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Legado de Metal e Sangue por mtttm

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Palavras: 8307
Acessos: 241   |  Postado em: 14/07/2025

Dissecar

Dia 6

O dia amanheceu cinza e úmido, a neblina se arrastava pelas copas como um véu preguiçoso. As batidas do vento balançavam as folhas, mas não havia sinal do Sopra-Sangue – a tempestade prevista ainda levaria dias para chegar. O vilarejo respirava em compasso de espera.

Moarã despertou com a claridade invadindo as frestas da janela, com o gosto de licor velho ainda amargo na boca. Espreguiçou-se, sentindo cada músculo protestar e a cabeça latej*v* no mesmo ritmo dos tambores que haviam embalado a noite anterior. Em sua mente, flashes do sorriso aberto de Ethel, das conversas sobre Naiovi e da sensação incômoda de que algo, nela, também estava mudando. Reprimiu o impulso de ir até o laboratório. Naiovi precisava de espaço. E ela mesma precisava pensar. Levantou-se e tomou um banho de ervas.

No laboratório improvisado, Naiovi acordou sob seus braços em frente às telas. O monitor ainda pulsava com gráficos intermitentes, mas nada definitivo. Passara a noite ali, insone, torturada pelos próprios pensamentos. O piso metálico estava gelado sob suas pernas e em cada reflexo das telas, enxergava não a diplomata de Kohr, mas uma mulher deslocada, tropeçando em códigos sociais que não dominava. Tentou organizar as notas espalhadas, mas a mente parecia entorpecida pela exaustão. Precisava se recompor. Ajustar o tom. Se quisesse resultados – e mais do que isso, ser ouvida – precisava urgentemente aprender a ler Valeã tanto quanto lia seus dados. 

O som do vento intensificava-se entre as árvores, como se Valeã própria sussurrasse: o tempo corre, mas ainda não chegou a hora. Ela teria de esperar o resultado das últimas amostras e a passagem da próxima tormenta para voltar à nascente e coletar espécimes frescas pós Red Drift. Até lá, a única escolha seria conviver. E sentia, dentro de si, que essa convivência seria tão ou mais desafiadora do que a própria tempestade.

O rangido da porta metálica ecoou pelo laboratório quando Ethel apareceu, os olhos semicerrados e o cabelo desgrenhado denunciando a ressaca. Carregava duas cuias fumegantes, de onde escapava um aroma agridoce de arroz com lentilha e vegetais.

– Sabia que cê ia tá aqui – disse, com a voz rouca e um meio sorriso, enquanto varria o contêiner com o olhar. Papéis, frascos e cabos espalhados como se um redemoinho tivesse passado ali. – Parece que Shõ teve companhia essa noite.

Entregou uma das cuias a Naiovi, que a pegou com as mãos trêmulas. Ethel a observou de cima a baixo, sem cerimônia.

– Toma. E olha, você deveria começar a se alimentar sozinha, viu? Vai acabar virando um musgo mais frágil do que esse aí – apontou para a bancada tomada por amostras.

Naiovi soltou um suspiro longo, mas deu uma colherada na comida quente. O calor deslizou pela garganta, trazendo um alívio desconcertante.

– As leituras preliminares mostram uma atividade orgânica que não bate com nada que eu conheço. As estruturas… são como se absorvessem a radiação e a transformassem em energia química estável – começou ela, com os olhos fixos nos gráficos piscando no monitor.

– E se isso puder ser replicado? – Ethel se animou, apoiando a mão na bancada. – Já pensou? Um sistema que purifica áreas tóxicas… ou até gera energia! – Os seus olhos brilhavam. Seria aquilo que ela estava procurando aquele tempo todo, bem embaixo do nariz dela?

– Talvez… – Naiovi respondeu, mas desviou o olhar. 

– E o que você, rainha de Kohr, pensa em fazer com esses dados? Não está aqui a toa, né?

A diplomata enrijeceu a postura e fechou o semblante. 

– Ainda é cedo para especular.

Ethel sentiu o silêncio crescer entre elas como mofo, mas ergueu as sobrancelhas num gesto de “tudo bem” e mudou de assunto.

– E você, como foi na adega? – Naiovi perguntou, num tom que tentou soar neutro, mas tinha a curiosidade de quem recolhe dados vitais. Queria saber como Ethel, estrangeira como ela, lidava com aquilo tudo.

Os olhos de Ethel brilharam. 

– Ah, foi lindo! A música, o calor, as piadas… quase consegui esquecer que a cabeça ia explodir hoje cedo. Você devia ter visto Moarã dançando, Naiovi! – bateu levemente na bancada, animada. – Sabe, eu cheguei aqui mais perdida que pedra em rio raso, e aquelas festas me salvaram mais do que qualquer remédio. Valeã te abraça, se você deixar.

– E como… – Naiovi hesitou, escolhendo cada palavra como se fossem peças de um quebra-cabeça – …como você conseguiu deixar? Você também não era daqui.

Ethel a encarou, o sorriso suavizando.

– Eu escutei. E parei de tentar consertar tudo. Foi aí que Valeã começou a me escutar de volta.

O silêncio que se seguiu foi pesado, mas não desconfortável. Então Naiovi respirou fundo. Era sempre a mesma resposta. Decidiu mudar de assunto:

– E… Moarã? – a pergunta saiu antes que pudesse conter.

Ethel ergueu uma sobrancelha, e o sorriso voltou com ironia:

– Bem, você parece mais acabada que eu depois de cair de uma carroça em movimento, e isso normalmente é sinal de que alguém precisa de um banho e de uma cama. Vá pra casa, Naiovi. Tome um banho, se recomponha. Eu estou com uma ressaca da braba, mas você tá pior que eu – Fez uma pausa, olhando-a com seriedade. – E não fuja só porque tem medo de encontrar Moarã. Se você quer ficar, vai ter que aprender a andar entre as raízes que te assustam.

Naiovi abriu a boca para retrucar, mas a voz não saiu. O pensamento da casa – das coisas de Moarã, do jeito dela de dobrar mantas, do cheiro de terra e fumaça que impregnava cada canto – a casa dela, com as coisas dela, decoração dela, cheiro dela – fez seu estômago revirar. Ethel pousou a mão em seu braço, firme, mas sem pressa. 

– Não vai doer menos se você adiar. Vai só ficar mais fundo.

O ruído do agitador magnético preencheu o silêncio. A chuva fraca começou a bater suave no teto do contêiner, como se marcasse o compasso do que ainda viria.

