Moarã, que conversava com moradores mais ao fundo.
– Uma música antiga, muito antiga. Do tempo antes do mundo quebrar. Foi proibida por quem mandava na época. Mas a arte… – Ethel olhou em volta, absorvendo a praça cheia ao som do coro que ainda cantarolava trechos – …a arte atravessa censuras. Sempre atravessa. Até as nossas próprias, que nem sabemos que temos. – fez uma pausa e continuou de perto – E o que pretende fazer com isso? – murmurou, olhando Naiovi de cima a baixo com um sorriso de quem sente o cheiro de encrenca – acho que essa foi pra você, princesa.
O defumador passou novamente com sua fumaça acariciando o interior do peito. Mas quando viu Ethel, semicerrou os olhos, desconfiada:
– Que chá é esse, afinal? – desconversou com a voz rouca e lenta, como se as palavras precisassem empurrar o ar para sair.
Ethel sorriu largo, quase inocente, e deu de ombros como quem recita uma receita:
– Ah, camomila, citronela, cannabis… – enumerou, contando nos dedos como se dissesse os ingredientes de um chá para gripe.
O coração de Naiovi pareceu dar um solavanco. Ela arregalou os olhos, soprando a fumaça de seus lábios num reflexo surpreso.
– Cannabis?? – repetiu, a palavra soando quase ultrajante em sua boca. – Weed?! Então… eu estou… fumando maconha?! – começou a tossir engasgada.
Ethel soltou uma gargalhada tão alta que fez dois tocadores de tambor virarem a cabeça. Envolveu Naiovi pelos ombros, sacudindo-a levemente:
– Relaxa, diplomata! – disse entre risos. – Se não quisesse ficar tranquila, era só ter ficado em Kohr! Aqui a gente mistura o que a terra dá pra expurgar as amarras – Ethel se inclinou para frente, com os olhos brilhando. – E você tava precisando disso mais do que ninguém.
A música continuava, o cheiro das ervas envolvia tudo como um véu, e Naiovi sentiu as pernas amolecerem. Talvez fosse o defumador. Talvez fosse a sensação de estar aceitando um pouco daquele mundo. Decidiu deixar-se estar. A pergunta de Ethel era a mesma que pulsava dentro dela: O que pretendo fazer com isso? Vamos descobrir.
Olhou em volta e as pessoas dançavam com braços erguidos para o céu como quem aclama a própria existência. A orquestra improvisada, ainda um pouco caótica, vibrava em sintonia com o coração de Valeã – misturando batuques locais com melodias antigas, resgatadas do mundo antes da implosão. As músicas corriam do ancestral ao esquecido, do autoral ao resgatado.
– Ethel! – chamou uma jovem de tranças, chegando junto com um homem mais velho, de rosto marcado por cicatrizes. Ambos abriram sorrisos largos e abraçaram Ethel com força.
– Jorginho! Que bom te ver! E Tina, como vai o seu bebê? Soube que já tá andando! O tempo voa! Preciso ir te visitar qualquer dia, tô com saudades do Chico! Tenho estado muito ocupada ultimamente, mas não esqueci de vocês, viu! – Ethel ria alto, olhando para Naiovi como quem convidava uma estranha a entrar na própria família – Essa aqui é Naiovi, direto de Kohr – anunciou, como quem revela um segredo bem guardado. – Hoje ela descobriu que samba também é ciência.
– Prazer conhecê-los – disse Naiovi, com simpatia.
– Ah, a princesa de Kohr! Que honra! Eu sou o Jorge. Eu e Ethel nos conhecemos desde quando ela chegou aqui. Ela ajudava na minha banca de vez em quando, é quase que uma filha pra mim! – Seu riso ecoava tão alto que contagiava quem estivesse por perto. – É com ela que está trabalhando agora, Ethel? – O homem com cicatrizes pareceu empolgado com o que tinha à frente.
– Isso aí. Plantando mudinhas, colhendo números!
– Que princesa de Kohr o que, homem. – corrigiu Tina, com humor. – Ela é herdeira de Kohr. É diferente! Prazer te conhecer, majestade! Meu nome é Cristina, mas pode me chamar de Tina. Sou a segunda filha de Jorge. Espero que esteja gostando de trabalhar com Ethel. Essa mocreiúda é praticamente da família. – E fez uma reverência teatral que fez Naiovi rir, surpresa com a informalidade.
