• Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Cadastro
  • Publicar história
Logo
Login
Cadastrar
  • Home
  • Histórias
    • Recentes
    • Finalizadas
    • Top Listas - Rankings
    • Desafios
    • Degustações
  • Comunidade
    • Autores
    • Membros
  • Promoções
  • Sobre o Lettera
    • Regras do site
    • Ajuda
    • Quem Somos
    • Revista Léssica
    • Wallpapers
    • Notícias
  • Como doar
  • Loja
  • Livros
  • Finalizadas
  • Contato
  • Home
  • Histórias
  • Legado de Metal e Sangue
  • Auslander

Info

Membros ativos: 9525
Membros inativos: 1634
Histórias: 1969
Capítulos: 20,495
Palavras: 51,977,381
Autores: 780
Comentários: 106,291
Comentaristas: 2559
Membro recente: Azra

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Notícias

  • 10 anos de Lettera
    Em 15/09/2025
  • Livro 2121 já à venda
    Em 30/07/2025

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Recentes

  • Entrelinhas da Diferença
    Entrelinhas da Diferença
    Por MalluBlues
  • A CUIDADORA
    A CUIDADORA
    Por Solitudine

Redes Sociais

  • Página do Lettera

  • Grupo do Lettera

  • Site Schwinden

Finalizadas

  • Pólen
    Pólen
    Por Brias Ribeiro
  • Eras
    Eras
    Por Carolina Bivard

Saiba como ajudar o Lettera

Ajude o Lettera

Categorias

  • Romances (855)
  • Contos (471)
  • Poemas (236)
  • Cronicas (224)
  • Desafios (182)
  • Degustações (29)
  • Natal (7)
  • Resenhas (1)

Legado de Metal e Sangue por mtttm

Ver comentários: 0

Ver lista de capítulos

Palavras: 3770
Acessos: 273   |  Postado em: 09/07/2025

Auslander

Dia 5

O dia amanheceu cinza e úmido, com uma neblina que se arrastava pelas copas como um véu preguiçoso. As batidas do vento balançavam as folhas, mas não havia sinal do Sopra-Sangue: a tempestade prevista ainda levaria dias para chegar – mas o vilarejo respirava sempre em compasso de espera.

Moarã despertou com a claridade invadindo as frestas da janela, com o gosto de licor velho ainda amargo na boca. Espreguiçou-se, sentindo cada músculo protestar e a cabeça latej*v* no mesmo ritmo dos tambores que haviam embalado a noite anterior. Em sua mente, flashes do sorriso aberto de Ethel, das conversas sobre Naiovi e da sensação incômoda de que algo, nela, também estava mudando. Reprimiu o impulso de ir até o laboratório. Naiovi precisava de espaço. E ela mesma precisava pensar. Levantou-se e tomou um banho de ervas.

No laboratório improvisado, Naiovi acordou sob seus braços em frente às telas. O monitor ainda pulsava com gráficos intermitentes, mas nada definitivo. Passara a noite ali, insone, torturada pelos próprios pensamentos. O piso metálico estava gelado sob suas pernas e em cada reflexo das telas, enxergava não a diplomata de Kohr, mas uma mulher deslocada, tropeçando em códigos sociais que não dominava. Tentou organizar as notas espalhadas, mas a mente parecia entorpecida pela exaustão. Precisava se recompor. Ajustar o tom. Se quisesse resultados – e mais do que isso, ser ouvida – precisava urgentemente aprender a ler Valeã tanto quanto lia seus dados. 

O som do vento intensificava-se entre as árvores, como se Valeã própria sussurrasse: o tempo corre, mas ainda não chegou a hora. Ela teria de esperar o resultado das últimas amostras e a passagem da próxima tormenta para voltar à nascente e coletar espécimes frescas pós Red Drift. Até lá, a única escolha seria conviver. E sentia, dentro de si, que essa convivência seria tão ou mais desafiadora do que a própria tempestade.