O caminho até a casa parecia mais longo do que Naiovi lembrava. A chuva fina havia cessado, mas o ar permanecia úmido e pesado, um cheio terroso que só Valeã parecia ter. Cada passo fazia seus pensamentos ecoarem alto, como se o chão sussurrasse suas inquietações de volta.

Quando se aproximou da rua principal, viu Moarã sentada em um banco de tronco, rodeada por crianças de idades variadas. Cada uma empunhava uma pequena lâmina, talhando pedaços de madeira. Moarã demonstrava o movimento: firme, mas delicado, deixando que a lâmina encontrasse o caminho pelas fibras. Seu semblante, sério e paciente, contrastava com os olhos atentos que captavam cada detalhe dos aprendizes.

Naiovi, num impulso, se escondeu parcialmente atrás de uma pilastra de madeira coberta de trepadeiras, observando em silêncio. O som das risadas baixas dos jovens se misturava ao estalar rítmico das facas contra a madeira. Moarã corrigia posturas com toques sutis, encorajava com acenos de cabeça e sorrisos. Parecia que ali, entre aqueles pequenos, era onde Moarã realmente pertencia – e Naiovi sentiu o peso da distância que ainda havia entre elas.

Sem ser notada, desviou do grupo e seguiu até a casa. O portão rangia baixo, como se a reconhecesse. Ao empurrá-lo, o cheiro familiar a golpeou: defumação da manhã, ervas penduradas, a umidade leve do barro que sustentava as paredes.

Fechou a porta atrás de si com cuidado, inspirando fundo para manter a compostura. O ambiente parecia ao mesmo tempo acolhedor e estranho: havia cestos de fibras entrelaçadas, pilhas de lenha, pequenas esculturas de bichos que Naiovi não reconhecia – um deles parecia um lagarto com asas, outro lembrava um cervo com três chifres. Nas prateleiras, potes com pós coloridos, raízes secas e frascos de líquidos turvos; um deles borbulhava suavemente, exalando um aroma ácido e adocicado.

Foi até o quarto onde deixara suas coisas. Cada canto parecia impregnado de Moarã – a manta de fibras grossas, a bacia de madeira com marcas escuras, as sandálias pesadas largadas ao lado da cama. Tudo tão diferente de Kohr, tão… orgânico. Pigarreou e despiu-se, dobrou as roupas metodicamente, como aprendera desde pequena. O banho gelado que tomou parecia morder sua pele, mas ajudou a afastar o turbilhão de pensamentos. Encheu a caneca de metal com o chá escuro do balde, despejando-a sobre os ombros até que a respiração voltasse ao ritmo controlado.

Quando se vestiu novamente, passou a percorrer a casa como quem inspeciona um laboratório. Pegou o caderno grosso de capa emborrachada, abriu-o na primeira página em branco e começou a anotar:

Padrão de decoração sugere preocupação com simbolismos: esculturas de animais mutantes → possível totem ou tradição local.
Cheiro predominante de fumaça e ervas → ambiente controlado para conservação? Desinfecção? Religião ou espiritualidade?
Presença de fermentado borbulhando → autossuficiência alimentar, mas sem rigor de Kohr (risco de contaminação?)
Plantas penduradas → possível uso medicinal ou ritualístico. Confirmar com nativos.

Fechou o caderno com força, o estalo ecoou pela sala silenciosa. Sentia-se como uma perita analisando a cena de um crime – inconscientemente sabia que o “crime” era seu próprio desconforto, sua própria inadequação. E por mais que anotasse, por mais que nomeasse cada detalhe, nada daquilo diminuía a sensação de que estava estudando algo que já a estudava de volta. A luz suave do entardecer começou a se filtrar pelas frestas da janela. Naiovi passou a mão pelo cabelo raspado, respirando fundo. Tentava convencer a si mesma de que era apenas mais uma missão. E uma missão importante para Kohr. Mas o cheiro daquela casa, o calor que ainda pairava no ar… tudo dizia que ela estava em território que jamais poderia ser domado.

O cansaço a pegou de surpresa. Depois de anotar meticulosamente cada detalhe que julgava importante, Naiovi deitou sobre a esteira ainda úmida do vapor do banho, pretendendo apenas descansar os olhos. Quando os abriu novamente, a luz do sol já se tornava pálida e oblíqua. O canto dos insetos noturnos começava a preencher o som, como se o mundo respirasse mais lento.

O ranger do portão denunciou a chegada de Moarã. Naiovi se ergueu, ainda sonolenta, e foi até a porta. Viu Moarã atravessando o pátio com passos largos. Um manto invisível de seriedade pareceu envolver a vigia assim que seus olhos encontraram os de Naiovi. O semblante que há pouco estivera descontraído agora se fechava em uma expressão de rigidez.

– Dormiu fora hoje? – perguntou Moarã em tom neutro, mas com uma ponta de dureza, deixando as palavras ecoarem no espaço estreito entre elas.

Naiovi se ajeitou, tentando limpar a voz do peso do sono. 

– Dormi no laboratório… Acabei não percebendo a hora.

O vazio que se seguiu foi tão espesso que parecia ter corpo próprio. O ar da casa pesava, como se tudo estivesse atento àquela troca. Não tocaram no assunto que as separava como um muro: a discussão ríspida, o ressentimento ainda fresco, a dança que cada uma fazia para não ceder primeiro.

Moarã largou um feixe de galhos secos próximo à lareira, ajustou alguns potes na prateleira com movimentos que pareciam mais bruscos do que o necessário. Naiovi, por sua vez, apoiou as mãos na mesa, os dedos tamborilando em um compasso nervoso que não combinava com o silêncio resignado que as envolvia.

Por alguns instantes, apenas o som distante do vilarejo entrando em noite preencheu a casa: o coro suave das cigarras, o estalo de madeira aquecida pelo último sol. Duas presenças tão próximas, mas tão distantes, separadas por tudo que não conseguiam – ou queriam –  dizer.

Por alguns instantes, o silêncio só era quebrado pelos estalos da madeira seca, que Moarã empilhava com mais força do que precisava. Naiovi respirou fundo. O ar carregava o cheiro de resinas, ervas penduradas e algo que era puramente Moarã. Decidiu romper o vácuo que pesava entre as duas.

– Encontrei Ethel no laboratório hoje – começou, tentando manter a voz firme. – Ela disse que te viu na adega ontem. Parece que foi… divertido.

Moarã interrompeu o movimento por um segundo, erguendo o olhar de forma quase imperceptível. Depois voltou a organizar os galhos, mas a tensão em seus ombros parecia menor.

– Foi sim. A lua nova chega em breve e o clima fica um pouco… diferente por aqui.