Naiovi tentava conter o riso com tamanha confusão. Princesa, herdeira de Kohr, majestade… Não sou herdeira de Kohr. – pensou – Sou Herdeira do Conselho Cinzento, Primeira da Linha de Ommar, Engenheira da Seca, Filha da Reconstrução, Diplomata das Fronteiras. Mas não sou princesa e muito menos herdeira de Kohr. – divertiu-se com seu próprio pensamento. Deixou sair um sorriso divertido, assentindo.
– Estou adorando! – respondeu, e se pegou dizendo algo que não costumava permitir a si mesma. – Ethel é brilhante, tem um olhar único, trabalha com vontade. – se surpreendeu com o que deixou escapar. Seus filtros estavam menos operantes.
Ethel arqueou as sobrancelhas e lançou um sorriso de orelha a orelha, orgulhosa de si. Era a primeira vez que via Naiovi ser honesta desse jeito – ainda mais sobre ela, um elogio generoso.
– Naiovi, Tina teve bebê. Cê tinha que ver, que coisinha mais fofa!
– Pois menina, Chiquinho tá muito que bem, viu! Andando pra lá e pra cá agora… Às vezes ele coloca as mãozinhas nas costas igualzinho faz o pai. – Tina imitou o gesto, caindo na risada.
– Que gracinha! Espero que esteja com saúde – Naiovi respondeu, genuína.
– E agora, vejam só, sou vovô. – disse Jorge, orgulhoso. – Ah, como crescem rápido. Essa aqui mal mal sabia limpar a água quando chegou. – Jorge apontou para Ethel com o queixo – Estava magrinha, magrinha… Foi pegando corpo só quando começou a sorrir também. Lembro como Moarã cuidava dela… ficava lá na banca, dizendo que era ponto de guarda. Essas crianças acham que enganam a gente!
– Falando nela, nossa! Que show, heim? Ela tá brilhante hoje! Você tem sorte, Ethel, não é pra qualquer um, não, tá? – Brincou Tina, dando uma piscadela para Ethel. O gesto deixou Naiovi desconfiada, com várias interrogações na cabeça.
– Tenho mesmo! Ela é pau pra toda obra, companheira das boas. – Ethel falava de forma despojada, estalando os dedos no ar.
O rosto de Naiovi corou com aquela escolha de palavras, deixando soltar um risinho abafado pelo nariz. Ergueu os olhos para os novos rostos e percebeu como de alguma forma, provavelmente pela convivência, o sorriso dos três alí eram parecidos e as gargalhadas pareciam emanar o mesmo tom. Pronto! Teve uma ideia tão inesperada que fez seu coração disparar. É isso!
Quando a roda começou a esfriar, a multidão se dispersando para buscar bebidas ou descansar, Naiovi enxergou sua chance. Sem hesitar, caminhou até um jovem franzino que portava um violão:
– Miguel, você se importaria em me emprestar? – disse, quase num sussurro. Havia se juntado a Miguel mais cedo na preparação das bebidas para a celebração.
– Claro, minha nobre! – respondeu Miguel, com um sorriso surpreso, entregando o instrumento como quem passa uma tocha. – Bota pra fora!
Nobre… essa é nova, pensou Naiovi, com humor. Com o instrumento nas mãos, Naiovi se aproximou dos músicos mais experientes, inclinando-se para cochichar seu pedido. Eles trocaram olhares rápidos, surpresos, mas logo sorriram em consentimento. O couro dos tambores ainda vibrava no ar quando Naiovi deu o primeiro acorde, suave, mas tão tenso que a corda quase estalou. A multidão, que começava a se dispersar, se aquietou em ondas, atraída pela força daquele primeiro som.
O violão tremia levemente em suas mãos – não de medo, mas da intensidade de estar viva, sentindo cada nota ecoar pelos ossos. A fumaça do defumador rodopiava, deixando as lanternas mais brilhantes, o calor da multidão mais próximo, a respiração mais pesada. Cruzou o olhar com Ethel, como quem respondesse: “É isso que pretendo fazer.”