O rangido da porta metálica ecoou pelo laboratório quando Ethel apareceu, os olhos semicerrados e o cabelo desgrenhado denunciando a ressaca. Carregava duas cuias fumegantes, de onde escapava um aroma agridoce de arroz com lentilha e vegetais.

– Sabia que cê ia tá aqui – disse, com a voz rouca e um meio sorriso, enquanto varria o contêiner com o olhar. Papéis, frascos e cabos espalhados como se um redemoinho tivesse passado ali. – Parece que Shõ teve companhia essa noite.

Entregou uma das cuias a Naiovi, que a pegou com as mãos trêmulas. Ethel a observou de cima a baixo, sem cerimônia.

– Toma. E olha, você deveria começar a se alimentar sozinha, viu? Vai acabar virando um musgo mais frágil do que esse aí – apontou para a bancada tomada por amostras.

Naiovi soltou um suspiro longo, mas deu uma colherada na comida quente. O calor deslizou pela garganta, trazendo um alívio desconcertante.

– As leituras preliminares mostram uma atividade orgânica que não bate com nada que eu conheço. As estruturas… são como se absorvessem a radiação e a transformassem em energia química estável – começou ela, com os olhos fixos nos gráficos piscando no monitor.

– E se isso puder ser replicado? – Ethel se animou, apoiando a mão na bancada. – Já pensou? Um sistema que purifica áreas tóxicas… ou até gera energia! – Os seus olhos brilhavam. Seria aquilo que ela estava procurando aquele tempo todo, bem embaixo do seu nariz?

– Talvez… – Naiovi respondeu, mas desviou o olhar. 

– E o que você, rainha de Kohr, pensa em fazer com esses dados? Não está aqui a toa, né?

A diplomata enrijeceu a postura e fechou o semblante. 

– Ainda é cedo para especular.

Ethel sentiu o silêncio crescer entre elas como mofo, mas ergueu as sobrancelhas num gesto de “tudo bem” e mudou de assunto.

– E você, como foi na adega? – Naiovi perguntou, num tom que tentou soar neutro, mas tinha a curiosidade de quem recolhe dados vitais. Queria saber como Ethel, notoriamente estrangeira como ela, lidava com aquilo tudo.

Os olhos de Ethel brilharam. 

– Ah, foi lindo! A música, o calor, as piadas… quase consegui esquecer que a cabeça ia explodir hoje cedo. Você devia ter visto Moarã dançando, Naiovi! – bateu levemente na bancada, animada. – Sabe, eu cheguei aqui mais perdida que pedra em rio raso, e aquelas festas me salvaram mais do que qualquer remédio. Valeã te abraça, se você deixar.

– E como… – Naiovi hesitou, escolhendo cada palavra como se fossem peças de um quebra-cabeça – …como você conseguiu deixar?

Ethel a encarou, o sorriso suavizando.

– Eu escutei. E parei de tentar consertar tudo. Foi aí que Valeã começou a me escutar de volta.

O silêncio que se seguiu foi pesado, mas não desconfortável. Então Naiovi respirou fundo. Era sempre a mesma resposta. Decidiu mudar de assunto:

– E… Moarã? – a pergunta saiu antes que pudesse conter.

Ethel ergueu uma sobrancelha, e o sorriso voltou com ironia:

– Bem, você parece mais acabada que eu depois de cair de uma carroça em movimento, e isso normalmente é sinal de que alguém precisa de um banho e de uma cama. Vá pra casa, Naiovi. Tome um banho, se recomponha. Eu estou com uma ressaca da braba, mas você tá pior que eu – Fez uma pausa, olhando-a com seriedade. – E não fuja só porque tem medo de encontrar Moarã. Se você quer ficar, vai ter que aprender a andar entre as raízes que te assustam.

Naiovi abriu a boca para retrucar, mas a voz não saiu. O pensamento da casa – das coisas de Moarã, do jeito dela de dobrar mantas, do cheiro de terra e fumaça que impregnava cada canto – fez seu estômago revirar. Ethel pousou a mão em seu braço, firme, mas sem pressa. 