Naiovi anotou mentalmente: colher informações sobre como lidam com os ciclos da lua. Havia algo no tom de Moarã que indicava que aquela mudança não era apenas astronômica – e a ideia de entender esses ritmos, de encontrar neles uma chave para decifrar Valeã, reacendeu algo de analítico em sua mente.

Elas permaneceram em silêncio depois disso, mas não mais o silêncio sufocante de antes: era como se a simples troca de palavras tivesse criado um pequeno vão de trégua entre as duas. Depois de alguns minutos em que apenas o som do vento se infiltrava pelas frestas da casa, Naiovi quebrou a quietude com um comentário que carregava uma ponta de brincadeira, mas também de genuína curiosidade.

– E onde vocês pegam comida por aqui? – perguntou, olhando ao redor como quem busca prateleiras invisíveis. – Não vi nenhum supermercado escondido embaixo das árvores.

Moarã ergueu uma sobrancelha, surpresa pela pergunta e pelo tom. 

– Temos algumas hortas coletivas no sul do vilarejo. Trocas na praça. Às vezes caçamos, pescamos… ou plantamos o que precisamos. – respondeu.

Naiovi assentiu apenas com o queixo e saiu pela porta sem mais explicações. Moarã a acompanhou com o olhar até que ela sumisse entre as sombras da tarde.

Minutos depois, Naiovi retornou com braços carregados com frutas de casca espessa, tubérculos ainda sujos de terra e ramos verdes cheirosos. Colocou tudo sobre a bancada, limpando a poeira das mãos na calça.

Moarã franziu o cenho, surpresa: 

– Como você conseguiu isso tão rápido?

– Deixei na conta da liderança das fronteiras – respondeu Naiovi, sem esboçar qualquer arrependimento, mas com um brilho maroto nos olhos – Disseram que você tem crédito. Bastante, aliás.

Moarã soltou um riso curto, rouco, balançando a cabeça como quem não acreditava na audácia. 

– Você é… inacreditável. – disse, mas havia diversão em sua voz.

O riso, porém, morreu rápido quando Naiovi virou-se para encará-la com seriedade: 

– Preciso aprender a me virar sozinha. Sem depender de você.

As palavras pairaram no ar como um estalo seco. Algo naquela frase soava como autonomia, mas também como… hostilidade? Ou talvez apenas a dureza de quem passou a vida inteira precisando provar que podia sozinha.

Sem esperar resposta, Naiovi começou a lavar os vegetais e separar as frutas com gestos meticulosos. Seu olhar se concentrou nos cortes. Estava fazendo uma comida adaptada de Kohr, ajustada aos ingredientes que conseguira. Seria a primeira vez em muito tempo que colocaria a mão em panelas para cozinhar algo. Em Kohr, nunca precisara: a comida vinha até ela, pronta, como tudo em sua vida de herdeira ocupada demais para se preocupar com o básico. Mas ali, longe de Kohr, o essencial batia à porta.

Enquanto Naiovi picava os tubérculos e misturava ervas que reconhecia pelo cheiro, Moarã se manteve sentada perto da porta, fingindo arrumar a aljava e afiar uma flecha já perfeita. Seus olhos, porém, pairavam de tempos em tempos sobre os movimentos calculados de Naiovi – demorando-se nos cortes, nos modos que misturavam precisão e uma certa delicadeza inesperada.

O cheiro começou a subir das panelas, quente, levemente apimentado, com notas terrosas que lembravam a cozinha de Valeã, mas com algo diferente, quase cítrico. A curiosidade de Moarã era evidente nos olhares rápidos, mas ela parecia se recusar a perguntar, como se fosse um jogo silencioso. Naiovi, percebendo, ergueu o rosto enquanto mexia a mistura. Seu tom era casual, mas seus olhos, atentos: 

– Em Kohr, eu não precisava cozinhar. – começou, quase como quem fala sozinha – Desde criança, tinha um tutor que cuidava de tudo. Foi ele quem me ensinou sobre química da água e como conduzir reuniões do Conselho Cinzento. Ele dizia que, se eu não soubesse manter a água pura, nunca poderia manter nada puro em Kohr.

Moarã desviou os olhos para as mãos, mas o silêncio que se instalou depois era diferente, de escuta. Seu polegar roçava a lateral da flecha, como quem precisa de algo para ocupar os dedos.

– E você? – Naiovi continuou, aproveitando a pausa. – Sempre fala em escutar Valeã, em esperar o momento certo… mas quem te ensinou isso? Alguém também te mostrou como ler a terra? – perguntou com cuidado, mas sem rodeios, lançando a pergunta como uma linha que esperava fisgar alguma resposta.

O fogo da pequena fornalha estalava suavemente, preenchendo o ambiente. O cheiro do cozido se espalhava, quente e reconfortante, enquanto Naiovi observava Moarã, tentando decifrar as sombras em seus olhos.

Moarã respirou fundo, abrindo a boca como quem fosse responder… mas hesitou, prendendo a frase na garganta. Seu olhar encontrou o de Naiovi, e por um instante pareceu vulnerável, ponderando se deveria ou não entregar suas histórias. Quando falou, sua voz saiu baixa, arranhada, como se viesse de longe:

– Kauã. – disse apenas, o nome soando mais pesado do que qualquer explicação. – Ele me mostrou que a terra fala, mas também que escutar é escolher.

Um silêncio se estendeu entre as duas, mais cheio do que vazio. E então Naiovi voltou a mexer a panela, satisfeita por ter, enfim, arrancado algo que não fosse mais uma metáfora.

Quando o aroma do cozido se tornou irresistível, Naiovi desligou a pequena chama e começou a servir duas tigelas fumegantes, distribuindo generosas porções de legumes macios envolvidos em um caldo espesso e perfumado. O calor parecia aquecer não só a cozinha, mas também o silêncio entre as duas.

– É… diferente. – comentou Moarã, pegando a tigela com cuidado e o vapor embaçando levemente seu rosto. Seus olhos se demoraram sobre a superfície brilhante do caldo, depois ergueram-se, curiosos. – Que erva é essa? Tem um cheiro… ácido. Mas bom.

– Citriomila. Uma planta que cresce em Kohr, resistente ao solo salino. Ajuda a quebrar toxinas. – respondeu Naiovi, com naturalidade, mas observando cada reação de Moarã como se fosse parte de um experimento.

Provaram em silêncio. A primeira colherada fez Moarã erguer as sobrancelhas, surpresa com o contraste de sabores: o amargor inicial que se dissolvia em doçura terrosa, o calor do tempero que chegava suave, mas persistente. Seu rosto se abrandou, quase um sorriso contido se formando nos lábios.

– Vocês comem assim… todos juntos? – perguntou Moarã, com a voz mais suave, quase curiosa demais para quem fingia desinteresse. – Em Kohr.