E então cantou:
– Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo…
O silêncio se aprofundou. Casais se aconchegaram, crianças se encolheram junto aos pais, jovens pararam onde estavam. As lanternas balançavam com a brisa, lançando sombras que dançavam sobre os rostos atentos.
– Viver é melhor que sonhar / Eu sei que o amor é uma coisa boa / Mas também sei que qualquer canto / É menor do que a vida / De qualquer pessoa / Por isso cuidado meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram / E o sinal está fechado prá nós / Que somos jovens…
Cada palavra saía carregada não apenas de melodia, mas de uma confissão crua. Naiovi não cantava como quem busca aplausos: cantava como quem rasga a própria pele, expõe as entranhas e espera que alguém, mesmo assim, permaneça.
– Para abraçar seu irmão / E beijar sua menina na rua / É que se fez o seu braço / O seu lábio e a sua voz…
Moarã, de canto, assistia imóvel, apoiada em um dos pilares da praça. A cuíca descansava no colo, esquecida. Cada verso parecia arrancar-lhe o ar, como se Naiovi puxasse fios invisíveis que tremiam dentro dela. Ethel, parada a poucos passos, segurava as mãos contra o peito, olhos marejados: era como se descobrisse Naiovi de verdade pela primeira vez.
– Você me pergunta pela minha paixão / Digo que estou encantada / Como uma nova invenção / Eu vou ficar nesta cidade / Não vou voltar pro sertão…
Quando Naiovi entoou as primeiras palavras, sua voz se iluminou: era a mesma chama de quando ela dissecava amostras de musgo, comparava fungos, anotava teorias ou explicava reações químicas para quem nem havia perguntado. Aquela paixão pelo saber, pela descoberta, era tão viva e urgente que transbordava na música, transformando cada nota em confissão. Moarã fungou baixo e balançou a cabeça, surpresa com o próprio sorriso que escapou. Naiovi cantava não só para Valeã, mas para Moarã – como se cada palavra fosse promessa ou desafio. E para si mesma, como se as notas servissem de ponte entre quem fora e quem queria ser.
– Pois vejo vir vindo no vento / Cheiro de nova estação / Eu sei de tudo na ferida viva / Do meu coração…
A multidão segurava a respiração. Até os mais céticos, que torciam o nariz para a estrangeira, sentiam o arrepio nas palavras. A música, mesmo para quem não entendia cada frase, dizia tudo: dor, esperança, luta, amor, medo, desejo.
– Já faz tempo eu vi você na rua / Cabelo ao vento / Gente jovem reunida / Na parede da memória / Essa lembrança / É o quadro que dói mais
Quando as palavras tocaram esse passado compartilhado, Moarã entendeu de imediato: o momento em que Naiovi, à distância, espiara Moarã ensinando crianças, escondida atrás da viga do galpão – sem saber que, do outro lado, Moarã também a observava. Ethel, a poucos passos, lançou um olhar de relance para Moarã, como se enxergasse ali uma flecha invisível, mas certeira, atravessando a guerreira.
– Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo, tudo / Tudo o que fizemos / Nós ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais / Nossos ídolos ainda são os mesmos / E as aparências / Não enganam não / Você diz que depois deles / Não apareceu mais ninguém / Você pode até dizer / Que eu 'tô por fora / Ou então que eu 'tô inventando / Mas é você que ama o passado / E que não vê / Que o novo sempre vem!
O olhar de Moarã endureceu. As palavras pareciam ter aberto fissuras em algo que ela própria mantinha trancado. Ethel quase mordeu o lábio para não sorrir ao ver a reação da amiga; o que escapou foi um brilho malicioso nos olhos, como se pensasse: essa diplomata é mais perigosa do que parece.
– Hoje eu sei que quem me deu a ideia / De uma nova consciência e juventude / 'Tá em casa / Guardado por Deus / Contando vil metal / Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo, tudo / Tudo o que fizemos / Nós ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais!
Quando a última palavra ecoou, houve um silêncio tão absoluto que parecia engolir até o som dos insetos noturnos. E então, palmas e gritos explodiram, misturados a lágrimas que escorriam sem pudor.