– Não vai doer menos se você adiar. Vai só ficar mais fundo.

O ruído do agitador magnético preencheu o silêncio. A chuva fraca começou a bater suave no teto do contêiner, como se marcasse o compasso do que ainda viria.

O caminho até a casa parecia mais longo do que Naiovi lembrava. A chuva fina havia cessado, mas o ar permanecia úmido e pesado, um cheio terroso que só Valeã parecia ter. Cada passo fazia seus pensamentos ecoarem alto, como se o chão sussurrasse suas inquietações de volta.

Quando se aproximou da rua principal, viu Moarã sentada em um banco de tronco, rodeada por crianças de idades variadas. Cada uma empunhava uma pequena lâmina, talhando pedaços de madeira. Moarã demonstrava o movimento: firme, mas delicado, deixando que a lâmina encontrasse o caminho pelas fibras. Seu semblante, sério e paciente, contrastava com os olhos atentos que captavam cada detalhe dos aprendizes.

Naiovi, num impulso, se escondeu parcialmente atrás de uma pilastra de madeira coberta de trepadeiras e observou em silêncio. O som das risadas baixas dos jovens se misturava ao estalar rítmico das facas contra a madeira. Moarã corrigia posturas com toques sutis, encorajava com acenos de cabeça e sorrisos. Parecia que ali, entre aqueles pequenos, era onde Moarã realmente pertencia – e Naiovi sentiu o peso da distância que ainda havia entre elas.

Sem ser notada, desviou do grupo e seguiu até a casa. O portão rangeu baixo, como se a reconhecesse. Ao empurrá-lo, o cheiro familiar a golpeou: defumação da manhã, ervas penduradas, a umidade leve do barro que sustentava as paredes.

Fechou a porta atrás de si com cuidado, inspirando fundo para manter a compostura. O ambiente parecia ao mesmo tempo acolhedor e estranho: havia cestos de fibras entrelaçadas, pilhas de lenha, pequenas esculturas de bichos que Naiovi não reconhecia – um deles parecia uma cobra com perninhas, outro lembrava uma paca com chifres. Nas prateleiras, potes com pós coloridos, raízes secas e frascos de líquidos turvos; um deles borbulhava suavemente, exalando um aroma ácido e adocicado.

Foi até o quarto onde deixara suas coisas. Cada canto parecia impregnado de Moarã – a manta de fibras grossas, a bacia de madeira com marcas escuras, as sandálias pesadas largadas ao lado da cama. Tudo tão diferente de Kohr, tão… orgânico. Pigarreou e despiu-se, dobrou as roupas metodicamente, como aprendera desde pequena. O banho gelado que tomou parecia morder sua pele, mas ajudou a afastar o turbilhão de pensamentos. Encheu a caneca de metal com o chá escuro do balde, despejando-a sobre os ombros até que a respiração voltasse ao ritmo controlado.

Quando se vestiu novamente, passou a percorrer a casa como quem inspeciona um laboratório. Pegou o caderno grosso de capa emborrachada, abriu-o na primeira página em branco e começou a anotar:

Padrão de decoração sugere preocupação com simbolismos: esculturas de animais mutantes → possível totem ou tradição local.
Cheiro predominante de fumaça e ervas → ambiente controlado para conservação? Desinfecção? Religião ou espiritualidade?
Presença de fermentado borbulhando → autossuficiência alimentar, mas sem rigor de Kohr (risco de contaminação?)
Plantas penduradas → possível uso medicinal ou ritualístico. Confirmar com nativos.