Naiovi mastigou devagar antes de responder:

– Às vezes. Em banquetes do conselho. Mas, na maior parte do tempo, comemos em salas isoladas, entre reuniões ou estudos. A comida só… combustível. – disse, e houve um leve amargor em sua voz, como quem se surpreendia em perceber a falta que sentia de algo que talvez nunca tivesse tido.

Moarã soltou um som baixo, entre um resmungo e um suspiro:

– Em Valeã, comer é partilha. – disse, encarando a própria tigela, onde o caldo se agitava levemente. – Quando alguém come sozinho, é porque carrega algo pesado. Ou porque não confia em quem está ao lado.

Naiovi desviou o olhar para a janela e sentiu o peso da fala de Moarã pousar sobre si, desconfortável mas verdadeiro. Então voltou a encarar Moarã com franqueza incomum:

– Você confia em mim? – perguntou, a voz sem tom de desafio.

Moarã ergueu os olhos, o olhar sério, profundo como a terra molhada.

– Não. – respondeu sem hesitação, mas completou com um suspiro, como se fosse mais difícil manter a muralha erguida do que admitir. – Ainda não.

Um silêncio cheio de significado se seguiu, enquanto ambas comiam, cada colherada aquecia mais do que o estômago. Quando as tigelas ficaram vazias, Naiovi se levantou para limpá-las, mas Moarã segurou levemente sua mão, tirando o recipiente.

– Em Valeã, quem cozinha descansa. – disse com simplicidade, levando as tigelas para lavar enquanto Naiovi a observava, surpresa, quase tocada.

Aquela noite foi a primeira, em muitos dias, em que o sono não chegou como uma batalha. Quando se recolheram, a casa parecia menos cheia de sombras. O cheiro do caldo ainda flutuava no ar, misturando-se às ervas secando nas vigas. Os corpos, exaustos, mas aquecidos pela refeição, se renderam ao descanso.

Moarã adormeceu rapidamente, a respiração profunda denunciando um alívio que não lembrava ter sentido desde que Naiovi chegara. Já Naiovi permaneceu acordada por um tempo, deitada em sua esteira. Seus olhos percorriam o teto, depois pousaram no arco que Moarã lhe entregara dias antes. Passou os dedos sobre a madeira polida, sentindo o peso simbólico do objeto.

Havia conseguido se aproximar. Conseguira colher informações. Conseguira, principalmente, não se isolar de forma irreversível. Seus últimos passos foram satisfatórios. Abriu seu caderno de capa escura, puxou uma lanterna de luz fraca e, no canto da página seguinte, escreveu em letras rápidas e precisas, reservando uma página para cada tópico, deixando espaço livre para anotações futuras:

Moarã:

→ Valoriza partilha à mesa; considera comer sozinho sinal de desconfiança ou dor. Acolheu gesto de preparo de alimento como parte do laço social. Reação positiva à integração em tarefa doméstica. 

→ Ensina jovens de idades variadas a talhar madeira; atividade promove confiança, disciplina e senso de pertencimento. Forte indicador de relevância social, tendo bastante crédito na comunidade. Provavelmente respeitada e visada, exerce influência sem recorrer a imposição. Mantinha uma postura paciente, transmitindo saber prático de forma acessível; usa silêncio e gestos em vez de discursos. As crianças demonstravam conforto, curiosidade e apreço – reflexo do vínculo construído.


Ciclos lunares: 

→ Festividades ligadas à lua cheia e lua nova parecem regular tensões, expurgos emocionais e reafirmação de laços. Investigar se há influência direta sobre decisões coletivas.


Kauã: 

→ Figura de respeito mesmo ausente fisicamente; seu nome ainda funciona como peso de autoridade. Relacionamento anterior com Moarã sugere papel de mentor e elo com tradições locais.

→ Confirmar se Kauã está vivo ou ausente por outro motivo. Há silêncio em torno dele, talvez proposital.


Ethel: 

→ Integra-se com facilidade social; pode servir de elo entre estrangeiros e comunidade. Capaz de perceber intenções sutis; evita confronto direto, mas observa tudo. Possui exímio conhecimento prático acerca da flora e fauna; útil como mediadora cultural e pesquisadora.

Fechou o caderno com cuidado, repousou-o ao lado da esteira, perto de uma pequena caixinha redonda metálica e, pela primeira vez desde que colocara os pés em Valeã, deixou-se relaxar completamente. O som distante do vento entre as árvores embalava a casa, quase como um canto antigo. Naquele breve intervalo de paz, Naiovi percebeu que, apesar de tudo, talvez estivesse aprendendo a escutar.


*********


Dissecar - Dia 6

O sol mal despontava entre as copas densas quando Naiovi chegou ao laboratório. O ar estava úmido, carregando o cheiro fresco da terra depois de uma noite sem tempestade. Carregava em mãos uma pequena tigela de madeira coberta por um pano limpo – restos da refeição que preparara na noite anterior, cuidadosamente embalados. Seu passo, ainda que determinado, carregava algo de hesitação.

Encontrou Ethel já desperta, sentada em um banquinho, mexendo em fios finos que conectavam pequenos dispositivos de medição. 

– Trouxe isso pra você – disse Naiovi, estendendo a tigela. – É da comida de ontem. Pensei… que poderia gostar.

Ethel ergueu as sobrancelhas, surpresa, e então sorriu largo, aceitando a oferenda como quem recebe um presente precioso.

– Olha só que chique, a herdeira de Kohr cozinhando pra mim! – brincou, cutucando a borda do recipiente antes de cheirar o conteúdo. – E tá cheiroso, heim? 

– Só… achei que você merecia. – Naiovi desviou o olhar, desconfortável com o calor repentino nas bochechas. – Você cuidou de mim. E achei que… bem, laços se constroem assim por aqui, não?

Ethel soltou uma risada breve, mas seus olhos brilhavam de gratidão. 

– Você tá pegando rápido. Talvez se adapte antes do que imagina.

Enquanto comia, falou animada:

– Amanhã vai ser noite de lua nova. Vai ter uma grande festa, bem maior que a última que cê tava. É a noite do rito do recomeço. Gente desabafa, canta, grita, ri, chora… e depois todo mundo se sente mais leve. Você devia ir.

Naiovi apoiou-se na bancada, intrigada. Uma oportunidade perfeita para observar mais e, quem sabe, começar a realmente se integrar.

– Então é assim que fazem? Recomeçam juntos? – perguntou, como quem anota mentalmente cada detalhe.

– Exato. A lua nova limpa a garganta e o coração de Valeã. Vai ser… intenso. Mas bom. Você vem?