Moarã, ainda parada, respirava fundo e apertava o cabo da cuíca. As palavras de Naiovi martelavam em sua mente como flechas certeiras. Pela primeira vez, entendeu que talvez, para alguém de Kohr, sangrar fosse isso: mostrar suas falhas, suas feridas, seu medo de nunca ser aceita. E pela primeira vez, Moarã questionou: teria coragem de sangrar também?
Ethel, com olhos brilhando, foi a primeira a abraçar Naiovi, prendendo-a em um abraço que dizia mais que mil palavras. Seus sussurros se perdiam no barulho crescente do samba que ressurgia.
– Você não conhecia Chico Buarque, mas conhece Elis Regina?! – exclamou, a voz vibrando com orgulho e incredulidade.
– É… parece que a censura pode funcionar às vezes – Naiovi respondeu, a voz ainda rouca, os olhos brilhando como quem saía de um transe.
– Será? Agora você conhece! Parece que não foi dessa vez! – Ethel retrucou, rindo com a leveza de quem acredita que nada, nem o mais rígido dos sistemas, consegue calar a arte.
Moarã, à distância, permanecia parada e mantinha os olhos fixos em Naiovi, mas a expressão era indecifrável – os maxilares tensionados, o peito subindo e descendo com respirações profundas, como quem lutava para manter o controle. Quando Naiovi percebeu, desviou o olhar, incapaz de sustentar aquele peso.
Mas Moarã não recuou. Avançou por entre as pessoas, que abriram caminho em silêncio. Quando parou à frente de Naiovi, a música pareceu baixar o volume sozinha. O calor da multidão ficou distante; havia apenas elas duas, iluminadas pelas lanternas que balançavam suavemente, projetando sombras que dançavam ao redor.
Talvez, refletia Moarã, que o que tanto demandou de Naiovi, ela mesma não oferecera: escuta. Lembrou do que dissera na noite anterior: “Você acha que pode entender Valeã olhando de fora, Naiovi?” mas… e ela? Conseguiria entender Naiovi olhando de fora, sem também tentar entender o lugar que está dentro dela?
– Você entendeu – disse Moarã, a voz baixa, rouca, mas sem dúvida. – Você entendeu o que é sangrar.
E então, num movimento rápido, segurou a mão de Naiovi – ainda trêmula – e a puxou para si num abraço forte, inesperado, que prendeu a respiração de todos que assistiam. Não era um abraço carinhoso; era como se Moarã a apertasse contra o próprio peito para se certificar de que Naiovi não era apenas um sonho, que não escorregaria de volta para o mundo gelado de onde viera.
No ombro de Moarã, Naiovi sentiu o cheiro familiar de fumaça e ervas; o calor do corpo dela; o peso de uma vida que não pedia desculpas. E, sem conseguir se conter, deixou as mãos escorregarem pelas costas de Moarã, retribuindo o abraço com uma intensidade que nem sabia ter.
O barulho da praça voltou aos poucos – tambores pulsando, conversas recomeçando, gargalhadas ecoando – mas quem olhasse para elas veria que estavam em outro ritmo, como se naquele abraço pulsasse um tambor próprio, íntimo, só delas.
Quando se separaram, Moarã manteve as mãos nos ombros de Naiovi. Seus olhos tinham suavizado, mas havia algo mais: orgulho, confusão, desejo, medo – tudo misturado numa tempestade silenciosa.
– A lua nova não é pra fingir – disse Moarã, num sussurro que só Naiovi ouviu. – Você provou. Agora, não tem mais volta.
A frase ficou pairando no ar como promessa e sentença. E Naiovi, ainda ofegante, só conseguiu assentir.
– E agora, minhas nobres? – Ethel disse, surgindo entre elas com um sorriso largo e os olhos brilhando de malícia e alívio, erguendo o copo de cachaça entre elas como se fosse um estandarte. – Vamos beber ou ficar se olhando até o sol nascer? – Falou, sacudindo a bebida para marcar a urgência do convite.
Moarã soltou um riso baixo, quase incrédulo, mas não afastou a mão que ainda segurava o ombro de Naiovi. Ela pegou o copo de Ethel, cheirou o líquido que exalava a ervas e álcool, e ergueu-o em direção a Naiovi.