Fechou o caderno com força e o estalo ecoou pela sala silenciosa. Sentia-se como uma perita analisando a cena de um crime – inconscientemente sabia que o “crime” era seu próprio desconforto, sua própria inadequação. E por mais que anotasse, por mais que nomeasse cada detalhe, nada daquilo diminuía a sensação de que estava estudando algo que já a estudava de volta. A luz suave do entardecer começou a se filtrar pelas frestas da janela. Naiovi passou a mão pelo cabelo raspado, respirando fundo. Tentava convencer a si mesma de que era apenas mais uma missão. E uma missão importante para Kohr. Mas o cheiro daquela casa, o calor que ainda pairava no ar… tudo dizia que ela estava em território que jamais poderia ser domado.

O cansaço a pegou de surpresa. Depois de anotar meticulosamente cada detalhe que julgava importante, Naiovi deitou sobre a esteira ainda úmida do vapor do banho, pretendendo apenas descansar os olhos. Quando os abriu novamente, a luz do sol já se tornava pálida e oblíqua. O canto dos insetos noturnos começava a preencher o som, como se o mundo respirasse mais lento.

O ranger do portão denunciou a chegada de Moarã. Naiovi se ergueu, ainda sonolenta, e foi até a porta. Viu Moarã atravessando o pátio com passos largos. Um manto invisível de seriedade pareceu envolver a vigia assim que seus olhos encontraram os de Naiovi. O semblante que há pouco estivera descontraído agora se fechava em uma expressão de rigidez.

– Dormiu fora hoje? – perguntou Moarã em tom neutro, mas com uma ponta de dureza, deixando as palavras ecoarem no espaço estreito entre elas.

Naiovi se ajeitou, tentando limpar a voz do peso do sono. 

– Dormi no laboratório… Acabei não percebendo a hora.

O vazio que se seguiu foi tão espesso que parecia ter corpo próprio. O ar da casa pesava, como se tudo estivesse atento àquela troca. Não tocaram no assunto que as separava como um muro: a discussão ríspida, o ressentimento ainda fresco, a dança que cada uma fazia para não ceder primeiro.

Moarã largou um feixe de galhos secos próximo à lareira e ajustou alguns potes na prateleira com movimentos que pareciam mais bruscos do que o necessário. Naiovi, por sua vez, apoiou as mãos na mesa, os dedos tamborilando em um compasso nervoso que não combinava com o silêncio resignado que as envolvia.

Por alguns instantes, apenas o som distante do vilarejo entrando em noite preencheu a casa: o coro suave das cigarras, o estalo de madeira aquecida pelo último sol. Duas presenças tão próximas, mas tão distantes, separadas por tudo que não conseguiam – ou não queriam –  dizer.

Por alguns instantes, o silêncio só era quebrado pelos estalos da madeira seca, que Moarã empilhava com mais força do que precisava. Naiovi respirou fundo. O ar carregava o cheiro de resinas, ervas penduradas e algo que era puramente Moarã. Decidiu romper o vácuo que pesava entre as duas.

– Encontrei Ethel no laboratório hoje – começou, tentando manter a voz firme. – Ela disse que te viu na adega ontem. Parece que foi… divertido.

Moarã interrompeu o movimento por um segundo, erguendo o olhar de forma quase imperceptível. Depois voltou a organizar os galhos, mas a tensão em seus ombros parecia menor.

– Foi sim. A lua nova chega em breve e o clima fica um pouco… diferente por aqui.

Naiovi anotou mentalmente: colher informações sobre como lidam com os ciclos da lua. Havia algo no tom de Moarã que indicava que aquela mudança não era apenas astronômica – e a ideia de entender esses ritmos, de encontrar neles uma chave para decifrar Valeã, reacendeu algo de analítico em sua mente.

Elas permaneceram em silêncio depois disso, mas não mais o silêncio sufocante de antes: era como se a simples troca de palavras tivesse criado um pequeno vão de trégua entre as duas. Depois de alguns minutos em que apenas o som do vento se infiltrava pelas frestas da casa, Naiovi quebrou a quietude com um comentário que carregava uma ponta de brincadeira, mas também de genuína curiosidade.

– E onde vocês pegam comida por aqui? – perguntou, olhando ao redor como quem busca prateleiras invisíveis. – Não vi nenhum supermercado escondido embaixo das árvores.