Naiovi hesitou apenas um segundo, antes de assentir.

– Sim. Quero ver com meus próprios olhos. 

Naiovi mexia lentamente no conteúdo do pequeno recipiente que trouxera, sentada em um canto do laboratório. O zunido baixo dos aparelhos preencheu o silêncio até que, sem erguer os olhos, ela soltou:

 – Você não é daqui, né?

Ethel arqueou uma sobrancelha, apoiada na bancada, ainda mascando o resto do que Naiovi havia lhe trazido. 

– Não. Vim parar aqui quando ainda era pequena… bom, pequena o bastante.

– O que aconteceu?  – Naiovi insistiu, olhando agora direto para ela, como quem enxerga mais do que palavras. Ethel respirou fundo. 

 – O Véu. A tempestade. Perdi minha família, me perdi… caminhei até cair aqui.  – O tom foi mais sério do que de costume, mas sem carregar drama.

Houve uma pausa. Naiovi piscou devagar, absorvendo. 

– E como foi? Estar aqui?

Um sorriso cansado se desenhou no rosto de Ethel. 

 – Difícil. Queria fugir. Mas Moara, que ainda não era Moarã naquela época, me guiou. Me fez entender a terra, o jeito de Valeã. Me ensinou que a floresta não perdoa, mas também não esquece quem aprende a escutar.

Naiovi inclinou a cabeça, com curiosidade latente. 

 – Qual é a relação de vocês duas?

 – Somos… próximas  – respondeu Ethel, arrastando a palavra com um sorriso enviesado.

 – Próximas como?  – a pergunta saiu mais rápida do que Naiovi gostaria.

Ethel franziu os olhos, como quem saboreia a chance de provocar.

 – Por que a pergunta, Naiovi?  – E, aproximando o rosto até quase tocar o dela, completou com a voz baixa e um sorriso malicioso  – Está interessada?

O silêncio que se seguiu foi tão pesado quanto as paredes de ferro do laboratório.

Naiovi sustentou o olhar de Ethel por um momento que pareceu mais longo do que realmente foi. O coração martelava, parecia que queria sair pela boca, mas seu rosto permaneceu impassível – ou quase.

– Me interesso por tudo que possa impactar a missão – rebateu com frieza estudada, embora seu tom denunciasse a leve fissura no controle – Preciso entender as dinâmicas daqui.

Ethel soltou uma risada baixa, balançando a cabeça como quem vê algo divertido num animal arisco. 

 – Dinâmicas, é? Então anota aí no seu caderninho, diplomata: as dinâmicas aqui são mais bagunçadas do que você vai conseguir colocar em gráficos.

Naiovi ergueu o queixo, desafiadora. 

 – Vou tentar, mesmo assim.

Ethel se afastou, mas manteve o sorriso que beirava a zombaria. 

– Boa sorte. Vai precisar. – E, girando sobre os calcanhares, foi mexer em frascos e instrumentos, ainda rindo baixinho.

A conversa pairou no ar como fumaça, espessa e cheia de significados não ditos. Naiovi abriu seu caderno, mas por um instante, a caneta ficou suspensa sobre a página em branco.

Ethel se espreguiçou, empurrando de leve o banco onde estava sentada. 

– Vou pegar uns reagentes que deixei pra trás ontem. Prometo que volto rápido, senão você vai ficar aí sozinha falando com suas centrífugas.

– Faça o que tiver que fazer – respondeu Naiovi, já com o tom distante de quem retornava aos próprios cálculos.

Ethel soltou um assobio curto, meio brincalhão, e saiu do laboratório com passos largos. O sol iluminava as vielas de Valeã em tons dourados e a brisa leve carregava o cheiro de fermentados sendo preparados para a festa da lua nova.

No caminho, ela desviou pela trilha que passava em frente à casa de Moarã. Lá, a guerreira estava sentada na varanda, concentrada em amarrar cordas grossas, fazendo nós firmes para escadas de cânhamo. O cabelo, ainda úmido do banho matinal, caía rente à cabeça, os músculos dos braços tensos e marcados pela luz oblíqua do sol.

– Bom dia, caçadora – provocou Ethel, apoiando-se em um dos postes da varanda. – Sabe que Naiovi perguntou de você hoje?

Moarã levantou os olhos, mas manteve as mãos no trabalho. 

– Perguntou?

– É. Ficou querendo saber se a gente é… próxima – disse, alongando a palavra com malícia – Você devia ter visto a cara dela.

Moarã não respondeu, apenas puxou outro nó com força. 

– E o que você respondeu?

– Disse que somos próximas. Bem próximas. – Ethel riu, quase infantil, balançando-se para frente e para trás.

Moarã bufou, mas não conteve um sorriso de canto. 

– Estava indo buscar uns frasquinhos mágicos. Mas pensei… talvez você tenha aí. – Ethel se aproximou – Posso entrar?

Moarã assentiu com o queixo, abrindo a porta para Ethel, acompanhando-a no interior. Sobre a mesa, Moarã viu o caderninho preto de capa emborrachada de Naiovi, com a presilha aberta. A curiosidade bateu na porta: era aquele que ela escrevia mesmo fora do laboratório. Quis dar uma espiada – afinal, o que deveria ter além de fórmulas e números? 

Abriu na página que estava marcada pela fita de cetim e o nome de Moarã saltava em letras precisas, logo ao lado de tópicos sobre Ethel, Kauã e tradições de Valeã. 

O peito de Moarã pareceu fechar, o ar ficou pesado. Cada palavra lida era como um cutelo: Provavelmente hostil cautelosa. Rever abordagem. Reação positiva à integração em tarefa doméstica. Forte indicador de relevância social.  

Ouviu passos e levantou a cabeça. Ethel havia parado na porta, segurando pequenos frascos que pegara de uma prateleira.

– Vai ficar aí assistindo ou vai me ajudar a carregar? – perguntou Ethel.

Moarã fechou o caderno com força, como quem esconde uma ferida. 

– Vamos. – E passou por Ethel sem mais uma palavra, com a mandíbula trincada e passos fortes.

O caminho até o laboratório pareceu mais curto do que realmente era. O silêncio entre as duas, pesado como pedra, só era quebrado pelo ranger ocasional dos frascos de vidro dentro da sacola que Ethel carregava. Moarã andava à frente, cada passo seu imprimindo raiva na terra batida. Quando finalmente avistaram a estrutura improvisada do laboratório, Moarã parou por um instante, respirou fundo e entrou sem cerimônia.