– Às mágoas que sangramos – disse, com a voz rouca.
Naiovi, ainda tonta do abraço e das palavras, pegou o copo com as mãos trêmulas e ergueu também.
– E às verdades que não cabem em relatórios – completou, surpreendendo até a si mesma com a leveza da frase.
O tilintar suave do copo ecoou como um sino em miniatura. Elas beberam, e o líquido queimou a garganta como um raio líquido, arrancando caretas sinceras e risadas curtas.
Ao redor, a festa recomeçava como se alguém tivesse liberado a respiração coletiva: as rodas se fecharam outra vez em samba, pessoas dançavam e músicos revezavam melodias que iam do batuque ancestral aos riffs improvisados em violões gastos.
Ethel puxou as duas pelas mãos para mais perto da roda de samba.
– Venham! Não adianta só cantar. Em Valeã, a gente dança pra fazer o chão lembrar que estamos vivos.
Moarã hesitou, lançando um olhar que pedia segredo para Naiovi – um medo sutil de se expor na dança. Naiovi, sentindo a ponta dos pés formigar com a batida da roda, sorriu e apertou a mão de Moarã.
– Você me pediu pra sangrar. Agora é minha vez de pedir pra você arriscar – disse com a voz suave, mas firme.
Moarã mordeu o lábio como se ponderasse, mas então soltou um suspiro que virou sorriso. – Tá bem. Mas se você pisar no meu pé, diplomata, juro que te jogo no meio da roda.
Ethel gargalhou alto, atraindo olhares curiosos.
– Eu pago pra ver! – gritou, jogando os braços para o alto enquanto girava no ritmo do samba.
E assim, com a lua nova invisível sobre Valeã, mas presente em cada tambor e canto, Naiovi e Moarã entraram na roda. Os passos eram desajeitados, as mãos se esbarravam, mas os olhos delas só se encontravam cada vez mais – e, entre um tropeço e outro, o que antes era só desconfiança começava a virar algo diferente. Algo que, como a música que embalava a noite, nascia do improviso, mas prometia ficar.
********
Ethel se soltou completamente na roda: girava, dançava, gargalhava alto enquanto trocava passos com quem aparecesse. Passou de par em par, abraçando velhos conhecidos, parando para conversar com gente que não via há tempos – cada encontro era pontuado por risos, tapas nas costas, gritos de “Ethel! É você mesma!” e pequenas danças improvisadas. Seus cabelos desgrenhados rodopiavam junto, pegando a luz das lanternas como fios de ouro em movimento.
Por um tempo, Naiovi e Moarã tentaram acompanhá-la com os olhos, mas a figura de Ethel sumia e reaparecia entre braços erguidos, roupas coloridas e clarões do fogo que ainda queimava em fogueiras espalhadas pela praça.
Até que, num dado momento, ela simplesmente desapareceu do campo de visão. Naiovi se virou para Moarã, com uma pontada de preocupação estampada no rosto.
– Ethel…? – começou, a voz saindo hesitante.
Moarã respirou fundo, observando a dançarina sumir no meio da multidão.
– É normal – disse com a voz calma, mas cansada. – Ela sempre se perde na festa, especialmente na lua nova. – Seus olhos percorreram a praça, como quem procura algo que já sabe onde está. – Vai ficar bem. Aqui, todos cuidam de todos.
Naiovi assentiu, mas não conseguiu evitar de lançar mais alguns olhares inquietos para os cantos da praça, agora com pessoas exaustas, algumas adormecidas em esteiras improvisadas, outras ainda balançando ao som dos últimos acordes da noite. O céu já começava a clarear num tom leitoso de azul escuro, anunciando que o amanhecer estava perto.
Elas começaram a caminhar lado a lado, deixando para trás o eco distante dos tambores, o cheiro de fumaça e frutas fermentadas que ainda pairava no ar.
A cada passo, o barulho da festa ficava mais tênue, como se Valeã voltasse a dormir lentamente após expurgar suas dores. O som dos próprios passos sobre a terra úmida soava alto, acompanhando as batidas de dois corações inquietos.
E então, no silêncio que se estendia entre elas surgia uma urgência invisível. A brisa fria do amanhecer arrepiava a pele exposta, mas o que esfriava mais era aquele espaço cheio de perguntas, expectativas e medos que nenhuma das duas ousava romper – ainda.