Moarã ergueu uma sobrancelha, surpresa pela pergunta e pelo tom. 

– Temos algumas hortas coletivas no sul do vilarejo. Trocas na praça. Às vezes caçamos, pescamos… ou plantamos o que precisamos. – respondeu.

Naiovi assentiu apenas com o queixo e saiu pela porta sem mais explicações. Moarã a acompanhou com o olhar até que ela sumisse entre as sombras da tarde.

Minutos depois, Naiovi retornou com braços carregados com frutas de casca espessa, tubérculos ainda sujos de terra e ramos verdes cheirosos. Colocou tudo sobre a bancada, limpando a poeira das mãos na calça.

Moarã franziu o cenho, surpresa: 

– Como você conseguiu isso tão rápido?

– Deixei na conta da liderança das fronteiras – respondeu Naiovi, sem esboçar qualquer arrependimento, mas com um brilho maroto nos olhos – Disseram que você tem crédito. Bastante, aliás.

Moarã soltou um riso curto, rouco, balançando a cabeça como quem não acreditava na audácia. 

– Você é… inacreditável. – disse, mas havia diversão em sua voz.

O riso, porém, morreu rápido quando Naiovi virou-se para encará-la com seriedade: 

– Preciso aprender a me virar sozinha. Sem depender de você.

As palavras pairaram no ar como um estalo seco. Algo naquela frase soava como autonomia, mas também como… hostilidade? Ou talvez apenas a dureza de quem passou a vida inteira precisando provar que podia sozinha.

Sem esperar resposta, Naiovi começou a lavar os vegetais e separar as frutas com gestos meticulosos. Seu olhar se concentrou nos cortes. Estava fazendo uma comida adaptada de Kohr, ajustada aos ingredientes que conseguira. Seria a primeira vez em muito tempo que colocaria a mão em panelas para cozinhar algo. Em Kohr, nunca precisara: a comida vinha até ela, pronta, como tudo em sua vida de herdeira ocupada demais para se preocupar com o básico. Mas ali, longe de Kohr, o essencial batia à porta.

Enquanto Naiovi picava os tubérculos e misturava ervas que reconhecia pelo cheiro, Moarã se manteve sentada perto da porta, fingindo arrumar a aljava e afiar uma flecha já perfeita. Seus olhos, porém, pairavam de tempos em tempos sobre os movimentos calculados de Naiovi – demorando-se nos cortes, nos modos que misturavam precisão e uma certa delicadeza inesperada.

O cheiro começou a subir das panelas, quente, levemente apimentado, com notas terrosas que lembravam a cozinha de Valeã, mas com algo diferente, quase cítrico. A curiosidade de Moarã era evidente nos olhares rápidos, mas ela parecia se recusar a perguntar, como se fosse um jogo silencioso. Naiovi, percebendo, ergueu o rosto enquanto mexia a mistura. Seu tom era casual, mas seus olhos, atentos: 

– Em Kohr, eu não precisava cozinhar. – começou, quase como quem fala sozinha – Desde criança, tinha um tutor que cuidava de tudo. Foi ele quem me ensinou sobre química da água e como conduzir reuniões do Conselho Cinzento. Ele dizia que, se eu não soubesse manter a água pura, nunca poderia manter nada puro em Kohr.

Moarã desviou os olhos para as mãos, mas o silêncio que se instalou depois era diferente, de escuta. Seu polegar roçava a lateral da flecha, como quem precisa de algo para ocupar os dedos.

– E você? – Naiovi continuou, aproveitando a pausa. – Sempre fala em escutar Valeã, em esperar o momento certo… mas quem te ensinou isso? Alguém também te mostrou como ler a terra? – perguntou com cuidado, mas sem rodeios, lançando a pergunta como uma linha que esperava fisgar alguma resposta.

O fogo da pequena fornalha estalava suavemente, preenchendo o ambiente. O cheiro do cozido se espalhava, quente e reconfortante, enquanto Naiovi observava Moarã, tentando decifrar as sombras em seus olhos.