Naiovi estava concentrada em alinhar lâminas sob o microscópio portátil, mas ergueu os olhos assim que ouviu os passos fortes de Moarã. Seu olhar se iluminou brevemente ao ver os reagentes nas mãos de Ethel – até que encontrou os olhos de Moarã e sentiu o clima mudar como se o ar tivesse engrossado.

Moarã largou a sacola com um baque surdo sobre a bancada, sem desviar o olhar de Naiovi. Havia algo de cortante, quase agressivo, em sua postura. A guerreira apoiou as mãos na superfície de metal, inclinou-se um pouco para a frente e falou com a voz firme, baixa, como quem retém um rugido:

– É assim que você nos vê? Como anotações em um relatório? – Abriu seu caderno na frente de Naiovi nas páginas que ostentavam o seu nome e de Ethel.

O silêncio que se seguiu foi tão denso que parecia vibrar. Ethel, parada ao lado, passou os olhos de uma para outra, tensa, mas não ousou interromper. Naiovi sentiu um frio percorrer sua espinha, mas manteve o rosto neutro – ou tentou.

– Eu… – começou, mas a palavra morreu na garganta. Respirou fundo. – Minhas anotações são apenas uma forma de organizar pensamentos. Preciso entender para poder… – fez uma pausa, buscando uma palavra que não soasse como desculpa – …agir com precisão.

Moarã apertou a bancada com mais força.

– Precisão. É só isso que você vê aqui? Dados. Padrões. Variáveis.

– Não é só isso – rebateu Naiovi, erguendo o queixo, a voz ganhando firmeza. – É sobrevivência. Eu preciso entender para ajudar meu povo – sua voz falhou no “povo”, a palavra soando mais frágil do que esperava.

Moarã a observou em silêncio com seus olhos escuros faiscando. Então se endireitou, afastando-se um passo. Seu rosto endurecido parecia esculpido em pedra.

– E, nesse processo, pretende nos dissecar como insetos – disse, cada sílaba pesada, e virou-se para sair. Os passos ecoaram no piso metálico do laboratório.

– Moarã! – chamou Naiovi, levantando-se. Mas a porta já se fechava com um rangido seco e rápido.

Ethel soltou um suspiro, apoiando a sacola na bancada e lançando um olhar de quem percebe uma tempestade iminente.

– O que é isso?

Deixou seus olhos passearem na página aberta no caderno que Moarã deixara na bancada. 

– “Possui exímio conhecimento prático acerca da flora e fauna; útil como mediadora cultural e pesquisadora.” – fez uma pausa longa e fechou o semblante. Naiovi olhava com apreensão, esperando a reação de Ethel com um frio na barriga. – Suas anotações são certeiras. Gostei disso de “exímio conhecimento”. Já esse “útil como mediadora cultural”, nem tanto. 

– E então… Vai me ajudar ou vai me processar? – rebateu Naiovi, a voz baixa, tentando disfarçar a inquietação que já fervia sob a superfície.

Ethel ergueu os olhos lentamente do caderno, cruzando o olhar com ela. Havia uma centelha de humor, mas também algo sério, profundo, que não deixava espaço para brincadeiras fáceis.

– Vou te ajudar, Naiovi. – Sua voz soou firme, mas sem perder a doçura que lhe era natural. – Porque, se você falhar, a gente falha junto. – Fechou o caderno com cuidado, quase como um gesto de reconciliação. – Mas entenda: aqui, quando a gente escreve sobre alguém, é pra guardar o que se ama ou o que se teme. Nunca pra organizar como se fosse mercadoria.

Naiovi respirou fundo, absorvendo cada palavra como se fossem tapas e consolo ao mesmo tempo. Ethel apoiou-se na bancada, sacudiu a cabeça com um sorriso resignado e apontou com o queixo para os reagentes.

– Agora, bora trabalhar. Esses frascos não vão se analisar sozinhos. – E, com uns estalos leves dos dedos, despertou Naiovi de seu torpor.

Naiovi abriu a boca para responder, mas fechou em seguida, apenas assentindo. Com movimentos precisos, começou a organizar os materiais, enquanto Ethel a observava com olhos atentos – não apenas como quem vigia, mas como quem ainda ponderava se aquela mulher de Kohr estava disposta a aprender, de verdade, a viver em Valeã.

As horas passaram e Naiovi permaneceu no laboratório muito além do necessário. A luz natural já estava se extinguido do lado de fora e as lâmpadas leds internas lançavam sombras irregulares sobre as paredes metálicas. Ela reorganizava frascos, limpava superfícies que já estavam limpas, conferia números na tela da centrífuga que não haviam mudado desde o meio da tarde.

Seus olhos, avermelhados pelo cansaço, saltavam do visor para as anotações, do microscópio para as fórmulas rabiscadas no caderno – mas nenhuma tarefa exigia, de fato, sua atenção. Não havia mais amostras frescas. Não havia dados novos. Só havia o silêncio, grosso e sufocante, e a lembrança do olhar de Moarã queimando em sua memória.

Ethel ainda permanecia ali. Acabara de arrumar sua mochila para partir. O ambiente entre as duas havia se tornado desconfortável desde cedo, feito de passos contidos, palavras medidas e silêncios longos que pesavam como o Véu Cinzento. A espontaneidade de Ethel sumira, substituída por piadas sem graça e comentários nervosos que se esgotavam antes de virar conversa.

– Tô… indo pra casa, viu? – disse Ethel, no final da tarde. O tom em sua voz tentava soar leve, mas falhando no esforço. – E depois, quem sabe, dar uma volta.

Naiovi apenas assentiu, sem tirar os olhos do tubo de ensaio que girava na centrífuga. Ouviu o som das botas de Ethel ecoarem pelo corredor até sumirem no crepúsculo que começava a envolver Valeã.

O zunido baixo dos aparelhos voltou a preencher o ambiente. Naiovi respirou fundo, passando a mão pelo rosto. O cheiro metálico do laboratório, misturado ao leve perfume de musgos que ainda pairava no ar, parecia grudar em sua pele. Ficou ali, imóvel, por longos minutos. Tentava convencer a si mesma de que estava apenas esperando algo acontecer – um resultado, uma resposta – mas, no fundo, sabia: estava só adiando o momento de encarar o mundo lá fora.


********


Ethel avistou Moarã de longe, sentada em um banco de pedra esculpido em forma de serpente, uma batata frita na mão e a cerveja escura repousando ao lado. O entardecer pintava o céu com tons alaranjados que faiscavam entre as copas. As lanternas começavam a ser acesas, a praça ainda estava vazia, silenciosa demais para o padrão de Valeã – e Ethel soube, de imediato, que o humor de Moarã não era dos melhores. Sentou-se ao lado dela sem pedir licença, pegando uma batata do prato.