Os lampiões mais distantes lançavam sombras longas à frente delas. O canto dos primeiros pássaros ecoava suave, mas ainda era a quietude entre seus corpos que parecia gritar mais alto, implorando para que alguém, enfim, tivesse coragem de falar.
A porta rangeu levemente quando Moarã a empurrou, revelando o interior escuro e silencioso da casa. O cheiro familiar entrou junto com o ar frio do amanhecer. As duas atravessaram a soleira quase ao mesmo tempo, parando lado a lado no centro do cômodo.
O silêncio se acomodou pesado entre elas, até que ambas inspiraram fundo ao mesmo tempo, abrindo a boca em uníssono:
– Eu… – começaram, e então se interromperam juntas, surpresas, trocando um olhar rápido que fez o constrangimento crescer como fogo.
– Você primeiro – disseram as duas, também em coro, e dessa vez não conseguiram conter um riso baixo e nervoso que ecoou pelo cômodo vazio, aliviando a tensão por um instante.
Moarã passou a mão pelos cabelos presos, desviando os olhos para o chão, onde as marcas de botas sujavam a madeira do chão. Respirou fundo, erguendo o rosto com esforço.
– Eu só… – começou com a voz rouca, parando como se engolisse as palavras que lutavam para sair. – Queria dizer que… você foi corajosa. Lá na praça.
Naiovi piscou, surpresa, o peito se contraindo como se aquilo fosse mais difícil de ouvir do que qualquer briga.
– Obrigada – disse baixo, com a voz saindo num sopro. – E eu… – ajeitou a postura, tentando não parecer tão vulnerável – eu queria agradecer. Por acreditar em mim hoje. E me desculpe.
Moarã soltou um suspiro pesado, como quem tirava um peso dos ombros, mas as mãos ainda estavam cerradas ao lado do corpo. O silêncio voltou a se instalar, mas dessa vez parecia diferente – não hostil, mas cheio de algo que fervia logo abaixo da superfície, como água prestes a borbulhar.
– Você devia dormir – disse Moarã por fim, num tom que soava mais como um pedido do que uma ordem. – Foi… uma noite longa.
– Foi – Naiovi concordou, mas não se mexeu, permanecendo parada, como se temesse que qualquer passo rompesse o frágil equilíbrio daquele momento.
A luz suave do amanhecer entrava pelas frestas da janela, projetando sombras esmaecidas no chão. Ali, de frente uma para a outra, com o coração disparado e as palavras ainda presas na garganta, sabiam que havia muito mais a ser dito – mas que, por ora, era suficiente apenas estarem ali, dividindo o mesmo silêncio.
Moarã passou a língua pelos lábios, como se quisesse dizer algo mais, mas se conteve. Naiovi, por sua vez, inspirou fundo e suspendeu a mão como se quisesse alcançar a outra – mas a deixou cair ao lado do corpo.
– Paz ao que te habita… – disse Moarã, enfim, mas a voz soou tão baixa que parecia feita só para Naiovi ouvir.
– E força ao que te move… – Naiovi respondeu, com um tom que misturava alívio e arrependimento.
As duas se moveram ao mesmo tempo, cada uma em direção ao seu canto da casa. Seus passos ressoaram baixos, marcando uma distância que não era apenas física. Quando Moarã apagou a chama do lampião, o quarto mergulhou na penumbra cinzenta do amanhecer, mas, mesmo no escuro, sabiam que bastaria um movimento – um só – para que a linha frágil que as separava se rompesse de vez.
Mas nenhuma delas ousou cruzá-la.
***********
Fim do capítulo
Mais um capítulo no ar -- e sim, ficou gigante (de novo rs).
Mas o Dia 7 merecia e não ia caber em pouco texto: teve rito, teve música, teve... o que mais, mesmo?
Como será que elas vão lidar com o que vem a seguir?
Agradeço demais por estarem acompanhando a jornada até aqui, é um prazer dividir esse mundo com vocês. Nos vemos em breve!
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
mtttm Em: 31/10/2025 Autora da história
calma que a lua cheia tá vindo! kkkkkkk