Moarã respirou fundo, abrindo a boca como quem fosse responder… mas hesitou, prendendo a frase na garganta. Seu olhar encontrou o de Naiovi, e por um instante pareceu vulnerável, ponderando se deveria ou não entregar suas histórias. Quando falou, sua voz saiu baixa, arranhada, como se viesse de longe:

– Kauã. – disse apenas, o nome soando mais pesado do que qualquer explicação. – Ele me mostrou que a terra fala, mas também que escutar é escolher.

Um silêncio se estendeu entre as duas, mais cheio do que vazio. E então Naiovi voltou a mexer a panela, satisfeita por ter, enfim, arrancado algo que não fosse mais uma metáfora.

Quando o aroma do cozido se tornou irresistível, Naiovi desligou a pequena chama e começou a servir duas tigelas fumegantes, distribuindo generosas porções de legumes macios envolvidos em um caldo espesso e perfumado. O calor parecia aquecer não só a cozinha, mas também o silêncio entre as duas.

– É… diferente. – comentou Moarã, pegando a tigela com cuidado e o vapor embaçando levemente seu rosto. Seus olhos se demoraram sobre a superfície brilhante do caldo, depois ergueram-se, curiosos. – Que erva é essa? Tem um cheiro… ácido. Mas bom.

– Citriomila. Uma planta que cresce em Kohr, resistente ao solo salino. Ajuda a quebrar toxinas. – respondeu Naiovi, com naturalidade, mas observando cada reação de Moarã como se fosse parte de um experimento.

Provaram em silêncio. A primeira colherada fez Moarã erguer as sobrancelhas, surpresa com o contraste de sabores: o amargor inicial que se dissolvia em doçura terrosa, o calor do tempero que chegava suave, mas persistente. Seu rosto se abrandou, quase um sorriso contido se formando nos lábios.

– Vocês comem assim… todos juntos? – perguntou Moarã, com a voz mais suave, quase curiosa demais para quem fingia desinteresse. – Em Kohr.

Naiovi mastigou devagar antes de responder:

– Às vezes. Em banquetes do conselho. Mas, na maior parte do tempo, comemos em salas isoladas, entre reuniões ou estudos. A comida é só… combustível. – disse, e houve um leve amargor em sua voz, como quem se surpreendia em perceber a falta que sentia de algo que talvez nunca tivesse tido.

Moarã soltou um som baixo, entre um resmungo e um suspiro:

– Em Valeã, comer é partilha. – disse, encarando a própria tigela, onde o caldo se agitava levemente. – Quando alguém come sozinho, é porque carrega algo pesado. Ou porque não confia em quem está ao lado.

Naiovi desviou o olhar para a janela e sentiu o peso da fala de Moarã pousar sobre si, desconfortável mas verdadeiro. Então voltou a encarar Moarã com franqueza incomum:

– Você confia em mim? – perguntou, sem tom de desafio.

Moarã ergueu os olhos com o olhar sério, profundo como a terra molhada.

– Não. – respondeu sem hesitação, mas completou com um suspiro, como se fosse mais difícil manter a muralha erguida do que admitir. – Ainda não.

Um silêncio cheio de significado se seguiu, enquanto ambas comiam, cada colherada aquecia mais do que o estômago. Quando as tigelas ficaram vazias, Naiovi se levantou para limpá-las, mas Moarã segurou levemente sua mão, tirando o recipiente.

– Em Valeã, quem cozinha descansa. – disse com simplicidade, levando as tigelas para lavar enquanto Naiovi a observava, surpresa, quase tocada.

Aquela noite foi a primeira, em muitos dias, em que o sono não chegou como uma batalha. Quando se recolheram, a casa parecia menos cheia de sombras. O cheiro do caldo ainda flutuava no ar, misturando-se às ervas secando nas vigas. Os corpos, exaustos, mas aquecidos pela refeição, se renderam ao descanso.