– Você tá de cara amarrada faz quanto tempo? – perguntou, mastigando com a boca cheia, mas os olhos estudando Moarã com cuidado.

Moarã bufou, sem virar o rosto.

– Desde que encontrei o caderno dela. – O tom era áspero, mas com uma vulnerabilidade que Ethel reconhecia de longe – É como se tudo que eu sou fosse só… uma função. Um objeto de estudo.

Ethel assentiu devagar.

– É assim que ela foi treinada, Moarã. Em Kohr, tudo é sistema, dado, protocolo. Não sei se ela entende como as coisas respiram aqui.

– Mas ela não quer entender! Ela quer controlar, catalogar. E eu… – Fechou a mão sobre o joelho. – Eu achei que estava começando a vê-la… de outro jeito.

Ethel sorriu triste.

– E talvez esteja. E é isso que te deixa tão puta. – Deu de ombros, jogando outra batata na boca. – Você não é burra, Moarã. Só teimosa. Você escutou a água, escutou ela… mas ainda tá decidindo se vai deixar isso te atravessar.

Moarã fitou Ethel pela primeira vez, o olhar duro, mas cheio de perguntas que não cabiam em palavras.

– E você? Por que defende ela? – perguntou, como quem cutuca uma ferida. 

Ethel suspirou, largando a batata no papel.

– Porque eu vejo medo nela, Moarã. Medo de ser engolida. Medo de gostar daqui. Medo de gostar de você, da gente. – Encostou-se no banco, olhando o céu que começava a escurecer. – E talvez, se ela cair, a gente caia junto. Ou a gente aprenda a dançar nessa bagunça. 

Pediu uma cerveja para acompanhar Moarã e completou:

– A lua nova é amanhã. Talvez isso seja um sinal.

Moarã deixou o peso das palavras de Ethel pairar no ar. O céu escurecia rápido, como se engolisse as últimas cores do entardecer, e as lanternas ao redor da praça balançavam com as primeiras brisas da noite. O cheiro de lenha acesa e ervas queimadas começou a se espalhar pelas ruas, anunciando que o vilarejo se preparava para a lua nova.

Quando o garçom trouxe a cerveja de Ethel, as duas ergueram suas canecas sem dizer nenhuma palavra. O tinir abafado ecoou como um pacto silencioso – de amizade, de cuidado, de uma cumplicidade tecida à força de perdas e recomeços.

– A lua nova é amanhã – repetiu Moarã, com a voz mais baixa, quase para si mesma. – Talvez seja mesmo um sinal.

Ethel a observou de lado com um sorriso pequeno, mas verdadeiro, surgindo em seus lábios. 

– Então aproveita. Porque quando a lua some, ninguém tem sombra pra se esconder. Tudo vira sombra. – disse, tomando um gole longo da cerveja amarga. 

Por um momento, ficaram apenas ouvindo o som dos sapos coaxando ao longe e o tilintar das lanternas balançando acima delas. A praça começou a ganhar vida aos poucos, com moradores que chegavam em pequenos grupos, carregando sacolas de frutas, cestas de raízes e instrumentos de percussão, preparando-se para a noite que viria.

Moarã soltou um suspiro longo, como quem deixa escapar um segredo preso há dias.

– Dei um arco pra ela – confessou, com a voz rouca.

Ethel engasgou com a cerveja, batendo de leve no peito. 

– Mas já?! – exclamou, arregalando os olhos. – Você mesma disse: “Aqui, só damos armas a quem queremos que lute ao nosso lado.” Não foi?

Moarã soltou um riso curto, sem humor. 

– Para você, dei um facão. – Seu olhar ficou mais sombrio, os dedos tamborilando na borda da caneca. – Para ela, um arco. Inútil na mão de quem não sabe usar.

Moarã girou a caneca entre os dedos, o olhar fixo em nada, como se enxergasse as lembranças que a atormentavam.

– Para você, dei um facão – repetiu – Você precisava de algo que dissesse: “lute por você mesma”. E lutou.

Ethel assentiu, olhando para o próprio colo com um sorriso triste. 

– E eu sabia usar. – Passou o polegar distraidamente pela cicatriz fina na base do punho. – Me deu o que eu precisava pra ficar de pé.

Moarã respirou fundo, como quem carrega peso demais no peito.

– Para ela… – hesitou, como se a palavra doesse – dei um arco. Porque pensei que precisava aprender a ver longe. Mirar. Sentir a respiração e agir na hora certa.

– Mas você disse que é inútil – Ethel provocou, com cuidado, os olhos estreitos como quem tateia uma ferida. – Por que dar algo assim, então?

– Porque não consegui evitar – Moarã rebateu, com a voz mais áspera do que pretendia. – Porque quis que ela soubesse que… eu estava apostando nela. – Seus olhos se ergueram, brilhosos na penumbra. – Mas é isso que me fere. Apostar em quem talvez só queira nos usar.

Ethel ficou em silêncio, absorvendo cada palavra como quem recolhe cacos de vidro.

– Moarã… – disse por fim. – Você é boa em escutar tudo, menos a si mesma. Porque se escutasse, saberia que já fez a escolha. E que ela já te atravessou, mesmo que você lute contra.

Moarã soltou uma risada seca, tão curta quanto amarga. 

– Escuto sim, Ethel. Escuto até demais. E é isso que me apavora. – A cerveja escura no copo tremeu quando ela o apoiou com força na bancada. 

Moarã respirou fundo, como quem tentava decidir entre recuar ou ceder ao turbilhão que se aproximava. Ethel apenas continuou ali, ao seu lado, dividindo o silêncio – porque às vezes, isso era tudo que podiam oferecer uma à outra.


************


Quando Naiovi chegou à casa de Moarã, já era noite fechada. Carregava uma cesta com frutas, raízes e pequenos vegetais frescos, que conseguira negociar ao longo do caminho – ou, mais precisamente, “adquirir” sem muita cerimônia.

Na varanda, Moarã estava sentada com as pernas cruzadas, a cabeça baixa enquanto os dedos trançavam habilmente fios de cisal para formar um pequeno boneco. Seu rosto estava iluminado apenas pela luz amarelada de um lampião a óleo.

Assim que Naiovi colocou a cesta sobre a mesa perto da entrada, Moarã ergueu os olhos e a sua voz foi cortante como lâmina:

– Usou o crédito da liderança influente? – disparou, ácida, cada sílaba mais afiada que a anterior.

A pergunta atravessou Naiovi como uma flechada bem colocada. Ela sustentou o olhar de Moarã, o coração pulsando alto no peito, mas não respondeu. O som das frutas se acomodando na cesta foi a única coisa que quebrou o silêncio entre as duas.