Moarã adormeceu rapidamente, a respiração profunda denunciando um alívio que não lembrava ter sentido desde que Naiovi chegara. Já Naiovi permaneceu acordada por um tempo, deitada em sua esteira. Seus olhos percorriam o teto, depois pousaram no arco que Moarã lhe entregara dias antes. Passou os dedos sobre a madeira polida, sentindo o peso simbólico do objeto.

Havia conseguido se aproximar. Conseguira colher informações. Conseguira, principalmente, não se isolar de forma irreversível. Seus últimos passos foram satisfatórios. Abriu seu caderno de capa escura, puxou uma lanterna de luz fraca e, no canto da página seguinte, escreveu em letras rápidas e precisas, reservando uma página para cada tópico, deixando espaço livre para anotações futuras:

Moarã:

→ Valoriza partilha à mesa; considera comer sozinho sinal de desconfiança ou dor. Acolheu gesto de preparo de alimento como parte do laço social. Reação positiva à integração em tarefa doméstica. 

→ Ensina jovens de idades variadas a talhar madeira; atividade promove confiança, disciplina e senso de pertencimento. Forte indicador de relevância social, tendo bastante crédito na comunidade. Provavelmente respeitada e visada, exerce influência sem recorrer a imposição. Mantinha uma postura paciente, transmitindo saber prático de forma acessível; usa silêncio e gestos em vez de discursos. As crianças demonstravam conforto, curiosidade e apreço – reflexo do vínculo construído.


Ethel: 

→ Integra-se com facilidade social; pode servir de elo entre estrangeiros e comunidade. Capaz de perceber intenções sutis; evita confronto direto, mas observa tudo. Possui exímio conhecimento prático acerca da flora e fauna; útil como mediadora cultural e pesquisadora. 


Ciclos lunares: 

→ Festividades ligadas à lua cheia e lua nova parecem regular tensões, expurgos emocionais e reafirmação de laços. Investigar se há influência direta sobre decisões coletivas.


Kauã: 

→ Figura de respeito mesmo ausente fisicamente; seu nome ainda funciona como peso de autoridade. Relacionamento anterior com Moarã sugere papel de mentor e elo com tradições locais.

→ Confirmar se Kauã está vivo ou ausente por outro motivo. Há silêncio em torno dele, talvez proposital.

 

Fechou o caderno com cuidado, repousou-o ao lado da esteira, perto de uma pequena caixinha redonda metálica e deixou-se relaxar completamente. O som distante do vento entre as árvores embalava a casa, quase como um canto antigo. Naquele breve intervalo de paz, Naiovi percebeu que, apesar de tudo, talvez estivesse aprendendo a escutar.

***********

Fim do capítulo

Notas finais:

Ausländer: Estrangeiro, em alemão. 

Para acompanhar a leitura, deixo como trilha essa música de mesmo nome da banda alemã Rammstein: crua, provocadora, ambígua como o próprio conceito de fronteira. Porque o que chega de fora às vezes tem o potencial de abalar por dentro.

 

Para quem gosta de camadas: https://youtu.be/pat2c33sbog?list=RDpat2c33sbog

 


Comentar este capítulo:
[Faça o login para poder comentar]
  • Capítulo anterior
  • Próximo capítulo

Comentários para 5 - Auslander:

Sem comentários

Informar violação das regras

Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:

Logo

Lettera é um projeto de Cristiane Schwinden

E-mail: contato@projetolettera.com.br

Todas as histórias deste site e os comentários dos leitores sao de inteira responsabilidade de seus autores.

Sua conta

  • Login
  • Esqueci a senha
  • Cadastre-se
  • Logout

Navegue

  • Home
  • Recentes
  • Finalizadas
  • Ranking
  • Autores
  • Membros
  • Promoções
  • Regras
  • Ajuda
  • Quem Somos
  • Como doar
  • Loja / Livros
  • Notícias
  • Fale Conosco
© Desenvolvido por Cristiane Schwinden - Porttal Web