O bonequinho de cisal ganhava formas nas mãos de Moarã. E, na quietude que se seguiu, o lampião estalou baixo, como se a chama também prendesse a respiração.

– É isso que você faz, não é? – Moarã continuou, a voz baixa, mas carregada de raiva contida. – Chega, observa, anota… e então compra o que precisa com o poder que carrega de Kohr. – Seu tom era mais gélido a cada palavra. – Usa o nome, a influência. E depois vai embora, como se nada daqui tivesse sido tocado por você.

– Eu não… – Naiovi começou, mas a voz falhou, seca como o pó do deserto. Respirou fundo e tentou novamente. – Eu não “comprei” nada com poder. Negociei. Fiz o que precisava para conseguir alimentos. – Sua mão apertava a borda da cesta.

Moarã largou o boneco inacabado sobre a mesa com um baque surdo, o som ecoou pela varanda vazia. 

– Você acha que isso é só questão de trocar coisas? – Ela se ergueu, alta e imponente na luz fraca. – Aqui não é Kohr. Aqui, cada fruta, cada raiz, é resultado de um trabalho conjunto. Você não pode simplesmente chegar e… usar.

– Eu não estou “usando”! – rebateu Naiovi, agora com a voz firme, um tom quase de desespero vazando pelas rachaduras do autocontrole. – Estou tentando me adaptar, contribuir!

– Contribuir? – Moarã avançou um passo, os olhos faiscando como brasas. – Ou conquistar? Transformar tudo em mais um anexo do seu conselho cinzento? Você acha que pode entender Valeã olhando de fora, Naiovi?

O nome soou como sentença na boca de Moarã, pesado, carregado de algo mais profundo do que simples frustração. Naiovi sentiu o estômago afundar, mas não recuou. 

– Eu não sou sua inimiga, Moarã – disse baixo, porém incisiva. – Mas se continuar me tratando como uma ameaça, talvez nunca consigamos… – hesitou, a palavra morrendo na garganta, o silêncio voltando a crescer, denso como o Sopra-Sangue.

O lampião tremulou. O boneco de cisal, agora abandonado na mesa, parecia observar em silêncio a guerra muda entre as duas.

Moarã respirou fundo, o peito subia e descia rápido. 

– Talvez seja você quem não sabe o que quer – murmurou, a voz rouca de exaustão emocional.

– Talvez… – Naiovi respondeu, desviando o olhar, cada palavra pesando como pedra.

O som distante de risadas e música chegando do centro da vila parecia pertencer a outro mundo. Ali, na varanda iluminada apenas por um lampião, as duas permaneceram frente a frente, tão próximas quanto irremediavelmente distantes.

Moarã baixou o olhar para a cesta sobre a mesa, os olhos se estreitando como lâminas quando voltou a encarar Naiovi. O silêncio entre as duas latej*v*, pesado, até que a voz de Moarã soou baixa, fria como a brisa noturna:

– Vai fazer como antes? – perguntou, cada palavra gotejando ironia. – Vai me “comprar” com isso também? Vai trocar comida por informações, como se eu fosse mais um dado no seu relatório?

O ar pareceu ser arrancado dos pulmões de Naiovi por um segundo. Ela abriu a boca, mas o som não saiu de imediato. Seus olhos buscaram os de Moarã, implorando por algo que não sabia nomear, mas só encontrou o reflexo duro de desconfiança.

– Não é isso… – disse enfim, a voz tensa, quase num sussurro. – Eu só quis… – parou, percebendo a futilidade da frase. – Não foi pra… comprar nada.

Moarã inclinou-se sobre a mesa, apoiando as mãos pesadas perto da cesta, tão próxima que Naiovi podia sentir o calor de sua raiva. 

– Pois parece exatamente isso. – O tom saiu mais baixo, mas tão carregado de frustração que doeu como tapa. – Você acha que tudo aqui pode ser negociado. Que cada gesto tem um preço. E eu cansei disso.

Naiovi engoliu em seco, as palavras se emaranhando na mente. 

– Não estou tentando te comprar. Eu só… – inspirou fundo, erguendo o queixo num esforço desesperado para manter a compostura – …só estou tentando me manter viva aqui.

A tensão entre as duas parecia vibrar no ar, quase palpável como trovões que antecedem uma tempestade. O lampião balançava levemente com a brisa fria, fazendo a chama projetar sombras erráticas nas paredes e nos rostos – ora distorcendo, ora revelando cada ruga de cansaço, cada linha de frustração.

Moarã se afastou primeiro, endireitando o corpo com um suspiro pesado. Puxou o boneco de cisal para perto de si, retomando os nós como se cada laçada a ajudasse a conter algo que ameaçava transbordar.

– Então fique viva – disse ela, a voz baixa e quase rouca, mas sem suavidade. – Mas não espere que eu sorria enquanto você nos estuda como se fossemos uma peça exótica de museu.

Naiovi fechou a boca, o orgulho lutando contra a vontade de gritar, de explicar, de se fazer entender. Sentia a garganta queimar, mas não deixou escapar som algum. Em vez disso, pegou a cesta com movimentos contidos, separou algumas frutas sobre a bancada, como se aquilo pudesse, de algum modo, remendar o que havia sido rasgado entre elas.

– Eu não pedi pra você me guiar. Nem pra me proteger. – disse, enfim, com a voz controlada, mas dura como pedra.

Moarã ergueu os olhos devagar, o brilho opaco revelava mais exaustão que fúria. 

– E eu não pedi pra acompanhar quem só quer fugir.

Um silêncio brutal caiu sobre as duas. Um grilo cantou do lado de fora, como se lembrasse que o mundo continuava, apesar delas.

Naiovi desviou o olhar e caminhou até o canto da casa que havia sido separado para ela. Recolheu suas anotações e as empilhou com cuidado meticuloso – quase ritualístico. Depois, sentou-se na pequena esteira que usava como cama, abraçando os joelhos enquanto fitava a escuridão à frente. O coração parecia ecoar alto demais.

Moarã permaneceu na mesa, as mãos paradas sobre o boneco inacabado, mas o olhar fixo na porta do quarto de Naiovi, como se quisesse espiar para dentro dela – ou como se já não quisesse ver mais nada.

Assim, ficaram até que o sono, pesado e desconfortável, caísse sobre ambas. O lampião foi se apagando aos poucos, até a casa mergulhar em sombras, com apenas a lua nova, oculta, testemunhando as rachaduras que cresciam entre elas.

 

*********

Fim do capítulo

Notas finais:

Vem aí dia de lua nova! 


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